Que por imposição da rima
se por outras razões não puder ser
viva sempre formosa a rosa
e formosa possa morrer.
Que por imposição da rima
se por outras razões não puder ser
viva sempre formosa a rosa
e formosa possa morrer.
Hoje, depois de meses, ele se lembrou do sol e foi espioná-lo por uma fresta da veneziana. Viu que ele não mudou nada. Ainda é aquele ator acordando diariamente o mundo e obstinando-se em reapresentar, como se o tivesse aperfeiçoado, seu único e inalterável espetáculo.
Aprendemos duas ou três artimanhas, escrevemos quatro ou cinco historinhas e, para lhes dar importância, agradecemos a Deus com alarde. Chamados a seis ou sete programas de tevê, lamentamos que Ele não pudesses participar deles, mas transmitimos Suas desculpas e abraços a todos os telespectadores.
Se o cansaço é uma boa desculpa, seja lá para o que for, tranquilize-se. Você está bem servido.
É um desses tipos ordeiros, que respeitam as tradições. Economiza sorrisos de segunda a sábado, para usá-los na defesa do bom nome dos domingos.
Se aquela voz misteriosa continuar a assediá-lo dia e noite, oferecendo sugestões para você melhorar sua escrita, pergunte quem está falando. Se ela disser qualquer nome que não seja William, mande-a resgatar a mãe no puteiro, com todos os palavrões de praxe.
No meu caso, estilo foi a melhor maneira que encontrei para expressar minha inaptidão.
Esta manhã o cérebro, ainda mal desperto, lhe ofereceu uma reflexão: se quiser ser passarinho, como lhe agradaria, precisará melhorar muito.
Aprendeu a reconhecer as armadilhas. Já não se proclama, como ontem, o mais humilde dos homens. Sabe que isso não era senão a mais abominável das presunções.
Às vezes, para se manter autêntico, o poeta parnasiano precisa esforçar-se um pouco. Nessas ocasiões, jamais recusa a companhia de um bom cisne, ainda que seja de mármore.
No dia em que se desaveio com ela e disse que com ela se desaviu, o poeta rompeu não só com sua doce amada, mas também com a mais severa das damas: a gramática.
O poeta viu-se hoje vítima de um de seus pequenos despotismos. Esquecendo que os havia proibido de frequentar a ameixeira, para preservar seus frutos, lastimou-se porque os passarinhos não foram cantar para ele esta manhã.
Ela quase se recusou a ir com o príncipe encantado. Ele parecia um vendedor de melancia e seu cavalo marrom, além de não ser alado, mancava um pouquinho enquanto ia soltando pelo caminho pedrinhas verdes, como se estivesse entrando num labirinto.
Hoje, às seis da manhã, foi acordado por um alarido dos diabos. Receou que fossem os adoradores do sol tentando mais uma vez fazê-lo juntar-se a eles. Mas era só um desses ladrões que nos subúrbios mantêm a tradição de ficar saltando de casa em casa, para pilhar as roupas anoitecidas nos varais.
https://rubem.wordpress.com/2024/11/10/frases-anotadas-num-bloquinho-raul-drewnick/
Depois de romper relações com o sol, tem uma tristeza: não saber mais como estão as rosas no jardim.
Você, que todo dia se queixa de estar cansado da vida, já pensou na hipótese de reciprocidade?
Para negociar com o velho poeta, a manhã e o sol enviaram hoje o mais gentil dos passarinhos. Ele cantou horas na ameixeira, mas a única resposta que teve foi: mas nem que mandem a pomba da paz.
É um santo homem. Os únicos pecados de que poderia ser acusado foram cometidos na década de 1960: meia dúzia de sonetos que fez para uma dançarina cubana, todos tropeçantes, escorregantes e caintes, mas felizmente publicados só no jornalzinho de um minúsculo município chamado Esperança - destruído por uma sucessão notável de políticos ineptos e inapeláveis voçorocas.
Ter má memória é uma boa maneira de não precisar ficar importunando Deus para que nos perdoe os pecados.
Enquanto não vem o definitivo, vai se exercitando com seus soninhos de fim de tarde, no sofá. Já sabe que não haverá nada épico nem grandioso. Há muito desistiu de escrever uma daquelas frases que honram um morto, e legado é uma palavra que aguça seu escárnio. Descrente dos sinônimos, espera que se aceite como sua última declaração só uma sílaba: ai.
A dificuldade básica, nos processos de separação de um casal de poetas líricos, é decidir a quem caberá ficar com o sol e quem levará a lua. Sem contar o cachorrinho Lulu e a gatinha Mimi.
Especializou-se em textos miúdos, aqueles nos quais é tão difícil identificar alguma poesia quanto negá-la.
Não tinha cuspido nem metade dos palavrões que guardara para receber a manhã e ela, atrevida molecona, já estava dobrando a esquina, com a língua de fora e de mãos dadas com o sol. Restou-lhe, como sempre, ficar ruminando seu discurso sobre ancianidade e respeito.
