quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
Desejar um bom ano...
... a todos, e especialmente àquela única pessoa, no mundo, que se recusará a receber esse voto: Priscylla Mariuszka Moskevitch.
Soneto das duas naus
Buscando o amor, duas naus,
Uma de nobres guerreiros,
E a outra de flibusteiros,
Por ventos bons e por maus
Lançaram-se pelos pélagos,
Rondaram todas as ilhas
E com o furor de suas quilhas
Rasgaram os arquipélagos.
Depois de intensos tormentos
O desatino dos ventos
A nau dos bons afundou
E o canto dos vencedores,
Dos vis, dos estupradores,
Sobre as ondas se elevou.
Uma de nobres guerreiros,
E a outra de flibusteiros,
Por ventos bons e por maus
Lançaram-se pelos pélagos,
Rondaram todas as ilhas
E com o furor de suas quilhas
Rasgaram os arquipélagos.
Depois de intensos tormentos
O desatino dos ventos
A nau dos bons afundou
E o canto dos vencedores,
Dos vis, dos estupradores,
Sobre as ondas se elevou.
Presa e predador
Sempre damos mais uma chance ao amor. Está em nossa índole e convém à sua natureza de predador.
Quem faz o quê
Não é o amor que nos mata. Nós é que morremos por ele. E que escandaloso é o nosso sorriso.
Cena final
Não há mais o que fazer.
Viveste, esparso ou inteiro,
E o que consta no roteiro
Depois da vida é morrer.
Viveste, esparso ou inteiro,
E o que consta no roteiro
Depois da vida é morrer.
"Antigo pensar", poema de Li Qi
"Homens recentes cumprem expedições longínquas
- Parti novo. Forasteiro nas regiões do Nordeste
Jurei vencer, deitado - uma aposta - sob os cascos de um cavalo
Já que pouca atenção dou a este corpo de sete polegadas.
Matar, isso, sim sou capaz. Quem me vai fazer frente
É a feroz barba igual a picos de ouriço.
No sopé da cordilheira amarelas brumas voam nuvens brancas
- Enquanto estiver no serviço não pode ir de volta,
Uma rapariga coreana, dos seus quinze anos
Sabendo tocar hábil em dança e cantares
Entoa na flauta bárbara uma canção das raias
Em três corpos de exército correr faz as lágrimas."
(Do livro Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil Carvalho, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
- Parti novo. Forasteiro nas regiões do Nordeste
Jurei vencer, deitado - uma aposta - sob os cascos de um cavalo
Já que pouca atenção dou a este corpo de sete polegadas.
Matar, isso, sim sou capaz. Quem me vai fazer frente
É a feroz barba igual a picos de ouriço.
No sopé da cordilheira amarelas brumas voam nuvens brancas
- Enquanto estiver no serviço não pode ir de volta,
Uma rapariga coreana, dos seus quinze anos
Sabendo tocar hábil em dança e cantares
Entoa na flauta bárbara uma canção das raias
Em três corpos de exército correr faz as lágrimas."
(Do livro Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil Carvalho, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Balança
Nossa valia é variada,
É tudo muito fortuito.
Dez vezes valemos muito,
Mil vezes valemos nada.
É tudo muito fortuito.
Dez vezes valemos muito,
Mil vezes valemos nada.
Lacuna
Não ser o autor de Romeu e Julieta ou Crime e castigo é uma desgraça que acontece à maioria dos escritores.
Sorte
Escrever é sempre um jogo.
A sorte pode nos dar
Ulisses, O velho e o mar
Ou Marimbondos de fogo.
A sorte pode nos dar
Ulisses, O velho e o mar
Ou Marimbondos de fogo.
Férias
A nenhum escritor faria mal ser Paulo Coelho por seis meses, ou por um ano, e depois voltar ao que lhe parecesse literatura.
Antimemória de dezembro
Sempre que chega dezembro,
Em nome da sanidade,
De mim escondo a verdade,
E finjo que não me lembro.
E esfolo a manhã, e mato
Também a tarde em que amei
E amei tanto que pensei
Que o amor fosse mesmo um fato.
Em nome da sanidade,
De mim escondo a verdade,
E finjo que não me lembro.
E esfolo a manhã, e mato
Também a tarde em que amei
E amei tanto que pensei
Que o amor fosse mesmo um fato.
Cotação do dia
Armei uma tempestade, como se eu fosse um transatlântico e precisasse testar-me. Tolo. Eu era o que sempre fui, o que sou. Uma folha que o vento tem pejo de empurrar.
Um trecho de Diogo Mainardi
"Até aquele momento, eu sempre pensara que, se meu filho permanecesse em estado vegetativo, eu esperaria que ele morresse. Depois do primeiro contato com Tito no corredor do claustro do hospital de Veneza, tudo se transformou. Eu só queria que ele sobrevivesse, porque eu o amaria e o acudiria de qualquer maneira. Entre a vida e a morte, aferrei-me à vida."
(Do livro A queda, publicado pela Record.)
(Do livro A queda, publicado pela Record.)
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
Diagnóstico
Notando que estertorava,
Lhe deram anestesia
E vupt!, para a cirurgia.
Porém o mal que o matava
Ninguém ali pressentia
E nem sequer suspeitava.
Sofria só porque amava,
Morreu no sétimo dia.
Lhe deram anestesia
E vupt!, para a cirurgia.
Porém o mal que o matava
Ninguém ali pressentia
E nem sequer suspeitava.
Sofria só porque amava,
Morreu no sétimo dia.
Soneto do Amor e seus feitos
Para as suas epopeias,
O Amor reputa propícias
Tanto as enjoadas patrícias
Quanto as alegres plebeias.
Para as suas melopeias
Lhe servem puras Alícias,
De recatadas delícias,
E desbocadas Frineias.
Ele tem fama de puro
Mas não pode ver um furo
Sem querê-lo aprofundar.
De lua fala e poesia
Mas o que mais aprecia
É buracos escavar.
O Amor reputa propícias
Tanto as enjoadas patrícias
Quanto as alegres plebeias.
Para as suas melopeias
Lhe servem puras Alícias,
De recatadas delícias,
E desbocadas Frineias.
Ele tem fama de puro
Mas não pode ver um furo
Sem querê-lo aprofundar.
De lua fala e poesia
Mas o que mais aprecia
É buracos escavar.
domingo, 28 de dezembro de 2014
Soneto da celebração
O amor será celebrado
No que tiver nos servido,
No que tiver nos valido,
No que tiver nos somado.
Será também decantado
No que tiver nos doído,
No que tiver nos pungido,
No que tiver nos magoado.
Fazermos isso será
O que mais belo haverá
Para por ele fazer.
Cantar o único motivo
Para alguém continuar vivo,
Ou para querer morrer.
No que tiver nos servido,
No que tiver nos valido,
No que tiver nos somado.
Será também decantado
No que tiver nos doído,
No que tiver nos pungido,
No que tiver nos magoado.
Fazermos isso será
O que mais belo haverá
Para por ele fazer.
Cantar o único motivo
Para alguém continuar vivo,
Ou para querer morrer.
Corda
Tantas vezes ele te falou da corda, tantas vezes ele a tirou da gaveta para mostrá-la, e não lhe deste atenção. Já não a acharás na gaveta. Hoje a encontraram em volta do pescoço dele, derradeira gravata.
Quarto 424
Um dia alguém perguntará no saguão e saberá que o teu quarto é o 123 (não, não, desculpe, é o 424, dirá o atendente, que cabeça a minha) e teu (ou tua) visitante comentará como tu sempre foste querido e como é bom que estejas te recuperando. Será como se, no 424, tu, destinatário de tão poucas palavras doces na vida, tivesses ouvido isso. Fecharás os olhos, te entregarás ao teu último momento, e estarás com um rosto tão feliz que, quando entrar no quarto, o teu ou a tua visitante sorrirá e ficará em silêncio, imaginando que estarás dormindo.
Intensidade
Ao contrário do que dizes
Convictamente, jamais
Seremos tão infelizes
Que não possamos ser mais.
Convictamente, jamais
Seremos tão infelizes
Que não possamos ser mais.
Bivalente
Deste aforismo singelo
Quem haverá de descrer?
O amor é o modo mais belo
De viver e de morrer.
Quem haverá de descrer?
O amor é o modo mais belo
De viver e de morrer.
Soneto das letras escarlates
Resolvi hoje queimar
As fotos, cartas, mensagens
Que em mil felizes passagens
Tu me quiseste mandar.
Antes de me desfazer
Dessa parte, a mais querida
De todas na minha vida,
Jurei não me enternecer.
Como um carrasco agiria,
Indiferente à agonia
E isento de compaixão.
Assim fiz. Sem chorar vi
O que de melhor vivi
Queimar-se com lentidão.
As fotos, cartas, mensagens
Que em mil felizes passagens
Tu me quiseste mandar.
Antes de me desfazer
Dessa parte, a mais querida
De todas na minha vida,
Jurei não me enternecer.
Como um carrasco agiria,
Indiferente à agonia
E isento de compaixão.
Assim fiz. Sem chorar vi
O que de melhor vivi
Queimar-se com lentidão.
sábado, 27 de dezembro de 2014
Soneto dos dois viciados
Sim, ainda nos recordamos
Com ressentido prazer
Das juras que nos juramos
De amar-nos até morrer.
Nós conosco nos viciamos,
Nós nos demos de beber,
Conosco nos injetamos,
Soubemos nos perverter.
Mas um dia, de repente,
Injustificadamente,
Te foste sem dizer nada
Para um destino ignorado.
Que farei, de ti viciado?
Que farás, de mim viciada?
Com ressentido prazer
Das juras que nos juramos
De amar-nos até morrer.
Nós conosco nos viciamos,
Nós nos demos de beber,
Conosco nos injetamos,
Soubemos nos perverter.
Mas um dia, de repente,
Injustificadamente,
Te foste sem dizer nada
Para um destino ignorado.
Que farei, de ti viciado?
