sexta-feira, 30 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (77) -- Comparação
Ao ver que a mulher ia mesmo embora para nunca mais, o homem se pôs na frente do carro dela, ergueu os braços como se fosse um guarda de trânsito e, como última cartada, ameaçou: "Vera, pensa bem, que eu me mato." Precisou saltar para o lado quando Vera, que ele amava por ser impulsiva e estouvada, acelerou o carro. Sozinho na noite e na chuva, caminhou sem rumo, com uma melancolia e um sentimento de perda que ainda não sabia avaliar, mas que lhe pareciam menos pungentes que os de cinco meses antes, quando havia jurado se matar ao ser abandonado pela serena Mariana.
Pequenas alegrias urbanas (76) -- Astúcia
Notou, já no primeiro mês, que, tendo telefonado aos quatro filhos e transmitido ardilosamente seu receio de não aguentar viver mais meio ano sequer, eles, que costumavam ir vê-lo de dois em dois anos, começaram a visitá-lo todos os domingos, para conferir sua saúde e, naturalmente, suas aplicações bancárias.
quinta-feira, 29 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (75) -- Perseverança
Porque se encantou com a balconista de uma confeitaria, ele se dispôs a conquistá-la em dezesseis dias (16 era seu número de sorte). Já na tarde em que tomou essa resolução, ficou ostensivamente à porta da confeitaria às seis e meia, hora em que saía a balconista, e a cumprimentou com um aceno, amistosamente retribuído por ela, que seguiu depois para o ponto de ônibus, ali perto, de onde lhe mandou um tchauzinho. Por dezesseis dias foi assim, o que o fez sentir-se rejeitado e abandonar sua intenção. Deixou de se colocar à porta da confeitaria, e até de frequentá-la, e só esporadicamente se lembrava da balconista. Uma tarde (a décima sexta depois de sua desistência, embora ele não soubesse), viu a balconista abraçada no ponto de ônibus a um rapaz que lhe pareceu indigno dela.
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (74) -- Beleza
Não revelou a ninguém ter descoberto que seu filho de onze anos era na verdade filho do seu maior amigo. Mas, enquanto concebia sua vingança contra a mulher e o amante, consolou-se intimamente por saber que, em todo aquele tempo no qual se falava da feiura do menino, do seu nariz batatudo e das suas orelhas descomunais, era à feiura do outro, ao nariz do canalha, às orelhas do crápula que se referiam.
Pequenas alegrias urbanas (73) -- O braço
A viagem era longa, três horas (uma a menos para ele, que descia numa cidadezinha antes da última), e, embora a estrada fosse boa e os ônibus da linha modernos, ele torcia sempre para compartilhar o percurso com um passageiro daqueles que gostavam de conversar. Naquela tarde, pareceu-lhe estar com sorte quando uma mulher de uns vinte e cinco anos, muito bonita, sorriu, pediu licença e sentou-se no banco junto à janela, ao lado dele. Ele sorriu também e disse: "Dia gostoso para viajar, não é?" Ela ignorou essa e as outras perguntas com as quais ele, de cinco em cinco minutos, fazia novas tentativas. Meia hora depois, quando ele tinha desistido de conversar, sentiu um roçar de braço. A mulher, com o rosto encostado na janela, olhava a paisagem, mas seu braço avançava, milímetro a milímetro, sobre o braço dele. No início ele manteve o braço imóvel, mas aos poucos foi também deixando que ele correspondesse à pressão do outro braço. Parecia-lhe evidente, agora, que a mulher procurava contato com o corpo dele. Bem melhor aquilo do que conversar, ele pensou, sentindo uma lassidão morna e deliciosa. Foi criando confiança e encostou o braço quase com força no braço da mulher, deixando-o escorregar para baixo. Quando olhou para o rosto dela, buscando cumplicidade, observou que ela dormia profundamente e que o braço dele estivera todo aquele tempo apoiado não no braço, mas na bolsa dela, que tinha deslizado para cima da perna dele. Desapontado, quando chegou o ponto em que descia, carregou junto com sua mochila a bolsa da mulher. Era uma paga talvez razoável para tão grande decepção.
Pequenas alegrias urbanas (72) -- Esquina
Quando a mulher entrou no prédio com o primeiro cliente (um rapazinho assustado que parecia estar caminhando para o cadafalso e não para uma experiência sexual), o homem, que até aquele momento a tinha visto só de frente, notou que as costas dela eram deliciosamente morenas e as nádegas, comprimidas na calça branca, se mexiam com uma voluptuosidade que ele não achou premeditada. Quando ela entrou com o segundo cliente (um velhote que também dava a impressão de estar preocupado, provavelmente receoso de ser visto ali), o homem apreciou de novo os ombros e as nádegas e lamentou que não pudesse desfrutá-los. Assim que o velhote saiu, com a mão protegendo o rosto, como se brilhasse na rua um sol noturno, o homem se aproximou da mulher. "Quer ir lá, benzinho?", ela convidou. "Não, me dá a grana dos dois michês", ele disse, mostrando o revólver na jaqueta e tentando ver no dinheiro, que ela assustada lhe passava, uma compensação pelos ombros, pelas nádegas e pelo resto.
terça-feira, 27 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (71) -- O insulto
Parado na esquina, escorado num poste, o homem, com a precisão de um cronômetro, lançava de meio em meio minuto um olhar para o alto e, gesticulando com fúria, berrava, esguichando saliva na calçada: "Aparece, sacana, aparece!" Era o início da manhã, seis e meia, e quem passava na rua olhava também para cima e procurava localizar no prédio amarelo alguém a quem pudesse estar sendo dirigida aquela raivosa frase de três palavras, mas nas poucas janelas já abertas não aparecia ninguém. "Aparece, sacana, aparece!", gritava ele de novo, e de novo, e continuou gritando até que no céu escuro se abriu uma nuvem gorda e a chuva desabou. O homem correu então para um bar próximo, sacudiu os grossos pingos da camisa esporte, pediu um maço de cigarros e se lastimou com o caixa: "Agora é que eles não vêm mesmo." O caixa perguntou: "Eles?" O homem foi até a porta para espiar a chuva: "É, ontem eu marquei uma pescaria com os meus amigos, sabe? Tudo estava certo. E agora cedinho eles me ligaram para avisar que não iam mais, porque estava ameaçando chuva. Eu disse que ia fazer um dia lindo e vim para cá, que é onde a gente combinou se encontrar. Está bom, eles disseram, se aparecer o sol, você liga e nós vamos." O caixa sorriu e balançou a cabeça, solidário: "E aí cai essa chuva..." O homem pagou, abriu o maço de cigarros, saiu, olhou para cima e, como se aquilo fosse para ele um desagravo, desafiou: Aparece, sacana! Aparece, covarde!"
Pequenas alegrias urbanas (70) -- O conto
Na noite de lançamento do seu décimo segundo romance, a cortesia fez com que o escritor, depois de dar o autógrafo a um jovem agitado, ficasse ouvindo sua explanação sobre o que entendia ser a literatura. Soube pelo rapazinho, que parecia julgar-se porta-voz da sua geração, que o romance tinha morrido fazia mais de cem anos, que a vertigem da vida moderna exigia formas curtas e incisivas de expressão artística e que o conto, cada vez mais sintético, tendendo a três ou quatro parágrafos no máximo, era a única manifestação válida da arte literária. Soube também que o garoto irritadiço, coerente com esses princípios, havia escrito um conto e o inscrevera num concurso. Esperava naturalmente ganhar o primeiro prêmio, se bem que não confiasse na lucidez dos jurados, presumivelmente representantes da velha literatura. Disse que seu conto ocupava só três quartos de página e falava de um homem empenhado em descobrir uma palavra que fosse uma síntese de todas as outras e pudesse, pois, substituí-las. O escritor, conseguindo afinal safar-se da incômoda presença, lembrou-se de que tinha lido naquela tarde esse conto e o havia recomendado entusiasticamente aos outros componentes da comissão julgadora como o melhor de todos os que haviam passado por suas mãos. Vendo o rapazote afastar-se com seu ar de autossuficiência e desdém, suspirou de alívio e de satisfação, porque havia tempo de comunicar aos promotores do concurso que se equivocara lastimavelmente ao escolher aquele conto. Indicaria outro, que falava da paixão de um comandante por uma aeromoça.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (69) -- Fetiches
A mulher o chamou mais uma vez para o quarto, mas ele se retardou mais um pouco, pelo prazer e pela vertigem de tentar adivinhar se, com as improvisações que ultimamente ela noite a noite vinha introduzindo, encontraria na cama uma assustada estudante chupando o polegar, uma freira convertida pelo demônio ou aquela açoitadora que um dia lhe tinha lanhado as costas.