Se algo merece uma alma aflita, que seja o dom de completar-se como passarinho e alcançar no céu o azul mais serenamente azul que escolher.
Se soubéssemos, quando tudo começou a ruir, que haveria este tempo de quietude, esta brisa soprando misericordiosamente a pele do pó, não teríamos resistido tanto ao vento que nos fustigava.
A idade às vezes aguça certas habilidades em nós. Hoje estou tão pronto para cair na cama quanto cair dela.
Georges Simenon foi um escritor dos mais prolíficos. Produziu tantas novelas policiais que seu apelido bem poderia ser Olivetti. Uma máquina de escrever.
Faz algum tempo já que, assim como havia feito com o sol, dispensou a esperança de estar presente em suas manhãs.
O velho escritor sente que é hora de parar. Já nem corre o risco de desagradar aos leitores. Não tem mais nenhum.
Abrandando um pouco seu habitual tom dramático, ele resumiu hoje sua insatisfação com a vida numa frase simples: já gostou mais dos dias de sol.
Um dia, notou que, assim como o guarda-chuva esquecido no ônibus no último verão, tinha perdido toda a esperança.
Hoje, além dos costumeiros pássaros na ameixeira, a manhã veio tentá-lo com um miado aflito de gato novo. Foi mais difícil manter a janela e o coração fechados.
Nascido e criado no seio da burguesia, ele espera que, quando chegar o dia, possa morrer asseado, quentinho e bem trajado.
Não permita que em seus lábios as palavras vivam em promiscuidade. Jamais diga rosa logo depois de dizer monturo.
Depois de reconhecer que é mais preguiçoso que diligente, mais incapaz que eficiente e nada resiliente, pensou em desistir da literatura, mas, para não admitir um fracasso total, resolveu que será escritor, sim, mas no máximo bissexto.
Uma das folhas lançadas ao vento pela tempestade resiste ainda um momento, tenta assumir-se como pássaro e chega a flutuar como se fosse, antes de se afogar sem um gorjeio como as outras na enxurrada.
De certos amores passados a limpo às vezes não sobram mais do que três ou quatro parágrafos em letra graúda, sem notas de rodapé.
Nem sempre sou tão pusilânime quanto imaginam. Às vezes sinto ímpetos. De ceder, por exemplo, de capitular.
Tenho um trato com a vida. Não interfiro nos negócios dela, desde que ela não se intrometa nos meus.
Depois de tantas vezes ter sido
caçada, alcançada e ferida,
ela hoje, sempre que pode,
se põe fora do alcance da vida.
Sou um daqueles tolos que, já primeira vez em que ouvem a palavra amor, se interessam pela causa.
Para dar uma resposta aos que o consideram indiferente às causas sociais, o poeta criou uma ONG destinada a cuidar da saúde das rosas.
Ao escritor principiante recomenda-se que dê preferência às frases curtas, bem curtas, e à medida que for evoluindo as encurte ainda mais. Os leitores atuais costumam enredar-se de tal forma em frases um pouco mais extensas que a certa altura não sabem se o sujeito está indo para a Penha ou se já foi e agora vai voltando para a Lapa ou vice-versa.
Nos últimos tempos, vive se avaliando no espelho e ruboriza como um garoto indo para o primeiro encontro amoroso. Receia que a Morte não vá com sua cara.
Veste-se cada dia com mais capricho, como se fosse para uma cerimônia.. Apalpa a todo instante o peito, suspira e olha para a porta. Como se a Morte não tivesse mais o que fazer.
Desde que se indispôs com o mundo, tem sido coerente. Hoje começou uma campanha de difamação dos domingos.
Há algum tempo, já, sei que a melhor maneira de lidar com a vida é ignorá-la. Um caso de legítima defesa.
Se tiver oitenta e seis anos e lhe pedirem que você diga, apresentando provas, se chegou a haver um período feliz em sua vida, recomendo que comece a pesquisa pelo ano em que você estava com dezoito ou, mais seguramente, com oito.
Perderia a hora de acordar e também a de morrer, se não houvesse tão habilmente preparado o alarme para soar às dez horas, com tempo de sobra para embarcar num avião que decolou ao meio-dia e espatifou-se contra um morro dez minutos depois.
É um concretista de fato
um daqueles com os quais
a qualquer momento
você pode entrar em contato
e saber com minúcia de centavos
quanto custa um saco de cimento.
Alguns sinais mal interpretados em minha infância e em minha adolescência levaram muitos a acreditar que eu viria a ser um velho adorável. Sinto muito.
Opinamos sobre tudo
somos os senhores do sim
e os detentores do não
O mundo estar bem assim ou não
depende de nossa opinião
Às vezes alguém levanta uma questão
(quem vocês pensam que são? Deus?)
e nós respondemos sim, por que não?
Já não precisa dizer a palavra alma. Basta senti-la desenhada nos lábios para fazê-los sorrir como um menino diante do esplendor de seu primeiro arco-íris.