Que farás, de mim viciada?
sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
Soneto da absolvição
Quando vier o dia em que eu,
Depois desta vida fútil,
Sem ter feito nada de útil,
For alguém que já morreu,
Serei de tudo absolvido
Como se fosse perfeito
Em tudo que houvesse feito
E em nada fosse excedido.
Mesmo tu, minha querida,
Que nunca os chegaste a ler,
Irás a todos dizer
Que pelo resto da vida
Versos como os meus jamais
Chegarás a ler iguais.
Depois desta vida fútil,
Sem ter feito nada de útil,
For alguém que já morreu,
Serei de tudo absolvido
Como se fosse perfeito
Em tudo que houvesse feito
E em nada fosse excedido.
Mesmo tu, minha querida,
Que nunca os chegaste a ler,
Irás a todos dizer
Que pelo resto da vida
Versos como os meus jamais
Chegarás a ler iguais.
Cotação do dia
Eu estou carente, sim.
Se fosse um poste, olharia
Para os cães e pediria:
"Por favor, mijem em mim."
Se fosse um poste, olharia
Para os cães e pediria:
"Por favor, mijem em mim."
Patifes
Patifes sois e sereis
Vós todos que amor jurais,
Se ao jurardes já sabeis
Que não cumprireis jamais.
Vós todos que amor jurais,
Se ao jurardes já sabeis
Que não cumprireis jamais.
Éreis?
Naquele dia em que ouvi
Aquelas coisas amáveis,
Éreis vós mesma que vi
Ou vós ali não estáveis?
Aquelas coisas amáveis,
Éreis vós mesma que vi
Ou vós ali não estáveis?
"Visita", de Mariana Ianelli
"Envelheceu o nosso pai,
Se fez longínquo.
De olhos abertos
Dorme o sono das pedras,
Seu reino é uma ilha.
Ele sabe o nosso horror
Debaixo do sorriso,
Tudo ele vê, toca, atravessa,
Nossa bruma,
Nossa mão escondida.
O silêncio está tão perto,
Nós fechamos os ouvidos.
Ele passa lentamente,
Envergonha a nossa pressa
E se retira.
A penumbra de cada visita
Nos dai hoje,
Rezamos (sem rezar)
Todos os dias."
(D livro Terra alvorada, edições ardotempo.)
Se fez longínquo.
De olhos abertos
Dorme o sono das pedras,
Seu reino é uma ilha.
Ele sabe o nosso horror
Debaixo do sorriso,
Tudo ele vê, toca, atravessa,
Nossa bruma,
Nossa mão escondida.
O silêncio está tão perto,
Nós fechamos os ouvidos.
Ele passa lentamente,
Envergonha a nossa pressa
E se retira.
A penumbra de cada visita
Nos dai hoje,
Rezamos (sem rezar)
Todos os dias."
(D livro Terra alvorada, edições ardotempo.)
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
Falsidade
O que o amor nos prometeu
Com tanto empenho, fervor
E tão atroz despudor,
Tu recebeste? Nem eu.
Com tanto empenho, fervor
E tão atroz despudor,
Tu recebeste? Nem eu.
Crianças
Crianças têm expressões que espantam e encantam os adultos. Meu amigo Oswaldo de Camargo conta que numa festa em sua casa o filho dele, então com cinco anos, ficou extasiado com os enormes seios de uma convidada. Começou a segui-la por toda parte. Naturalmente vieram os comentários: olha aí, Camargo, teu filhote está apaixonado, isso vai dar em casamento. A mulher ria, mas o garoto continuou sério, até que criou coragem e, apontando os seios pródigos, perguntou: a sua bunda é aí, é? E meu filho Edu estava com uns oito anos quando, vendo na tevê o par romântico de uma novela esbanjando beijos e amassos num carro, disse, com aflição: pai, eu estou ficando com raiva no pinto.
Soneto do bem e do mal do amor
Acordo como dormi.
Da vida desiludido,
Magoado, triste, vencido,
Pensando apenas em ti.
O que contigo vivi
Naquele tempo querido
Tão ido, já, e vivido,
Ainda hoje não esqueci.
Lembro de tudo acordado
E, quando o corpo cansado
Se entrega ao sono, afinal,
Sonho e, no sonho que vem,
Teu amor, todo o meu bem,
É também meu maior mal.
Da vida desiludido,
Magoado, triste, vencido,
Pensando apenas em ti.
O que contigo vivi
Naquele tempo querido
Tão ido, já, e vivido,
Ainda hoje não esqueci.
Lembro de tudo acordado
E, quando o corpo cansado
Se entrega ao sono, afinal,
Sonho e, no sonho que vem,
Teu amor, todo o meu bem,
É também meu maior mal.
A norma
Há muito sabes, de cor,
Porque isso é que é o habitual:
Irá tudo sempre mal,
E de mal irá a pior.
Porque isso é que é o habitual:
Irá tudo sempre mal,
E de mal irá a pior.
Musa
Minha musa é sóbria, fria.
Distante por natureza,
Abre os braços à tristeza,
Fecha os olhos à alegria.
Distante por natureza,
Abre os braços à tristeza,
Fecha os olhos à alegria.
Compromisso
Embora pareça uma atitude de extrema presunção, o escritor, quando escreve a primeira palavra de um texto, deve pensar que está começando algo que se relacione com a arte.
Uma fala de Romeu
"É suplício, e não favor! O céu está onde Julieta viver; e qualquer gato, cão e camundongo, qualquer coisa por indigna que seja, aqui vive no céu e pode contemplá-la; só Romeu não pode! Mais felizes do que Romeu, mais honrosa situação, maior cortesania alcançam as moscas que vivem na podridão! Elas podem pousar no branco prodígio da mão de minha amada Julieta e roubar a dita mortal dos seus lábios, constantemente ruborizados pelo puro e virginal pudor, como se tivessem por pecado seus recíprocos beijos! Porém Romeu não pode a tanto chegar! Está banido!"
(Romeu e Julieta, ato terceiro, cena 3, tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes, publicado pela Abril.)
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
Soneto de Natal
Se eu tivesse ainda a pureza
Que tinha quando menino,
Me encantaria a beleza
Do alegre toque do sino.
E riria, com certeza,
Como quando, pequenino,
Me alegrava a singeleza
Das notas de qualquer hino.
Passou o tempo, cresci,
E a lição desaprendi
De que o precioso é o banal.
Triste, mudo, só, alheio,
Eu vi ir-se, como veio,
O indesejado Natal.
Que tinha quando menino,
Me encantaria a beleza
Do alegre toque do sino.
E riria, com certeza,
Como quando, pequenino,
Me alegrava a singeleza
Das notas de qualquer hino.
Passou o tempo, cresci,
E a lição desaprendi
De que o precioso é o banal.
Triste, mudo, só, alheio,
Eu vi ir-se, como veio,
O indesejado Natal.
Banquete
Do que respingou nas toalhas,
Do que ficou sob as mesas,
Das carnes, das sobremesas,
O amor recolhe as migalhas.
Do ouro cuspido nas palhas,
Das maçãs e das framboesas
Mordidas sem sutilezas,
O amor recolhe as rapalhas.
Amor, que praga rogaram,
Que maldição te lançaram,
Que te fizeram, amigo?
Para a fartura nasceste
E na opulência cresceste,
Mas morres como um mendigo.
Do que ficou sob as mesas,
Das carnes, das sobremesas,
O amor recolhe as migalhas.
Do ouro cuspido nas palhas,
Das maçãs e das framboesas
Mordidas sem sutilezas,
O amor recolhe as rapalhas.
Amor, que praga rogaram,
Que maldição te lançaram,
Que te fizeram, amigo?
Para a fartura nasceste
E na opulência cresceste,
Mas morres como um mendigo.
Soneto da salvadora
Se quem sou queres saber,
Te digo: sou este traste
A quem tu deste e tiraste
A vontade de viver.
Pensaste em tudo: nos teus
Amigos, nos teus parentes,
Nos planos teus, tão coerentes.
Pensaste acaso nos meus?
Tantas baleias salvaste,
Das crianças não descuraste,
De tudo cuidaste, enfim.
Fizeste tantas cruzadas,
Tão nobres, tão abençoadas.
Fizeste alguma por mim?
Te digo: sou este traste
A quem tu deste e tiraste
A vontade de viver.
Pensaste em tudo: nos teus
Amigos, nos teus parentes,
Nos planos teus, tão coerentes.
Pensaste acaso nos meus?
Tantas baleias salvaste,
Das crianças não descuraste,
De tudo cuidaste, enfim.
Fizeste tantas cruzadas,
Tão nobres, tão abençoadas.
Fizeste alguma por mim?
Da bênção imerecida
Depois dos erros tão crassos
Que ontem nós dois cometemos,
Mesmo assim hoje nos temos
Outra vez em nossos braços.
Se erramos todos os passos
E os rumos todos perdemos,
Não sei como merecemos
A bênção destes abraços.
Depois de tanto descaso,
Este milagre, ou acaso,
Seja por nós entendido
Para que erro nenhum mais,
Dos grandes ou dos usuais,
Seja por nós repetido.
Que ontem nós dois cometemos,
Mesmo assim hoje nos temos
Outra vez em nossos braços.
Se erramos todos os passos
E os rumos todos perdemos,
Não sei como merecemos
A bênção destes abraços.
Depois de tanto descaso,
Este milagre, ou acaso,
Seja por nós entendido
Para que erro nenhum mais,
Dos grandes ou dos usuais,
Seja por nós repetido.
Natal
Talvez alguém se enterneça
E me deixe algum recado.
Ou então talvez esqueça.
Eu já estou habituado.
E me deixe algum recado.
Ou então talvez esqueça.
Eu já estou habituado.
Cotação do dia
Resistir ao sentimentalismo e assegurar à minha fiel tristeza que não me deixarei iludir pelo que me desejarem hoje.
Segunda chance
Se um dia acaso tivermos
O amor novamente à mão,
Não percamos a ocasião,
Se ainda o que é amor soubermos.
