Quem passou pelo mundo em branca nuvem,
quem passou por São Paulo e não choveu,
não sabe por que veio aqui ao mundo
nem a oportunidade que perdeu.
Quem passou pelo mundo em branca nuvem,
quem passou por São Paulo e não choveu,
não sabe por que veio aqui ao mundo
nem a oportunidade que perdeu.
Apareceu algures, no mês passado, um adjetivo tão insólito que um filólogo, resolvendo estudá-lo, descobriu que na penúltima vez em que tinha sido usado fora num trabalho escolar de Rui Barbosa.
Com uma centena de ilustríssimos convidados, o concretista Petrus Solydos assentou este sábado na Vila Madalena a pedra fundamental de seu mais recente livro.
Era um poeta desses casmurros, premeditadamente áridos, cujo único lirismo estava em sua gravata borboleta.
Hoje o velho poeta conseguiu dormir um pouco mais; Os domingos parecem dispostos a cumprir o acordo. O de hoje amanheceu com uma chuva ríspida que até as nove manteve as ruas que levam à praia livres dos turistas e de suas exultações clamorosas.
Acho que caí no golpe da viagem -
preenchi as vias
tomei as vacinas
fiz a mala
paguei a passagem
o primeiro a chegar ao cais fui eu
Éramos tantos
todos se foram
restei só eu
Se pergunto o que aconteceu
o inspetor quer saber
se conheço kafka
e diz hoje que o navio teve um problema
e amanhã que o capitão morreu.
No dia em que vieres me buscar, eu te peço, chama-me forte. Sabes como sou tolo, como sou surdo, como sempre fui indigno de ter meu nome pronunciado por ti.
Além de versejar bem
e respirar com dificuldade
o poeta romântico devia também
por uma das normas gerais
no quesito idade
morrer tão cedo
quanto álvares de azevedo
ou ainda mais.
Quem mais perdeu com o advento do concretismo foi a categoria dos declamadores. Salvaram-se poucos, requisitados pelos bingos suburbanos.
No saguão do seu prédio, o poeta concretista afixou todas as suas licenças poéticas.
A nós, que estrebuchamos, que grunhimos, que salivamos em nossa hora final, que inveja causam as borboletas e as rosas, em seu morrer anônimo e silencioso, sem queixas nem exasperações.
Ensinaste a brisa a dizer tão docemente o meu nome que esta manhã, quando ela me despertou, eu fiquei te procurando pelo quarto, até descobrir que ela falava de fora, no jardim, dentre as rosas.
https://rubem.wordpress.com/2025/12/07/a-morte-passeia-pelo-suburbio-raul-drewnick/
Estaremos tão leves que a brisa, dispensada de nos conduzir, irá ajudar um passarinho em seu primeiro voo.
Hoje viu o barquinho que o levará. É um pouco maior que a mão de um menino. Suspirou, agradecido. Acabou o tempo das bravatas. Viagens curtas dispensam almirantes.
Anda confundindo cada vez mais as coisas. Nem sempre isso é ruim. Hoje, procurando sinônimo para alma, veio-lhe flor.
Sonhou que, tendo insistido durante anos, era recebido não por Fernando Pessoa, mas por um dos mais obscuros heterônimos.
Assim que se pôs a serviço do poeta, soube que seria apenas uma metáfora, o porto onde todas as esperanças estavam fadadas a naufragar.
O guia que me couber será o mesmo que te levou. Ele não me dirá nada. Sorrirá, e eu saberei que as flores no caminho nasceram das lágrimas que semeaste à espera das que chorarei.
Se uma voz aparecer dizendo que é sua alma, peça que ela cante o hino do Corinthians.
No sonho, eu estava deitado na praia. Era noite, e as palavras que me observavam, não sabendo se eu era homem ou peixe, acharam prudente esperar o sol chegar, para decidir se me deixavam ali ou me levavam de volta ao mar.
Nenhum de nós foge à sua hora.
Quem sua pequenez deplora
E até quem em deus se arvora,
Ontem, amanhã, agora,
O tempo vem e devora.
Há quem prefira um binóculo. Eu acho que a melhor maneira de exercer o voyeurismo é a olho nu.
Não concordo com o que vocês dizem dos poetas concretistas. Só acho que eles são um pouquinho desempenados demais.
Instigado pelos veteranos, o passarinho tolo pediu licença para entrar em meu sonho e me chamou de seu Quintana.
Por seus olhos, sujeitos agora aos caprichos autorais de mister Parkinson, as belezas que encantaram sua juventude passam agora como ovelhas capengas que um sentimento de dignidade impede de caírem antes do portão do matadouro municipal.
Merecias melhor poeta. Um que fosse tão superior que quando falasse de ti não fizesse o jovem estudante dizer ora parece o retrato de Laura e o velho erudito avaliar ora parece que fala de Beatriz.
Se alguém se dispõe a ouvi-la, a história veste seu traje de domingo e sai para o sol com a bolsa cheia de parágrafos.
Sonhei que eu vinha visitar-me, que ia até minha cama de doente e que pela primeira vez via autenticidade em minha tristeza, isenta de mistificações poéticas.
Penso que será muito longa a viagem. Acordo toda manhã com mais sede. Você não pode me dizer nada? Receio chegar aí com um cantil e você me chamar de escoteirinho querido...
Sou um desses homens cuja única façanha é viverem cem anos e não terem nenhuma para contar.
Se você quer saber se vivo bem, se vivo mal, se vivo realmente, pergunte aos meus advérbios.
Esta madrugada, um sonho alheio perdeu o rumo e apresentou-se como se fosse um dos meus. Dez ou doze gaivotas, loucas de alegria, vieram chamar-me. Pude apenas sorrir para elas. Logo se deram conta do engano e foram procurar um menino que na praia as esperava, ansioso para brincar.
Vai se identificando tanto com o sofá em que passa seu tempo derradeiro que também já não responde quando lhe desejam um bom dia.
Por uma exigência de rima
o príncipe de taranto
morava no castelo de otranto
mas não era seu dono
só da metade
se tanto
porque o outro tanto
a outra metade
pertencia aos fantasmas
que desde prisca idade
fugidos da Inglaterra
assombravam a herdade.
Era um poeta cuja melhor metáfora era uma cópia quase perfeita de uma frase de um primo alfaiate.
Tenho alma de esmoler. Se alguém se aproxima, escanteio meu sorriso e coloco meu chapéu e meu coração ensanguentado de mercurocromo na calçada.
No dia em que se declarou à poesia, sentiu medo de não lhe agradar. Era pouco mais que um menino, conhecia dois ou três adjetivos além de feio e bonito e sua única forma de expressar o mundo eram o ranho e as lágrimas.