Só naquela tarde, a terceira depois da morte do gato, ela se deu conta de que fazia setenta e duas horas que o sol não vinha se espreguiçar no sofá, ao lado dela. Apalpando os vazios à direita e à esquerda, sentiu nos dedos o frio da dupla traição.
Gostaria de não ter mais nenhum senso moral, nenhum compromisso ético. Gostaria de poder libertar-me, de dizer bom dia ou boa tarde sem que meu rosto se incendiasse de vergonha.
Venho aprendendo alguns truques. Virgulo menos e melhor e estou mais conciso. Ainda me atrapalho um pouco na arte viver.
Aos oitenta você sabe o que sabia aos vinte: a palavra amor pode não salvar uma frase, nem melhorá-la, mas sempre há de justificá-la.
Quantos tolos, além de ti, acham que é para eles que o sol desperta e canta o bem-te-vi?
Desde que, ainda adolescente, se enamorou da tristeza, vem se esmerando nas difíceis artes da fidelidade e dos meios-sorrisos.
Começou do início
aprendeu todos os truques do ofício
seu ofício transformou-se em mania
sua mania tornou-se devoção
sua forma seu conteúdo
sua devoção um vício
Para ser poeta tem tudo
falta-lhe a poesia.
Anda cada dia mais lerdo. Hoje, quando conseguiu encontrar os óculos para apreciá-la, a manhã já havia passado.
Sim, eu falei de rosas, por que não? Não eram murchos meus lábios e puro era ainda meu coração. Sim, eu falei de rosas, num tempo em que elas não se encolhiam diante de mim e não se recusavam a ser tocadas por minha mão. Sim, eu falei de rosas nesse tempo. Você estava lá, você não se encolheu, você me escutou.
Se alguém lhes dissesse que escrever é mais importante do que viver, vocês o chamariam, no mínimo, de idiota. É como me chamo.
Sou um desses rabiscadores de versos que, nomeando-se poetas, se julgam capazes de melhorar o mundo todo e seus arredores. Perguntem às rosas que opinião têm de mim.
Achei exagerados os elogios, mas o diretor disse que são merecidos. Depois de um mês de ensaios, estou pronto para a estreia. Quando a caravana chegar à minha aldeia, os espectadores ouvirão os mais assustadores latidos da história do teatro.
Vontade de me pegar um dia, me arrastar pela orelha para um canto, dizer tudo que tenho aguentado esses anos todos, os contratempos, as aporrinhações que suportei, me xingar de tudo quanto possa, sair batendo os pés e nunca mais me olhar na cara.
Não procuras mais metáforas. Já foste estrela, e te apagaste, já foste barco, e naufragaste. És hoje o que és, e é o que te basta saber.
Não é bom negócio irritar um numismata. Ele está sempre pronto para responder na mesma moeda ou em outra qualquer.
O gramático é aquele sujeito que chega ao meio-dia e meia para um encontro em que todos os outros convidados chegam ao meio-dia e meio.
Ouviu o bem-te-vi chamá-lo tão insistentemente esta manhã que resolveu reconciliar-se com a vida por um momento e correu para a janela. Teria respondido à saudação, se o bem-te-vi já não estivesse cantando na casa do vizinho.
Eu gostaria de ter uns fracassos um pouquinho mais bem apresentáveis.
Enquanto meus contemporâneos se empenhavam nas colossais tarefas de salvar o mundo ou destroçá-lo, eu, salta-pocinha dos salta-pocinhas, caminhava pelo jardim para ouvir o que tinham a me dizer as borboletas.
Devo ser ingênuo, só posso. Atolado nos oitenta e cinco, confesso que às vezes ainda penso naquela história de futuro promissor e espero que se abra repentinamente o guichê no qual entregarei as credenciais todas que andei recebendo nesse tempo todo.
Já fui jardineiro. Minhas mãos andaram em tantos livros que as rosas se recusam a ser plantadas por elas.
Apesar das ressalvas do médico, ele se sente cada dia melhor. Os moinhos continuam a aparecer, mas só na sala, e ele aprendeu que, se fingir não vê-los, não o atacarão.
Às vezes a vida ainda consegue fazê-lo abrir a janela. Mas é cada dia mais difícil. Funcionam só truques antigos, como aquele de mandar o sol tocar a campainha e gritar correio..
Não, não é isso. Eu tenho feito alguma coisa na vida além de escrever. Olhe, eu carrego oitenta e cinco nas costas. Já pensou? Oitenta e cinco. Dá para ficar oitenta e cinco anos só escrevendo? Então. É o que eu lhe disse. Eu tenho feito algumas coisas. Que coisas? Ah, você não vai querer saber. Umas coisinhas.