O amor novamente à mão,
Não percamos a ocasião,
Se ainda o que é amor soubermos.
Ninguém mais diz adeus
Como eram comoventes aquelas longas cartas em que as mulheres renunciavam ao amor e apresentavam dezenas de argumentos, ditados pela razão e pelo coração, em folhas e folhas manuscritas e molhadas pelas lágrimas. Não existe adeus na linguagem amorosa atual, nem lágrimas. Por e-mail ou pelo msn, sem preâmbulo e sem argumentação, vêm as quatro incisivas palavras: "Fulano, olha, já deu." Ou, quando há um pouco mais de consideração, estas oito: "Fulano, é pena, mas não vai mais rolar."
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
Folha corrida
O amor é aquele farsante
Que nos dá um golpe aqui,
Outro golpe aplica ali,
Ri de nós e segue adiante.
Que nos dá um golpe aqui,
Outro golpe aplica ali,
Ri de nós e segue adiante.
Horror
Nos pesadelos, Mario Quintana era enfiado numa gaiola por um homem que tinha suas mãos e seu rosto.
Um trecho de Katherine Mansfield
"Assim todos nós começamos por representar e quanto mais perto estivermos do que seríamos, mais perfeito é o nosso disfarce. Finalmente, vem o momento em que não mais estamos representando; isso pode até nos pegar de surpresa. Podemos olhar estupefatos para nossas plumagens não mais emprestadas. Elas se fundiram: a que vestimos juntou-se à que existia; representar se transformou em atuar. A alma aceitou como sendo sua essa libré, depois de um período de experiência e aprovação."
(D livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)
(D livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
Solução
Morrer é um modo sucinto
De fazer voltar a calma
Tanto à nossa sofrida alma
Quanto ao nosso tolo pinto.
De fazer voltar a calma
Tanto à nossa sofrida alma
Quanto ao nosso tolo pinto.
Cotação do dia
Acordar e ver-me venturosamente preso ainda pelo amor. Sorrir e desdenhar os que lá fora passam cantando a liberdade.
"Semelhança", de Mariana Ianelli
" - E se a tua mudez
For a superfície de um lago
Que nada recusa refletir
E se eu ali mergulhado
Feito um cego
Compreender
Que o rosto que me falta ver
É este rosto
Que sempre te ofereço
Mas que frente a frente
Jamais encontrei
E se o pranto for a verdade
Do canto
O assombro de um horizonte
Tão brando
Que desde longe me obriga
A trazer à tona, um dia,
O teu rosto refletido -"
(D livro O amor e depois, edições ardotempo.)
For a superfície de um lago
Que nada recusa refletir
E se eu ali mergulhado
Feito um cego
Compreender
Que o rosto que me falta ver
É este rosto
Que sempre te ofereço
Mas que frente a frente
Jamais encontrei
E se o pranto for a verdade
Do canto
O assombro de um horizonte
Tão brando
Que desde longe me obriga
A trazer à tona, um dia,
O teu rosto refletido -"
(D livro O amor e depois, edições ardotempo.)
domingo, 21 de dezembro de 2014
No cativeiro
Para cantar seu encanto,
Para nós, seus sentenciados,
O amor, nos dias marcados,
Patrocina aulas de canto.
Para nós, seus sentenciados,
O amor, nos dias marcados,
Patrocina aulas de canto.
Do fulgor decadente
Será possível que o encanto
Inigualável do amor
E seu mágico fulgor
Sejam jogados a um canto?
Parece que não. No entanto,
Arrefeceu seu calor
E o que tinha antes valor
Agora já não tem tanto.
Logo chegará o dia
Em que a já pouca magia
Se desfará totalmente.
Quando esse dia chegar,
Iremos nos perguntar
Se o amor existiu realmente.
Inigualável do amor
E seu mágico fulgor
Sejam jogados a um canto?
Parece que não. No entanto,
Arrefeceu seu calor
E o que tinha antes valor
Agora já não tem tanto.
Logo chegará o dia
Em que a já pouca magia
Se desfará totalmente.
Quando esse dia chegar,
Iremos nos perguntar
Se o amor existiu realmente.
www.rubem.wordpress.com
Na crônica de hoje, falo dessas pessoas que, sempre alegando que agem ou se omitem por nosso bem, nos dilaceram e matam.
Assim seria
Eu saberia dançar. E dançaríamos. A janela estaria aberta, e pétalas de rosas flutuariam entre nós como se fossem as notas da canção. Quando a música acabasse, as notas continuariam flutuando. Você, gentil, me perguntaria onde eu tinha aprendido a dançar tão bem, e eu tentaria retribuir recolhendo algumas pétalas, para dá-las a você. Você riria muito: "Você aprendeu a dançar, seu tolinho, mas nunca vai saber apanhar pétalas."
Um trecho de Mariana Ianelli
"Quanto pesem os maus bocados, as páginas rasuradas e sem nexo de minha vida, sempre te encontro debaixo de um céu imenso, num sossego que torna ridículo qualquer acesso de impaciência. E que vida cinzenta seria a minha se não estivesse ali contigo, se apesar de tudo não conseguisse estar, se inventasse uma desculpa por medo, medo da noite, medo do sossego, medo dos teus olhos tocando os meus, lá no fundo de um poço, como só aqueles que se amam sabem fazer. Mas até hoje alguma coisa em mim foi maior que o medo, alguma coisa de bicho desaçamado que fareja a terra e se sente bem."
(Da crônica "Carta para o amigo", extraída do livro Breves anotações sobre um tigre, editora ardotempo.)
(Da crônica "Carta para o amigo", extraída do livro Breves anotações sobre um tigre, editora ardotempo.)
sábado, 20 de dezembro de 2014
Serventia
Para que te servirá o amor, se não te doer? O amor deve roer o corpo, supliciar a alma. O amor não é isso que estão dizendo. O amor não é um nome na agenda e um encontro marcado para um cineminha, um jantarzinho e o motel. O amor será aquilo que clamaremos sempre para ter, sempre em vão. O amor é aquilo que, felizmente, nunca chegaremos a merecer.
Síntese
Pelos meus planos, esta seria a época em que os críticos literários me avaliariam, assombrados. Algo não deu certo, e mais adequado seria chamar um açougueiro para pesar e ver quanto vale minha carcaça.
Cotação do dia
O tempo propício passou. Hoje o homem pendurado na corda já não seria aquele que dela precisava e a merecia.
Saudosismo
Na barraca dos pastéis
Ele, com muito desgosto,
Lembra que tinham mais gosto
Quando custavam cem réis.
Ele, com muito desgosto,
Lembra que tinham mais gosto
Quando custavam cem réis.
"Canção do vidraceiro", de Jacques Prévert
"Como é bonito
o que se pode ver de repente
através da areia através do vidro
através dos caixilhos
olhe lá veja por exemplo
como é bonito
aquele lenhador
bem distante no fundo
que derruba uma árvore
para fazer tábuas
para o carpinteiro
poder fazer uma grande cama
para a pequena vendedora de flores
que vai se casar
com o acendedor de lampiões
que acende todas as noites as luzes
para que o sapateiro possa ver bem
ao consertar os sapatos do engraxate
que escova os do amolador de facas
que afia as tesouras do barbeiro
que corta o cabelo do vendedor de pássaros
que presenteia pássaros para todo o mundo
para que todo o mundo fique de bom humor."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
o que se pode ver de repente
através da areia através do vidro
através dos caixilhos
olhe lá veja por exemplo
como é bonito
aquele lenhador
bem distante no fundo
que derruba uma árvore
para fazer tábuas
para o carpinteiro
poder fazer uma grande cama
para a pequena vendedora de flores
que vai se casar
com o acendedor de lampiões
que acende todas as noites as luzes
para que o sapateiro possa ver bem
ao consertar os sapatos do engraxate
que escova os do amolador de facas
que afia as tesouras do barbeiro
que corta o cabelo do vendedor de pássaros
que presenteia pássaros para todo o mundo
para que todo o mundo fique de bom humor."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
É fantástico
Há alguns anos escrevi uma crônica sobre um menino de uns dez anos que só pensava em matemática. Quando lhe perguntavam o que pretendia ser quando adulto, não vacilava: queria ser uma pessoa jurídica. Assim que o texto foi publicado, recebi uma ligação. Era da produção do Fantástico. Queriam o telefone do menino. Não pude dar. O menino era uma invenção minha.
Melhor
Se posso ainda algo querer
É que depois desta vida
Tão duramente vivida
Seja mais fácil morrer.
É que depois desta vida
Tão duramente vivida
Seja mais fácil morrer.
Ofertas
Tudo o amor nos oferece,
Mas, todavia, contudo,
Da promessa logo esquece
E nada nos dá de tudo.
Mas, todavia, contudo,
Da promessa logo esquece
E nada nos dá de tudo.
Aflição
E o amor será tão grande que não daremos conta dele. Ele começará a escapar pelos nossos olhos, pelos lábios, e haverá nas ruas uma aflição para guardar ao menos um fiapo dele, como lembrança.
Eros
Disse-me que era cego e pediu desculpas antecipadas. Talvez errasse. Disparou a seta com tanta inabilidade que precisei deslocar-me rapidamente, para que ela me acertasse bem no centro do coração.
A vilã
Numa de minhas recentes visitas a colégios, tive uma surpresa. Vi-me de repente diante de uma classe de meninos e meninas não de doze ou treze, mas de cinco a seis anos. O que iria dizer a eles? Disse que ia contar uma história. Oba, oba, oba. E que história iria contar? Não tinha preparado nenhuma. Eu disse: vocês devem ter cuidado quando forem abrir uma gaveta. Outro dia uma caiu no meu pé. Os meninos me olharam. Começo de história esquisito. Perguntaram: e aí? Aí está doendo até agora. Um perguntou: está doendo muito? Respondi: um pouco. Nesse momento, várias mãos se levantaram. Todos queriam me contar uma história. Contaram. No pé de todos, um por um, havia caído uma gaveta, e a pancada ainda doía. Ah, como podem ser gentis as crianças. A professora sorriu quando os garotos e eu fizemos um coro para mostrar como doíam nossos pés: ai, ai, ai. À noite, na feirinha de livros do colégio, alguns me apontavam para os pais: foi no pé dele que caiu a gaveta.
