Para tu não me dizeres
Que não te falei de flores,
Falo de ti, ser dos seres,
Primor maior dos primores.
Para tu não me dizeres
Que não te falei de flores,
Falo de ti, ser dos seres,
Primor maior dos primores.
PLANETA SOBERBO, O NOSSO.
COM ÓDIO E SANGUE NUTRIDO,
SOBRE DESGRAÇAS ERGUIDO,
DESTROÇO SOBRE DESTROÇO.
Tornou-se ainda mais emotivo, no fim. Se numa sexta-feira não passava pela rua o furgãozinho da pamonha de Piracicaba, chorava descabeladamente, como se lhe houvesse morrido outra vez a gatinha Tenória.
Aos que o censuravam por jamais levar um projeto adiante, respondia: sou um homem de princípios.
Desde que, num sonho, passarinhos se transformaram em flores e vieram plantar-se em seu jardim, o velho poeta espera que o fenômeno se repita, mas dessa vez as flores ousem ser passarinhos e voem rumo ao horizonte. Ele será um deles.
Também eu tive pela literatura certa queda que, descontando uns ais forçados e uns uis fingidos, foi só um tombinho.
É um homem obstinado. Levou a vida inteira para admitir que Shakespeare fazia o mesmo que ele, só que um pouquinho melhor.
https://rubem.wordpress.com/2025/06/08/historias-de-beija-flores-raul-drewnick/
Desde que lhe deram menção honrosa no concurso de Néris de Pitibiriba, o velho poeta vem selecionando suas companhias: nunca anda na calçada pela qual caminha o sol.
Que me perdoem os ambientalistas, mas, sob um ponto de vista estritamente futebolístico, acho que Deus, ao criar o mundo, exagerou no verde.
Lastima não mais poder oferecer ao vento derradeiro sequer um cisco dos orgulhosos castelos de sua juventude.
Hoje cedo o velho poeta pôs para correr mais um dos ardilosos sóis que ultimamente vêm se oferecendo a ele como se fossem os de outrora.
E se no final das contas
com esta cara de aldeão polaco
nulo de ideias
e de façanhas parco
eu tiver uma alma então
não será um milagre -
será um escândalo
uma esculhambação.
Bem faz a folha se, sentindo perto o rio ou próximo o mar, não se opõe mais ao vento e se dispõe a navegar.
Se eu fosse um cão abandonado
talvez me ouvissem.
Se a Deus que tantos dons me concedeu
eu fosse mais algum pedir
seria o dom de latir.
Se não lhe achou nenhum o Supremo Bardo
por que eu anônimo passageiro
deste barco desarvorado
haveria de saber qual seu rumo
e qual seu significado?
Hoje ele, vendo a vida com seus olhos de frequente e antigo consumidor, resumiria a experiência dizendo que, quando entendeu como ela funciona, descobriu que funciona mal.
Alguém já deve ter dito que a alma é como uma borboleta. Muitos, centenas provavelmente. Mas permitam-me que eu lhes diga também. A alma é como uma borboleta. Dizer isso me faz bem. Digam também, se quiserem. Não lhes fará mal nenhum. Melhor dizermos isso, juntos, do que partilharmos um daqueles meus fastidiosos sonetos. Se bem que...
Cada um de nós, que não somos heróis, sabe muito bem o que fazer: lutar contra nossos demônios bravamente, incansavelmente, incessantemente, até perder.
Parabéns parabéns
Três vezes parabéns
para o velho poeta
que com talento
brilho e galhardia
tendo mister Parkinson
como companhia
vai instante a instante
hora a hora
dia a dia
passo a passo
cansaço após cansaço
conquistando sua bela
sua completa
sua gloriosa ataraxia.
https://rubem.wordpress.com/2025/05/25/o-fantasma-parnasiano-e-outros-raul-drewnick/
Os que não me conhecem
os que não sabem quem sou
jamais terão sequer noção
de tudo que não perderam.
Não sou mais eu que respiro
Nem sou mais eu que ando.
Mister Parkinson venceu
E assumiu o comando.
No fim da jornada
alguns (sempre alguns há)
contam uma história
de batalhas imensas
e de façanhas alcançadas
enquanto a maioria
ouve admirada os relatos
de dias gloriosos
e se pergunta
por que não viu tudo
por que não viu nada
se presente estava
em cada um
dos tantos memoráveis dias.
A desafortunada Ismália estaria ainda hoje na sua torre a sonhar, se o perverso Newton não houvesse inventado a lei da gravidade.
No começo, era paixão, talvez amor. Ah, Mara, ah, Mara. Passados dois anos, se hoje fosse definir as semanais idas ao motel, ele as colocaria sob a rubrica Entretenimento. Pobre Mara, pobre Mara, ainda esperançosa de um dia registrar a história sob o título Casamento.
É um desses tipos presunçosos que, quando descobrem que por eles é que brilha o sol, o censuram por não brilhar mais forte.
Quando soube que não era para ele que o sol vinha toda manhã, mas para namoricar as rosas, o poeta decretou: jamais aquele velhaco frequentaria seus sonetos.