Depois de banhá-las com lágrimas de estrela, o poeta parnasiano põe suas vogais para secar ao sol.
Sim, o homem que fui foi esse mesquinho
Que se poupou, que não se deu à vida,
Como se ela não o merecesse.
O poeta parnasiano morreu fazendo coceguinhas no cavanhaque e estrebuchando como um cisne.
No sonho era um menino loirinho que apontava o dedo para o alto e, sob o olhar enternecido da mãe, dizia: azul, azul, azul.
A polícia prendeu o poeta parnasiano, virou-o de ponta-cabeça, sacudiu-o, ressacudiu-o, mas a denúncia se revelou improcedente. Nenhum soneto em bolso nenhum. Só uma latinha de Pastilhas Valda.
No dia em que concluí os três meses de estágio, mister Parkinson fez-me um elogio em classe e disse aos veteranos: "Agora ele é um dos vossos." Eles avançaram alegremente para mim e começaram a dar festivos tapas em minhas costas, onde colocaram um cartaz de cartolina barata: "Sob nova direção."
Virás buscar-me disfarçada de brisa e perguntarás: está pronto? E eu direi: quem pôs tanta doçura em tua voz, minha tolinha?
Perdoa-me por aquele tempo em que já reinavas em minha alma e eu gastava com estrelas, rosas e outros lirismos adjetivos que só cabiam a ti.
Sonhou que ia se fazendo leve, que era um passarinho, mais leve, que levava no bico uma folha pelo ar, mais leve, que no fim era só o ar.
Um bom diretor de teatro é capaz de transformar em Hamlet o menos talentoso dos bonecos de posto de gasolina.
Depois que souberam que o velho poeta vai fazer uma longa viagem, algumas palavras andam inquietas. Passarinho, por exemplo, receia não acostumar-se com o novo céu e pergunta-se se haverá para ele tão confortável ameixeira.
Depois que souberam que o velho poeta vai fazer uma longa viagem, algumas palavras andam inquietas. Passarinho, por exemplo, receia não acostumar-se com o novo céu e pergunta se terá ainda uma ameixeira.
Foi uma pena, perdeu a ocasião.
Já bem morto estava
e refestelado no caixão
quando passou todo gritão o carro
com as pamonhas de Piracicaba.
A juventude é uma façanha que, quando a relatamos, sempre nos perguntam se temos fotos para comprovar.
Esta noite, depois de um pesadelo, ouvi uma cantiguinha que me pegou pela mão e me reconduziu devagar ao sono. Era o vento na ameixeira ou era você me ninando? Que palavra era aquela que parecia paz?
Minha memória anda desmemoriada
não posso mais não admitir.
Se lhe pergunto onde é o Brás
ela me diz onde é o Tucuruvi
e me faz chamar de Lucinha
meu amigo de infância Altair.
Se peço que me ensine como voltar
ela, claro, me explica como ir.
Do jeito que vai o dia vai chegar
em que cumprimentarei
bom dia caro Shakespeare
meu zelador Xavier
e ele me espinafrará
ou - pior - good morning
se assumirá.
Logo poderei enfim
porque assim querem o tempo e a rima
descansar de mim.
Tão calamitoso tinha sido o sábado que o domingo chegou pedindo, em nome da empresa, que os usuários perdoassem a má conduta do companheiro.
Confiada às mãos de um mau poeta, a rosa viveu ignorada até o dia em que ele precisou de uma rima para formosa.
Companheira do velho poeta desde a infância, a tristeza anda tão cansada e arredia que, para remotivá-la, ele às vezes precisa trazê-la para o colo e dizer-lhe palavras carinhosas ao som de Ravel ou Chopin.
https://rubem.wordpress.com/2025/11/23/divagacoes-sobre-a-palavra-prata-raul-drewnick/
É um castelo que ainda está na página oitenta, porque o autor do romance, cioso das questões de estilo, não sabe ainda se o fará ruir fragorosamente, ruidosamente ou calamitosamente,
É um desses tipos que, mal acabam de reconhecer a perfeição de uma rosa, já apresentam alguma ressalva.
Sente-se como um orador que, tendo concluído seu longo discurso pontilhado por magistrais metáforas, começa a retirar-se, esperando que alguém rompa o silêncio que pairou sobre o auditório desde sua primeira palavra, ainda que essa misericordiosa intervenção seja apenas um espasmo de tosse.
Nos últimos anos de vida, sua voz estava tão débil que já não chamava ninguém quando o gato, entediado com o sofá, ia ao quarto afiar as unhas no seu pijama.
Sonhou que tinha sido eleito Personagem do Ano por seus amigos defuntos e que, quando eles foram chamá-lo para a cerimônia, não conseguia acordar.
Minha mãe, se tivesse dons literários, diria que eu poderia ser um garoto maravilhoso, se não tivesse tantos defeitos.
O velho poeta é metódico. Quando vai escrever um poema, pega o bloquinho e a Bic e convoca a tristeza. Se esta custa a chegar, ele usa um truque simples: pergunta à desalmada se já se esqueceu daquele gatinho cinza da infância, atropelado por um caminhão de gás ao som da musiquinha de Beethoven.
Como Millôr dizia.
Coberto de razão,
Por quê? é filosofia,
Porque é presunção.
Sonhou que era um rei destronado que no final de um folhetim de enredo mal tramado ressurgia no ramo hoteleiro, como dono de uma pensão, todo pimpão e reabilitado.
Lembra Fulano, aquele? Coitado. Foi buscar o Nobel e voltou todo enobelado.
Tem tido sonhos de dois tipos: os singulares e, como o de hoje, os muito singulares. Morava na mais bela cocheira do povoado e seria feliz se os outros cavalos não insistissem em chamá-lo de burro. Acha que mister Parkinson tem parte nisso ou, como na infância o advertia a mãe, aquele maldito Dostoiévski.
Como melhoram nossas noites quando deixamos de sonhar com o Nobel.
Fingir que estou vivo tem sido fácil. Difícil é saber aonde isso pode me levar.
Na última vez em que o viram, o poeta estava partindo com mister Parkinson numa expedição em busca da forma definitiva da palavra fim.
Não sabe como suporta
Esta situação absurda.
A vida faz-se de morta
E a morte faz-se de surda.
É um velhote simpático. Nas reuniões com amigos, quando comparece, à razão de uma a cada dez marcadas, costuma comportar-se bem, até o momento em que pigarreia, pede atenção e começa a puxar do bolso seus caudalosos sonetos.