Onipresente
O sexo é sempre um perigo,
Em tudo ele está presente,
Porém mais frequentemente
Um palmo abaixo do umbigo.
Em tudo ele está presente,
Porém mais frequentemente
Um palmo abaixo do umbigo.
As fotos de Paula Saraiva
Esta noite segui num sonho uma das mulheres das fotos de Paula Saraiva. Acordei de manhã com fiapos de nuvens na cabeça e, por um instante, julguei que me coroavam poeta.
"Canção dos caramujos que vão ao enterro", de Jacques Prévert
"Ao enterro de uma folha seca
Vão dois caramujos
Têm a concha negra
E véu negro em volta das antenas
Vão pela noite
Uma bela noite de outono
Quando chegam coitados!
Já chegou a primavera
E as folhas que jaziam pelo chão
Todas tinham ressuscitado
Os dois caramujos
Ficam muito desapontados
Mas eis o sol
O sol que lhes diz
Façam o favor façam
O favor de sentar
Tomem um copo de cerveja
Se vontade lhes dá
Tomem caso queiram
O ônibus para Paris
Parte esta noite
Poderão admirar a paisagem
Mas não ponham luto
Sou eu quem lhes aconselha
Escurece o branco do olhos
E também enfeia
Histórias de enterro
São tristes e nada belas
Ganhem as suas cores
As cores da vida
Então animais
Árvores plantas todos
Começaram a cantar
A cantar aos berros
A verdadeira canção viva
A canção do verão
E todo o mundo a beber
E todo o mundo a saudar
É uma bela noite
Uma bela noite de verão
E os dois caramujos
Voltam pra casa
Voltam muito comovidos
Muito felizes
Como beberam demais
Ziguezagueiam um pouco
Mas no céu lá no alto
A lua protetora."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
Vão dois caramujos
Têm a concha negra
E véu negro em volta das antenas
Vão pela noite
Uma bela noite de outono
Quando chegam coitados!
Já chegou a primavera
E as folhas que jaziam pelo chão
Todas tinham ressuscitado
Os dois caramujos
Ficam muito desapontados
Mas eis o sol
O sol que lhes diz
Façam o favor façam
O favor de sentar
Tomem um copo de cerveja
Se vontade lhes dá
Tomem caso queiram
O ônibus para Paris
Parte esta noite
Poderão admirar a paisagem
Mas não ponham luto
Sou eu quem lhes aconselha
Escurece o branco do olhos
E também enfeia
Histórias de enterro
São tristes e nada belas
Ganhem as suas cores
As cores da vida
Então animais
Árvores plantas todos
Começaram a cantar
A cantar aos berros
A verdadeira canção viva
A canção do verão
E todo o mundo a beber
E todo o mundo a saudar
É uma bela noite
Uma bela noite de verão
E os dois caramujos
Voltam pra casa
Voltam muito comovidos
Muito felizes
Como beberam demais
Ziguezagueiam um pouco
Mas no céu lá no alto
A lua protetora."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
Obra
Em tudo fomos deixando
Nosso estilo, nossa marca,
Nossa arte, bisonha e parca,
Que o tempo foi apagando.
Nosso estilo, nossa marca,
Nossa arte, bisonha e parca,
Que o tempo foi apagando.
Mais um sonetinho que até um amor morto pode produzir
Não me agrada dizer isso,
Mas chegou já o momento
De me declarar isento
De ti e de teu feitiço.
Foram anos de loucura,
Infindáveis, angustiantes,
Em troca de alguns instantes
De comedida ternura.
É o fim de tudo, querida.
De ti e de tua vida
Não quero mais saber nada.
Perdoa-me se ocorrer
Que algum dia eu, ao te ver,
Mude para a outra calçada.
Mas chegou já o momento
De me declarar isento
De ti e de teu feitiço.
Foram anos de loucura,
Infindáveis, angustiantes,
Em troca de alguns instantes
De comedida ternura.
É o fim de tudo, querida.
De ti e de tua vida
Não quero mais saber nada.
Perdoa-me se ocorrer
Que algum dia eu, ao te ver,
Mude para a outra calçada.
Lista
Papai Noel, no caderninho,
Marcou diligentemente
Para o lobo um bom presente:
O mais tenro cordeirinho.
Marcou diligentemente
Para o lobo um bom presente:
O mais tenro cordeirinho.
E
E o amor será tão grande em nós que não daremos conta dele. Ele começará a escapar pelos nossos olhos, pelos nossos lábios, e haverá nas ruas uma aflição para apanhar ao menos um fiapo dele.
Para o dia
Saio para a manhã. No jardim, olho com ansiedade para as folhas no chão. Todas da minha ameixeira. Um folheto de pizzaria, outro de encanador. A amada não se lembra mais de mim. Deve estar dormindo agora, depois de dançar toda a noite com marinheiros holandeses e beber vinho nos lábios deles.
"Tantas florestas...", de Jacques Prévert
"Tantas florestas arrancadas da terra
e massacradas
arrasadas
rotativadas
Tantas florestas sacrificadas para virar pasta de papel
milhares de jornais chamando anualmente a atenção dos leitores para os perigos do desmatamento dos bosques e das florestas."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
e massacradas
arrasadas
rotativadas
Tantas florestas sacrificadas para virar pasta de papel
milhares de jornais chamando anualmente a atenção dos leitores para os perigos do desmatamento dos bosques e das florestas."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Meia-noite
Esta é a hora em que os fantasmas dos amores mortos começam a andar pelos corredores e a pregar o suicídio. Vêm de branco, tão diferentes do que eram quando viviam, e sua voz é persuasiva.
Sermos
Aos poucos mudando fomos
E, ai de nós, tanto mudamos
Que já nem sabendo estamos
Se somos nós, ou quem somos.
E, ai de nós, tanto mudamos
Que já nem sabendo estamos
Se somos nós, ou quem somos.
O nome do amor
Pelo que me prometia
E pela traição que fez,
O nome do amor seria
Joaquim Silvério dos Reis.
E pela traição que fez,
O nome do amor seria
Joaquim Silvério dos Reis.
Defesa
Seja a evidência qual for
E o indício o mais definido,
Sempre que o culpam, o amor
Se faz de desentendido.
E o indício o mais definido,
Sempre que o culpam, o amor
Se faz de desentendido.
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Como o amor nos treslouca
Em verdade vos digo que o amor nos enlouquece de tal modo que desandamos a usar expressões despropositadas e tratamentos de vários séculos atrás. Como esse "vos" que está aí em cima, indesmentível. Se a amada chegasse agora, eu perderia meu último pudor e a chamaria de idolatrada, esperando que a brisa desta primavera fosse repeti-la à árvore mais florida do jardim: idolatrada, idolatrada.
Cotação da noite
Alguém que morreu há uns dois ou três anos, foi avisado disso e está esperando a etapa seguinte.
Um desses sonetinhos que até um amor morto é capaz de produzir
Morta a estação dos amores
Depois de crua agonia,
Perdi a mão para as flores
E o jeito para a poesia.
Por onde agora tu fores
Em trilha clara ou sombria,
Serão teus teus dissabores
E tua tua alegria.
Não mais te acompanharei,
Não mais tua sombra serei,
Serei eu, apenas eu.
Que lástima ter morrido
O amor tão terno e querido,
Se a memória não morreu.
Depois de crua agonia,
Perdi a mão para as flores
E o jeito para a poesia.
Por onde agora tu fores
Em trilha clara ou sombria,
Serão teus teus dissabores
E tua tua alegria.
Não mais te acompanharei,
Não mais tua sombra serei,
Serei eu, apenas eu.
Que lástima ter morrido
O amor tão terno e querido,
Se a memória não morreu.
Cotação do dia (2)
Pelos meus planos, tenazmente desenvolvidos desde a adolescência, esta seria a época em que os críticos literários estariam me avaliando. Houve algum erro, e mais adequado seria chamar um açougueiro para pesar e ver quanto vale minha carcaça.
Custo-benefício
O amor me poupou porque acha a minha voz apropriada para as canções com as quais ele dança no convés, com os marujos.
Cotação do dia
Houve alguém que, atormentando os meus dias, me lançou de novo aos braços do desassossego e da poesia. Que seja duas vezes amaldiçoada (ou abençoada).
Terça-feira, 16 de dezembro de 2014, 9h
Saiamos e enfrentemos nosso leão diário. É nossa sina, e o leão precisa comer.
Má vontade
As palavras são discriminadas, como as pessoas. Houve um tempo em que fui apaixonado por mormente. E riam de mim.
Um trecho de Mariana Ianelli
"Daqui de onde escrevo, à noite, vejo os aviões. Tem sua beleza um ponto de luz esfumaçado, deslizando no escuro como um farol de embarcação. A miragem me faz pensar nas viagens à moda antiga, quando a distância era tão longa quanto a espera e os ventos tão caprichosos quanto as vontades. Amo as noites por isso, por essa miragem de navegação. É quando vigora outro tempo, o tempo da crisálida, da luz amarela, o tempo do hibisco se fazendo atrás dos galhos. Enquanto os gatos saem para caçar mariposas, a cidade desaparece debaixo da cerração."
(Da crônica "Mensagem na garrafa", do livro Breves anotações sobre um tigre, edições ardotempo.)
(Da crônica "Mensagem na garrafa", do livro Breves anotações sobre um tigre, edições ardotempo.)
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
Teste
Um dia farei um texto em que a palavra entrementes não causará estranheza e será tão bem aceita quanto uma rosa. Nesse dia poderei ser chamado de escritor.