Pequenas alegrias urbanas (68) -- O verbo
Gostou do rapaz desde o princípio, por ser bonito sem exagero, ter um carro convencional, saber enrolar espaguete no garfo, assumir um ar romântico ao ouvir música, qualquer música lenta, dobrar e desdobrar hipnoticamente o lenço enquanto falava, e jamais usá-lo no nariz. Gostou dele desde o início, até o fim, até aquela noite em que, tendo o rapaz aprendido a conjugar o verbo comprazer, se esqueceu de tudo aquilo que o tornava especial e ficou vinte e cinco minutos exibindo sua habilidade conjugatória, percorrendo todos os tempos e modos, até ela sair do restaurante, sem que ele notasse, e ir pegar uma sessão de cinema.
Pequenas alegrias urbanas (67) -- O endereço
Enraivecido com a vizinha, que um dia tinha encharcado desastradamante sua camisa com a mangueira do jardim, ele fez publicar um anúncio em que ela supostamente oferecia vaga a uma empregada doméstica, com um salário bem superior ao habitual. Na data e na hora em que as candidatas deveriam se apresentar, ele ficou espreitando pela janela e acompanhou a chegada delas, algumas sozinhas, outras em grupo, viu como tocavam a campainha, falavam, gesticulavam, mostravam o recorte de jornal e se afastavam desoladas. Durou uma hora o movimento diante da casa vizinha, e ele teria apreciado bem mais sua vingança se não houvesse notado que, das quarenta e tantas candidatas, umas vinte e poucas eram muito atraentes, talvez capazes de executar bem o trabalho doméstico e possivelmente até aptas a acalmar os apelos de sua solidão, particularidade que o fez lamentar, e não pouco, não ter posto no anúncio seu próprio endereço.
Revisionismo
Amou Margaret Atwood desde o primeiro livro, leu os outros assim que iam saindo, cantou e decantou seu nome e, para melhor divulgar a obra da escritora canadense, criou e presidiu um grupo de simpatizantes da autora, que se reuniam semanalmente na casa dele. Quando um ficcionista canadense veio ao Brasil para uma bienal literária, ele conseguiu levá-lo a uma reunião do grupo. Muito gentil, o escritor deu uma palestra bastante aplaudida e encantou todos os participantes do grupo, em especial a mulher do presidente, que correspondeu com tanto fervor à gentileza dele que, uma semana depois, ela e o escritor estavam embarcando para uma visita a lugares exóticos do país. Nessa ocasião, fazendo uma releitura rápida, o presidente descobriu que os livros de Margaret Atwood não eram tão bons quanto ele havia julgado, e o grupo se desfez.
Pequenas alegrias urbanas (66) -- Poeta
Faz poesia desde os oito anos, quando uma quadrinha sua foi lida em classe e enaltecida pela professora. Dos dezoito aos vinte e poucos anos, fez parte de um grupo que se destacou mais por dar entrevistas sobre o que faria do que por produzir poemas. Aos trinta anos, anunciou estar escrevendo uma ode em que calculava se empenhar por no mínimo uma década. Aos quarenta, informou que precisaria de pelo menos mais três anos para concluir a obra. Hoje, aos quarenta e um, levou meia dúzia de estrofes da ode ao editor de um jornal, para publicação no suplemento cultural, e disse que um poeta famosíssimo, cujo nome não estava autorizado a revelar, tinha comentado que o poema, quando terminado, colocaria a literatura brasileira finalmente entre as cinco maiores do mundo.
Pequenas alegrias urbanas (65) -- O amigo
O escritor ligou furioso para o amigo: "Custava você ter dito que não prestava?" O amigo estranhou: "Não prestava o quê?" O escritor estava com um original aberto numa página em que havia diversas assinalações em vermelho. "O meu romance, o que mais podia ser?", irritou-se ainda mais o escritor. "E, como se fosse uma rosa de fogo, o crepúsculo desfolhou-se sobre a cidade", o escritor leu, com o dedo em cima de um dos trechos marcados. "O que é isso?", perguntou o amigo. "É um dos horrores que você deixou passar", disse o escritor. "Eu gostei da frase", comentou o amigo. "Liga então para o editor e diz isso", provocou o escritor. "O beijo, dado de surpresa no rosto da jovem, estalou como um chicote na sala vazia", leu o escritor. "Bonito, muito bonito", avaliou o amigo. "O editor botou mais de dez exclamações e interrogações aqui." Enquanto o amigo esperava uma pausa para confessar que não tinha lido o original, o escritor continuou lendo alguns dos trechos estigmatizados, sentindo-se a cada instante um pouco menos infeliz, como se o amigo fosse coautor.
domingo, 25 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (64) -- Privilégio
Dos cinco homens que tinham se envolvido no tiroteio, quatro estavam mortos um minuto depois, não tanto pela perícia dos atiradores, mas pelo limitado espaço em que havia estourado o desentendimento: um barzinho que com dez frequentadores já ficava cheio. O sobrevivente saiu de baixo da mesa de bilhar em que tinha se refugiado e fitou com superioridade os quatro que, sessenta segundos antes, haviam avisado a ele que se abstivesse de puxar seu revólver porque aquilo era um assunto de homens, não de anões.
Pequenas alegrias urbanas (63) -- O degrau
No seu trigésimo ano de empresa, foi promovido pela primeira vez. Não houve discurso, o que ele deplorou, porque fazia vinte anos vinha guardando adjetivos e advérbios para quando a ocasião chegasse, e nem festa, só um hip hurra frouxo e servil puxado pelos funcionários mais novos, que fariam o mesmo para qualquer outro chefe. Num canto da sala, um funcionário tão velho quanto ele murmurou: "Ele era subnada, agora melhorou, é nada." Foi para esse que o promovido olhou com ferocidade e orgulho, sentindo-se frustrado apenas porque ali não estava, morto um ano antes, aquele Dimas Antônio que, sabendo das suas aspirações, tinha dito várias vezes que, com sua burrice e falta de talento, ele jamais chegaria a subir um degrau na empresa.
Pequenas alegrias urbanas (62) -- Educação
Prenderem o filho dela não foi tão ruim porque com ele foi preso também o filho da vizinha, aquele rapazinho que, segundo a mãe, era bem diferente de todos os garotos do bairro, muito bonzinho, muito educado e respeitador, tanto que todo dia, ao sair de casa, a abraçava, beijava e dizia fique com Deus, mãezinha.
Pequenas alegrias urbanas (61) -- O casal
A menina olhou novamente para o casal sentado na praça de alimentação do shopping. Toda vez que olhava, os dois estavam com os lábios grudados. Aquilo era a coisa mais empolgante que já tinha visto. Fez uma experiência. Contou até quinze, olhou: lábios grudados. Até trinta, olhou: lábios grudados. Desviou a atenção para um garotinho que, deixando cair o sorvete de duas bolas, queria recolhê-lo e chorou ao ser puxado pela mãe. Quando voltou a olhar para o casal, os lábios estavam grudados. Retomou a experiência. Contou até quinze: lábios grudados. Até trinta: lábios grudados. Passou então, bem à sua frente, uma garota que carregava nas costas uma mochila da Mulher-Gato. Ela se esqueceu do casal, dos lábios grudados, da contagem e, embora por um instante lhe tivesse passado pela cabeça que era meio infantil aquilo, se pôs a acompanhar a garota para observar melhor a Mulher-Gato.
Pequenas alegrias urbanas (60) -- Afeto
A mulher, mais quarentona que trintona, disse carinhosamente que nunca havia passado a noite com alguém tão especial, e o garoto de dezessete, abandonado, sofrido, escorraçado, que jamais tinha desfrutado o amor materno, entre soluços a abraçou de novo e, num queixume, murmurou: "Mãe..."
Pequenas alegrias urbanas (59) -- Coisa nova
Estavam ele e ela nus na cama, procurando retomar o fôlego para, quem sabe, uma nova entrega amorosa, pois tinham ainda uma hora disponível, quando ela sugeriu que de vez em quando deveriam tentar alguma coisa nova. Ele disse que era uma boa ideia e ela passou a citar nomes de cidades: Rio, Belo Horizonte, Salvador, Recife. Estava tomada pela curiosidade de saber se em outro lugar a paixão dos dois poderia se acender ainda mais. Ele repetiu os nomes de cada uma das cidades com simpatia, mas, pensando no seu saldo bancário, reacomodou-se na cama do modesto motel da Estação da Luz e, já que ela queria alguma coisa nova, deu-lhe uma mordidinha na orelha esquerda.
