domingo, 31 de dezembro de 2017

Tédio

Até os últimos anos do século XX, morrer de amor era tão comum que nos atestados constava a expressão "causas naturais".

Últimas palavras

Sobre o morto se comenta, quem diria, que algumas horas antes estava fazendo gracinhas para aquela mulher bunduda, sabem?, é, aquela do traficante.

Audiência

Quem conta piadas num velório tem sempre em seu desfavor uma gargalhada a menos.

Estatística (para Henrique Fendrich)

Ainda está para nascer um morto que agrade a gregos e troianos.

Tudo (para Regina Helena Paiva Ramos)

Se não tivéssemos a tristeza, talvez nos faltasse o principal.

Diante dele

No começo, hesitaram. Agora ganharam confiança e, já não temendo represálias, relembram as mais ridículas cenas do morto e riem, afinal, libertos do tirano.

Ideal (para Gabriel Perissé)

Alcançar a beleza não deve ser o prêmio de uma atividade, mas um acaso como um arco-íris brotando sobre um conjunto habitacional paupérrimo, já no fim de uma dessas mesquinhas tardes paulistanas.

Hoje na Rubem

Junto mais alguns itens de minha dispersão.
https://rubem.wordpress.com/2017/12/31/uma-questao-de-simpatia-e-outras-raul-drewnick/

sábado, 30 de dezembro de 2017

Poeta, mas nem tanto (para Ludenbergue Góes)

Tenho vergonha de me dizer poeta e, quando me digo, me desdigo um minuto depois. Sou um poeta daqueles que antigamente se vendiam às grosas e às baciadas, ou enfiados como brinde nos bolsos da freguesia. Talvez tenha ainda, se tanto, algum valor sentimental. Às vezes alguém da Globo me procura atrás de informações para uma daquelas novelas das sete e me pergunta, aproveitando a gasolina, se por acaso não tenho um abajur de época ou um par de galochas.

Cotação de 30/12

Vou indo muito bem. Tenho água para mais um dia e me disseram que a casa da loira de unhas pontiagudas e mortais é logo ali.

Opostos

As pombas de Raimundo Correia parecem ter voltado aos pombais. O corvo de Edgar Allan Poe, nunca mais.

Predestinação

O bispo sardinha
pagou pelo nome
que tinha.

Autodesajuda

Alcança-se logo o fracasso.
Já o sucesso, ah,
Só passo após passo.

Enigma (para Silvana Guimarães)

Sei que a poesia morreu há muito tempo. Do que têm vivido esses senhores calvos que se proclamam poetas? Onde está Roberto Piva, que não nos vem chamar para a revolução das cabeleiras desgrenhadas e dos piolhos?

Altri tempi (para Angela Brasil)

A palavra democracia me traz saudade. É como um bonde na neblina.

No aniversário de Celina Portocarrero

Os poetas se esforçam para nos convencer de que podem melhorar uma flor ou apresentar uma versão aprimorada de passarinho. Alguns já conseguiram - aqueles dez cujos nomes reverenciamos.

Lápide de um rimador

Escrever teria sido
Talvez não a salvação,
Mas uma compensação,
Se eu houvesse conseguido.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Hipótese

Talvez tenhamos morrido
Num lugar longe, ignorado,
E, ninguém tendo sabido,
Não nos tenham avisado.

Nostalgia

Oh tempora, oh mores.
Os costumes naquela época
Eram muito melhores.

Ruína

Quanta ingratidão!
Hoje não há mais
Quem queira rimas em ão.

Virtude

Talvez a mais notável característica dos mortos seja a circunspecção.

Bom exemplo

No fim da vida, tocado pelo altruísmo, o concretista começou a construir poemas populares.

Na palma da mão


Só o poeta concretista sabe qual é a parte de cima e a parte de baixo de seus poemas.

Feiura

Há aqueles mortos tão mal-encarados que as moscas só se atrevem a pousar sobre eles depois da terceira hora.

Contra a etiqueta

O primeiro sinal de desrespeito dos mortos é nos receberem daquele jeito, deitadões.

Como foi

Não deu um ai na hora de morrer. Só as canelas estalaram, quando ele as esticou.

Os piores

Os santos são a mais presunçosa espécie de mortos.

Raciocínio lento

Tolo é quem ainda não percebeu que, se temos entranhas, mesmo que só no sentido figurado, é direito do amor devorá-las.

Vítimas

Pobres mortos, tão indefesos diante de nós, de nossa memória rancorosa e de nossa maldade.

Cotação do dia

Se eu me esmerar, talvez consiga ser reconhecido como um deles pelos mortos.