Lembra? Um dia você foi como o menino que passou agora todo contente, andando e assobiando na rua. Que singela receita de felicidade: andar e assobiar. Você se contentaria com andar.
Quem me vê conversando contigo se espanta. Esta era considerada uma façanha ao alcance apenas de Olavo Bilac.
Se tivesses sido domingo, serias aquele em que o menino conheceu o mar e ele tão belo lhe pareceu que suas lágrimas vieram juntar-se às ondas, sob o mais glorioso dos sóis.
A coisa está assim. Tanto me chamaram de louco que acabei concordando. O rapaz lá do registro quis se opor, alegando que um poeta, como dizem que eu sou, é equiparado a um louco. Mas finalmente cedeu e aqui estou. Pleonasticamente louco.
Se não houvesses partido, terias certamente um motivo para me censurar. Continuo a te achar a mais bela de todas e a comparar-te com rosas e estrelas, mas com este estilo tosco que não te faz justiça. Merecias melhor poeta, minha musa eterna.
No seu tempo de primário, quando as professoras pediam aos alunos que contassem, em redação, como tinham passado as férias, ele se vingava da realidade. De todos, foi o menino que mais viajou no mundo. Os outros, aqueles sonsos, o olhavam com olhos de colérico despeito
Um dia descobrirão que aqueles tempos que você chamou de áureos só o foram porque na hora de encerrar a frase não lhe ocorreu adjetivo melhor.
O que eu posso dizer de mais honesto hoje precisa de só duas palavras: estou cansado. Ou, se servir para melhorar o estilo, de três: estou muito cansado.
Escritor é aquele cidadão que sempre tem bem planejado seu caminho. Começa aqui, vai para ali, envereda por lá, tudo bem separadinho por vírgulas.
Não se lembra exatamente do dia em que assumiu o compromisso com a literatura. Era então pouco mais que um menino. Mas espera que tenha sido numa manhã chuvosa.
Sei que não me suportam por aí. Dizem que sou presunçoso, enfadonho e, pior que tudo, corintiano. Mesmo em casa, se for feita uma pesquisa, até o leite declarará que sua lactose não pode nem me ver. Sei muito bem disso. É recíproco. Desde o tempo da Parmalat.
Sim, fiz outras coisas além de escrever, mas nunca com o mesmo empenho. Viver, por exemplo.
Morreram já tantos dos nossos e nós os celebramos com estilo tão tosco que, se vivos estivessem, haveriam de nos amaldiçoar. Que vergonha teria Shakespeare de saber, ai ai de nós e ai ai ai dele, que nos declaramos seus mais apaixonados leitores.
Pela paz de nossa alma, renunciemos ao exercício de qualquer arte, até ao da mais comezinha de todas: a de respirar.
Em nossa presunção, fomos impondo à vida tantos significados, e a nós o dever de deixar tantos legados, que toda manhã nossos ombros maldizem a chegada do sol.
O culpado sou eu, Léa?
Você me aparece nua
E diz que foi sponte mea?
Foi, mas foi mais sponte sua.
Há alguns substantivos sem noção que, não pensando no futuro, esbanjam seus melhores adjetivos na mocidade.
Se eu fosse comparar-te
não seria com uma flor.
.As flores morrem, como tu,
mas sem essa ressalva astuciosa
que te enseja voltar no mais comum dos dias
disfarçada de jovem estudante
e fazer o sol seguir
teu vestido azul-marinho
até o portão do colégio
e por um momento se esquecer
que deveria estar
na calçada do outro lado
deitado sobre um jardim florido
para celebrar a primavera.
Já há alguns dias, uma voz vem nos sugerir que estejamos preparados, e a brisa lá fora parece nos chamar. Paira uma inquietação de viagem em tudo, e a voz, que se assemelha cada vez mais à nossa, soa mais esperançosa toda manhã,
Quando você me dizia bom dia, as consoantes se aprimoravam e a manhã se povoava toda de vogais.
Não sei o que me ocorreu.
Dormi, sonhei e no sonho
Eu fui um homem risonho,
Não este quando acordei.
No sonho desta madrugada
A cigana me prometeu um grande frio,
Uma ampla jornada.
Como sempre, deve estar enganada.
Com ele tudo ocorre pela metade.
Não vem a bonança,
Só a tempestade.
Já não me procuro, não me chamo, não converso comigo, não me peço nada. Vou me preparando. Quando eu precisar de alguma coisa, não sentirei falta de mim.
Tugir eu não garanto
talvez não esteja preparado
mas se investirem em mim
e me derem o mestre adequado
posso mugir tão bem
quanto um boi esquartejado.
Durou só um mês.
Não lembro. Maio? Setembro?
Dezembro talvez?
Se a rima, amor, não me diz,
Me diz, por favor, se lembras,
Em que mês, em que calendas
Tu me fizeste feliz.
A vida é tão banal
que não me espantarei decerto
se em meu momento final
em vez de um canto celestial
eu ouvir uma cantiguinha proclamar
que Autoglass é o nome certo.
Nesta parte, a final, a voz certa te dirá que podes fechar os olhos e dar mais dois passos, só mais dois passos.
Eu ainda era um menino quando assumi o compromisso de viver para escrever. Estou com oitenta e sete anos. Essa é toda a história, se deixarmos de lado minúcias como sangue, suor e lágrimas.
Meu estado atual não me permite filigranas de estilo. As palavras, tão rápidas quanto me vêm, me escapam. Não consigo arranjar um adjetivo decente para rosa.
Hoje, incapacitado em quase tudo, precisa esforçar-se até para manter sua tristeza honesta.
O terceiro ato é aquele um que você enfim pode mostrar sua plenitude de artista e sua inigualável versatilidade: acordar às oito e meia com um alexandrino perfeito na boca e não conseguir abrir a tampa do leite às oito e trinta e um.
Não se dê ao trabalho de investigar o sentido da vida. Os filósofos estão aí para isso, com a vantagem de poderem ser também excelentes conselheiros bancários.
Se você tivesse sei lá
morrido em 2004 em 2014
ou no ano passado
não estaria sofrendo
com essa dor nas costas
e esse carnê atrasado.
Sou um idiota que à noite sonha sonhos
em que solenes aliterações lhe prometem
amanhã amanhã amanhã
e que acorda babando derrota e cuspe podre
toda manhã.
Sim, eu te amei, não notaste?,
Com todo meu coração,
Mais forte do que me amaste
Ou, sendo modesto, tão.
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Os dias agora são para mim como aquele ator muito velho que, tendo feito só um sucesso na carreira, tenta replicá-lo infinitamente, para um público que finge agrado porque, tendo comprado a temporada inteira por preço popular, finge agrado para não ficar sem peça amanhã.