De poetas e passarinhos
Pensando na dificuldade que têm os poetas para publicar seus livros, lembrei-me da piada do empresário que, encarregado de recrutar artistas para um show, recebeu um rapaz que dizia ser imitador de passarinho. Recusou-o imediatamente, furioso. O rapaz então saiu voando pela janela. Ao poeta que for procurar um editor não basta dizer que escreve como Fernando Pessoa. Precisará ser o próprio.
Calças curtas
O escritor quer afagos. Quando rima rosa com majestosa, está pedindo que digam "ai, que lindo". Quando se espeta com os espinhos, está esperando que venham soprar sua mão. Quando vai receber o Nobel, há um instante em que pede licença ao público circunspecto, puxa um lenço e diz "obrigado, mamãe".
"O gato e o pássaro", de Jacques Prévert
"Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro deixa de cantar
O gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Funerais maravilhosos
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não para de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Você teria sofrido menos
Só tristeza e saudades
É preciso nunca fazer as coisas pela metade."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro deixa de cantar
O gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Funerais maravilhosos
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não para de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Você teria sofrido menos
Só tristeza e saudades
É preciso nunca fazer as coisas pela metade."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
domingo, 14 de dezembro de 2014
Por dentro
Toda inquietação há de provir do amor, para ser legítima. E deve provocar em nosso peito um alvoroço como o de um bando de pássaros desprendendo-se repentinamente de um telhado.
Escândalo
Nesta época de escutas clandestinas e câmeras ocultas, ai de ti, minha amiga, se disseres que vais dormir com Deus.
A mesma história
O escritor geme, lastima-se, ameaça atos desatinados. Ah, nunca mais conseguirá escrever nada. As palavras, com pena, vão voltando aos poucos e se põem à sua disposição. E ele, mais uma vez, as esbanja com temas corriqueiros como o amor.
Embuste
Amo as crases. Por me suporem especialista nelas, consegui por muitos anos sustentar decentemente minha família, sob o disfarce de revisor de textos.
Luxúria
Os domingos têm dedos macios de meninos mimados. Ah, ser estrangulado por eles lentamente, com tempo de dizer o nome do amor, quem sabe diante do mar, sob as estrelas.
Um tipo de amor
Há um tipo de amor que parece uma tempestade no mar. As gaivotas desaparecem, as nuvens se carregam rancorosamente, os trovões sacodem o céu. Os navios empinam-se, corcoveiam como cavalos dopados, atirando os marinheiros uns contra os outros, entre maldições e apelos a Deus. São vinte minutos, meia hora de horror. Aos poucos, o céu se abre, ressurgem as gaivotas, os navios deslizam como veleiros de regata. Os marujos, então, suspiram. Estarem vivos é quase um milagre. Voltam à rotina. Mas logo o sorriso se apaga. O sangue anseia ainda pelo tumulto, pela loucura, pelo caos, pelos gritos de maldição e pelas invocações a Deus. Esse amor, novelesco e insano, não deixa de ser uma bênção enquanto dura. Dura pouco. Nisso estão seu feitiço e encanto.
Não sou eu
Quem fala diariamente de amor a vocês não é o homem que minha foto mostra. A este caberia discorrer sobre outros assuntos, como a existência da alma e o destino dela quando a carne assumir sua natureza de pó. O homem que fala de amor a vocês é uma criação minha, dos meus desvarios e de minhas leituras românticas. Ele se recusa a ser o que os estereótipos determinaram. Ele desafia a chacota, o escárnio, a zombaria e ousa ir tirar para dançar a jovem que três garbosos rapazes rodeiam, sem se sentirem capazes. Ele não crê que seu rosto seja o da foto e acredita que também a jovem seja capaz de ver isso.
"Batismo de ar", de Jacques Prévert
"Essa rua
outrora chamada de rua do Luxemburgo
por causa do jardim
Hoje é chamada de rua Guynemer
por causa de um aviador morto na guerra
No entanto
essa rua
é a mesma de sempre
o jardim é sempre o mesmo
é sempre o de Luxemburgo
Com alamedas... estátuas... fontes -
Com árvores
árvores vivas
Com pássaros
pássaros vivos
Com crianças
todas as crianças vivas
Então a gente pergunta
a gente pergunta pra valer
por que um aviador morto foi ali meter o bedelho."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
outrora chamada de rua do Luxemburgo
por causa do jardim
Hoje é chamada de rua Guynemer
por causa de um aviador morto na guerra
No entanto
essa rua
é a mesma de sempre
o jardim é sempre o mesmo
é sempre o de Luxemburgo
Com alamedas... estátuas... fontes -
Com árvores
árvores vivas
Com pássaros
pássaros vivos
Com crianças
todas as crianças vivas
Então a gente pergunta
a gente pergunta pra valer
por que um aviador morto foi ali meter o bedelho."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
sábado, 13 de dezembro de 2014
Na real
Nenhum homem é uma ilha.
Sempre haverá outra mão
Para atiçar o tesão
E para abrir a braguilha.
Sempre haverá outra mão
Para atiçar o tesão
E para abrir a braguilha.
Imposição
Falar de amor é a tarefa que a vida me impôs. Todo dia me obrigam a desempenhá-la. E, quando se esquecem de ordenar, acuso os capatazes de negligência.
"O terno e perigoso rosto do amor", de Jacques Prévert
"O terno e perigoso
rosto do amor
me apareceu numa noite
depois de um dia muito comprido
Talvez fosse um arqueiro
com seu arco
ou ainda um músico
com sua harpa
Não me lembro mais
Nada mais sei
Tudo o que sei
é que ele me feriu
talvez com uma flecha
talvez com uma canção
Tudo o que sei
é que me feriu
feriu aqui no coração
e para sempre
Ardente muito ardente
ferida de amor."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
rosto do amor
me apareceu numa noite
depois de um dia muito comprido
Talvez fosse um arqueiro
com seu arco
ou ainda um músico
com sua harpa
Não me lembro mais
Nada mais sei
Tudo o que sei
é que ele me feriu
talvez com uma flecha
talvez com uma canção
Tudo o que sei
é que me feriu
feriu aqui no coração
e para sempre
Ardente muito ardente
ferida de amor."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Mortes
O amor nos pesa na consciência como aquele passarinho que matamos com uma pedrada, na infância.
Polissílabo
Mesmo que sejam mais de quatro as sílabas de nosso nome, o amor saberá escrevê-lo em nossas costas com seu chicote senhorial.
Soberania
No dia em que formos nós os escolhidos para entreter o amor, só teremos um pedido a lhe fazer, quando ele chegar com o pelotão de fuzilamento: que não nos vende os olhos, para podermos vê-lo mais uma vez no esplendor de sua presunção e soberania.
Bibelô
Ninguém que idealize o amor há de ser inábil a ponto de concebê-lo de tal forma que pareça possível vir a apropriar-se dele, como se fosse um desses objetos que ornam estantes.
Pieguice
O amor é um cego que toca violino na escadaria da Sé. Quase não lhe dão esmolas. Se fosse apenas cego, o aceitariam melhor. Acham que o violino é uma forma de chantagem.
Banquete
Os devotos do amor cultivam flores para ele. Se o vissem à noite, fazendo escorrer sua ávida baba sobre carnudas coxas de frango...
"Café da manhã", de Jacques Prévert
"Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Bom de bico
O amor vem sempre com aquela
Conversa para encantar.
Fala baixo, terno. Azar
De quem cair na esparrela.
Conversa para encantar.
Fala baixo, terno. Azar
De quem cair na esparrela.
Cotação da noite
Os leitores rareiam. Quatro, cinco, agora. Logo não precisarei mais de palavras. Poderão ser ouvidas, sem intermediários, as batidas do meu coração.
"Domingo", de Jacques Prévert
"Entre as fileiras de árvores da avenida dos Gobelins
Uma estátua de mármore me puxa pela mão
Hoje é domingo os cinemas estão lotados
Os pássaros nos galhos olham os humanos
E a estátua me beija mas ninguém nos olha não
Só um menino cego nos aponta com o dedo."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicação da Editora Nova Fronteira.)
Uma estátua de mármore me puxa pela mão
Hoje é domingo os cinemas estão lotados
Os pássaros nos galhos olham os humanos
E a estátua me beija mas ninguém nos olha não
Só um menino cego nos aponta com o dedo."
(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicação da Editora Nova Fronteira.)
Cotação do dia (3)
Tudo já foi visto, lido ou imaginado. O cicerone, encabulado, espera um momento de distração nosso para se esgueirar e desaparecer.
Cotação do dia (2)
Escrever cada vez menos, deixar quietas as palavras. Aonde logo iremos, não teremos nem a quem desejar um bom dia.
"Breve anotação sobre um tigre", de Mariana Ianelli
"Júbilo é uma palavra difícil de viver. Algo raro, tão raro quanto um tigre. Demora para acontecer, mas, quando acontece, uma pessoa já não pode mais voltar ao que era antes de ter sentido o que sentiu. Um acontecimento assim é o que excita um poeta a meter-se no escuro, procurando. Porque se existe um lugar além de um templo na Tailândia onde ainda hoje esse tigre passeia livre, longe de armadilhas, este lugar é um poema."
(Do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela ardotempo.)
(Do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela ardotempo.)
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
"O grande homem", de Jacques Prévert
"No ateliê do talhador de pedra
onde o encontrei
lhe tiravam medidas
para a posteridade."
(De Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
onde o encontrei
lhe tiravam medidas
para a posteridade."
(De Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)
Ele
Quando o amor nos bate à porta
É sempre aquele alvoroço.
Até a esperança morta
Sai lá do fundo do poço.
É sempre aquele alvoroço.
Até a esperança morta
Sai lá do fundo do poço.
Itinerário
Amar é o modo correto,
O mais seguro e o mais terno,
De estar no céu e ir direto
Parar no portão do inferno.
O mais seguro e o mais terno,
De estar no céu e ir direto
Parar no portão do inferno.
Se fosse possível
Vocês eu não sei bem, mas,
Mesmo que ele fosse um ogro,
Bem que podia o meu sogro
Ser pai da Juliana Paes.