Recado

Os mortos devem estar querendo dar-nos algum exemplo. Que outro motivo teriam para há milênios estarem insistindo?

Nota baixa

Como é constrangedor, para certos mortos e para nós, compartilharmos a certeza de que não merecem nem um pouco aquela cerimônia toda.

Logradouros

Que pena dão esses homens
que precisaram morrer para
dar nome a ruas e avenidas.

Tim-tim por tim-tim

O poeta capitalista sabe que daqui a cem anos, quando lhe reconhecerem a genialidade, receberá tudo com juros e correção monetária.

Hic jacet

Não me desagradará morrer
se eu for um defunto assim
como os que têm lápide em latim.

Todos

Os poetas velhos querem passar a impressão de que conhecem todos os segredos da poesia. Os jovens, também.

Para espantar olho gordo

Se não quiser ser invejado e odiado, abra a janela e grite o que você é: escroto, puto, asqueroso. Pode ser que dê certo, mas não é improvável que você seja aplaudido - não por ironia do público, mas por pura afinidade.

Hoje no portal do Estadão

Um instante de ufanismo.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/yes-temos-doutores/

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Lembrança

Ela chamava meus poemas de versinhos
com aquela boca burrona
cheia de graciosos dentinhos.

Pé atrás

Alguns mortos nos convencem
já desde o primeiro momento;
outros, só depois do sepultamento.

Arquétipos (para Ana Farrah Baunilha)

Pobres musas do romantismo
condenadas pela tradição
à virgindade e ao ascetismo.

IPC

O poema concreto tem aumento
toda maldita vez que sobe
o preço do cimento.

Suspeição

Não perguntem a mim -
um morituro -
o que penso do futuro.

Questão de número (para o Ludenbergue Góes)

A folha de limeira
diz às demais:
quanto orgulho tenho
por nós sermos tão plurais.

Exemplo de gongorismo (para Inês Pedrosa e Xico Sá)

Vou tomar um puta banho.

Exemplo de eufemismo (para Inês Pedrosa e Xico Sá)

Vá mijar no mato.

O motivo

Se não olhamos para o sol, não é para preservar nossos lindos olhos: é para ele não se sentir diminuído em sua majestade.

Filantropia

De vez em quando, os velhos escritores fazem algo pela literatura: morrem e abrem, para os mais jovens, o espaço que presumem ter.

Catalogação

O chato é uma espécie de mosca com livre-arbítrio e cheia de más intenções.

Nem assim

Mesmo que tenhamos sido amigos de infância dele, nenhum de nós será desembaraçado o bastante para chegar a um morto e lhe dizer: que merda, hem, Ernesto?

Detalhe

A gravata borboleta no pescoço do morto provocou o comentário de um desses gaiatos que toda família tem: ele foi promovido a garçom?

Dois tipos

Se aos dezoito anos você descobre que nunca será Shakespeare, não se preocupe. Bem-vindo ao clube dos escritores fracassados. Se descobre só depois dos dezoito, talvez você pertença à classe dos que, com algum desdém, são chamados de lentos.

Oportunismo

Mesmo no velório, até o último minuto fica o receio de que o chato, aproveitando a circunstância de ser o protagonista, possa levantar-se e pedir licença para dizer duas ou três palavrinhas.

Colosso

O mais notável dos poemas concretistas
foi o que nos anos 1960 ocupou o quarteirão
da consolação com a paulista.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Significado

Se quiser saber o que o amor é
procure nos livros antigos
nas notinhas de rodapé.

Contabilidade

O poeta romântico
nunca esteve tão mal.
De todo seu absinto
não resta mais que um quinto
e o último dos cisnes
foi sua ceia de Natal.

Oração

E, quando ouvirmos a voz,
Se a merecermos e for
A cálida voz do amor,
Renasceremos de nós.

1/2

Quando chega a meia-idade
com ela vem a pergunta também:
como será a outra metade?

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Ali, ó, na lata

Pedi um dedo de prosa
E minha amada zangada
Nervosa me respondeu:
Não é você que queria
Poesia, apenas poesia?
Vá falar com os espondeus!

Pecados antigos (para Ana Martins Marques, Mariana Ianelli, Silvana Guimarães e Veronica Stigger)

Você é claro já notou
que aqueles com quem você
bebeu em tantos bares
e frequentou tantos lupanares
se você os encontra hoje
não têm tempo para
parar e conversar

Só você lembra que eles
agora homens de projeção
foram jovens e pensavam em tudo
menos na futura reputação

Você lhes fala dessa
ou daquela situação
e eles se desvencilham:
olhe eu não estava nessa
mas estivemos naquela missa
(ou era um comício?)
oficiada por dom evaristo

E você fica com a convicção
de que naqueles anos
sustentou sozinho
todos os bordéis
todos os hotéis
todos os botequinhos
todos os vícios paulistanos
na república na sé
na ipiranga e na são joão.