Sou como todos os que vieram antes e os que virão depois de mim. Acho, como eles acharam e acharão, que se deve fazer algo para o dono da companhia. Dos atores que eu conheci, uns, além das belas palavras que diziam, davam piruetas, uns faziam malabarismos, uns engoliam fogo, uns cuspiam estrelas e uns, sem apoios, ficavam flutuando no ar. Uns se foram queixando-se do escasso tempo que tiveram e uns sumiram sem protestar. Estou aqui há oitenta e cinco temporadas e fiz de tudo um pouco. Não sei se permaneço por agradar ou por desagradar. Ninguém viu jamais o dono da companhia - dizem que é um tal de Godot - nem que ideia ele tem do teatro. No início eu me empenhei, mas de uns anos para cá faço tudo igual, sempre igual. Parece que outro ator se apossou de minha pele. Já nem espero prêmio nem castigo, só aguardo a hora de descansar ou (quem sabe?) os que se foram antes de mim talvez tenham hoje outro patrão e possam me recomendar. Pode ser que seja um grupo de comediantes e eu acabe me saindo bem, imitando aquele burro zurrando poemas de amor para a lua.
É um poeta estroina. Esbanja rimas, dissipa imagens, dilapida versos. Quando ri, estoura tímpanos; quando chora, derrama cachoeiras.
O venturoso João amou Maria
de modo completo
até que um revisor
que não conhecia o amor
usando um entendimento incorreto
pôs uma vírgula depois do verbo
e o pobre João assim afastou
de seu objeto dileto.
Como mudou a poesia. Era aclamada, incensada, aplaudida. Hoje tem sorte se passar despercebida.
Diante dos rouxinóis e das cotovias de Shakespeare, imagino a inveja que sentem meus pardais.
Poetas costumam estar presentes em acontecimentos como a aparição de um arco-íris depois de um grito de socorro no parque ou a imagem de um menino atravessando a lua montado num pônei. Se alguém lhes atribuir a autoria, é possível que neguem.
Se você sabe qual é a palavra, a única que eu usaria para tentar defender minhas oito décadas de insana busca, diga-me, por favor, que é beleza.
Foi um homem generoso. Na década de 1960, podendo vender sua cobiçada alma ao diabo, cedeu-a em troca de uma noite de amor com uma dançarina de rumba e uma caixa de charutos cubanos.
Tenho consciência de quanto não valho. No Dia do Juízo Final, só me chamarão quando começarem a julgar os menores pecados. Não estarão mais na sala nem Steinbeck nem Saroyan.
Às vezes eu me ponho a pensar como seria bom se eu tivesse o dom da perseverança, mas logo desisto.
Esses escritores que vivem falando de Deus e em cada parágrafo se apresentam como seus devotos, gostaria de saber o que diriam se Ele concorresse com eles a uma vaga na Academia.
Sou um desses tipos que, se você estiver desprevenido, pode acabar levando a sério. Eu mesmo às vezes me surpreendo ainda comigo e, se me colocar diante do espelho, posso receber-me com um sorriso e até acreditar em minhas palavras, se as disser.
Que nós eméritos peritos
doutores em filosofia
mestres em psicologia
nós especialistas em tudo
em forma e em conteúdo
saibamos nossa fama honrar
quando nos couber estrebuchar.
De um fato, amor, eu me ufano,
Tu sabes bem do que falo:
Tu seres meu suserano
E eu ser, amor, teu vassalo.
Famoso por ver pecado em tudo, o velho carola se intromete numa conversa em que duas de suas vizinhas exaltam o sol como uma inesgotável fonte de uma vida saudável: "Vocês falam como ele fosse um bom menino. Será mesmo? Vocês veem o que ele faz de dia. Mas vocês sabem que ele faz à noite?"
Viver foi meu mais imenso
E mais doído fracasso.
Viver não é o que eu penso
E nem aquilo que faço.
Quando dois chatos se reúnem, nem sempre se trata de uma dupla sertaneja.
A vida às vezes se assemelha a um desses chatos que começam se declarando úteis e que, se lhes dermos ouvidos, acabam se arvorando em indispensáveis.
Não foi em vão que leu os clássicos e cultivou arduamente o estilo. Quantos homens mais poderiam dizer com tanta classe, na oitava década de vida, que estão dando os derradeiros passos na estrada da existência?
Com a idade, vamos descobrindo novos motivos para nos vangloriarmos. Por exemplo: ninguém tosse melhor do que nós. Netos vêm de longe para nos ouvir.
Uma das vantagens de ser um velho é que ninguém mais pergunta o que você pensa da vida.
Demora um pouco, mas você acaba aprendendo que a melhor maneira de lidar com os dias é deixá-los passar.
Tudo nele hoje é cansaço. Dez degraus lhe parecem vinte, cada gesto é uma façanha, todo sorriso é só meio. Ele vai aprendendo a se economizar. De manhã, não abre mais a janela para dizer bom dia ao sol.
Penso quantas vezes já disse a palavra alma. Sejam quantas tiverem sido, sei hoje que em todas pequei por presunção. Alma não é palavra para estar em meus lábios. Meu nome não é Johann Sebastian Bach.
As grandes tristezas, as verdadeiras, não arrefecem, não se atenuam, não se extinguem. Quem julga o tempo capaz de remediá-las não demonstra nada além de uma lastimável fraqueza de caráter.
