quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Natureza-morta

O relógio na cozinha, acima da mesa em que as frutas se distribuem sobre a travessa, marca duas horas - presumivelmente da tarde, porque um filete de sol lambe amareladamente uma das ameixas.

Reconhecimento

Deves louvar tua tristeza, reconhecer a persistência com que ela sempre te buscou e o empenho com que, chorando contigo, tentou consolar-te quando a alegria, desdenhando-te, te deixava sozinho, como se fosses um homem acusado de encoxar estátuas de santos na igreja.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Quando era Mario Quintana quem as chamava, as estrelas apareciam e comentavam: ah, que bom, estávamos já cansadas do Bilac.

Modo de ser

As metáforas hão de ser particularmente modestas e sensatas quando estiverem a serviço de incomparabilidades como o sol, a lua e as estrelas.

Suburbana

A pieguice é a tristeza que escolhe para si as metáforas mais cafonas.

Intérprete (para Mariana Ianelli)

Uma flor faz mais sentido quando interpretada pelo vento.

Desconfiança (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Estamos tão escaldados com as falsificações que, se uma estrela nos cair no quintal, a primeira coisa que faremos será cheirá-la.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Não sei quando o menino Mario Quintana viu seu primeiro arco-íris. Gostaria de ter presenciado o agradecido encanto com que os dois se olharam.

Equilíbrio

As maneiras de enaltecer o amor são tantas quanto os modos de maldizê-lo.

"A natureza do gótico", de Margaret Atwood

"Mostro-lhe uma garota correndo à noite
entre árvores que não a amam
e as sombras de muitos pais

sem caminhos, sem sequer
migalhas de pão ou pedras brancas
sob uma uma lua que nada lhe diz.
Isto é: Nada, lhe diz.

Há um homem por perto
que alega ser um amante
mas cheira a pilhagem.
Quantas vezes teremos que dizer a ela
que se mate antes de ceder?

Não adianta dizer
a essa garota: Você é bem cuidada.
Eis aqui um quarto seguro, eis
comida e tudo de que precisa.

Ela não consegue ver o que você vê.
As trevas correm em sua direção
como uma avalanche. Como cair.
Ela teria gostado de avançar para o seu interior
como se fosse não um espaço vazio
mas um destino,
retirando seu corpo e deixando-o
amarrotado atrás dela feito a manga de uma roupa.

Sou a velha
que sempre há em histórias como esta,
que diz, Volte, meu bem.

Volte para o porão
onde o pior está,
onde os outros estão,
onde você pode ver
como ficaria se estivesse morta.

Então estará livre
para escolher. Para seguir
seu caminho."

(Do livro A porta, tradução de Adriana Lisboa, Editora Rocco.)