Entre tantas outras

A bondade em nós é quase sempre mais uma aparência do que uma convicção.

99% (para Silvana Guimarães)

Os sonetos - com exceção talvez de um por cento - são uma prova de que a pior poesia só se consegue com excepcional esforço.

Premeditação

Os poetas concretistas são frios como assassinos: para cada verso que fazem têm uma justificativa - às vezes até válida.

Cotação do dia

Não sei o que é mais forte: se o ódio que tenho por mim ou se a minha autoindulgência.

Por que não?

Se eu tivesse rido de mim quando devia, quando resolvi aos quinze anos tornar-me escritor, não precisaria estar passando por tanta vergonha até hoje.

Horários

Um chato pode chegar uma hora antes à festa para a qual não o convidamos ou quando já estivermos apagando as luzes da casa, mas não falta nunca.

Má sorte (para Rose Marinho Prado)

A roda já havia sido inventada quando surgiram os concretistas. Desta, como de algumas outras glórias, eles foram privados por haverem chegado um pouco tarde.

Infalível

Quando se quer desqualificar um poeta moderno, é fácil: é só apontar, em seus versos, aqueles indícios de amor que apesar de todo o esforço ficam.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Inferno

O sexo é aquela maldição que faz um homem morrer com sede de água salgada.

Mãos

Foi com o sexo
e suas variações
que ele melhor aprendeu
as noções de côncavo e convexo.

As perguntas

Depois de meses de convalescença, o velho um dia saiu à rua. Todos lhe disseram que, graças a Deus, ele parecia muito bem. Estar andando já era uma bênção. Por uns instantes ele sorriu, até que lhe veio uma antiga pergunta: andar para onde? Depois outra: e para quê?

Tríduo

Foi gênio por três dias.
Distraído como sempre,
Não chegou a perceber.

Assuntos reais

Os ingleses dos bons tempos não incorriam em banalidades. Viviam para matar-se, mas por tronos e coroas.

Porvir

Pensa nos filhos e começa a sentir pena. Que desculpas arranjarão para evitar vê-lo, quando estiver no asilo?

Happy end

Quando me afundei na miséria
corri para botar no prego
todas as chaves de ouro
do meu alter ego.

Menu

Ainda não foi este ano
que o espírito natalino
poupou os bovinos e os suínos.

De Ian McEwan

"As palavras, estou começando a entender, criam verdades."
(De Enclausurado, tradução de Jorio Dauster, Companhia das Letras.)

domingo, 24 de dezembro de 2017

In medio virtus

Sou um medíocre.
Muito antes do fim
Todos desistem de mim.

Convicção

Tenho certeza, não falho:
Foram os poetas concretistas
Que construíram a casa do Carvalho.

Talento

Qualquer concretista
mesmo o mais novinho
sabia fazer um puxadinho.

Estoque

Na minha despensa
se faltou alguma mercadoria
foi sempre a alegria.

Felicidade

O poeta concretista neste Natal
ganhou um milheiro de tijolos
e dois sacos de cal.

Anônimos

Cada um de nós sabe:
poeta sem padrinho
nunca faz milagre.

Fortuna alheia

Há quem regue suas árvores com urina e colha frutos de ouro.

Declaração

Que isto fique bem posto:
Quando ando comigo,
É sempre a contragosto.

Última cartada

Para despertar o rei
Entregue aos derradeiros estertores
Foram chamar os três tenores.


Corpo fechado

Os figurões concretistas
tentaram mas não conseguiram
estragar Paulo Leminski.

Bolsa (para Rose Marinho Prado)

Os poetas vão de mal a pior,
Porém os farsantes, ah,
Sempre melhor do que antes.

sábado, 23 de dezembro de 2017

Bilhete para os amigos

Não se preocupem comigo. Tenho só essa tristeza para cuidar. Acabo dando conta.

Ficha técnica

Sem esperança, e nenhuma
Noção do que é longe ou perto,
O amor será sempre só uma
Voz clamando no deserto.

Dando-se ares (para Rose Marinho Prado)

Minha tristeza desandou a ser sofisticada. Presume-se literária, a infeliz.

Caminho aberto

O farol se fecha, mas não é o morto o motorista, e o carro escuro, com a sirene desatada, passa.