Pequenas alegrias urbanas (58) -- O começo
Na décima ou décima primeira vez em que a garota jurou, fungando, que faria tudo por ele, abandonaria o marido, a família, a carreira, tudo, ele suspirou irritado pela décima ou décima primeira vez e lhe disse que, em vez de morrer, seria bem melhor se ela vivesse por ele. A garota passou um lenço nos olhos, sufocou os soluços e, com um quase sorriso, concordou: viveria por ele. Ele, então, perguntou se ela estava disposta a começar naquele momento mesmo. Ela respondeu que sim, que estava muito disposta e, mais do que isso, ansiosa. Aí ele disse: "Então me traz o cigarro, vai."
Pequenas alegrias urbanas (57) -- Luxúria
Passando lentamente e repassando ainda mais lentamente a língua no lábio superior, como se procurasse um sabor reminiscente de chantili, ela no espaço entre quatro estações do metrô perturbou de maneira tão louca o homem sentado à sua frente que, ao descer, notou logo que ele a acompanhava e seus passos, de três em três, deixavam no ar uma palavra: luxúria, luxúria, luxúria. Ouvindo cada vez mais perto essa palavra, ela chegou à escada rolante e, ao pôr o pé no primeiro degrau, sentiu o hálito do homem na sua nuca. Fruindo já o que aconteceria, ela suspirou, para manter o homem enfeitiçado. Assim que ela chegou ao topo da escada, o homem, como ela havia querido e previsto, a pegou pelo ombro e ia dizer alguma coisa (ou não dizer nada, tal era o estado de sua exaltação amorosa), quando um soco o atingiu no nariz e o atirou ao chão. Ela deu o braço ao agressor, que todas as tardes a esperava ali e que disseram ser seu marido ou algo semelhante, e olhou com desprezo para o homem no chão, o mesmo que uma semana antes havia fingido não reparar nos lentos movimentos de sua língua porque estava com uma garota loira, espalhafatosa e muito atraente.
Pequenas alegrias urbanas (56) -- Beijos
O homem lhe deu mais um beijo. Era o trigésimo, o quadragésimo, ela já tinha perdido a conta. Depois do primeiro ela havia tentado lhe dizer, mas ele tinha engolido suas palavras com o segundo beijo, e com os outros, tantos, e agora ela nem sabia mais se queria explicar que não era a Jênifer, que a Jênifer era a amiga que tinha marcado encontro com ele pelo telefone e havia pedido que fosse se desculpar por ela. O homem lhe deu mais um beijo, e mais um, e outro, e ela pensou: que se dane a Jênifer.
Pequenas alegrias urbanas (55) -- Tara
Então, subindo no elevador do cinco estrelas com a garota mais cara do catálogo, ele sentiu que com aquela precisaria se concentrar mais do que com as outras e calar com ainda maior veemência o desejo para, depois de lhe tirar lentamente a roupa, olhar para ela com desdém e, como havia feito com as outras, lhe dizer: "Olhe aqui o dinheiro. Pode se vestir. Você não é bem o que eu queria."
Pequenas alegrias urbanas (54) -- O bilhete
Na manhã em que não encontrou na mesa da cozinha o bilhete diário no qual já por um ano a mulher, antes de ir para o seu trabalho de enfermeira, o chamava de inútil, vagabundo e mais os adjetivos que ia tirando de uma inspiração inesgotável, ele sorriu. Finalmente ela havia se cansado. Depois de tomar o café, ficou tentando decidir se iria passear no parque ou ficar em casa vendo tevê. A caminho do banheiro, passou pelo quarto em que fazia um ano a mulher dormia só e a viu no chão. Na cama, um vidro de pílulas vazio e um bilhete: "Me perdoe por tudo."
Pequenas alegrias urbanas (53) -- A prova
A garota lhe deu um beijo apressado, porque estavam na sala de aula, embora sozinhos, e saiu devagar, gingando, para exibir um pouco do que tinha acabado de lhe prometer se dali a uma semana fosse aprovada no exame. O mestre de literatura suspirou como não suspirava fazia muitos anos e, sentindo uma pena imensa daquele seu colega que achava o ofício de professor sagrado e incorruptível, disse para si mesmo: você vai passar, menina, você vai.
sábado, 24 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (52) -- A alma
Na missa de corpo presente, quando o padre rogou a Deus que desse paz à alma do morto, os soluços se ouviram com mais nitidez e pungência. Com o rosto lavado pelas lágrimas, a mulher e a filha do finado precisaram ser amparadas. Ao fundo, acompanhando de longe o ato, uma mulher não impediu que duas lágrimas escorressem sobre uma foto na qual ela, alguns anos antes, era abraçada por um homem. Depois de enxugá-las com discrição, recompôs-se, sorriu amargamente e disse baixinho, para ninguém ouvir: "Alma? Como se ele tivesse alguma..."
Pequenas alegrias urbanas (51) -- Consolo
Dez minutos depois de os ladrões terem fugido com todo o dinheiro do bar, o velho frequentador entrou, sentou-se no banquinho de sempre, pediu uma cerveja e, olhando para o dono que ainda fitava desconsolado a caixa vazia, disse: "Viu como foi bom eu não pagar o pendurado naquela hora? Precisava fazer aquele escândalo, aquela pressão toda? Vamos fazer o seguinte. Amanhã eu acerto isto", apontou a cerveja, "e o resto. Vai que ainda os ladrões voltem hoje..."
Pequenas alegrias urbanas (50) -- Baile
Depois de pisar quatro vezes o pé de seu par e de ouvir grunhidos cada vez menos amistosos como retribuição aos seus pedidos de desculpa, ela viu quase como uma expressão da justiça divina o bofetão que o presunçoso rapaz, o melhor dançarino da festa, levou quando, sacudido por um súbito espirro, salpicou de saliva o pescoço daquele que todos sabiam ser o pior bailarino e o mais explosivo de todos os convidados.
Vida passada
Fui secretário do Proust
E lhe disse, desgostoso,
Que achava ser um embuste
E um desvio vergonhoso,
Passível de sério ajuste,
Ele andar sempre entretido,
Melancólico, abatido,
Perdendo um tempo precioso
Atrás de um tempo perdido.
E lhe disse, desgostoso,
Que achava ser um embuste
E um desvio vergonhoso,
Passível de sério ajuste,
Ele andar sempre entretido,
Melancólico, abatido,
Perdendo um tempo precioso
Atrás de um tempo perdido.
Poema físico
Quando Newton, acertado
Pela maçã e ferido,
Com o cocuruto partido
Ao hospital foi levado,
O doutor, sem acuidade,
O ferimento observou
E, parvo, sentenciou:
"Não há qualquer gravidade."
Pela maçã e ferido,
Com o cocuruto partido
Ao hospital foi levado,
O doutor, sem acuidade,
O ferimento observou
E, parvo, sentenciou:
"Não há qualquer gravidade."
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (49) -- O cheiro
Depois de, sem conseguir dizer uma palavra, ter ouvido os dez furiosos minutos de reprimendas e palavrões com os quais a amiga a excluiu da sua vida, ela chorou meia hora, espatifou metodicamente vinte e dois frascos de perfume e, ainda engolindo os soluços e as lágrimas, pegou o telefone e gritou: "Quem fede como gambá é você!"
Pequenas alegrias urbanas (48) -- O maiô
O dono da casa onde ela fazia faxina a olhou mais uma vez com aqueles olhos mornos e ela sentiu como seria agradável o mês seguinte, quando a patroa, aquela ruiva ranzinza e grosseira, iria passar vinte dias em visita à irmã, a quinhentos quilômetros dali, numa praia na qual poderia se mostrar com o decantado maiô que a tornava dez quilos mais magra.
Pequenas alegrias urbanas (47) -- A formiga
O menino acompanhou o esforço desesperado da formiga para escapar da bacia com água pela metade, no quintal. Ela lutava, se debatia, chegava ao cantinho de onde poderia alcançar a borda e, quando parecia salva, deslizava outra vez desastradamente para baixo, agitava-se, recomeçava a luta. Quando finalmente ela conseguiu subir até a borda, o menino a empurrou de novo com um peteleco para dentro da água. Com um olhar aceso pela vingança, soprou então o braço, onde a vermelhidão parecia agora ter aumentado. Antes de ir para dentro e procurar outra coisa para fazer, olhou pela última vez para a formiga. Pensou que podia nem ter sido aquela, mas foi um pensamento que logo se desfez.