Para não morrer com a fama de grosseiro, voltou a dizer bom dia às manhãs, mas ainda sem abrir as janelas.
Bem melhor será que eu morra
Do que viver assim pasmo
Entre marasmo e modorra,
Entre modorra e marasmo.
Esta manhã ele acordou apaziguado,
Sem ânsias de futuro ou laços do passado,
Sem compromissos com ideais ou com legado,
Como se em brisa se tivesse transformado.
Se deixarmos de lado os aspectos puramente literários, posso dizer com orgulho que logo estarei tão morto quanto Dostoiévski.
Que eu tenha tempo de no caminho
assobiar e ter como última impressão
a de ouvir cantar um passarinho.
Os poetas moram assim:
o concreto na cobertura
o parnasiano na torre de marfim.
Como sempre fizeram
os hipócritas e os fariseus,
quando ninguém mais ouvia o que ele dizia
começou a clamar por Deus.
Nem todas as crases merecem a má fama que têm. Algumas, dependendo de quem as acompanhe, chegam a ser simpáticas. Exemplo: à beira-mar, à tardinha. Mas, francamente, à socapa e à sorrelfa só os intrépidos devem encarar.
O gramático é aquele que chega sempre depois que já colocamos mal todas as nossas vírgulas,
Esta noite a cigana veio e recomendou que eu esteja pronto para uma longa viagem. Não sei. Estou velho demais para acreditar em sonhos, principalmente os mais promissores.
Se alphonsus não somos
por que por nós
chorarão os cinamomos
e os sinos haverão de badalar?
Ajusto-me cada dia melhor ao papel de velhinho que, jamais tendo feito nada mais do que ir daqui para ali em seus roteiros prosaicos, começa a acreditar na brisa que toda manhã vem lhe prometer uma viagem longa e gloriosa, como aquelas dos grandes aventureiros, heróis da sua infância.
Eu sei, meu amigo, eu sei. Sobre esse assunto eu penso igual. Não me importaria estar morto, desde que para isso não fosse preciso morrer.
Nenhum de nós está livre de, em nosso último dia, nos aparecer um daqueles chatos de antologia para perguntar se morremos bem e quem está pagando o velório.
Você dirá Deus, ou mãe. Qualquer uma dessas palavras estará bem dita, antes do ponto final.
O doutor fitou o que restava do poeta e disse: sinto muito, meu caro, mas sou um médico, não um taumaturgo.
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A tristeza e eu temos toda uma vida em comum. Amigos de infância, temos passado por fases terríveis, mas nenhuma alegria foi capaz de nos separar.
Um assunto sobre o qual eu, modéstia à parte, certamente posso opinar é a tristeza. Excetuando um ou dois deslizes, que não chegaram a ser transgressões, tenho décadas de prática.
Sou um desses poetas que, se não falam de amor, não têm o que dizer.
Escassa é minha virtude
E parco é meu cabedal.
Só fiz aquilo que pude
E aquilo que fiz, fiz mal.
Vai aprimorando suas astúcias. Toda vez que a vida se distrai e cochila, ele dá dois passos para longe dela. Espera logo estar numa camada tão funda de silêncio que nem a voz da mãe possa alcançá-lo.
Se houver uma rima imperfeita ou um deslize de métrica, podem esperar, que o sonetista voltará para aprimorar o crime.
Começo a pensar que fui enganado todo esse tempo. O que estou ouvindo não são cânticos celestiais.
O fim é excruciante.
Cada dia estou mais morto,
Porém nunca o bastante.
Não, não era assim. Os passarinhos é que imitavam Mario Quintana, alguns até muito bem.
Também hoje o dia amanheceu tristonho, e eu quase senti saudade daqueles antigos, em que o sol, o velho demagogo, vinha me chamar com a estridência verborrágica dos seus passarinhos.
O chato é bem aquele tipo que, se você o manda ir à marafona que o pariu, faz questão de retribuir.
Dos meus pecados antigos, o único que ainda venho tentando praticar é o da literatura.
Esta noite sonhei
que me puseram na mão um papel
um manifesto em favor da vida
ou contra ela
e que para ser honesto
eu não assinei.
Um chato é capaz de, num só dia, contar a você três vezes a mesma piada, sem alterar uma vírgula e sem errar a pronúncia do nome do papagaio, mesmo que ele se chame Ferdinand Dubois.
https://rubem.wordpress.com/2025/09/14/drummond-toca-a-campainha-raul-drewnick/
Alguns domingos tristonhos, como o de hoje, ainda me vêm perguntar para onde foi que levaste aquele sorriso com que abriste as manhãs de tantos domingos felizes.
Talvez eu houvesse podido ser um poeta se, quando adolescente, tivesse renunciado ao projeto de minha amada tia, que queria ver-me rei da Espanha.
Comparar-te a uma rosa foi o mais simples dos meus exercícios poéticos. Não precisei fazer nada além de sentar-me no parque, pegar a caneta e ouvir a opinião da brisa.
Se de mim vos recordardes,
Que vos reanime o calor
De nossos dias, das tardes,
Das noites plenas de amor.
As asas azuis
que para o poeta
podem parecer bom tema
para um belo poema
para o gramático não são mais
do que um vicioso parequema.
Esta madrugada acordei com um gatinho ronronando em meu peito. Bem, pensei, já estava na hora de me acontecer alguma coisa boa. Sorri e preparei amorosamente os dedos. Quando os pousei, não foi sobre o esperado tufo cálido de algodão, mas sobre a áspera pele de um velho. Mais uma de tantas brincadeiras que, desta vez acumpliciado com meus pulmões, mister Parkinson vem aprontando comigo.
A brisa explicava às flores que era para elas que tu sorrias. Hoje não mais. Contigo se foram os dias felizes e as metáforas.
No final da vida há momentos em que você, como no início, diz estou cansado, muito cansado, mas já sabe que agora ninguém aparecerá para ajudar. Isso tem um nome: maturidade.
Num canto da sala
no leme do sofá
sua última nau
vai o avô
clamando por Deus
e amaldiçoando obscuros desafetos
desmentindo com sua baba final
a lenda dos seus feitos
e o orgulho de seus netos.
Se precisasses, poderiam testemunhar em favor de tua majestade todos os adjetivos que desde sempre estão dispostos a advogar a causa da beleza.
Nas últimas noites, venho ouvindo um murmúrio que me parece um suspiro de água. Diga-me: aí onde você está há um riacho? Responda, não diga não à minha esperança.