Ontem, contatam-me o caso de um homem que, por uma desilusão amorosa, foi atingido por uma tristeza que por muito pouco não o matou. Não comentei nada, para não magoar quem me contou a história. Mas digo a vocês, agora, que me esse homem, esse amor e essa tristeza me desapontaram.
Sou pouco mais do que nada,
Sou muito menos do que um.
Não tenho rumo ou jornada,
Ad minora natus sum.
Se pudesse ainda escolher
Aquilo que me conviesse,
Talvez teclasse morrer,
Se vivo eu ainda estivesse.
Que bisonhos, que chochos, que deploráveis são os tiranos de hoje. Bom o tempo em que um morituro como eu tinha, no seu dia final, a glória de saudar Júlio César.
Talvez o velho poeta aceitasse a reconciliação, desde que, naturalmente, a iniciativa partisse do sol.
Talvez esteja perto de se realizar a metáfora do barco rumando para o horizonte, onde o sol vai esparramando seu último ouro vespertino no mar. Toda noite ela vem se repetindo em meus sonhos. Não entendo nada de viagens, fiz só algumas curtas e nada memoráveis, Talvez tenha chegado a hora de ser recompensado.
Das verdades sei hoje a maior.
Há dois modos de lidar com a vida:
O meu e o melhor.
Os adjetivos que como um bando de passarinhos adulavam nossa juventude há muito se calaram e ficaram atrás, ali onde também o sol nos abandonou, deixando-nos sós na trilha que leva ao fatal e irrecorrível substantivo, sob o monótono pio da coruja.
Sim, morre-se de amor, sim.
Por que não se deveria?
Que belo é morrer assim,
Que doce é esta agonia.
Alguém por favor me diga
de forma clara e concisa
onde fica a Torre de Pisa.
Posso ainda fingir que sou tolo como qualquer um e sorrir para o sol, em troca de uma trégua.
Um grupo de jovens foi entrevistar o velho poeta para um jornalzinho estudantil. Empolgado, ele disse que ia lhes mostrar seus sonetos. Pediu que esperassem um pouco e saiu da sala. Voltou com uma caixinha e perguntou se estavam preparados. Puxou, então, a tampa. Saiu voando graciosamente uma borboleta que fugiu pela janela. "Que pena", ele se queixou. "Era o melhor deles."
De minha tristeza o que eu posso sucintamente dizer é que ela sempre foi generosa. Em tantas décadas de convívio, nunca me negou uma lágrima.
O receio que sempre lhe inspiraram os adjetivos justificou-se mais uma vez, hoje. Assim que abriu a porta, viu que a manhã lhe trouxera um gato. Morto.
Perguntaram ao velho poeta por que ele anda tão tristonho. A resposta: "Ah, minha amiga, é que ultimamente eu ando morrendo tanto..."
Nas pequenas arrumações que às vezes ainda faz, pensa em diminuir o espaço da tristeza. Mas ela sempre o fita com aqueles olhos chorosos.
Minha mãe, que tanto me recomendava só estar em boa companhia, o que faria se me visse andando hoje com mister Parkinson, como dois espantalhos bêbedos sacudidos pela ventania?
Se ora fui santo, ora puto,
Se sábio e também insano,
Tudo que fiz foi humano
E humano é que me reputo.
Quem acreditaria que tudo assim mudasse?
Pedia aos dias que ficassem,
Hoje implora que passem.
Agora não há mais saída.
Dois rumos te aponta a sorte.
Num deles perdes a vida
E no outro encontras a morte.
Com seu futuro cada dia mais presente, o velho poeta vem abrandando suas exigências. Hoje, trocaria a imortalidade por uma morte decente.
O poeta deve agir como quem aplica no mercado de ações: escolher seu melhor tipo de tristeza e perseverar.
Nos pouquíssimos dias em que não estava acompanhado por sua tristeza, o poeta não chegava exatamente a rir, mas nos seus lábios se desenhava às vezes a esperança de um sorriso.
Que ranzinza tu és. Se não aplaudes o sol, deverias ao menos agradecer-lhe pelo esforço de todos os dias aparecer ainda e de fingir ser o mesmo que vinha te acordar nas manhãs de tua primavera.
Estaremos mais leves que uma folha, e o vento, julgando-nos uma andorinha, nos juntará às outras, no voo rumo à eterna primavera.
No fim, compadecido com a nossa, o silêncio fingirá também fadiga e se deixará alcançar.
Houve tempo em que logo de manhãzinha saía para ver o sol e brincar com ele. Hoje, não conseguiria ir até o quintal, se uma estrela pousasse na ameixeira.
Tenho chorado sim (quanto
não imaginam vocês).
A vida me mata, enquanto
a morte espera sua vez.
O velho poeta anda tão aborrecido com a vida que já decidiu: na próxima vez em que ela o convocar, seja lá para o que for, não mandará nem representante.
Alguém perguntou ao velho poeta o que era a vida. Ele sorriu: minha companheira de viagem.
No dia em que descobriu que nunca tivera nada a dizer, tinha dito já tudo por trinta anos e foi com olhos culposos que fitou a estante cheia de troféus literários.