Pequenas alegrias urbanas (46) -- O sorriso
O homem precisou olhar duas vezes para o rapaz que tinha um grande curativo no rosto para reconhecer nele o mesmo que, uma semana antes, ali no metrô, sorria a todo instante para exibir o júbilo de estar com o braço colocado no ombro de uma garota esplendidamente bela. Quando olhou pela terceira vez, o rapaz, julgando que era um olhar de simpatia, sorriu para o homem, que viu então, com satisfação dobrada, que também o sorriso de triunfo havia sofrido, naqueles sete dias, a deserção de dois dentes.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (45) -- O casamento
Lia, faz um ano hoje. Você não deve se lembrar da data, você nunca foi sentimental. Eu é que sempre fui bobinha, era assim que você me chamava, disso talvez você se lembre. Faz um ano que nós... Faz um ano que... Como eu lutei, como eu rezei para que aquilo acontecesse. Você se lembra talvez de como eu insisti para que fôssemos ver O Último Tango em Paris, naquela retrospectiva. Se minha mãe soubesse que íamos ver esse filme, que tinha causado tanto escândalo na juventude dela... Já que falei de minha mãe, ela morreu faz dois meses, coitada, e levou para o túmulo todos aqueles princípios sólidos. Uma semana depois, meu pai foi morar com uma das amantes dele. Melhor assim. Vivo aqui sozinha e poderia até dormir no quarto dos meus pais, naquela camona. Mas durmo no quarto em que você deixou seu perfume, naquela noite. Quando acabou o filme -- eu com o coração batendo a mil, você fria como uma estátua de mármore, mesmo depois de eu ter ficado com a minha mão procurando as suas todo o tempo --, eu perguntei, com a voz tremendo como um passarinho morto de frio, se você queria dormir em casa. Já era quase meia-noite e eu disse como seria mais fácil e menos perigoso, para você, do que ir para a sua casa, naquela lonjura. O dia seguinte era um sábado e nós não precisaríamos ir ao colégio. Poderíamos dormir quanto quiséssemos. Era minha terceira tentativa, naquele mês, de dormir com você e, justo nessa noite, quando você me pareceu mais distante do que nunca, você aceitou. Minha mãe ficou feliz com aquilo ("A Lia, de todas as suas amigas, me parece a que tem melhor cabeça") e, depois do lanche que ela nos preparou, nós duas viemos para o meu quarto, este de onde agora escrevo, e, assim que entramos, você se jogou em cima de mim, me atirou em cima da cama e começou a repetir, cada vez mais baixo, enquanto me beijava: "Era isso que você queria, não era? Era isso que você... Era isso... que..." Relembro tudo isso porque nunca mais você deu sinais de que isso aconteceu mesmo, e às vezes eu preciso me concentrar e reconstituir tudo, detalhe por detalhe, para ter certeza de que aconteceu. Só houve aquela noite, com aquela flama, com aquele incêndio que nos consumiu. Depois vieram os dias em que você foi me descartando, deixando de lado, até sair de minha vida. Faz hoje um ano, Lia, e só naquela noite eu pude dizer no seu ouvido o que desejaria dizer agora, abraçando seu corpo: "Liinha, Liinha." Você se ligou à Fúlvia e começou a andar atrás dela, a persegui-la, até que ela foi com a família morar em Buenos Aires. Tive pena de você, cheguei a imaginar que você poderia se lembrar de mim, daquela noite, e... Mas hoje, agora, um ano depois da nossa noite louca, sei que você jamais... E digo, com todo o meu rancor e o meu amor ferido, que a Fúlvia se casou lá na Argentina, faz duas semanas.
Pequenas alegrias urbanas (44) -- Um assobio
Quando o investigador, dois meses depois do sumiço do velhote, foi perguntar à desconsolada mulher do desaparecido se por acaso ele não era conhecido também pelo nome de Esdras, pois haviam encontrado em Uberaba um senhor com esse nome, a velha mulher disse que não, que o nome dele era mesmo Lélio ou, para os mais chegados, Lelito. A empregada, na cozinha, lembrando o mau gênio e a falta de educação do desaparecido, teve vontade de ir à sala e sugerir que talvez valesse a pena, se porventura se achasse um velho tão desanimadoramente parecido com aquele, assobiar, porque aí ele certamente latiria e, quem sabe, morderia até.
Pequenas alegrias urbanas (43) -- A obra-prima
Por muitos anos o escritor famoso receou que seu vizinho, também escritor, concluísse o romance no qual trabalhava pelo menos oito horas por dia. Quando se anunciava algum concurso, o escritor famoso ficava em terrível desassossego, mas sempre o outro escritor alegava algum motivo para não concorrer: precisava dar uns retoques, reescrever um capítulo ou -- esta era a desculpa mais frequente -- encontrar um pseudônimo que não parecesse nem vulgar nem pretensioso. Foram vinte anos de angústia para o escritor famoso, que nesse tempo ganhou vários prêmios em concursos e viu aumentar sua glória. No dia em que o escritor vizinho morreu, o escritor célebre ainda temeu que o presumível rival tivesse deixado aos cuidados da família uma obra-prima que representasse toda uma geração e a obscurecesse com seu brilho. Só se aquietou quando a viúva do vizinho lhe disse que, na realidade, o defunto nem escrevia e nem era muito dado a ler, especialmente romances.
Pequenas alegrias urbanas (42) -- A caixa
Soube, naquela manhã, que tinham mandado embora a caixa que diariamente o irritava por pegar avidamente o dinheiro da sua mão quando ele ia pagar a conta, como se ela fosse a dona do mercadinho. No início supôs que ela tivesse incorrido num desfalque, mas lhe disseram que a causa da desgraça da moça havia sido recusar os convites do gerente para jantar, além de uma displicência que a fazia receber a menos ou dar troco a mais, com prejuízos quase diários na hora do fechamento das contas.
domingo, 18 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (41) -- Perfil
Os que sofrem por amor têm os olhos encovados e uma boca que se assemelha ao traço amargo de um desenhista desenganado pelos médicos. Não gostam de sol e também não podem se aproximar de flores, que sempre lhes trazem aromas agudos e lembranças penosas. Dão a impressão de ser apáticos, mas dentro deles há um violino tenso com uma corda que, se tocada, fará chorar o mundo e matará carneiros de tristeza. São inofensivos, os que sofrem por amor, ou assim parecem. Foram feridos gravemente em algum instante e assumiram o papel de mortos. Mas cuidado! Quem olhar para um deles poderá ser enfeitiçado pela úmida melancolia dos olhos encovados ou por uma tímida queixa dos lábios entreabertos - e então esse, que olhou para um desses seres, logo estará sofrendo também por amor, e seus olhos se encovarão, e seus lábios se fecharão para a vida e para o mundo, esperando apenas o momento de desfrutar, como os outros, a agridoce vingança dos que sofrem por amor.
sábado, 17 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (40) -- O gato
O homem levantou-se e foi até a área do apartamento. Fazia três horas que tentava dormir e, quando chegava à borda do sono, lembrava-se de novo do que havia lhe acontecido à tarde, da rejeição definitiva que tinha sofrido, e a aflição apertava tanto seu peito que ele precisava sair da cama. Chegou a pensar que estivesse tendo um enfarte, e torceu para que fosse um daqueles fulminantes, mas sabia que o seu problema não era físico. Padecia de um mal do coração, mas no sentido antigo e figurado, aquele de que sua mãe e suas irmãs falavam tanto, e do qual ele havia escarnecido tantas vezes. Sofria de paixão, de amor não correspondido, e sentia uma dor aguda que, não se localizando no corpo, em nenhuma parte dele, o fazia recordar outra expressão tão cara ao romantismo da mãe e das irmãs: dor da alma. Era isso, ele precisava concordar, já que não achava termo melhor. Doía-lhe a alma, doía-lhe muito, doía-lhe intoleravelmente, e ele, olhando agora para as estrelas, sentiu vontade de gritar para elas, de acordar a cidade com seu grito, de ter sua loucura reconhecida e talvez acalmada, e talvez afagada, e talvez mimada por uma enfermeira piedosa. Estava assim, à beira do grande grito, quando seu gato, que dormia numa cadeira na área do apartamento, assaltado talvez por um pesadelo, escorregou do travesseiro e deslizou comicamente para o chão. O homem puxou então para o colo o gato, sorriu e, por um instante, um só, esqueceu-se da dor da sua alma e brincou: "Ah, o que foi, seu bicho bobo?"