Mesmo que ele fosse um ogro,
Bem que podia o meu sogro
Ser pai da Juliana Paes.
Polacaria
Se eu me chamasse Leminski
em vez de Drewnick
não seria uma boa rima
mas seria uma solução.
em vez de Drewnick
não seria uma boa rima
mas seria uma solução.
Paz
O amor não pode mais nos fazer mal. Estamos mortos. Mas deixemos que o tonto nos diga ainda seus versinhos melados, com essa ridícula mão no peito e seus perdigotos.
Enredo
Amor, eu quero propor-te
Um papel na história minha:
Serei o bobo da corte,
Serás a minha rainha.
Um papel na história minha:
Serei o bobo da corte,
Serás a minha rainha.
Caminho
A evolução do poeta deveria ir da exclamação aos pontos, dos pontos às reticências e, destas, ao silêncio.
Tema
Se eu não falar do amor, meu
Irmão não me reconhece,
Não tem valor minha prece,
Sou alguém que não sou eu.
Irmão não me reconhece,
Não tem valor minha prece,
Sou alguém que não sou eu.
Cotação do dia
Morto não é como você está. É como você se sente. É sempre uma questão de amor - ou de falta dele.
"Cântico", de Mariana Ianelli
"Apenas o tempo necessário
Nos separa.
Fina medula sobre a terra,
Benemérita da alegria
Quando canto,
Sonho que flutuo sobre um pélago,
Sonhar é o meu trabalho.
Minha forma disjunta
Uma crisálida
Que da morte se enamora
E não cogita
Se esse amor compensa
A pena e a confiança.
Todo o tempo de um instante
Eu me fazendo plana,
Ideia de um deus menino,
Isca para um colosso de asas,
Teu manto."
(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)
Nos separa.
Fina medula sobre a terra,
Benemérita da alegria
Quando canto,
Sonho que flutuo sobre um pélago,
Sonhar é o meu trabalho.
Minha forma disjunta
Uma crisálida
Que da morte se enamora
E não cogita
Se esse amor compensa
A pena e a confiança.
Todo o tempo de um instante
Eu me fazendo plana,
Ideia de um deus menino,
Isca para um colosso de asas,
Teu manto."
(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)
terça-feira, 9 de dezembro de 2014
Como antes
Amor, tira-me as algemas. Ao menos hoje quero acariciar-te como se eu fosse tão livre quanto no dia em que te conheci.
Uma palavra
Amor é uma palavra tão santa que deveria ser dita só em voz baixa, como se ao redor de nós dormissem anjos.
Baixinho
Vou descobrindo que escrever não deve ser nada altissonante. A voz de escrever deve ser a mesma que usamos para falar com os gatos.
Que
Que no sonho de hoje haja um veleiro que me conduza até onde o mar, com uma guarda de golfinhos, mantém sepultados os que morreram de amor em suas ondas.
Sonho
Você se aproximou de mim lentamente. No ar, notas de um bolero convidavam à alucinação de todos os sentidos. Seu vestido de seda farfalhava escarlate e seus sapatos de salto alto feriam os tacos com presunção. Você me abraçou, seus lábios disseram amor para dentro dos meus, e eu caí de novo na esparrela.
Mil e um
O amor, quando vem, nos traz
Por si, infalivelmente,
Seu mal, cruel, persistente,
E mais mil que vêm atrás.
Por si, infalivelmente,
Seu mal, cruel, persistente,
E mais mil que vêm atrás.
"À meia-voz", de Mariana Ianelli
"A terra fraca eu amei,
A terra fraca e desdenhada.
Amei tua carnadura
Sedenta de cuidados,
Meu Deus.
Me doía a casa morta
Erguida sobre séculos,
Em toda parte o ressaibo
De uma guerra difícil.
O leão de pedra na porta
Foi sempre o guardião
Dos jardins
E eu nem sabia.
Não sabia
Do que uma prece é capaz
Quando te abisma
Meu Deus
Num mundo de humana ira."
(Do livro Terra alvorada, edições ardotempo.)
A terra fraca e desdenhada.
Amei tua carnadura
Sedenta de cuidados,
Meu Deus.
Me doía a casa morta
Erguida sobre séculos,
Em toda parte o ressaibo
De uma guerra difícil.
O leão de pedra na porta
Foi sempre o guardião
Dos jardins
E eu nem sabia.
Não sabia
Do que uma prece é capaz
Quando te abisma
Meu Deus
Num mundo de humana ira."
(Do livro Terra alvorada, edições ardotempo.)
segunda-feira, 8 de dezembro de 2014
Como vier
Quem se dá ao amor deve dar-se sem condições. Aturar tudo, seus maus modos, suas birras, aquele rosto enjoado de quem tem sempre coisa melhor para fazer.
Hoje
Hoje talvez o amor não ache tão ruins nossos versos e quem sabe nos dê aquele sorriso que esperamos desde a última primavera.
Descoberta
Vou descobrindo que escrever não deve ser nada altissonante. A voz de escrever deve ser aquela que usamos para falar com os gatos.
"Pietà", de Mariana Ianelli
"Por delicadeza
Devia cada um resolver seu vestígio,
Não deixar o corpo a esmo,
Atravessado na passagem,
Sem desejo, sem enigma.
Mas, se me fica o teu corpo,
Eu te arrepanho nos braços
Com a maternidade do ofício
E lavo os teus ombros
De quanto pesou sobre eles,
O teu sexo, que a nenhum afago responde,
Lavo os teus pés, o ato mais santo.
Eu te arremato, eu te limpo da vida,
Faço com que desapareças,
Que o teu equívoco me abasteça
Da razão dos humildes.
Fardo ensoalhado, esse,
De amparar o meu próprio destino."
(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)
Devia cada um resolver seu vestígio,
Não deixar o corpo a esmo,
Atravessado na passagem,
Sem desejo, sem enigma.
Mas, se me fica o teu corpo,
Eu te arrepanho nos braços
Com a maternidade do ofício
E lavo os teus ombros
De quanto pesou sobre eles,
O teu sexo, que a nenhum afago responde,
Lavo os teus pés, o ato mais santo.
Eu te arremato, eu te limpo da vida,
Faço com que desapareças,
Que o teu equívoco me abasteça
Da razão dos humildes.
Fardo ensoalhado, esse,
De amparar o meu próprio destino."
(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)
Tenho escrito
Tenho escrito pouco. Luto para me livrar do desejo de escrever frases definitivas, que soem como verdades. Ornamentamos a vida e chega um momento em que se requer simplicidade. Nosso rito é simples: viver, morrer. Somos o que fica no meio disso, e presumo que sejamos recebidos melhor, qualquer que seja o lugar para onde formos, se chegarmos com um sorriso em que não haja o mínimo sinal de empáfia.
Cotação do dia
Nem alegre nem triste. A impressão de que o passado há de ser trazido à tona, ainda que doa, e de que é preciso ver o que ele nos deixou de bom. Se ele nos modificou, aceitemos essa modificação. O que não se pode é ficar atolado na vida. Lágrimas são bem-vindas. Com elas sempre vem também um sorriso, um filete de sol que brilhou por um instante nas nuvens, ainda que muito outrora.
Bom dia
Para os que chegaram primeiro, já são cinco anos de conversa diária. É ela que me mantém. Tenho chorado no ombro de vocês e me mostrado inteiro. A paciência e o carinho de vocês são comoventes. Falo de mim, mostro-lhes minha poesia, a poesia de quem viveu para aprendê-la e ainda não aprendeu. Gosto de me dizer tolo, porque é assim que eu sou. Ser tolo é a minha honestidade. Não me aprecio quando faço truques. Gosto de dizer-lhes bom dia, como agora.
domingo, 7 de dezembro de 2014
Agradecimento
Quando eu fui lhe dar o pão,
O amor, veloz e traiçoeiro,
Se soltou do seu poleiro
E veio bicar-me a mão.
O amor, veloz e traiçoeiro,
Se soltou do seu poleiro
E veio bicar-me a mão.
www.rubem.wordpress.com
Na revista Rubem, meu texto de hoje fala de um desses homens que só se lembram da família quando precisam dela.
Gente
Não percamos a esperança. Ainda há quem se lembre do nome dos trinta e dois gatos de sua vida e chore quando diz como e com que idade cada um morreu.
Sitcom
O velho disse que ia falar de amor. Aplausos e gargalhadas o impediram de continuar. A melhor piada da noite.
Cotação do dia
Pois é, continuo assim:
Um filme que terminou
Porém ninguém se lembrou
De pôr-lhe a palavra fim.
Um filme que terminou
Porém ninguém se lembrou
De pôr-lhe a palavra fim.
"Cerimônia", de Mariana Ianelli
"Agora o vigor ignorado do tempo.
De uma vez serás efêmera e eterna
como o animal que anda sobre a campina.
Tua boca de amar,
mas amar com demorados intervalos ausentes,
se abrirá sem música, murcha e seca, pedindo água.
Então eu virei de outros mundos
em minha jornada violenta para te aliviar
e suportar o deserto contigo.
Virei de uma andança antiga te pertencer
e debaixo de um ramo de avencas
pentear teu cabelo com as unhas.
Serás a mulher dentro do meu abraço
e, para quem eu terei vindo, serás mãe.
Como o animal que caminha francamente
e amoroso sobre a grama, serás mãe."
(D livro Duas chagas, Editora Iluminuras.)
De uma vez serás efêmera e eterna
como o animal que anda sobre a campina.
Tua boca de amar,
mas amar com demorados intervalos ausentes,
se abrirá sem música, murcha e seca, pedindo água.
Então eu virei de outros mundos
em minha jornada violenta para te aliviar
e suportar o deserto contigo.
Virei de uma andança antiga te pertencer
e debaixo de um ramo de avencas
pentear teu cabelo com as unhas.
Serás a mulher dentro do meu abraço
e, para quem eu terei vindo, serás mãe.
Como o animal que caminha francamente
e amoroso sobre a grama, serás mãe."