Desgostoso com o mundo e com a vida, decidiu fingir-se de morto. Obstinou-se nessa tarefa por meses adentro e anos afora, até que um dia não foi mais preciso.
Se eu me lembro do sol? Claro que sim. Não chegamos a ser amigos, coisa assim. Só conhecidos. Faz tempo. Mas o que tem o sol? Não me diga que ele morreu. Muita gente ia ficar triste.
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Você está vivo, quem há de duvidar? Não é você o velho que gasta os dias tropeçando pela casa, para tapar qualquer fresta por onde o mundo e o sol possam entrar?
Independentemente de alguma pequena virtude ou de algum indesculpável defeito que possam me atribuir, sou só o que sou: um macróbio.
Há de te agradecer a brisa que te levar. Te sentes hoje tão leve, tão mais fácil de soprar.
Há os que dizem da vida o que ela é. E há os puxa-sacos, que a adulam para ver ela lhes abre as pernas.
A vida não merece perdão. Nem eufemismo nem lambdacismo. Não é uma melda, é uma merda mesmo.
Se alguém, onde quer que seja, sacar um soneto, aja com presteza. Invoque a Lei do Talião. Saque outro soneto, em legítima defesa.
O tempo não me trouxe o alívio suplicado
E ainda hoje, minha pobre amada, me arrepio
E me pergunto, triste, amargo, irresignado,
Se tu tiveste medo, se sentiste frio.
Se o amor for o timoneiro,
Não tema a fúria do mar.
Ignore o mapa, o roteiro,
Será doce naufragar.
Podíamos ter podido
E até, quem sabe, ganhar.
Podíamos ter vivido,
Mas viver era lutar.
Venho reforçando, nestes meus últimos dias, a impressão de que nasci numa época errada. Disso advém todo o meu insucesso. Mau maior talento, esta tristeza que me canso de gabar, é um artigo de que o mundo parece não estar necessitando nem um pouco. Não preciso sair de casa para encontrá-la. Sentado no sofá, basta-me ligar a tevê para que comecem a jorrar na sala as lágrimas dos ultrajados, a baba rancorosa dos ressentidos, o inesgotável sangue dos inocentes.
Alguns me acham impiedoso,
Porém não sou tanto assim.
Às vezes sou generoso,
Sinto pena até de mim.
Meu jovem, se a intenção é plagiar, tenho dois conselhos: 1) comece logo por Shakespeare; 2) depois é só continuar.
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Que nós, para terminar,
Façamos por merecer
A paz que há em definhar,
O prazer que há em jazer.
Que fase pífia, esta minha.
Eu, que escrevi sonetões
E percorri quarteirões,
Empaco numa quadrinha.
Escutem-me, por favor,
Me deixem esclarecer:
Se o assunto não for o amor,
Não tenho nada a dizer.
Enquanto não morres, cabe-te ainda abrir as janelas toda manhã e aderir às jubilosas exclamações dos vizinhos: que belo dia.
Com Borges vim a aprender
Da morte o exato sentido.
Morrer é simples, morrer
É apenas haver vivido.
Ontem à tarde, sentado na poltrona, com os olhos quase fechados de sono, tive um momento de inquietude, um desassossego que rapidamente ameaçou enredar-me numa antiga questão filosófica: o sentido da vida. Seja qual for, parece-me que dificilmente se chegará a ele pelo caminho da inércia. Sentindo-me culpado, abafei um bocejo e instiguei-me a enfrentar mais uma vez o problema de saber o significado da existência humana. Refleti, analisei, ponderei e chegando, como em tantas outras ocasiões, a conclusão nenhuma, pedi ajuda à psicologia e, para não me julgar totalmente derrotado, marquei minha posição com um lance ousado: saí da poltrona e fui sentar-me no sofá. Se tivesse à mão o chocolate que Fernando Pessoa recomendou à menina, eu o comeria com muito gosto.
Ninguém mais hoje vem me visitar.
Ninguém mais sabe onde é que agora eu moro,
Ninguém mais sabe do que eu rio ou choro,
Estou tão morto quanto quero estar.
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Sou um desses tipos normais
dos quais sempre se espera menos
ou em casos excepcionais
muito menos mais.
Comparar-te a uma flor
ou a uma estrela equiparar-te
não seria um disparate.
Já o fizeram com suas amadas
poetas de muito melhor arte.
Eu porém de minha parte
sei que te chamar de flor
ou estrela proclamar-te
seria só uma de tantas formas
de subestimar-te.
Se cheguei, vi e venci,
Memória disso não guardo.
Não sei quanto ontem vali,
Mas sei quanto hoje não valho.
Sou um tipo soturno, a tristeza sempre foi meu pecado. Nunca andei sequer nos arredores nem de domingos festivos nem de gloriosos feriados.
Houve tardes - o sol há de lembrar-se -
em que ele pedia à noite que não viesse
ou que pelo menos tardasse
para que por mais uns instantes no parque
tua áurea majestade sobre nós reinasse.