Pequenas alegrias urbanas (39) -- O pai
Era o sábado em que o homem, separado, passava o dia com os três filhos. Acordou ainda zonzo da bebedeira da véspera e chegou para pegar os meninos ao meio-dia, e não às onze, como estava acertado. A ex-mulher, aparecendo na frente da casa com o novo marido, recomendou: "Olha lá aonde vai levar essas crianças." Ao meio-dia e meia ele e os filhos estavam num bar de quinta categoria, onde ainda lhe vendiam fiado. Pediu uma cerveja, três cocas e três sanduíches de queijo. Os garotos, que não tinham almoçado com a mãe, devoraram os sanduíches e pediram mais. "Inventei uma brincadeira", disse então o pai, para que esquecessem daquilo. "Vocês prometem não contar pra sua mãe?" Eles prometeram. A brincadeira consistia em ficarem os três diante de uma padaria na rua paralela, pedindo moedinhas aos fregueses na saída. "Assim vocês me deixam sossegado aqui. O dinheiro vocês podem gastar em balinhas. Se alguém der uma nota grande, vocês me trazem." Depois de uma hora debaixo do sol, os meninos conseguiram comprar uns chicletes com as esmolas. Então, um homem que estava guardando o troco no bolso, deixou cair uma nota. Os três se olharam por um instante, mas decidiram que precisavam do dinheiro mais do que o homem. Nem pensaram em levar a nota ao pai. Pegaram três sorvetes, dos caros, e o resto gastaram em pãezinhos de queijo. Estavam alegres e continuaram assim até as três horas, quando o pai foi lhes dizer que precisavam ir para casa.
Pequenas alegrias urbanas (38) -- O pardal
Esperando o ônibus, o homem viu um pardal que tentava levantar voo na calçada. Parecia ferido ou talvez estivesse paralisado pelo frio intenso da manhã. Olhando para o passarinho, que piava pedindo socorro, ele notou a aproximação furtiva de um gato. Não teve dúvida de que, se não fizesse alguma coisa, o pardal logo seria abocanhado pelo gato. Bateu os pés com estrépito na calçada, mas a fome do gato parecia maior do que seu medo. O ônibus surgiu, distante, e o homem tomou uma decisão. Abaixou-se e pegou o passarinho. Observou que ele estava machucado. Havia sangue em suas penas. Procurando não apertá-lo demais, ele subiu no ônibus, que estava lotado. Um estudante, percebendo o passarinho na sua mão, ofereceu lugar. Em poucos instantes, havia já umas dez pessoas interessadas na sorte do pardal. O homem desceu no seu ponto e foi andando até a padaria. Talvez uma migalha de pão salvasse o bichinho. Mas, antes de entrar na padaria, notou que ele estava morto. Sentiu uma tristeza grande, uma tristeza boa, uma tristeza infantil. Colocou com cuidado o corpo do pardal na mureta de um prédio banhada pelo sol, como se um pouco de calor pudesse fazer um milagre. Ainda olhou duas vezes para trás. Depois, caminhando para o trabalho, sorriu ao pensar na frustração do gato.
Pequenas alegrias urbanas (37) -- Intriga
O velho escritor, agora contratado por um novo selo e fazendo muito sucesso, mandou convite aos amigos da antiga editora para o lançamento de mais um livro. Só um não foi convidado, exatamente o que mais havia trabalhado nas primeiras novelas do autor para torná-las mais legíveis. Esse, ressentido, foi à noite de autógrafos e espantou-se com os mais de mil fãs aglomerados na fila, que extravasava da porta da livraria para as ruas dos arredores. Viu de longe o escritor, com seu sorriso de triunfo, e observou, numa estante um tanto afastada da mesa central, a nova mulher dele, a terceira, esguia e linda como uma modelo. Com dificuldade, aproximou-se dela e exclamou, procurando parecer tolo:
"Puxa, quanta gente. Esse escritor deve ser importante."
"É", ela disse, "ele é, sim."
"Eu não conheço, mas acabaram de me contar uma coisa sobre ele. Pode ser inveja, mas me disseram que ele não gosta de mulheres. Disseram..."
"Ei", começou a mulher, mas, antes que pudesse falar mais alguma coisa, o ressentido concluiu:
"... que ele tem um amante de vinte anos, o baterista de uma banda de rock."
E saiu rápido, desvencilhando-se das pessoas e saindo feliz para a rua.
"Puxa, quanta gente. Esse escritor deve ser importante."
"É", ela disse, "ele é, sim."
"Eu não conheço, mas acabaram de me contar uma coisa sobre ele. Pode ser inveja, mas me disseram que ele não gosta de mulheres. Disseram..."
"Ei", começou a mulher, mas, antes que pudesse falar mais alguma coisa, o ressentido concluiu:
"... que ele tem um amante de vinte anos, o baterista de uma banda de rock."
E saiu rápido, desvencilhando-se das pessoas e saindo feliz para a rua.
Pequenas alegrias urbanas (36) -- Cego
O homem desceu do enorme carro e caminhou para ele com ginga e gestos de lutador. "Você é cego ou é idiota?", rosnou, com a mão direita já levantada e a esquerda um pouco atrás, mas também ameaçadora. Ele saiu do carrinho imaginando o estrago que aquelas mãos poderiam fazer no seu rosto e, quase arrastado, foi ver o que sua inabilidade havia provocado no carro do homem, que continuava a xingá-lo. Ficou aguardando o impacto do primeiro soco, mas o homem começou a se acalmar, até que disse: "Bom, parece que não aconteceu nada com o meu. Sorte sua, porque ele é importado e as peças, a lataria, tudo é muito caro." O homem entrou no carro em que tudo era caro e, ao dar a partida, ainda olhou rancorosamente para ele, todo encolhido no seu carrinho. Puxa, dessa eu escapei, ele pensou, e quando o carro enorme dobrou a esquina e sumiu, ele pôs seu carrinho também em movimento e, ao se ver longe, começou a gritar: "Idiota é você. Cego é o seu pai." Berrou isso com plena consciência de estar certo. O homem não tinha visto que um dos faróis de seu precioso automóvel estava trincado.
Pequenas alegrias urbanas (35) -- Sorte
Assim que entrou na rua reconheceu aquele que, com mais uns quatro, o havia posto a correr dez anos antes, com o argumento de que as garotas dali eram propriedade dos garotos do bairro. Teve a satisfação de ver que ele agora era um homem muito gordo, quase disforme. Ele estava na frente do sobrado com três filhas, gordas e feias como o pai. Na janela de cima surgiu uma mulher acabada, mas nem tanto que ele não pudesse distinguir nela a garota que dez anos atrás ele havia seguido por vários quarteirões até ali e que havia sido responsável pela mais alucinante e covarde corrida que ele tinha dado na vida para manter intato seu belo rosto de galã de arrabalde.
Pequenas alegrias urbanas (34) -- O anel
Quando a mulher disse que não, não mesmo, nunca mais, ele insistiu, insistiu demais, insistiu muito, mas, ao ver que era mesmo o fim, ficou um pouco menos infeliz porque, por ter anunciado, logo no início daquele, que não haveria mais nenhum encontro, ela o dispensava de lhe dar o anel que ele tinha comprado de manhã e que agora, sendo o dono da joalheria seu amigo, ele poderia devolver e recuperar o dinheiro.
Pequenas alegrias urbanas (33) -- O urso
Depois de uma semana sem conseguir falar com a esquiva Marta, justamente Marta, que por dois anos lhe havia ligado e mandado mensagens de hora em hora, e a tinha visitado em momentos próprios e impróprios, e se enfiado na cama dela sempre que podia, e jurado amor, e implorado carinho, e gemido queixas e promessas, Lucila pegou o ursinho de pelúcia, presente de Marta, e, esperando um instante em que não viu ninguém lá embaixo, o atirou pela janela do quinto andar.
Pequenas alegrias urbanas (32) -- O nome
Todo dia, agora, depois do trabalho ia a um cinema, para embarcar em fantasias e adiar a hora de voltar para casa, onde encontraria a mulher, que já não suportava ver. Naquela noite, assistiu a um filme de uma loira belíssima e famosa cujo nome, porém, esqueceu logo ao sair do cinema. No metrô e nos três quarteirões que andava até chegar em casa, procurou recordar o nome, mas ele vinha, chegava perto, quase se mostrava inteiro e, no instante seguinte, sumia. Em casa, a mulher o aguardava com sua carranca e um jantar frio. Ah, como ele queria lembrar o nome daquela atriz do filme, que era o oposto do que era a mulher. Irritado, começando a comer o feijão insosso, ele bateu a mão na mesa, fazendo balançar o prato e o garfo, e disse à atônita mulher: "Não lembro o nome, não lembro, mas sei que não é o seu, Adélia, não é o seu!"
Pequenas alegrias urbanas (31) -- Pudim
Gastou meia hora escrevendo no micro a mensagem para o homem que um mês antes havia jurado fazer tudo por ela, até se matar se fosse preciso, e agora se negava a lhe emprestar dinheiro para pagar o aluguel do apartamento em que ela, na semana anterior, tinha afinal deixado que ele se deitasse na sua cama e ali ficasse até os primeiros sinais do dia. A parte do texto em que mais se empenhou foi aquela na qual disse que ele, como amante, era igual a um pudim.