(D livro Duas chagas, Editora Iluminuras.)
sábado, 6 de dezembro de 2014
Castigo
Surpreendido em teu quarto quando cheirava tua roupa íntima, eu seria condenado a dormir todas as noites contigo, algemado.
Difícil
Se o amor não se fizesse de rogado, quem nós chamaríamos, com quem gastaríamos nossa voz e as palavras que nos ensinou a poesia?
Vassalo
Seguirás o amor como se ele fosse o que é, um grão-senhor, e como se tu fosses o que sempre quiseste ser: um lacaio dele.
Eco
Às vezes, à noite, o vento resgata na ameixeira o canto de um pássaro que a habitou no final da primavera.
Lembrança
Se te recordares de mim um dia, que seja por um instante só. Mesmo que estejas em 2030, não quero enfear o fino contorno do teu sorriso.
Saudade
Dos cinquenta anos de casamento, ela se lembra com mais ternura do primeiro, aquele em que um dos seis copos era um pote de requeijão cremoso.
Tela
As cores do amor esmorecerão na tela. Será difícil distinguir os rostos do casal, e o braço com que ele envolve os ombros dela será visto só por um minuto ou dois, em manhãs de primavera, por benevolência do sol.
Resumo
Tínhamos tanto a falar.
Hesitamos, relutamos,
Nem começamos. Deixamos
O tempo todo se escoar.
Hesitamos, relutamos,
Nem começamos. Deixamos
O tempo todo se escoar.
"Visita", de Mariana Ianelli
"Envelheceu o nosso pai,
Se fez longínquo.
De olhos abertos
Dorme o sono das pedras,
Seu reino é uma ilha.
Ele sabe o nosso horror
Debaixo do sorriso,
Tudo ele vê, toca, atravessa,
Nossa bruma,
Nossa mão escondida.
O silêncio está tão perto,
Nós fechamos os ouvidos.
Ele passa lentamente,
Envergonha a nossa pressa
E se retira.
A penumbra de cada visita
Nos dai hoje,
Rezamos (sem rezar)
Todos os dias."
(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)
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Se fez longínquo.
De olhos abertos
Dorme o sono das pedras,
Seu reino é uma ilha.
Ele sabe o nosso horror
Debaixo do sorriso,
Tudo ele vê, toca, atravessa,
Nossa bruma,
Nossa mão escondida.
O silêncio está tão perto,
Nós fechamos os ouvidos.
Ele passa lentamente,
Envergonha a nossa pressa
E se retira.
A penumbra de cada visita
Nos dai hoje,
Rezamos (sem rezar)
Todos os dias."
(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)
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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014
Negócios
O amor encontrou em mim o freguês ideal. Comprei seu bilhete premiado, o apartamento em Miami e o terreno na lua.
Pão
Amor, tu dizes a todos que mataste minha fome. Deste-me só algumas migalhas, que não ousei macular. Tenho-as ainda comigo. São, de ti, minha mais cara recordação.
Reserva
Amor, eu guardo os meus cios
Para os teus beijos ansiosos,
Para os teus lábios sedosos,
Para os teus dedos macios.
Para os teus beijos ansiosos,
Para os teus lábios sedosos,
Para os teus dedos macios.
"Outubro", de Mariana Ianelli
"(...) Diz agora se te lembras da casa
Onde a gigantesca mariposa debatia
Suas asas de seda através das grades,
Onde os anos pesavam tanto
Que a chuva descia com seus tentáculos d´água
Pelo vértice dos nossos quartos cerrados...
Diz se ainda estamos contigo nesta felicidade
Ou se inventamos uma falsa alegoria
De tua verdadeira história desalmada."
(D livro Passagens, edições ardotempo.)
Onde a gigantesca mariposa debatia
Suas asas de seda através das grades,
Onde os anos pesavam tanto
Que a chuva descia com seus tentáculos d´água
Pelo vértice dos nossos quartos cerrados...
Diz se ainda estamos contigo nesta felicidade
Ou se inventamos uma falsa alegoria
De tua verdadeira história desalmada."
(D livro Passagens, edições ardotempo.)
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Comissão
Aos olhos dos forasteiros
Pareceu encantador
O campo no qual o amor
Mantém os seus prisioneiros.
Pareceu encantador
O campo no qual o amor
Mantém os seus prisioneiros.
Dezena
Quando contempla os dedos dela, imagina o que poderiam fazer os dez se finalmente resolvessem se pôr sob as ordens do amor.
Cotação do dia
Aos olhos teus jamais fui
Senão um tolo de quem
Tu não te lembras nem
Se eu era João, Raul ou Rui.
Senão um tolo de quem
Tu não te lembras nem
Se eu era João, Raul ou Rui.
Sangue-frio
O amor às vezes me dá a impressão de ser capaz de mastigar uma rosa e devorá-la, pétala por pétala.
Per Baco
Vós, que vos proclamais poetas,
Enquanto o vinho provamos,
Comemos e fornicamos,
Escrevei por nós, patetas.
Enquanto o vinho provamos,
Comemos e fornicamos,
Escrevei por nós, patetas.
Como se
O amor, quando mencionado, há de provocar em nós um suspiro longo e profundo, como se a alma estivesse querendo nos dizer a única indesmentível verdade.
Fernanda Takai
Onde Fernanda Takai estiver cantando, a brisa será levíssima, suficiente só para manter flutuando um invisível fio de seda, provavelmente azul.
Vassalo
Seguirás o amor como se ele fosse o que é, um grão-senhor, e como se tu fosses o que sempre quiseste ser: um lacaio dele.
Nisso ou naquilo
O amor no fim se desmente
Em tudo ou em quase tudo:
Ou peca no continente
Ou falha no conteúdo.
Em tudo ou em quase tudo:
Ou peca no continente
Ou falha no conteúdo.
Dedo
As feridas do amor verdadeiro não chegam a doer. Posto sobre elas, o dedo volta com açúcar aos lábios.
Amor, ato 3º, cena II
O bobo da aldeia vai à frente, exclamando amor, amor, amor. Atrás, cães e o coro da multidão: bocó, bocó, bocó.
O que ele é
O amor é sempre uma farsa
Que para bem funcionar
Necessita só de um par:
Uma vilã e um comparsa.
Que para bem funcionar
Necessita só de um par:
Uma vilã e um comparsa.
Cotação do dia
Toda vez que ouve a palavra amor, ele olha tristemente para o céu, como se tivesse sido mencionada uma estrela, a mais longínqua, que ele já nem em sonhos imagina poder alcançar.
Soberano
Para o mal ou para o bem,
Para o que der e vier,
O amor nos torna refém,
Faz de nós o que quiser.
Para o que der e vier,
O amor nos torna refém,
Faz de nós o que quiser.
Despertador
Foi beijado outrora por lábios perniciosos, e todas as manhãs, às cinco, independentemente de sua vontade, põe-se a berrar amor, amor, amor, até que a enfermeira do manicômio venha lhe aplicar uma injeção.
As razões
Muitas das juras eternas,
Atribuídas ao amor,
Devem todo o seu fervor
A um par de peitos e pernas.
Atribuídas ao amor,
Devem todo o seu fervor
A um par de peitos e pernas.
Simples assim
Enlouquecer de amor é fácil. Quando você vê, já está montado no cavalo branco de Napoleão e destroçando impérios para impressionar Josefina.
Ou por ou por
Que coisa tonta, sem nexo,
Porém tão doce e gostosa,
Perder a vida preciosa
Ou por amor ou por sexo.
Porém tão doce e gostosa,
Perder a vida preciosa
Ou por amor ou por sexo.
Eternamente
O amor te atormentará
Enquanto tu respirares,
E ainda mais te afligirá
Se acaso ressuscitares.
Enquanto tu respirares,
E ainda mais te afligirá
Se acaso ressuscitares.
Um pouco de Lourenço Diaféria
"Desconfio que a primeira pessoa que anteviu e sacou o caos urbano, tal como o conhecemos hoje nas grandes metrópoles, foi o poeta Dante Alighieri (1265-1321) em sua monumental obra Divina comédia. A vantagem de Dante sobre os urbanistas, os prefeitos e os donos de imobiliária é que não pretendeu fazer um tratamento técnico, e sim um poema épico.
Ora, não existe nada mais pateticamente épico do que um sujeito, com hora marcada para encontrar a namorada no fim do expediente, se ver engarrafado num congestionamento de trânsito num viaduto da cidade."
(Da crônica "Que inferno!", do livro Papéis íntimos de um ex-boy assumido, publicado pela Editora Olho Dágua.)
Ora, não existe nada mais pateticamente épico do que um sujeito, com hora marcada para encontrar a namorada no fim do expediente, se ver engarrafado num congestionamento de trânsito num viaduto da cidade."
(Da crônica "Que inferno!", do livro Papéis íntimos de um ex-boy assumido, publicado pela Editora Olho Dágua.)
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
Inocente
Nós morreremos jurando
Que simplesmente mentiram
Todos aqueles que viram
O amor nos estrangulando.
Que simplesmente mentiram
Todos aqueles que viram
O amor nos estrangulando.
Vanidade
Depois do esforço final,
Ficamos nos perguntando,
Nossos escombros juntando:
De que serviu, afinal?
Ficamos nos perguntando,
Nossos escombros juntando:
De que serviu, afinal?
Cartão
Não lembro o que disse a ti
Nem como me apresentei.
Sou um poeta? Não sei.
Se fui, há muito esqueci.
Nem como me apresentei.
Sou um poeta? Não sei.
Se fui, há muito esqueci.
Verdes
Amor, querido vampiro, cravo-te a adaga prateada e me olhas com esses olhos que suplicam mais.
O nome
Ele se lembrará dela com ternura. Às vezes lhe fugirá o nome, mas se acostumará a dizer um qualquer, nas noites frias do asilo, todas parecendo sempre a última.
Estratégia
Quem me dera eu fosse teu prisioneiro. Me insultarias, me chicotearias. Eu te chamaria de malévola, pérfida, infame, e te amaldiçoaria, para que novamente me insultasses, para que outra vez, amor, me chicoteasses.