Sou desses que, quando ela se dói mais, chamam a tristeza para o colo e, como se não soubessem a resposta, perguntam: chorando por quê, pobrezinha?
No final, aceite as frases curtas, não queira orná-las. Em certas ocasiões, a literatura soa como o arroto de um defunto tentando passar por eructação no velório.
O sol nem tinha iniciado seu expediente e um passarinho já cantava tão insanamente aqui que pensei: mais um desses tolos como eu, que se julgam capazes de antecipar a primavera.
Se, quando for a hora, melhor eufemismo não tivermos, resignemo-nos. Fechemos os olhos e prosaicamente estiquemos as canelas.
Chega um tempo que não é mais o das proclamações. Você simplesmente diz que viveu, se conseguir.
Manteremos este ar debochado
e este nariz empinado
quando a peça chegar
àquele momento
em que a nós caberá a honra
de finalmente estrebuchar?
Não sou da estirpe dos marechais
ou dos capitães-mores
Arroubos só tive os pequenos
e ímpetos só os menores
De longe e de fora
acompanhei o mundo e suas batalhas
as catástrofes e seus fragores
e minuciosamente anotei
os lamentos dos vencidos
e os nomes dos vencedores
como devem sempre fazer
aqueles a quem a bravura não chamou
e a covardia reservou
o papel de espectadores.
Se a avaliação for honesta,
Feita com zelo e sem pressa,
Minha poesia atual presta
Tão pouco quanto a pregressa.
Não sou um mau verdugo. Nos dias em que julgo que me castiguei além do suficiente, abrando o chicote e as palavras e me digo: não leve a mal, seu tolo, não é nada pessoal.
Enfiou-se tão fundo na literatura que, quando quis voltar, não havia mais tona, havia só mar.
Diante da porta fechada
Que te afastava de mim
Gritei abre-te cevada
Ajuda-me gergelim.
Não seja severo demais com você, e dê chances aos outros. Conheça-se bem, antes de sair por aí dizendo que é o pior cara do mundo
Hugo Almeida, o romancista, é o tipo de amigo a quem você pode ligar a qualquer hora, que ele sempre terá solução para uma frase encrencada e até algumas vírgulas para emprestar.
Há os que acabam se entusiasmando tanto com a vida e gostando tanto de praticá-la que nada mais lhes interessa fazer.
Exatidões nunca foram sua especialidade. Hoje, depois de passar uma boa meia hora emaranhado na memória, desistiu de decidir se foi em 1999 ou 2001 que se desencantou com a vida.
Sabe que sua poesia
como toda mentira
tem perninhas curtas
capazes somente
de levar uma formiga
daqui até ali
desde naturalmente que
aqui seja bem aqui
e ali não muito distante
de onde for aqui.
Quando lhe perguntaram o que achava da vida, o velho poeta disse que nem mesmo quando jovem tinha sido um adepto.
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Sou um desses velhos que têm mais doenças do que filhos e que, para não sobrecarregá-los, vivem sempre sob nova direção.
A quem - e são tantos - me pergunta por que vivo falando de morte e de defuntos, digo que não faço nada mais do que os homens sagazes e sensatos fazem: advogo em causa própria.
Há defuntos tão bem resolvidos e de tão festiva feição que é inevitável pensar em vocação cumprida ou predestinação.
Que soem forte os tambores
E seja a rima triunfal.
Já mortas estão as dores,
Que belo é o dia final.
Escapar furtivamente no início do terceiro ato, largar o corpo espetado como um chapéu na chapeleira e ir correndo com a alma para longe, bem longe, debaixo de uma chuva bíblica, enquanto na ribalta um ator toscamente vestido de Morte, aponta o punhal para a plateia.
Mister Parkinson não dorme. Cochila, às vezes. Nessas ocasiões, penso que, se eu fosse um passarinho, poderia voar para bem longe, carregando a alma no bico. Mas mister Parkinson cochila de olhos abertos.
Nunca foi bom com números. Hoje, por exemplo, passou a manhã fazendo e refazendo cálculos sem descobrir por que, se vem morrendo há tanto tempo, não está ainda tão morto quanto merecia estar.
É a primeira vez que passo por esta experiência e é leviano talvez estar opinando sobre ela, mas gostaria que isto fosse sem tanta aflição e um bocadinho mais rápido.
Ah, se fosse possível reviver ao menos uma das tardes em que tu, súdita dileta do sol, e eu, súdito dele e de tua majestade, caminhávamos pelo nosso amado Ipiranga.
Ser imortal não é mais a minha sina. Se algum heroísmo posso ainda prometer, é o de chegar vivo à próxima esquina.
Se fosse passarinho, seria um bem-te-vi que, saudado por outro, nunca sabe direito o que responder.
Os mais traiçoeiros são os domingos. Abordam-nos despudoradamente, caminham conosco, perguntam se nos lembramos deles, se gostávamos das balinhas que nos davam quando tínhamos cinco anos, se queremos que esfriem ou esquentem um bocadinho o sol e, na terceira ou na quarta esquina, já estão com a mão em nosso braço, levando-nos para conhecer a rameira gorducha que se mudou para aquele edifício diante do parque onde andávamos de bicicleta.
Que dias falsos são esses
que chegam com sol festivo
como se estivesses vivo
e como se os merecesses?
Depois que aprendeu a se manter calado, ninguém mais evita passar pela sala. Protegidos pelo pacto de silêncio, todos da casa agora passam a todo instante por ali, durante as duas horas diárias em que ele fica fazendo companhia ao sofá, antes de ser reposto na cama.
Envergonha-se das pequenas astúcias que ultimamente vem usando. Hoje, querendo dizer a palavra esperança, só conseguiu depois de um minuto de choro.
Só eu, mesmo. Tudo ao meu redor desmoronando e eu cuidando para que tudo desmorone com estilo. Perdi a vida com esse tipo de tolice.
Se eu não tiver pena de mim
quem me levará até o espelho
carinhosamente assim
me dirá tadinho
e cedendo a uma rima pobre
me consolará
coragem que está no fim?
A tosse do velho poeta é metrificada, típica dos parnasianos. E, quando ele espirra, voam pela sala perdigotos canoros.
Cioso de sua grandeza, espera morrer num feriado, para confundir os eternos desavisados.
Fiz - ou imaginei ter feito - algumas coisas na vida. Não me peçam para enumerá-las. Minha memória, assim como outras pretensas virtudes, me abandonou. Hoje sou o cachorrinho de mister Parkinson.
Há muito tempo, já, sou um daqueles homens que só se conjugam no particípio passado - e com ressalvas.