Nota de rodapé

Quando louvo minha tristeza, não quero compartilhá-la com vocês. Tenho ciúme. Podem adulá-la, lisonjeá-la, mas não lhe deem flores. Deixem que eu faça isso.

Tarefa

Se não morri ainda, talvez seja porque me falta dizer algo sobre a tristeza.

Ainda hoje

Não aprendi a me expressar. Tive tempo, isso não me faltou. Os que primeiro passaram por mim cumpriram já sua jornada. Estão além, muito além do horizonte, e eu poderia comemorar com eles, ou ao menos cumprimentá-los, se tivessem me entendido e me levassem com eles. Por que não me entenderam? Sempre foram honestas minhas palavras, sempre estas que digo ainda hoje aos que, passando por mim, iniciam sua jornada.

Lição

Como toda vítima do amor, aprendi a queixar-me baixinho ou escandalosamente, conforme o desejo dele.

Campainha

Vocês não gostam da minha tristeza, eu sei. Vocês me dão o pão rapidamente pela fresta da porta e me aconselham a ir comê-lo tão longe quanto possa. Eu os respeito, como não respeitá-los? Vocês têm a superioridade da alegria.

Simonia

Continuo expondo minha tristeza na praça. Cada dia eu a deixo mais nua. Vejam, ela precisa de roupas, olhem como a fome se desenha em seus ossos. Meu chapéu se enche das moedas com as quais à noite, para traí-la, eu pago o vinho às marafonas.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Influências (para Danusia Curyl e Marcia Glogowski)

O passarinho mais pungente e sério de minha tristeza bebeu na fonte de Wislawa Szymborska e Chopin.

Raio X

Não tinha nenhuma razão para morrer - a não ser aquela doença ruim no fígado.

A lista

Tenho poucas coisas preciosas. Uma é a lista dos meus gatos, desde o primeiro. O último deles morreu hoje, atropelado como um cachorro. Quando digo o último, quero dizer isso: o último. Não me deixarei seduzir mais por eles. Podem arranhar a porta, miar, chorar. Arranhem, miem, chorem.

Contemporaneidade

Sou um poeta antenado com o meu tempo. Meu tempo é o final do século XIX.

Ofício

Desde o começo, quis escrever coisas bonitas. Meu único pecado foi achar que aquilo pudesse ser literatura.

Em vida

Chamem-me de tolo, de ingênuo, de sentimentalão, de escravo do amor. Exaltem minhas virtudes enquanto respiro ainda e posso agradecer-lhes.

Preconceito

Devo estar errado, mas vejo certa desfaçatez nos mortos de bigodinho.

Hoje no portal do Estadão

Um conto pré-natalino.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/coracao-de-manteiga/

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Divina Margaret (para Helena Russano Alemany, Lígia e Sílvia Bejar Sanches)

Quando leio Margaret Atwood, sinto-me tentado a mudar aquela frase de Buffon para "o estilo é a mulher".

Velha história

O amor foi criado como álibi pelos poetas românticos que chegavam de manhã em casa.

Vísceras

Depois que você conhece intimamente a falsidade dos seres humanos e sua pequenez moral, seu estômago revira-se quando você se vê obrigado a reconhecer que eles são seus semelhantes.

Injustiça

Por sempre ter dado pouca atenção e valor aos momentos felizes, custa-me acreditar que esteja  pagando tanto, hoje, por desfrutá-los.

Opção

Desde muito cedo fiz questão de não considerar a alegria um tema literário.

Beckettiana

Erro; logo insisto.

Mea culpa

Escrevo mal, não nego. Melhoro quando puder.

Efeito

A cremação tem sido responsável pelo aparecimento de fantasmas chamuscados.

Autoelogio

Venho morrendo com uma compenetração admirável.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Petra e Petruccia

O dono me encarregou de tomar conta de suas duas tartarugas, Petra e Petruccia. Era meio-dia. Foi tudo bem até as seis. Com a vinda da noite, devo ter me distraído um pouco porque, subitamente, vi só uma delas. A princípio pensei que fosse Petra. Mas, quando a chamei e ela não me atendeu, soube que era Petruccia. Fiquei atento a cada um dos seus movimentos até chegar seu dono, às oito.

Armageddon (para Vitor Guedes)

Sou o tipo de morto suburbano. No dia do Juízo Final serei despertado não por trombetas celestiais, mas pelo tonitruante caminhão da Cândida.

Tipo

Que magnífico é teu novo amado
bem melhor que o esperado
depois daqueles três sonsos
e daqueles outros três poltrões
de tirocínio limitado

Se me permites o reparo
seu maior defeito
são apenas dois: não ter
um fio de cabelo no cocuruto e parecer
ter uma peruca grisalha no peito.