É um desses tipos azedos que de segunda a sábado ficam juntando argumentos para contestar a beleza dos domingos.
Como não lastimar os mortos
quando o sol juvenil do domingo
vai buscá-los em casa
e já se foram
vai procurá-los na rua
e não os encontra
vai chamá-los no parque
e já não estão?
Hoje me peguei pensando nesta dor que tua morte me deixou. Ela não se cansa, não descansa, e, sem cansaço nem descanso, gaba-se de me doer cada vez mais. Não merecerá castigo uma dor assim, que não esmorece, não silencia, e se proclama orgulhosa, quase triunfal?
Descansa, minha querida,
Repousa plácida, assim.
Desapega-te da vida,
Do sol, de tudo, de mim.
Hoje que tu já não me acompanhas nos passeios matinais, o sol, como se tivesse se transformado num velho avarento, me segue sem entusiasmo pelas calçadas que levam à praia. Não encontra em mim aquele sorriso que lhe oferecias, nem a graça alegre dos teus passos à medida que se aproximavam do mar. O sol sabe que nunca mais verá como tu voltavas a ser menina quando tiravas a sandália para pisar as primeiras ondas.
De quem sai pelas ruas num carro caquético, apregoando pamonhas de Piracicaba, não se pode dizer que é um poeta, mas certamente é alguém que vive das palavras.
Acredito, com uma esperança que é quase uma convicção, que para certos infortúnios, como a morte de um ser muito amado, nem o tempo consiga oferecer alívio ou consolação.
Cada dia acordava mais cedo, não para proclamar a excelência do sol, mas para, apanhando a manhã ainda não de todo desperta, melhor apreciar-lhe os defeitos.
Foram-se os dias felizes,
Tão céleres quanto vieram.
Os outros, os que não eram,
Em nós fixaram raízes.
Mulher, não vos vejo mais,
Rainha, sou vosso cativo,
Só para servir-vos vivo,
Dizei-me, rainha, onde estais?
Somente um tolo ou sandeu
Em coisa melhor crerá.
Se glória a vida não deu,
Tampouco a morte dará.
É um daqueles parnasianos inquebrantáveis aos quais pode faltar um franguinho para o almoço, mas jamais um bom cisne para um soneto.
Eu serei sempre quem viu
Que tudo ao redor ruía
E se entregou à apatia
Até que tudo ruiu.
A literatura é um dos melhores modos de aprender que o lado ruim da vida talvez seja o único.
Rainha, nós perdão viemos rogar.
Erramos. Tão serena tu dormias
E tão bela tu estavas e sorrias
Que nenhum de nós quis te despertar.
Fui relapso com você nas grandes e também nas menores coisas. Soube pouco de você. Nada me absolverá dessa culpa, nada a aliviará. Como eu gostaria de ter agora resposta para pequenas dúvidas que me atormentam. Desde o dia em que você se foi, eu me pergunto se você era friorenta. E peço, e rogo, e rezo para que não, não, não.
Há homens que tardam a se dar conta do que ocorre ao seu redor. Conheço um que, tendo vivido décadas sob a guarda de um anjo, só notou isso quando seu protetor, chamado para missão mais nobre, se foi.
Sei, já, que onde estás é um lugar encantado. Eu o vi esta noite, em um sonho que te conto agora. Eras uma menina e estavas sentada numa nuvem, com outras meninas. Um pouco acima, uma mulher que chamavam de mestra. Ela olhou para suas pequenas alunas e convidou: "Meninas, vamos saudar a nova colega?" As garotas se levantaram alegremente: "Bom dia, estrela."
Quando falo de ti ou contigo, gostaria que não estivesse presente a literatura. Que eu nunca venha a usar teu nome como o clown do circo de periferia usa a buzina para pedinchar o aplauso do sonolento espectador do último degrau da arquibancada.
Fomos buscar-te hoje ali onde te consumiu o fogo. Nós te colocamos no centro da mesa, na sala, e trouxemos para fazer-te companhia o vaso com a flor-de-maio. Lá ficarás até o dia em que, cumprindo tua vontade, te levaremos para espargir-te no mar que amavas tanto.
Sobre teu caso com a vida
O que eu te posso dizer
É que tu amaste viver
E foste correspondida.
Tantas coisas fui
quantas julguei ter sido
Fui grande
fui nem tanto
fui talvez
De tudo quanto fui
ou julguei ser
sou hoje nada
sou hoje só ex.
Certa noite um homem, incumbido de zelar por uma rosa silvestre, julgando irrelevante a tarefa e muito fria a brisa, foi para sua casa e, depois de tomar um chá, adormeceu. De manhã, despertado por um vento feroz e uma voz acusadora como uma maldição, soube que não havia mais nem rosa nem tarefa, Eu sou esse homem, minha rosa.
Aos jovens de hoje falta aquela coragem básica, aquela tolice desembestada, aquela sandice que devem ter os que merecem morrer de amor.
Soldado teu
sobrevivi a ti minha rainha formosa
para que voz nenhuma do mundo
possa negar sem resposta
tua alma de pássaro
tua essência de anjo
tua identidade de rosa.