Algo em nós ainda acredita que nos será restituído o sol que dourou nossa juventude. Nos sonhos, nossa voz brandamente, minuciosamente, sustenta esse nosso direito, até o ponto em que o tribunal é sacudido por uma imensa gargalhada.
Cada vez sou mais digno de minha misantropia. Há uns dez anos não recebo um amigo, e eu mesmo só vou me visitar quando sei que não estou em casa.
Qualquer que seja nosso rumo agora,
Sabemos que será o rumo certo.
O azul nos chama, enfim chegou nossa hora,
Estamos perto, cada vez mais perto.
Há momentos, sejamos honestos, nos quais o que a vida parece oferecer de melhor é seu antônimo
Começar do zero e nele ficar pode ser um bom exemplo tanto de coerência quanto de vagabundagem,
Perguntarão o que você fez da vida. Você responderá que esteve todo esse tempo buscando a beleza? E, se lhe pedirem que mostre o que conseguiu, você terá coragem de dizer que a modéstia o impede de fazer isso, com essa cara de velhaco?
Que se unam, se acumpliciem
E possam todos os sinos,
Diversos dos alphonsinos,
Exortar-nos: carpe diem!
https://rubem.wordpress.com/2025/07/06/como-devem-morrer-as-flores-raul-drewnick/
Estou num daqueles momentos em que um homem, tendo só uma palavra para dizer, não sabe se diz mãe ou se diz Deus.
Por um momento eu me senti homenageado, mas ao abrir a janela descobri que os passarinhos tinham vindo só para perguntar se eu sabia o endereço de Mario Quintana.
Fui pesquisar e, entre as doze façanhas de Hércules, não está a de vestir a camisa sozinho. Eu também não sou bom nisso.
Se tu voltasses aqui
Mais nenhum deles verias
Dos passarinhos que ouvias
Cantando só para ti.
Um ano, já. Mas parece
Que aqui, que agora e que assim
A treva desce ao jardim
Enquanto a rosa esmorece.
Por saber que é indigno delas, ele se delicia com as palavras de conforto que lhe dizem, como um sentenciado que, a caminho da execução, vai mordiscando um docinho que furtou do companheiro de cela.
Uma metáfora tem insistido em procurá-lo, nos sonhos: ele se tornou tão prodigiosamente leve que flutua para o alto, cada vez mais para o alto, soprado por uma voz tão suave que só pode ser a de uma brisa matutina.
Que bela pode ser a velhice quando vista nos outros, com nossos olhos tolos e míopes.
Podemos dizer, em nossa hora derradeira, que não salvamos o mundo, mas a recíproca é verdadeira.
O velho poeta acordou mais cansado hoje, e mais tarde. Quando abriu os olhos, a manhã tinha ido embora e levado os passarinhos e seus gorjeios. Ele pensou que nisso devia haver um significado, mas logo se aquietou e se levantou da cama, com o sorriso decepcionado dos dias comuns.
Por volta de mil novecentos e nada
eu também quis ser Pessoa
e me dividi
e me fragmentei
e tentei ser dez
e busquei ser cem
cada qual melhor poeta
do que ninguém
e do que qualquer nenhum
e falhei e permaneci
com esta obra estropiada
esta pífia versalhada
e esta cara comum
de ninguém mais nenhum
em dois mil e lá vai cacetada.
Alertados pelos que há muito se foram, os dias de agora passam esquivos e sorrateiros, para que não possas lançar também sobre eles a culpa por teus infortúnios.
Se um dia quebrar a promessa e voltar a abrir uma janela para o sol, será a dos fundos, e com um sorriso falso.
EM CASA
Quando nos juntarmos a eles
nossos mortos perguntarão
o que estivemos fazendo
em todo o tempo
em que nossa memória relapsa
não nos incitou
a visitá-los na fria morada.
Ouviremos suas queixas
e buscaremos palavras
que nos reconciliem com eles
e nos valham o perdão
mas elas terão ficado
nas frases de adulação
com que pedimos melhor tratamento
aos garçons
nos antros de jogatina
e às cafetinas
nas casas de prostituição
Eles perguntarão
que meta histórica
que inacreditável missão
terão nos impedido de fazer
uma visita anual
bienal ou decenal
ostentando nossas lágrimas treinadas
e nossas pechinchadas flores
Haverão de querer saber
se o everest escalamos
se a olimpíada vencemos
se o nobel ganhamos
Nós não diremos nada
e eles verão aliviados
que somos os mesmos que fomos
tantos anos atrás
e nos acolherão
para retomarmos
aquelas conversas antigas
sobre assuntos banais
e sobre questões corriqueiras
como as famílias normais.
Se penso em ti, meus olhos se alvoroçam como a chuva quando a brisa a leva para um jardim onde a espera uma rosa.
Para tu não me dizeres
Que não te falei de flores,
Falo de ti, ser dos seres,
Primor maior dos primores.
PLANETA SOBERBO, O NOSSO.
COM ÓDIO E SANGUE NUTRIDO,
SOBRE DESGRAÇAS ERGUIDO,
DESTROÇO SOBRE DESTROÇO.
Tornou-se ainda mais emotivo, no fim. Se numa sexta-feira não passava pela rua o furgãozinho da pamonha de Piracicaba, chorava descabeladamente, como se lhe houvesse morrido outra vez a gatinha Tenória.
Aos que o censuravam por jamais levar um projeto adiante, respondia: sou um homem de princípios.
Desde que, num sonho, passarinhos se transformaram em flores e vieram plantar-se em seu jardim, o velho poeta espera que o fenômeno se repita, mas dessa vez as flores ousem ser passarinhos e voem rumo ao horizonte. Ele será um deles.
Também eu tive pela literatura certa queda que, descontando uns ais forçados e uns uis fingidos, foi só um tombinho.
É um homem obstinado. Levou a vida inteira para admitir que Shakespeare fazia o mesmo que ele, só que um pouquinho melhor.
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Desde que lhe deram menção honrosa no concurso de Néris de Pitibiriba, o velho poeta vem selecionando suas companhias: nunca anda na calçada pela qual caminha o sol.
Que me perdoem os ambientalistas, mas, sob um ponto de vista estritamente futebolístico, acho que Deus, ao criar o mundo, exagerou no verde.
Lastima não mais poder oferecer ao vento derradeiro sequer um cisco dos orgulhosos castelos de sua juventude.
Hoje cedo o velho poeta pôs para correr mais um dos ardilosos sóis que ultimamente vêm se oferecendo a ele como se fossem os de outrora.