Pequenas alegrias urbanas (30) -- Simpático
O rapaz levantou-se, disse "boa noite, senhor, meu ponto é o próximo" e desceu com mais três passageiros. Na calçada, ainda acenou para dentro do ônibus: "Até logo, senhor." Havia tempo para o homem mostrar o bloco que ele tinha deixado cair no banco e tempo também para o rapaz voltar e pegá-lo, mas o homem não o mostrou. No ponto final, embora na capa do bloco constassem o nome, o endereço e o telefone do rapaz, ele o jogou no meio da rua encharcada pela chuva. O rapaz merecia ficar sem aquelas anotações todas, por ter conversado tão agradavelmente com ele até o instante em que disse, adulador e sorridente, que seria quase impossível encontrar um velho mais simpático do que ele.
Pequenas alegrias urbanas (29) -- A miss
Depois de passar com a moto diante da casa da loirinha duas vezes e de chamá-la de "lindinha" (na primeira) e de "lindona" (na segunda), sem que ela lhe desse a mínima atenção, ele fez a volta no fim da rua e, passando de novo na frente da casa, gritou "ei, bagulho". Apareceu por trás da loirinha uma mulher que, agitando iradamente a mão, berrou para ele: "Bagulho não, viu? Ela foi eleita miss da sexta série na semana passada, na escola."
Pequenas alegrias urbanas (28) -- Talião
Era o primeiro dia em que o peixinho estava instalado no aquário e já era a terceira tentativa que o gato fazia para apanhá-lo. A mulher, que na primeira vez tinha gritado com ele e na segunda o havia atirado ao chão, deu-lhe um tapa forte na orelha. O gato esperou que ela fosse acabar de fazer o almoço na cozinha. Depois, sossegado como sempre, pulou para o seu lugar predileto no sofá de couro e cravou as garras com determinação nele, como nunca havia feito.
sexta-feira, 16 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (27) -- Expurgo
Chorou três meses por um amor não correspondido. Definhou. Seus olhos ficaram baços, seu rosto murchou, e o sono que não o visitava à noite começou a atacá-lo impiedosamente durante o dia, no escritório. Perdeu o emprego, e seu ofício passou a ser o de andar sem rumo, lançando maldições ao sol, ao vento e à lua. Todos os cachorros da cidade já haviam latido pelo menos uma vez para ele quando, finalmente, sua frustração e seu ressentimento se apaziguaram um pouco e, em vez de caminhar incertamente pelas ruas para gritar sua revolta, ele se tornou sócio de uma biblioteca e agora todo dia ali, calmamante sentado, executa seu plano de desforra: nos livros que lê, sempre que aparece a palavra "amor" ele aperta a caneta preta como se fosse uma faca sobre ela, para estigmatizá-la, para castigá-la, para destruí-la, para matá-la. O primeiro livro em que fez isso foi Romeu e Julieta.
Pequenas alegrias urbanas (26) -- A única
Quando soube que ele tinha morrido, de uma prosaica pneumonia, ela pôs a mão no peito, fingiu estar com uma palavra entalada na garganta e piscou, piscou várias vezes, tentando espremer uma lágrima. Mas por dentro sentia uma satisfação enorme, plena, incomparável. Jamais aquele homem poderia lhe dizer que só daria atenção a ela no dia em que fosse a única mulher do mundo.
Pequenas alegrias urbanas (25) -- A desforra
Na segunda ou terceira manhã em que levou a netinha recém-nascida para passear no parque, notou novamente o sorriso dela quando se sentia em contato com o sol e como procurava com os olhos a fonte daquela alegria. Lembrando-se então de como também ela havia sido iludida tantas vezes por aquele brilho e por aquele calor, de tantas manhãs que tinham prometido tantas venturas que as tardes não traziam, ela baixou a cobertura do carrinho, deixando a sombra pousar sobre o rosto da netinha. Depois, olhou desafiadoramente para o alto.
Pequenas alegrias urbanas (24) -- A volta
O amigo agradeceu tanto porque ele o indicou para substituí-lo como motorista da ambulância, que ele julgou melhor não dizer que, embora a empresa pagasse mesmo muito bem, a estrada fosse uma das melhores do país e todos os dias o trajeto fosse o mesmo -- da pequena cidade até o hospital em São Paulo --, era difícil suportar o contraste entre a ida (com todas as crianças cantando e festejando o passeio) e a volta (com quase todas tristes, alheias à paisagem, consoladas e afagadas pelas mães, depois do diagnóstico assustador).
Pequenas alegrias urbanas (23) -- Avisos
Toda manhã, ao caminhar pelos quatro quarteirões que o levavam de casa ao escritório onde trabalhava, colava em algum ponto do trajeto um papel com três palavras escritas caprichadamente no computador: Vou Me Matar. Imaginava que dali a duas semanas, quando um número suficiente de papéis estivesse colado, alguém observaria aquilo e, sorrindo, pensaria: que idiota. Mas, no dia em que ele estourasse a cabeça na frente do edifício onde trabalhava, ao lado de um daqueles avisos de morte, muitos acabariam percebendo a lógica que havia naquilo e talvez não achassem tão idiota assim.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (22) -- Oi, Nice
O rapaz vestiu uma camisa extravagantemente havaiana, um calção de escoteiro que escancarava suas pernas peludíssimas, um capacete de astronauta e, com uma tabuleta presa no pescoço - Eu te amo, Nice --, se pôs a andar pelas ruas do centro da cidade. No terceiro dia, foi finalmente descoberto por um canal de tevê que se dispôs a fazer uma entrevista e ouvir sua história de amor. Ele contou então ao vivo, para milhões de telespectadores (como proclamou o apresentador do programa), que Nice era uma garota de dezoito anos, morena, de olhos castanhos, que ele tinha conhecido num shopping e precisava reencontrar, se quisesse ser feliz. Enquanto o apresentador fazia um apelo - Nice, ouça o seu apaixonado -, o rapaz, que não conhecia Nice nenhuma, imaginava o efeito que aquilo tudo provocaria em Jênifer, uma loira de trinta anos e olhos azuis, o ciúme dela ao ver que tinha rejeitado um homem agora famoso e requisitado (dezenas de mulheres já haviam ligado para o programa dizendo ser ele o rapaz mais atraente que elas conheciam).
Pequenas alegrias urbanas (21) -- Pouco
Ele viu o filho de três anos urinando em cima do livrinho da menina de dois anos, mas não se moveu. Continuou conversando com os pais da garotinha. Olhou para a sua mulher, que também participava da conversa, e, comparando-a mais uma vez com a dona da casa, que cinco anos antes o havia rejeitado, achou que um livro mijado era uma reparação indireta e pequena demais para o que ele tinha perdido.
Pequenas alegrias urbanas (20) -- Ali, ali
Clara viu a barata se esgueirar no canto da sala. Mais cinco segundos e ela alcançaria a escuridão da cozinha. Clara hesitou, mas logo, como se tivesse notado a barata só naquele instante, deu um grito de horror, e todos os convidados para o jantar sorriram e disseram que aquilo não era nada, tentando não constranger a anfitriã, Débora, aquela mulher dissimulada que havia conquistado o homem por quem Clara era apaixonada e agora o exibia quase todas as noites, arranjando pretextos e meis pretextos, como aquela esdrúxula comemoração de primeiro mês de casamento.
Pequenas alegrias urbanas (19) -- Vá esperando
Disse que sim, Sara, garantiu que sim, claro que sim, Sara, repetiu que não, não era incômodo nenhum, Sara, mas já tinha decidido que embarcaria no dia seguinte e voltaria no fim do mês não com aquilo que Sara havia encomendado e que só em Paris se podia encontrar, mas com uma desculpa qualquer, porque vinte anos antes, quando os dois estavam no colégio, Sara não tinha soprado para ele uma resposta na prova de português.
Pequenas alegrias urbanas (18) -- Aquele
Não tinha visto nada, só um tumulto no segundo piso do shopping, mas quando o policial lhe perguntou qual, dos cinco rapazes apanhados correndo, era na opinião dele o que havia tentado assaltar a joalheria, apontou para aquele com a camisa do time que desde os cinco anos seu pai o havia incitado a odiar.
Pequenas alegrias urbanas (17) -- Saúde
Quando completou oitenta anos, a ausência de cinco ou seis amigos que tinham estado na festa dos setenta foi comentada por ele com o respeito devido aos mortos, quebrado porém por algumas reminiscências agradáveis e até jocosas que indicavam como ele havia gostado deles. Só não fez nenhum comentário, porque nesse caso seria irônico e talvez amargo, sobre o malhador que dez anos antes, achando-o abatido para a idade, lhe tinha dado conselhos sobre como se manter saudável com vitaminas e exercícios físicos e dois anos depois estava duro e esticado no caixão.
quarta-feira, 14 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (16) -- Verdes
A moça da caixa deu troco a menos ao velho porque ele, galanteador diário, pela terceira vez na semana havia elogiado os olhos azuis dela, quando a mãe, os irmãos e ela, principalmente ela, celebravam como patrimônio e orgulho de família o nariz perfeitamente desenhado e o verdor cheio de brilho dos olhos.