Por que foi, minha rainha,
Que quando tu me deixaste
E a alma contigo levaste
Também não levaste a minha?
Se já não mais os desta hora,
Se não mais os desta vida,
Que sonhos sonhas agora,
Minha bela adormecida?
Depois que você se foi, cheguei a pensar que ele não viria mais. Mas o sol tem aparecido toda manhã e, vendo fechadas as janelas que você lhe abria, desce ao jardim para perguntar às flores o que aconteceu. Depois, segue seu caminho, desenxabido como o menino doentinho a quem jamais terão a coragem de dizer que sua professora nunca voltará.
Se hoje escrevo mal ou bem,
Já não me importa saber.
Hoje escrevo para quem
Já não pode mais me ler.
Habituado às pequenas gentilezas
com que viciavas este menino teu mimado -
ajudar-me a dar o nó da gravata
a fechar os botões da camisa
a colocar os pés nos sapatos -
eu se pudesse falar-te agora
começaria provavelmente
não pelas fastidiosas juras de amor
mas por perguntar-te miudezas
A primeira seria se tiveste medo
a segunda se estás com frio.
Minha maior sagacidade é ter aprendido a não ficar esperando mais notícias depois de receber a pior.
No fim já não falavas comigo
Eu dizia te amo
tu não respondias
eu repetia te amo
tu não dizias nada
E eu tolo pensei
que eras outra vez
a menina que quando se zangava
me punha de castigo
e jurava nunca mais falar comigo.
Sei agora que devia
ter tentado acordá-la
mas você estava tão corada
tão rosa tão menina
que eu quis acreditar
que fosse só uma
brincadeira uma travessura
que você estava a me aprontar.
O amor terá o nome que lhe deres.
O meu, quando eu o chamo, deixa no ar
As sílabas que cantam ao chamar
A mais gentil de todas as mulheres.
Em um ano agora já da categoria dos remotos
1958 talvez 1959 ou 1960
em algum lugar desta gélida São Paulo
na Sé ou na Ipiranga quem sabe na Barão
o sol a seguia reverente
como um súdito acompanhando sua rainha
Foi essa a imagem que me veio
e eu disse a você e você
me beliscou e me disse seu bobinho
Eu guardei o seu beliscão
como um súdito guarda
o lenço que furtou da sua rainha
e fomos caminhando assim
o sol sobre seus cabelos
eu orgulhoso à sua sombra
até um cinema qualquer
para um filmezinho de domingo
Foi um sinal o primeiro
dessa descuidada majestade
que você nunca reconheceu
mas que me iluminou e aqueceu
até seu brilho derradeiro.
Quem há de confiar ainda em ti?
O que tiveste de mais precioso
teu melhor ouro teu tesouro
deixaste que entrassem em tua casa
empilhassem tudo em uma caixa
e se fossem enquanto
sentado em tua covardia
ouvias os cantos jubilosos dos predadores.
Ter amado a beleza e ter vivido para buscá-la pode parecer uma justificativa fútil e pretensiosa para a existência de um homem. Eu não tenho outra.
Tive, há muitos anos, uma dessas gatas de hábitos morosos, às quais o tempo sempre concede uns instantes a mais, para que, ao se espreguiçarem, possam estender todo seu garbo no sofá.
Devo ser justo com mister Parkinson. Ele às vezes me surpreende. Como ontem. Eu estava anotando uma lista de compras. Quando a terminei, ele elogiou minha letra. Eu me comovi. Agora leia para mim o que está escrito, que eu não estou entendendo, ele pediu. Mister Parkinson é assim. Tem seus instantes de bom humor.
Na noite daquele inolvidável maio, quando eu disse teu nome no parque, o vento, abrandando-se em brisa, foi compartilhá-lo com as flores.
Meu ato preferido é descansar.
Nada existe que agrade mais a mim
Que estar deitado, adormecido assim,
Tão morto quanto um vivo pode estar.
Que belo é teu nome. Não
Há nenhum capaz de ser
Tão suave, tão doce, tão
Ameno de se dizer.
Declinas como um sol de outono
derramando o último ouro seu num lago.
Emudeces como os lábios agradecidos de um monge
aquietando-se depois de uma oração.
E se definhares amada minha hás de definhar
como depois de um longo e feliz reinado uma rainha.
Se eu merecer ir para onde fores, talvez haja ali domingos como aqueles de 1958 e possamos andar de mãos e corações dados, como andávamos por esta nossa São Paulo a caminho do Cine Metro, quando a mais doce das tolices nos declarou enamorados.
Toda vez que digo teu nome, preciso dizê-lo baixo. Se o digo alto, logo em meus lábios pede passagem, enciumada, outra palavra: amor.
Sol esplêndido
quando brilhas assim
pelos vitoriosos
pelos ditosos
pelos venturosos
sei que não brilhas por mim.
Sonhei que tinha morrido.
Fiquei feliz, pode crer,
Como nunca havia sido
E nunca mais hei de ser.