E se no final das contas
com esta cara de aldeão polaco
nulo de ideias
e de façanhas parco
eu tiver uma alma então
não será um milagre -
será um escândalo
uma esculhambação.
Bem faz a folha se, sentindo perto o rio ou próximo o mar, não se opõe mais ao vento e se dispõe a navegar.
Se eu fosse um cão abandonado
talvez me ouvissem.
Se a Deus que tantos dons me concedeu
eu fosse mais algum pedir
seria o dom de latir.
Se não lhe achou nenhum o Supremo Bardo
por que eu anônimo passageiro
deste barco desarvorado
haveria de saber qual seu rumo
e qual seu significado?
Hoje ele, vendo a vida com seus olhos de frequente e antigo consumidor, resumiria a experiência dizendo que, quando entendeu como ela funciona, descobriu que funciona mal.
Alguém já deve ter dito que a alma é como uma borboleta. Muitos, centenas provavelmente. Mas permitam-me que eu lhes diga também. A alma é como uma borboleta. Dizer isso me faz bem. Digam também, se quiserem. Não lhes fará mal nenhum. Melhor dizermos isso, juntos, do que partilharmos um daqueles meus fastidiosos sonetos. Se bem que...
Cada um de nós, que não somos heróis, sabe muito bem o que fazer: lutar contra nossos demônios bravamente, incansavelmente, incessantemente, até perder.
Parabéns parabéns
Três vezes parabéns
para o velho poeta
que com talento
brilho e galhardia
tendo mister Parkinson
como companhia
vai instante a instante
hora a hora
dia a dia
passo a passo
cansaço após cansaço
conquistando sua bela
sua completa
sua gloriosa ataraxia.
https://rubem.wordpress.com/2025/05/25/o-fantasma-parnasiano-e-outros-raul-drewnick/
Os que não me conhecem
os que não sabem quem sou
jamais terão sequer noção
de tudo que não perderam.
Não sou mais eu que respiro
Nem sou mais eu que ando.
Mister Parkinson venceu
E assumiu o comando.
No fim da jornada
alguns (sempre alguns há)
contam uma história
de batalhas imensas
e de façanhas alcançadas
enquanto a maioria
ouve admirada os relatos
de dias gloriosos
e se pergunta
por que não viu tudo
por que não viu nada
se presente estava
em cada um
dos tantos memoráveis dias.
A desafortunada Ismália estaria ainda hoje na sua torre a sonhar, se o perverso Newton não houvesse inventado a lei da gravidade.
No começo, era paixão, talvez amor. Ah, Mara, ah, Mara. Passados dois anos, se hoje fosse definir as semanais idas ao motel, ele as colocaria sob a rubrica Entretenimento. Pobre Mara, pobre Mara, ainda esperançosa de um dia registrar a história sob o título Casamento.
É um desses tipos presunçosos que, quando descobrem que por eles é que brilha o sol, o censuram por não brilhar mais forte.
Quando soube que não era para ele que o sol vinha toda manhã, mas para namoricar as rosas, o poeta decretou: jamais aquele velhaco frequentaria seus sonetos.
Ontem, contatam-me o caso de um homem que, por uma desilusão amorosa, foi atingido por uma tristeza que por muito pouco não o matou. Não comentei nada, para não magoar quem me contou a história. Mas digo a vocês, agora, que me esse homem, esse amor e essa tristeza me desapontaram.
Sou pouco mais do que nada,
Sou muito menos do que um.
Não tenho rumo ou jornada,
Ad minora natus sum.
Se pudesse ainda escolher
Aquilo que me conviesse,
Talvez teclasse morrer,
Se vivo eu ainda estivesse.
Que bisonhos, que chochos, que deploráveis são os tiranos de hoje. Bom o tempo em que um morituro como eu tinha, no seu dia final, a glória de saudar Júlio César.
Talvez o velho poeta aceitasse a reconciliação, desde que, naturalmente, a iniciativa partisse do sol.
Talvez esteja perto de se realizar a metáfora do barco rumando para o horizonte, onde o sol vai esparramando seu último ouro vespertino no mar. Toda noite ela vem se repetindo em meus sonhos. Não entendo nada de viagens, fiz só algumas curtas e nada memoráveis, Talvez tenha chegado a hora de ser recompensado.
Das verdades sei hoje a maior.
Há dois modos de lidar com a vida:
O meu e o melhor.
Os adjetivos que como um bando de passarinhos adulavam nossa juventude há muito se calaram e ficaram atrás, ali onde também o sol nos abandonou, deixando-nos sós na trilha que leva ao fatal e irrecorrível substantivo, sob o monótono pio da coruja.
Sim, morre-se de amor, sim.
Por que não se deveria?
Que belo é morrer assim,
Que doce é esta agonia.
Alguém por favor me diga
de forma clara e concisa
onde fica a Torre de Pisa.
Posso ainda fingir que sou tolo como qualquer um e sorrir para o sol, em troca de uma trégua.
Um grupo de jovens foi entrevistar o velho poeta para um jornalzinho estudantil. Empolgado, ele disse que ia lhes mostrar seus sonetos. Pediu que esperassem um pouco e saiu da sala. Voltou com uma caixinha e perguntou se estavam preparados. Puxou, então, a tampa. Saiu voando graciosamente uma borboleta que fugiu pela janela. "Que pena", ele se queixou. "Era o melhor deles."
De minha tristeza o que eu posso sucintamente dizer é que ela sempre foi generosa. Em tantas décadas de convívio, nunca me negou uma lágrima.
O receio que sempre lhe inspiraram os adjetivos justificou-se mais uma vez, hoje. Assim que abriu a porta, viu que a manhã lhe trouxera um gato. Morto.
Perguntaram ao velho poeta por que ele anda tão tristonho. A resposta: "Ah, minha amiga, é que ultimamente eu ando morrendo tanto..."
Nas pequenas arrumações que às vezes ainda faz, pensa em diminuir o espaço da tristeza. Mas ela sempre o fita com aqueles olhos chorosos.
Minha mãe, que tanto me recomendava só estar em boa companhia, o que faria se me visse andando hoje com mister Parkinson, como dois espantalhos bêbedos sacudidos pela ventania?
Se ora fui santo, ora puto,
Se sábio e também insano,
Tudo que fiz foi humano
E humano é que me reputo.
Quem acreditaria que tudo assim mudasse?
Pedia aos dias que ficassem,
Hoje implora que passem.
Agora não há mais saída.
Dois rumos te aponta a sorte.
Num deles perdes a vida
E no outro encontras a morte.
Com seu futuro cada dia mais presente, o velho poeta vem abrandando suas exigências. Hoje, trocaria a imortalidade por uma morte decente.