Se estivéssemos aqui para algo essencial e glorioso, penso que já saberíamos. Enquanto não descobrimos, deixemos à disposição do respeitável público nossos melhores versos e torçamos para que ele continue sendo generoso conosco, ainda que seja mais por nossos olhos tristes do que por nossas previsíveis rimas.
Soube que estava no caminho certo quando sentiu que o sol já não acompanhava seus passos, que numa derradeira metáfora soavam delicados como as tentativas de pouso de uma borboleta sobre a relva.
Dizer que sempre escrevi procurando a beleza pode soar ou muito pretensioso ou fútil demais como justificativa para tantos anos de vida. Bem, é o que venho fazendo.
Era um desses homens comuns, cotidianos, cujos lábios ninguém julgaria capazes de algum dia terem dito a palavra eternidade.
https://rubem.wordpress.com/2025/03/16/sobre-poetas-e-outros-tipos-raul-drewnick/
Dou isto como assentado:
Ninguém jamais há de ver-me
Tão tenazmente empenhado
No esforço tolo de ser-me,
Se alguma coisa fiz nesses anos todos, receio que seja só a incansável tarefa de piorar o menino que fui.
És hoje do fracasso
A imagem precisa.
Querias conquistar o mundo,
Não consegues abotoar a camisa.
Tenho hoje pleno sentido
Do mal que tem me matado.
O erro não foi teres ido,
O erro foi eu ter ficado.
Estarmos mortos seria a mais prazerosa das sensações, se estivéssemos vivos para desfrutá-la.
Que bela figura faziam as rimas. Podia estar chovendo no poema, que elas não perdiam o charme. Continuavam de mãozinhas dadas, cantando afinadas e saltando pocinhas.
Discípulo de Rimbaud, perdeu a calça de veludo num lupanar e o estilo num joguinho de dados.
Saiba quem ler este comunicado
que o Corinthians foi, é e sempre será
o mais puro e o mais santo dos meus pecados.
Hoje o poeta, que há muitos anos rompeu relações com o sol, lembrou-se da época em que ambos andavam pelas ruas do bairro, como dois menininhos. O sol o chamava de Alemão, e ele o chamava como mesmo? Ah, sim, claro, de Helinho.
Que bênção se esta sensação de estar quite com a vida, indisponível para os seus prazeres e os seus suplícios, fosse mais do que só esta sensação.
Os ladrões que assaltaram a casa do laureado poeta Eurico Áureo D'Argento felizmente não se apossaram de sua fortuna crítica.
Para saber se continua vivo, às vezes balbucia eu, só eu, porque o cansaço o exime de utilizar um verbo, qualquer verbo.
Dizia que tinha algo a ver com Dostoiévski, e jamais haver mencionado exatamente o que era parecia aos outros uma notável prova de sua falta de presunção.
Você sabe, hoje, tudo que você pôde aprender. Se mortos falassem, quanto você teria a dizer.
Desfrutar é outro daqueles tantos verbos que para ele não fazem mais sentido na primeira pessoa.
Porque é o último,
Sabes que enfim é o certo.
Podes sorrir agora,
Ninguém zombará de teu sorriso.
Teus passos são só os que pede o caminho,
Porque estás perto,
Cada passo mais perto.
Decepcionado com o anonimato de sua literatura, resolveu participar de um concurso de contos. Seu pseudônimo, Amaro Reles Ramble, revelou-se modesto depois que se divulgou o resultado. Estava um pouco mais amaro, um tanto mais reles, bastante mais ramble.
Olhem se nós morrermos
cada dia um pouco
devagar e sempre
sem pressa
morigeradamente
dia chegará
em que teremos
morrido o suficiente.
Às vezes, meu cérebro age como se fosse um moleque endiabrado. Hoje, por exemplo, me sugeriu este exercício como o mais adequado para a minha idade e meu futuro próximo: fechar os olhos, sempre que possível, e mantê-los assim cada dia com maior determinação.
Há quatro dias não escrevo. Há quatro dias, como se fosse um cão abandonado, uma frase me segue, aflita: "Há de ser um lugar tranquilo". Não é literatura, mas eu a registro aqui. A vida é assim, às vezes. Direta e pedinchona como um manifesto. "Há de ser um lugar tranquilo."
Desde os quinze anos, o que mais venho fazendo é escrever. Se você me acha escritor, eu lhe agradeço. Se acha que não, eu lhe agradeço se não me disser.
Era menos infeliz outrora, quando dava olhos à presunçosa pirotecnia do sol e ouvidos à demagogia matinal dos bem-te-vis.
Que no fim restem só duas palavras e você possa dizê-las simplesmente como são, sem retórica ou solenidade. Uma delas será Senhor. A outra, perdão, ou obrigado.
Ultimamente o velho poeta deu de embirrar com tudo. Tem casos pendentes com os vizinhos, os parentes, os cachorros da rua, o sol bisbilhoteiro, que o importuna logo de manhã, além de outros que correm em segredo de justiça.
Cada dia estou mais fraco.
Valei-me, meu bom Jesus,
Banhai-me todo de luz.
Sou fosco, sou baço, opaco.