Pequenas alegrias urbanas (15) -- Gorjeta
Os parentes e os amigos do defunto já estavam começando a se despedir e a se afastar. Um dos coveiros, dando uma cuspida grossa e sacudindo a braguilha, disse ao outro, novato no ofício: "Por mim, este aqui vai queimar no inferno. Olha aí, fica olhando. Todos vão embora de fininho e nenhum puto vai pôr a mão no bolso pra dar uma caixinha pra nós."
Pequenas alegrias urbanas (14) -- Logo depois
O sol lhe pareceu ameno e as compras já não pesavam tanto nos seus braços quando avistou, destroçado no poste, o carro do qual, um quarteirão antes, os dois rapazes, agora calculando desolados a perda, lhe haviam gritado, apontando o pacote de papel higiênico: "Aí, cagão!"
Pequenas alegrias urbanas (13) -- Ali mesmo
Ao ver a mulher que olhava estupefata para a mão na qual um segundo antes segurava um celular, enquanto o ladrão pedalava rindo avenida abaixo, o rapaz lembrou como seus amigos tinham censurado a falta de cuidado dele quando, no mês anterior, seu celular havia sido roubado ali mesmo, naquela rua. Então, passando pela mulher assaltada, murmurou o que tinham dito a ele: panaca.
terça-feira, 13 de abril de 2010
Sobre as cartas de amor
Alguém deve ter dito que toda carta de amor é sublime. Alguém deve ter dito que toda carta de amor é ridícula. Embora meu primeiro impulso e minha simpatia me incitem a aceitar a primeira frase como a que expressa a verdade, algo me aconselha prudentemente a não desacreditar a segunda. Essa reflexão foi motivada por um romance de Vladimir Nabokov, A Verdadeira Vida de Sebastião Knight (tradução de Brenno Silveira, editora Francisco Alves). No livro há a carta de um amante, em que o tom, exceto uma pitada de sarcasmo, pretende ser elevado e talvez seja, para quem escreveu a carta, se bem que seja imprescindível contar com a boa vontade de leitores alheios ao caso amoroso (isto é, excluídos o amante e a amada) para ver em certos objetos, tidos como quase fetiches pelo amante (e possivelmente pela amada), a mesma magia. Aqui vai o trecho da carta:
"Adeus, meu pobre amor. Jamais a esquecerei ou substituirei. Seria absurdo de minha parte procurar persuadi-la de que você era o amor puro, e que esta outra paixão não passa de uma comédia da carne. Tudo é carne e tudo é pureza. Mas uma coisa é certa: fui feliz com você e, agora, sou infeliz com outra. E assim prosseguirá a vida. Gracejarei com os colegas de escritório e desfrutarei de meus jantares (até contrair dispepsia), e lerei romances, e escreverei versos, e não perderei de vista os meus negócios... e, de um modo geral, agirei como sempre agi. Mas isso não significa que serei feliz sem você... Todas as pequenas coisas me lembrarão você... o olhar de desaprovação lançado à sala em que você afofou as almofadas e falou com o atiçador de fogo, junto da lareira... todas as pequenas coisas de que descríamos juntos... tudo isso me parecerá sempre a metade de uma concha, a metade de uma moeda, de que você possui a outra parte. Adeus. Vá embora, vá embora. Não escreva."
"Adeus, meu pobre amor. Jamais a esquecerei ou substituirei. Seria absurdo de minha parte procurar persuadi-la de que você era o amor puro, e que esta outra paixão não passa de uma comédia da carne. Tudo é carne e tudo é pureza. Mas uma coisa é certa: fui feliz com você e, agora, sou infeliz com outra. E assim prosseguirá a vida. Gracejarei com os colegas de escritório e desfrutarei de meus jantares (até contrair dispepsia), e lerei romances, e escreverei versos, e não perderei de vista os meus negócios... e, de um modo geral, agirei como sempre agi. Mas isso não significa que serei feliz sem você... Todas as pequenas coisas me lembrarão você... o olhar de desaprovação lançado à sala em que você afofou as almofadas e falou com o atiçador de fogo, junto da lareira... todas as pequenas coisas de que descríamos juntos... tudo isso me parecerá sempre a metade de uma concha, a metade de uma moeda, de que você possui a outra parte. Adeus. Vá embora, vá embora. Não escreva."
Pequenas alegrias urbanas (12) -- Motivo
Desceu do ônibus com o senhor austero e, enquanto caminhavam pela rua que descia, descia e não acabava mais de descer, continuou a conversar com ele sobre as injustiças do mundo, as catástrofes naturais, a falta de respeito a Deus, antegozando o momento em que, lá embaixo, quando a rua finalmente acabasse de descer, apontaria o revólver para o homem, tomaria seu dinheiro, o celular, tudo, e atiraria longe a bíblia dele, como tinha feito dez anos antes com a do pai, aquele velho hipócrita, asqueroso e molestador.
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (11) -- Triunfo
Depois de mais uma daquelas brigas que ultimamente vinham infernizando seu casamento de trinta anos, ela decidiu ir com o marido ao banco, para que ele não gastasse o dinheiro da aposentadoria com cerveja e mulheres. No caminho para o ônibus, ainda exaltado, ele a chamou de idiota, cretina e imbecil, sem se esquecer de antepor a cada um desses adjetivos uma palavra pronunciada com especial prazer: velha. Para evitar nova discussão, ela se absteve de dizer que era quatro anos mais jovem do que ele, mas não pôde ocultar um sorriso quando, ao entrarem no ônibus, um estudante se apressou em oferecer lugar ao marido, enquanto ela permanecia em pé, sem ser notada, como se não tivesse cabelos grisalhos nem rugas.
sábado, 10 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (10) -- O milagre
No centro do lixo, ali onde o fedor feria as narinas e os urubus voejavam com mais ímpeto, o menino, pensando no que faria o padrasto quando visse a mísera quantidade de latinhas recolhidas naquela manhã, tocou em alguma coisa felpuda. Puxou aquilo devagar, sentindo grudar na mão um líquido viscoso. Com a outra mão se pôs a tirar a terra, o sangue e a sujeira do pequeno animal, que conseguiu dar um miado triste e agradecido.
Pequenas alegrias urbanas (9) -- O fiapo
Mas ela teve sua desforra, quando a mulher para quem todos olhavam, na churrascaria, ao sorrir para o estupendo acompanhante deixou à mostra, entre os dentes, um pedaço de salsinha, verde como um lagarto.
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (8) -- Ao menos isso
Fazia um minuto que estava sendo surrado pelos dois homens, e seus olhos já estavam fechados, mas mesmo assim observou, quase com júbilo, que o mais magro dos agressores, ao lhe acertar novamente o queixo, havia soltado um grito de dor e se queixava de ter quebrado a mão.
Pequenas alegrias urbanas (7) -- U-uh-uhh
Condoeu-se com os berros vindos da saleta do laboratório onde a enfermeira colhia o sangue de um menino, mas fez uma careta de deboche e triunfo para ele quando viu que era o mesmo que cinco minutos antes, no corredor, havia pisado propositalmente no seu pé e comemorado: u-uh-uhh.
quinta-feira, 8 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (6) -- Reprovado
Pensou em xingar o garoto que lhe havia arrebatado o envelope e em gritar "pega ladrão", mas acabou sorrindo ao imaginar a decepção do pivete quando descobrisse que tinha roubado um exame de urina - e ainda por cima com péssimos resultados.
Amanhã, amanhã...
Um conto de Joseph Conrad narra a aflição de um pai que dia a dia, por anos e anos, repetindo "amanhã, amanhã", como se não conhecesse mais nenhuma palavra, esperava a volta de um filho desaparecido fazia muito tempo. Toda manhã, bem cedo, ele se sentava na frente da sua casa, ficava ali e, quando se recolhia, à noite, continuava murmurando "amanhã, amanhã". Um dia, o filho passou diante da casa e, por não ser aquela onde tinha vivido, não olhou para o velho sentado na varanda. O velho, ocupado em murmurar "amanhã, amanhã", também não prestou atenção ao filho. E o momento passou, e não se consumou o reencontro. Se em vez de "amanhã, amanhã" o velho pai murmurasse "hoje, hoje", o final da história poderia ser outro. De tanto esperar o amanhã, ele havia abolido o hoje. Talvez sua esperança não fosse tão forte, apesar da aparência. Ou talvez ela estivesse sendo invocada com a palavra errada. Mas, nesta segunda hipótese, receio já estar não propriamente nos domínios da literatura, mas resvalando para aquele rentável território que certos charlatães chamam de autoajuda.