O poeta deve agir como quem aplica no mercado de ações: escolher seu melhor tipo de tristeza e perseverar.
Nos pouquíssimos dias em que não estava acompanhado por sua tristeza, o poeta não chegava exatamente a rir, mas nos seus lábios se desenhava às vezes a esperança de um sorriso.
Que ranzinza tu és. Se não aplaudes o sol, deverias ao menos agradecer-lhe pelo esforço de todos os dias aparecer ainda e de fingir ser o mesmo que vinha te acordar nas manhãs de tua primavera.
Estaremos mais leves que uma folha, e o vento, julgando-nos uma andorinha, nos juntará às outras, no voo rumo à eterna primavera.
No fim, compadecido com a nossa, o silêncio fingirá também fadiga e se deixará alcançar.
Houve tempo em que logo de manhãzinha saía para ver o sol e brincar com ele. Hoje, não conseguiria ir até o quintal, se uma estrela pousasse na ameixeira.
Tenho chorado sim (quanto
não imaginam vocês).
A vida me mata, enquanto
a morte espera sua vez.
O velho poeta anda tão aborrecido com a vida que já decidiu: na próxima vez em que ela o convocar, seja lá para o que for, não mandará nem representante.
Alguém perguntou ao velho poeta o que era a vida. Ele sorriu: minha companheira de viagem.
No dia em que descobriu que nunca tivera nada a dizer, tinha dito já tudo por trinta anos e foi com olhos culposos que fitou a estante cheia de troféus literários.
Se estivéssemos aqui para algo essencial e glorioso, penso que já saberíamos. Enquanto não descobrimos, deixemos à disposição do respeitável público nossos melhores versos e torçamos para que ele continue sendo generoso conosco, ainda que seja mais por nossos olhos tristes do que por nossas previsíveis rimas.
Soube que estava no caminho certo quando sentiu que o sol já não acompanhava seus passos, que numa derradeira metáfora soavam delicados como as tentativas de pouso de uma borboleta sobre a relva.
Dizer que sempre escrevi procurando a beleza pode soar ou muito pretensioso ou fútil demais como justificativa para tantos anos de vida. Bem, é o que venho fazendo.
Era um desses homens comuns, cotidianos, cujos lábios ninguém julgaria capazes de algum dia terem dito a palavra eternidade.
https://rubem.wordpress.com/2025/03/16/sobre-poetas-e-outros-tipos-raul-drewnick/
Dou isto como assentado:
Ninguém jamais há de ver-me
Tão tenazmente empenhado
No esforço tolo de ser-me,
Se alguma coisa fiz nesses anos todos, receio que seja só a incansável tarefa de piorar o menino que fui.
És hoje do fracasso
A imagem precisa.
Querias conquistar o mundo,
Não consegues abotoar a camisa.
Tenho hoje pleno sentido
Do mal que tem me matado.
O erro não foi teres ido,
O erro foi eu ter ficado.
Estarmos mortos seria a mais prazerosa das sensações, se estivéssemos vivos para desfrutá-la.
Que bela figura faziam as rimas. Podia estar chovendo no poema, que elas não perdiam o charme. Continuavam de mãozinhas dadas, cantando afinadas e saltando pocinhas.
Discípulo de Rimbaud, perdeu a calça de veludo num lupanar e o estilo num joguinho de dados.
Saiba quem ler este comunicado
que o Corinthians foi, é e sempre será
o mais puro e o mais santo dos meus pecados.
Hoje o poeta, que há muitos anos rompeu relações com o sol, lembrou-se da época em que ambos andavam pelas ruas do bairro, como dois menininhos. O sol o chamava de Alemão, e ele o chamava como mesmo? Ah, sim, claro, de Helinho.
Que bênção se esta sensação de estar quite com a vida, indisponível para os seus prazeres e os seus suplícios, fosse mais do que só esta sensação.
Os ladrões que assaltaram a casa do laureado poeta Eurico Áureo D'Argento felizmente não se apossaram de sua fortuna crítica.
Para saber se continua vivo, às vezes balbucia eu, só eu, porque o cansaço o exime de utilizar um verbo, qualquer verbo.
Dizia que tinha algo a ver com Dostoiévski, e jamais haver mencionado exatamente o que era parecia aos outros uma notável prova de sua falta de presunção.
Você sabe, hoje, tudo que você pôde aprender. Se mortos falassem, quanto você teria a dizer.
Desfrutar é outro daqueles tantos verbos que para ele não fazem mais sentido na primeira pessoa.
Porque é o último,
Sabes que enfim é o certo.
Podes sorrir agora,
Ninguém zombará de teu sorriso.
Teus passos são só os que pede o caminho,
Porque estás perto,
Cada passo mais perto.
Decepcionado com o anonimato de sua literatura, resolveu participar de um concurso de contos. Seu pseudônimo, Amaro Reles Ramble, revelou-se modesto depois que se divulgou o resultado. Estava um pouco mais amaro, um tanto mais reles, bastante mais ramble.
Olhem se nós morrermos
cada dia um pouco
devagar e sempre
sem pressa
morigeradamente
dia chegará
em que teremos
morrido o suficiente.
Às vezes, meu cérebro age como se fosse um moleque endiabrado. Hoje, por exemplo, me sugeriu este exercício como o mais adequado para a minha idade e meu futuro próximo: fechar os olhos, sempre que possível, e mantê-los assim cada dia com maior determinação.
Há quatro dias não escrevo. Há quatro dias, como se fosse um cão abandonado, uma frase me segue, aflita: "Há de ser um lugar tranquilo". Não é literatura, mas eu a registro aqui. A vida é assim, às vezes. Direta e pedinchona como um manifesto. "Há de ser um lugar tranquilo."
Desde os quinze anos, o que mais venho fazendo é escrever. Se você me acha escritor, eu lhe agradeço. Se acha que não, eu lhe agradeço se não me disser.
Era menos infeliz outrora, quando dava olhos à presunçosa pirotecnia do sol e ouvidos à demagogia matinal dos bem-te-vis.
Que no fim restem só duas palavras e você possa dizê-las simplesmente como são, sem retórica ou solenidade. Uma delas será Senhor. A outra, perdão, ou obrigado.
Ultimamente o velho poeta deu de embirrar com tudo. Tem casos pendentes com os vizinhos, os parentes, os cachorros da rua, o sol bisbilhoteiro, que o importuna logo de manhã, além de outros que correm em segredo de justiça.
Cada dia estou mais fraco.
Valei-me, meu bom Jesus,
Banhai-me todo de luz.
Sou fosco, sou baço, opaco.