segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Cautela

Não se alegre tanto assim,

Tudo pode acontecer.

Pensou se você morrer

E morrer não for o fim?

Sabedoria

 É precavido. Notando que chegou a época de babar na gravata, foi à loja e comprou meia dúzia.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Birra

 Foi um morto carrancudo, ensimesmado, desses que desde o início não fazem nada para agradar.

Autoburla

É um homem honesto. Sempre que diz não ser dono da verdade, cora. 

Materiais

 Castelo de areia e torre de marfim foram não mais do que metáforas até o surgimento dos poetas concretistas.

Habilidade

Na autobiografia, o poeta sonetoso atribui sua métrica impecável à habilidade que ganharam seus dedos nos anos em que, para sustentar seus cisnes, trabalhou como caixa em um banco.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Tipos

 Há o poeta caprichoso

o esmeroso

o primoroso

e - o pior de todos -

o poeta sonetoso.

Evidência

 Se um poeta me diz que a busca da beleza não lhe importa, eu sinto como sou antiquado.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Relação

 Um gato não tem donos. Tem amigos, se lhe agradarem e se o merecerem.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A falsa metamorfose

Esta madrugada, acordei sacudindo-me todo, como fazem as aves antes de voar. Cheguei a pensar que conseguiria, mas logo a esperança se foi e voltei a ser um homem triste deitado no escuro. 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Regência

Certas madrugadas, venho escapando de mim e me vejo movendo os braços com uma agilidade e uma força que há muito eles não têm. Não ouço nada, nenhuma nota, nenhum som, mas sou um maestro fustigando, açoitando, chicoteando o ar, regendo com a furiosa paixão que Mister Parkinson injetou em meu sangue.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/01/23/atracao-fatal-raul-drewnick/

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Conforto

 O lugar mais adequado para um sofá há de ser aquele em que ele melhor possa acolher a preguiça vespertina do sol e do gato da casa.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Figurão

Que nome tem quem te maltrata,

Que aristocrático som!

Nome nobre,

De diplomata,

De figurão.

Que inveja saber que quem te mata

Não é um papanata,

É mister parkinson.



Caminho

 Por trilhos retos ou tortos

Nós havemos de chegar.

Logo estaremos tão mortos

Quanto um morto deve estar.

domingo, 16 de janeiro de 2022

Definição

 Sonetar é humano. Continuar sonetando é parnasiano.

Soneto do parvo que ri

 Aquilo que ontem belo parecia

E duradouro a nós se afigurava

Seu verdadeiro ser não nos mostrava

E sua face real nos escondia.


Quem, parvo como nós, suspeitaria

Como era tolo o que nos encantava,

Como era frouxo o que nos sustentava

E como era fugaz nossa alegria?


Tudo nosso era, já, morrer e ruir,

Mas nós ainda insistíamos em rir

Nosso riso vulgar e inconsequente


Como se continuasse a vida a ser

Um poema lindo que se pode ler

No álbum florido de uma adolescente.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

A praga

As palavras, principalmente as mais belas e essenciais, continuam me abandonando. Com quantas poderei ainda contar amanhã, depois de amanhã, daqui a um mês ou um ano? Adulo saudade, bajulo horizonte, afago mar. Amor eu adulo, bajulo e afago. Que seja ela a última a me deixar.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Seu Jarbas e Jesus

 Ontem, na hora do almoço no asilo, seu Jarbas disse que tinha acabado de ver Jesus no jardim. Entretidos em tomar a canja, os outros velhinhos não lhe deram atenção. Ele tentou de novo, mas a única resposta que continuou a ter foi o ruído dos lábios sorvendo o caldo. Então ele encheu também a colher, mas antes de levá-la à boca resmungou: na próxima vez que eu encontrar Jesus, não vou contar a vocês.

domingo, 9 de janeiro de 2022

Hoje na revista Rubem

 https://rubem.wordpress.com/2022/01/09/literatices-raul-drewnick/

sábado, 8 de janeiro de 2022

Soneto da voz que deveria celebrar o amor

Que nós nos entreguemos ao amor,

Que nós nos demos a ele inteiramente,

Que nós nos submetamos plenamente,

Como um servo se entrega ao seu senhor.


Possamos sempre, para bem servi-lo,

Manter a nossa mente preparada

Para jamais nós lhe negarmos nada

E dar-lhe isto, e dar-lhe isso, e dar-lhe aquilo.


Que nos imponha sempre submissão

E nunca venha a nos pedir perdão

Por nos levar assim a venerá-lo.


Se alguém pedir perdão, sejamos nós,

Porque devia ser de rei a voz

Que o celebra, e não esta, de vassalo.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Deserção

As palavras vão abandonando o velho poeta. A cada dia há mais coisas que ele não consegue nomear. Receia que chegue um momento no qual, diante de um arco-íris, precise perguntar a alguém de que se trata.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A chave dos sonetos

 Um leitor admirou-se quando mencionei os quatrocentos sonetos que escrevi. Como não os contei, o número é um cálculo, apenas, e talvez subestimado. Não estranharia se eles fossem quinhentos. Estão aqui, para quem porventura se animar a lê-los. O acesso a eles é simples. Basta digitar na janela do arquivo, no alto, as palavras Soneto da e se abrirá uma sequência deles. Quando esta terminar, digite-se Soneto das; depois, Soneto do; em seguida, Soneto dos. A lista se completará com Soneto de, Soneto em e Soneto que. Receio que eles, no conjunto, representem uma demonstração mais de teimosia que de senso artístico. Por isso, peço desculpas antecipadas a quem se dispuser a aceitar o convite.

Agenda

Toma os remédios com regularidade. Malha de manhã, corre à tarde. Quando a hora chegar, ninguém poderá acusá-lo de entregar à Morte um produto de baixa qualidade.

domingo, 2 de janeiro de 2022

Justiça cega

Enquanto ele, no velório, fixando os olhos furtivamente na exuberante viúva, pensava na má sorte do defunto, chegou da rua o som de uma batida  de carros e uma voz irada o atingiu: filho da puta.

sábado, 1 de janeiro de 2022

O tirano

Não sei dizer há quanto tempo anda comigo, respira meu ar e dorme em minha cama o assassino que me fere e me matará. Vocês o conhecem e, se não pronunciam as seis consoantes e três vogais do seu nome, é por temerem que, invocado, ele lhes entre pela garganta e amesquinhe suas palavras, como aconteceu comigo, e agite seus braços como os de um boneco de posto de gasolina, e lhes moa o cérebro, como fez com o meu, e os leve a tropeçar em cada passo, e a estatelar-se, e a ajoelhar-se, e a implorar inutilmente por clemência.