Pequenas alegrias urbanas (5) -- Tarefas
Na manhã em que pularia do viaduto, quase riu ao receber da mulher um beijo e a recomendação de pagar as contas de água, luz e telefone e não se esquecer de comprar a comida do gato.
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (4) -- Comemoração
No momento em que, na saída da igreja, se alvoroçou uma súbita revoada de pombos e seu ombro foi atingido por um disparo fétido e molhado, o rapaz sorriu, porque um disparo ainda mais fétido, molhado e compacto havia acertado o rosto do noivo, que um segundo antes, de braço dado com a noiva, abria um sorriso de triunfo para o fotógrafo.
Amor e amizade
Na contracapa de um romance de Vladimir Nabokov, encontrei esta comparação entre amor e amizade - provavelmente óbvia, mas brilhante:
"Não posso deixar de sentir que há algo essencialmente errado acerca do amor. Os amigos podem altercar e se separar, os parentes próximos também, mas não existe nunca esta dor, este 'pathos', esta fatalidade que se agarra ao amor. A amizade não tem jamais este aspecto de condenação. Por que assim é? Não deixei de amá-la, mas, como não posso continuar a beijar seu rosto vago e querido, precisamos nos separar. Por quê? Por que isso? Que significa essa misteriosa exclusividade? Podemos ter mil amigos, mas apenas uma companheira. Os haréns nada têm a ver com este assunto: falo de dança, não de ginástica. Ou será que se pode imaginar um incrível árabe a amar as suas quatrocentas esposas como eu a amo? Pois, se digo "duas", já comecei a contar, e a coisa já não acaba nunca. Há apenas um número verdadeiro: um. E o amor, ao que parece, é o melhor expoente dessa singularidade."
("A verdadeira vida de Sebastião Knight", Vladimir Nabokov, tradução de Brenno Silveira, editora Francisco Alves.)
"Não posso deixar de sentir que há algo essencialmente errado acerca do amor. Os amigos podem altercar e se separar, os parentes próximos também, mas não existe nunca esta dor, este 'pathos', esta fatalidade que se agarra ao amor. A amizade não tem jamais este aspecto de condenação. Por que assim é? Não deixei de amá-la, mas, como não posso continuar a beijar seu rosto vago e querido, precisamos nos separar. Por quê? Por que isso? Que significa essa misteriosa exclusividade? Podemos ter mil amigos, mas apenas uma companheira. Os haréns nada têm a ver com este assunto: falo de dança, não de ginástica. Ou será que se pode imaginar um incrível árabe a amar as suas quatrocentas esposas como eu a amo? Pois, se digo "duas", já comecei a contar, e a coisa já não acaba nunca. Há apenas um número verdadeiro: um. E o amor, ao que parece, é o melhor expoente dessa singularidade."
("A verdadeira vida de Sebastião Knight", Vladimir Nabokov, tradução de Brenno Silveira, editora Francisco Alves.)
Pequenas alegrias urbanas (3) -- Companhia
Toda manhã, quando o homem chegava ao ponto do ônibus, aparecia do nada um cãozinho que, sob o encantado olhar das pessoas, se deleitava em lamber as mãos dele. Já dentro do ônibus, ainda se comentava como era engraçadinho o cachorro, ao qual ele acenava por alguns instantes, ouvindo os latidos de retribuição. Numa manhã muito fria e chuvosa, ele precisou sair de casa duas horas antes, de madrugada. Assim que chegou ao ponto, viu aproximar-se o cãozinho, todo encolhido mas feliz. Ao sentir na mão o contato áspero e gelado da língua, o homem fez o que havia muito desejava. Agarrou o cachorro e o atirou longe, com raiva. Quando o ônibus veio, subiu sozinho e satisfeito. Não havia ninguém no ponto e o cãozinho havia desaparecido.
Pequenas alegrias urbanas (2) -- Assim seja
Esfaqueou os dois rapazes com os quais trabalhava para lhes realizar o desejo de jamais, como lhe diziam todos os dias, chegarem a ser ridiculamente velhos como ele.
terça-feira, 6 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (1) -- O lerdo
Quando ouviram a freada e olharam para trás, viram que o homem atropelado era o gordo que toda manhã chegava fora de hora ao ponto e fazia o ônibus sair com atraso por sua causa.
Aquele motoqueiro de ontem, hoje no jornal
Tinha olhos azuis ou verdes?
Não vos esclarece, a foto.
Teríeis, para saberdes,
Que olhar debaixo da moto.
Mas, ai, tão sensível sois
Que em vez de vos atreverdes
Deixastes para depois.
E então: são azuis ou verdes?
Não vos esclarece, a foto.
Teríeis, para saberdes,
Que olhar debaixo da moto.
Mas, ai, tão sensível sois
Que em vez de vos atreverdes
Deixastes para depois.
E então: são azuis ou verdes?
Cláusula de risco
Não receava doença ou dor
E acidentes não temia.
Sua morte, ele pressentia,
Teria um culpado: o amor.
E acidentes não temia.
Sua morte, ele pressentia,
Teria um culpado: o amor.
segunda-feira, 5 de abril de 2010
História
Chegou transformado. Tinha
Lutado por glórias, ouro,
E de mãos vazias vinha,
Anônimo e sem tesouro.
Queria agora somente
Uma cova funda e calma
Que acolhesse o corpo doente
E lhe libertasse a alma.
Lutado por glórias, ouro,
E de mãos vazias vinha,
Anônimo e sem tesouro.
Queria agora somente
Uma cova funda e calma
Que acolhesse o corpo doente
E lhe libertasse a alma.
domingo, 4 de abril de 2010
A felicidade não tem história
Neste domingo, lendo uma coletânea de memórias de Isabel Allende, A Soma dos Dias (editora Bertrand Brasil, tradução de Ernani Ssó), encontrei isto: "A felicidade é uma frescura; a gente vem ao mundo para sofrer e aprender." Essa frase poderia ser o resumo do livro, no qual Isabel narra uma sucessão de infortúnios familiares sem os quais ela admite, em determinado momento, que não teria sobre o que escrever. Já Balzac fazia observação semelhante e comentava que a felicidade não tem história. O objeto do conto, da novela e do romance, a matéria do contista, do novelista e do romancista são a luta, as tragédias, os sofrimentos, as vicissitudes dos protagonistas. No final, se vencerem todas as atribulações e transpuserem todos os obstáculos, eles ganharão do narrador não um novo livro no qual se contará a ventura que mereceram com seu estoicismo e seu esforço. Terão, no máximo, algo parecido com o que se lê no epílogo dos livros infantis: "foram para o castelo e viveram felizes para sempre". Assim, sem detalhes nem brilho.
sexta-feira, 2 de abril de 2010
Dalton Trevisan e o outro
J.D. Salinger, autor de O Apanhador no Campo de Centeio, livro que se tornou símbolo de uma geração, transformou-se por vontade própria em um homem recluso no momento de sua maior fama e glória. Imaginou-se, no início, que esse exílio autoimposto seria temporário e representaria não mais do que um golpe publicitário para, passando ao público a imagem de uma personalidade bizarra, Salinger multiplicar as vendas dos seus livros. Mas ele se manteve durante décadas afastado do mundo e de todas as tentativas de aproximação da mídia, até sua recente morte. Dalton Trevisan, conhecido como o Vampiro de Curitiba e considerado o maior escritor brasileiro vivo, seguiu trajetória similar. Isolou-se, fechou-se, matou-se para o mundo. Foram anos de isolamento e de falta de notícias. Há algumas semanas, um jornal publicou uma indignada manifestação de Dalton contra um escritor que, conseguindo romper o bloqueio, foi acolhido por ele, com ele conviveu e, iludindo sua confiança, deu a público inconfidências que levaram Dalton a execrar esse discípulo infiel com adjetivos dos quais o mais brando era traidor. Esse escritor que acendeu a ira de Dalton chama-se Miguel Sanches Neto, ganhou um prêmio nacional de contos com Hóspede Secreto e escreveu outros livros. De um deles, Herdando uma Biblioteca, cito uma frase que talvez sirva para começar a se compreender por que Dalton Trevisan ficou tão furioso. Falando sobre o decrescente uso da máquina de escrever, diz Miguel Sanches Neto: "Uns poucos escritores, como um Dalton Trevisan, um Luiz Vilela, um Antonio Candido, um Wilson Martins ou um Mino Carta, se mantêm fiéis a um objeto que representou tanto para o século XX." Informação adicional sobre Miguel Sanches Neto: ele ocupou uma coluna na revista Carta Capital; Mino Carta era diretor de redação da revista e sempre é citado como jornalista e artista plástico.