CEP
Amor, inepto carteiro,
O que houve? Que mal te fiz?
Nunca mais vieste. Me diz,
Perdeste meu paradeiro?
O que houve? Que mal te fiz?
Nunca mais vieste. Me diz,
Perdeste meu paradeiro?
Traços
Amor querido, amor terno,
Que o nosso rumo traçaste,
Por que a esboçar passaste
Agora o mapa do inferno?
Que o nosso rumo traçaste,
Por que a esboçar passaste
Agora o mapa do inferno?
Um trecho de Mariana Ianelli
"Erico Verissimo dizia que os escritores são todos uns mentirosos. Não é à toa que o avô o reprovava por se divertir 'inventando histórias que nunca aconteceram sobre gente que nunca existiu'. Há uma espécie de dança de Salomé na arte da escrita, um aperfeiçoamento, um ludíbrio que dá prazer e no fim nos presenteia com alguma coisa surpreendentemente cruel e verdadeira."
(Extraído da crônica "A verdade nua por baixo dos sete véus", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
(Extraído da crônica "A verdade nua por baixo dos sete véus", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
Em verdade
Em verdade vos digo que, se não houver amor, e se o amor não doer, a vida será não mais que um bocejo antes do seguinte, numa pescaria de domingo.
Capítulo
Quando relataram que ele havia enlouquecido de amor, uma das mulheres do grupo de visitantes disse: "Amor?" Depois abriu o livro no capítulo das doenças em extinção.
Do amor
Do amor se espera que não morra. E, se morrer, que ninguém se assombre se, numa cálida tarde de primavera, ele se erguer e se puser a andar como se tivesse acabado de nascer.
Ali
Ele gostaria de ir andando até o coração do mar e dizer amor ali, para que as ondas engolissem a palavra e, com ela, os seus lábios, indignos de pronunciá-la.
O chefe
O amor nos fez cavar a nossa própria cova. Quando terminamos, ele, lá de cima, disse: está bom. Agora não sai daí, ouviu?
Ideal
Bom amor é aquele que não se consuma, não se perfaz, não se completa. O corpo padece, a alma agoniza, a poesia agradece.
Todos
Não há um ponto de sua alma que não tenha sido dilacerado pelo amor. Se houvesse, ele se lastimaria.
Mea-culpa
Por mim não chores nem rezes,
Eu não sou merecedor.
Sou eu quem do abjeto amor
Engoli a urina e as fezes.
Eu não sou merecedor.
Sou eu quem do abjeto amor
Engoli a urina e as fezes.
Guia
O amor será sempre o guia
Do nosso róseo caminho,
Da nossa trilha sombria,
Do nosso norte daninho.
Do nosso róseo caminho,
Da nossa trilha sombria,
Do nosso norte daninho.
Capitis diminutio
Expulso de régia cama
E do luxo despojado,
Hoje o amor dorme na lama
Ou sobre o barro amassado.
E do luxo despojado,
Hoje o amor dorme na lama
Ou sobre o barro amassado.
Trovinha
Amor, mesmo, de verdade,
É sempre um tipo confuso
Que vive de caridade
E ao qual falta um parafuso.
É sempre um tipo confuso
Que vive de caridade
E ao qual falta um parafuso.
Muito, e um pouco mais
Se for chorar por amor, chore tudo. Não há nada que mais mereça suas lágrimas.
Camisa 12
Não posso deixar a camisa no varal, que vêm ventos de todos os quadrantes soprar Corinthians.
Imposição
O amor me submete a isto. Devo falar sobre ele o dia todo, todo dia, até que ele se dê por satisfeito e perdoe ao menos um dos meus cento e quarenta e sete erros.
Quando for a hora
Amor, quando você for me matar, olhe-me com esses olhos que há tanto tempo não me olham.
Campainha
"Vizinha, tem um pouco de sal aí?", disse ele, com a língua toda esperta, embora já fosse mais de meia-noite.
Congraçamento
No fim da festa de Natal da firma, o boy notou que sumiu seu panetone. Puseram-lhe a mão no ombro: ano que vem tem mais.
Rumo
O sol há de seguir a garota mais linda da cidade, até que ela, tirando o olho do celular, dê uma espiada para cima e sorria.
Exortação
Mulher única, me leva para águas profundas, aonde não cheguem esses barquinhos presunçosos que se julgam transatlânticos.
Passos
O amor nos segue como um destino, uma bênção, uma maldição. E nós andamos devagar, para que ele não se canse.
O dia de esvaziar a alma
Rasgando velhos papéis
Numa gaveta encontrados,
Senti como são cruéis
Os belos tempos passados.
E como amargam os méis
Outrora doces provados
E como são ouropéis
Os astros ontem dourados.
Rasgando os papéis dispersos,
Não poupei sequer os versos
Que um dia te dirigi.
Depois de tudo rasgar,
Eu, começando a chorar,
Chorei por mim e por ti.
Numa gaveta encontrados,
Senti como são cruéis
Os belos tempos passados.
E como amargam os méis
Outrora doces provados
E como são ouropéis
Os astros ontem dourados.
Rasgando os papéis dispersos,
Não poupei sequer os versos
Que um dia te dirigi.
Depois de tudo rasgar,
Eu, começando a chorar,
Chorei por mim e por ti.
Cotação do dia (2)
Quando a peça chega ao fim
E a morte nos bate à porta,
A nós já não mais importa
Se o sim é não, e o não sim.
E a morte nos bate à porta,
A nós já não mais importa
Se o sim é não, e o não sim.
Cotação do dia
Ao ver-me vencido assim,
Depois do que me sonhei,
Depois de quanto lutei,
Eu tenho nojo de mim.
Depois do que me sonhei,
Depois de quanto lutei,
Eu tenho nojo de mim.
Novo tempo
O incorrigível amor continua atraindo velhotes como eu, com a antiga balinha de hortelã e a novidade de um comprimido azul.
Nem um grão a mais
Ao artista bastam um sorriso e meia dúzia de palmas. Tudo que exceda isso tende a deturpar sua arte.
Um trecho de Mariana Ianelli
"A chegada do verão é um chão de ardósia quente depois que anoitece. Para temperar o calor, um calor infernal, como se costuma dizer, nada melhor que uma boa antologia de poetas russos, com seus campos gelados e seus domos escondidos na bruma. Joseph Brodsky junta os dedos em volta da pena, menos por costume de escritor que por ter sido educado pelo frio. Boris Pasternak faz descer a geada num canteiro e esta imagem é sua definição de poesia. Marina Tsvetáieva imita a tempestade rebentando em versos exclamativos feito bátegas. Anna Akhmátova nos envolve em nuvens sombrias."
(Extraído da crônica "Quarteto de sombras", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
(Extraído da crônica "Quarteto de sombras", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
Condições
Conforme a ocasião, o espaço e o teor alcoólico, o sexo pode tornar-se um esporte coletivo.
Carcará
E sempre chega aquela hora
Em que, por ordem do autor,
O famigerado amor
Nos pega, mata e devora.
Em que, por ordem do autor,
O famigerado amor
Nos pega, mata e devora.
Julgamento
Já não me sinto culpado.
Obrigaram-me a viver
E não quiseram saber
Se eu estava preparado.
Obrigaram-me a viver
E não quiseram saber
Se eu estava preparado.
Pureza
Pegue o lápis e desenhe um belo coração, mesmo que não seja para mim. Se for para mim, não precisa caprichar.
"Annie", de Guillaume Apollinaire
"Do Texas sobre o costão
Entre Mobile e Galveston ficam
Grandes jardins cheios de rosas
Eles contêm uma mansão
Que é uma grande rosa
Uma mulher sempre passeia
Solitária nesse jardim
E quando passa pela estrada ladeada de tílias
Nós nos olhamos
Como essa mulher é menonita
Suas roseiras e suas roupas não têm botão
Faltam dois no meu gibão
A dama e eu seguimos quase o mesmo rito."
(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)
Entre Mobile e Galveston ficam
Grandes jardins cheios de rosas
Eles contêm uma mansão
Que é uma grande rosa
Uma mulher sempre passeia
Solitária nesse jardim
E quando passa pela estrada ladeada de tílias
Nós nos olhamos
Como essa mulher é menonita
Suas roseiras e suas roupas não têm botão
Faltam dois no meu gibão
A dama e eu seguimos quase o mesmo rito."
(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)
Sadomasô
Todos conhecem o Marquês de Sade. Já o pobre Leopold von Sacher-Masoch, coerente com sua sina, permanece quase anonimo, espiando pela fresta do armário.
Cotação do dia (2)
Está chegando a hora de eu ir aprender a escrever com o Manoel de Barros, lá em cima. Ou com o Marquês de Sade, lá embaixo.
Cotação do dia
Os derradeiros passos da vida são dados sob um sol benevolente, como se estivéssemos no teatro, fossemos um personagem já sem função e o iluminador nos desse ainda, por senso profissional, um último destaque.
Futebolística
Não sei se vivo, se morro,
Ou se só vou empatar.
Nunca me apresso, não corro,
Só deixo a bola rolar.
Ou se só vou empatar.
Nunca me apresso, não corro,
Só deixo a bola rolar.
Um trecho de Tadeusz Dolega Mostowicz
"Até então, o coração de Nicodemo Dyzma jamais fora tocado pelo amor. As passagens românticas de sua vida resumiam-se a algumas ocasionais lembranças secundárias, que, aliás, não eram muitas. Agora, quando pensava em dona Nina, não previa nada, não fazia quaisquer projetos. Além disso, seu inato sentido de preservação o alertava contra passos mais ousados, que poderiam prejudicá-lo caso fosse flagrado pelo marido."
(Do romance A extraordinária carreira de Nicodemo Dyzma, tradução de Tomasz Barcinski, publicado pela Civilização Brasileira.)
(Do romance A extraordinária carreira de Nicodemo Dyzma, tradução de Tomasz Barcinski, publicado pela Civilização Brasileira.)