Nesta fase da vida eu, já descrente das grandes descobertas, venho me encantando com acontecimentos miúdos. Sei que posso comer com a colher tão bem quanto fazia quando tinha um ano e que é mais difícil vestir uma camiseta do que escrever um poema.
https://rubem.wordpress.com/2024/04/14/esse-william-shakespeare-raul-drewnick/
No dia em que nos couber a vez, talvez descubramos que morrer não será propriamente uma novidade.
Com os outros sucedem fatos notáveis -
aclamações
consagrações
condecorações
Comigo decepções
humilhações
desilusões -
só fatos comuns
só coisas viáveis.
https://rubem.wordpress.com/2024/03/31/um-tantinho-de-mario-quintana-raul-drewnick/
Difícil é a vida de quem hoje resolve fazer um soneto. Muito antes de escrevê-lo, deve ir pensando no melhor pretexto para apresentá-lo quando o concluir e escolher ouvintes que, se não forem receptivos, não sejam totalmente hostis. Uma das desculpas mais frequentes é lançar o descalabro na conta de um súbito acesso de sentimentalismo, e as principais vítimas costumam ser os amigos mais próximos.
O melhor que me acontece
Não é quando o mundo chama
Por mim, quando me reclama.
É quando o mundo me esquece.
Aos poucos, vou descobrindo em mister Parkinson fraquezas que, por seu orgulho, ele jamais admitiria. Hoje eu o surpreendi nos cinco minutos agônicos em que, debatendo-se espasmodicamente, ele conseguiu afinal enfiar-se na camiseta para a caminhada matinal. Fingi não ter visto nada, vesti-me também, como pude, e saímos para o sol da manhã, assobiando, ele um pouquinho melhor do que eu.
Há vários anos já sem ver um arco-íris, o velho poeta deplora a avareza dos deuses, quando deveria lastimar-se pela crescente incapacidade dos seus próprios olhos.
Venho resistindo à infame tentação de debitar a mister Parkinson minha incapacidade de escrever duas linhas decentes sobre seja que assunto for. Mas meu espírito cristão anda fraquejando.
Hoje eu me peguei pensando que também a alma talvez seja um daqueles fenômenos típicos e exclusivos da juventude. Senti saudade do tempo em que ela, nos percalços amorosos, me doía docemente. Que diferença das dores prosaicas de agora: de estômago, de garganta, de panturrilha, de rim.
Às vezes a poesia, furtivamente, ainda me acena e tenta enredar-me de novo em seus encantos. Fala-me de amor, como antigamente, e me pergunta como pude me esquecer de tantas coisas mágicas que vivemos. Chama-me de ingrato, acusa-me de não ter alma e, sabendo como sou sentimental, cantarola uma daquelas melodias que cantávamos outrora, e incita-me a dançar como dançávamos em nossa época dourada.. Foi assim hoje. Eu caminhava aspirando o morno aroma do verão, quando ela veio, com seus ardis. Quase me entreguei. Mas mister Parkinson, sempre atento ao que é bom ou mau para mim, puxou-me rapidamente e, como um pai zeloso afastando o filho de um lupanar, me trouxe em segurança para casa.
As árvores morrem de pé
e assim também os bravos.
Eu porém herói moderno
quero morrer de modo hodierno
num hospital conceituado
num leito executivo
com ar condicionado.
Tem ainda, como aos dezoito anos, um bloquinho e uma caneta, mas não mais a ambição de salvar o mundo pela poesia. Dizem-lhe que o mundo já foi salvo inúmeras vezes, que continuam a salvá-lo e vão citando os nomes dos salvadores. Ele os anota no bloquinho. São tantos. Logo não haverá mais espaço para nada, se um dia o mundo lhe pedir socorro.
https://rubem.wordpress.com/2024/02/04/como-lidar-com-um-gramatico-raul-drewnick/
Hoje no jardim você se lembrou do dia em que a abelha enciumada feriu sua boca quando você disse a palavra amor. Hoje você não a diz mais. Você receia o gosto que possa ter o pão nos seus lábios, depois que você a disser.
Agora que já ao fim
Me submeto, e aos seus rituais,
Os dias farão de mim
O que quiserem - ou mais.
Chamei por Deus e a resposta foi um bulício na ameixeira, como se em um dos seus galhos estivesse nascendo um passarinho.
Depois de seis décadas de exercício da literatura, há momentos em que ele boceja sobre um texto e se sente como um funcionário público exemplar a caminho da segunda aposentadoria.
Assim como o sucesso, o fracasso é às vezes fruto de uma tenaz, incondicional e obstinada perseverança.
Sempre dei menos do que me deram.
Não posso queixar-me. Tive amigos,
Os amigos não me tiveram.
https://rubem.wordpress.com/2024/01/07/o-pecado-de-casimiro-de-abreu-raul-drewnick/
Zombei de tantos, escarneci de tantos, e no entanto agora só não babo também na gravata porque minhas mãos não conseguem colocá-la no pescoço.