Verso e anverso (para Silvana Appolinario)

Quando se trata de sentimentos, melhor ser vítima que algoz.

Gelo

Há quem não se enterneça com poesia, mesmo que ela brote dos lábios de um moribundo.

Pergunta

Confesse: não foi difícil matar-me.

Exibição

Antes da Semana de 22, os cisnes copulavam na Sé para produzir chaves de ouro.

Estação Vergueiro

Eu tinha ainda tantas  coisas doces a lhe dizer quando o metrô a arrebatou para levá-la aos braços de um homem de peito provavelmente cabeludo cujo conhecimento poético se resumia possivelmente à famosa batatinha esparramando-se pelo chão.

Memória (para Cecilia Thompson)

O Estadão, aquela epifania diária.

Característica

Escritor realista é o que não sacrifica à arte sua vida, mas só uma parte.

Prodígio (para Rose Marinho Prado)

O maior encanto de um poeta romântico está naquele pombo entusiástico que sempre sai do seu bolso quando ele finge precisar do lenço.

Cotação do dia

Não esmoreço, me esforço. Procuro ser tão morto quanto posso.

Intuições

Então, diante do hipocondríaco morto, começamos a nos lembrar de todas as ocasiões em que ele nos dizia  sentir-se próximo da morte - algumas delas há trinta anos ou trinta e cinco.

Detalhe

De quantos mortos ainda hoje se fala mal por causa do intragável cafezinho de garrafa térmica servido no velório.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Sina

Também no reino dos sinônimos
os últimos são e serão
sempre os derradeiros.

Uma pitada de Ian McEwan

"... o que há de patético na cena - um homem grande e de grande coração lutando por uma causa sem esperança com uma arma tão fora de moda como um soneto."
(De Enclausurado, tradução de Jorio Dauster, Companhia das Letras.)

Lançamento

Não é verdade que todas as pessoas hoje são infelizes. Um poeta de setenta e nove anos vai lançar um livro sob o otimista título de Os 480 melhores sonetos de Polonius Varsovianski.

Três linhas

Não sou um homem
trabalhador ou persistente,
apenas um poeta reincidente.

Coração (para Ana Farrah Baunilha)

Ela puxou a mão dele para o centro palpitante de suas coxas e disse aqui é meu coração. E ele soube que, ao contrário de todos, era um coração de seda.

Soneto do que pode um poeta (para Alfredo Aquino, Celina Portocarrero, Jiro Takahashi e Silvana Guimarães)

De um poeta nunca se sabe
O que se deve esperar.
Quem arriscar vai errar,
Um poeta em moldes não cabe.

Um poeta pode surgir,
Fazer um truque e depois
De fazer mais um ou dois
Dar-nos boa noite e sair.

Ou pode, estando em bom dia,
Esmerar-se na magia
E em três palavras dizer

Tudo, simplesmente tudo
Que a vida tem de conteúdo:
Viver, viver e viver.

Lago adentro

Os poetas antigos
convocavam suas frotas de cisnes
para as contrarrevoluções.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Frustração

Se sou um poeta romântico, não sou tanto quanto gostaria. Se me sacudo, não esparramo pó de  estrelas pelo chão.

De se lastimar

Há vinte anos eu era um tantinho mais passável. Perdi a chance de ser um defunto apresentável.

Soneto dos perdedores de sempre

Sabemos quanto nos custa
Toda batalha perdida,
Toda derrota sofrida,
Mesmo a que dizem ser justa.

Quem essa regra ditou
De que estamos destinados
A ser assim ultrajados?
Quem a isso nos condenou?

Desde o dia em que nascemos
Essa lição recebemos,
Querendo ou não receber.

Dão-nos instruções em vão.
Perdemos sempre, mas não
Aprendemos a perder.

Contabilidade

Senhora dos mil pecados,
Nenhum hoje me traz pena,
Somente aquela centena
De pecadilhos frustrados.

Autoanálise

Quando falo mal de  mim
Não me desmereço.
Simplesmente me reconheço.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Um punhadinho de Quintana
espalhado como se deve
ainda deixa Porto Alegre.

Apostila

A história se resume assim:
gosto da poesia
tremendamente, apaixonadamente -
mas ela nem tanto de mim.

"Corrina, Corrina", de Bob Dylan

"Corrina, Corrina
Menina, onde você estava esse tempo todo?
Corrina, Corrina
Menina,  onde você estava esse tempo todo?
Eu estava preocupado com você, amor
Amor, por favor volte pra casa

Eu tenho um passarinho que trina
Tenho um passarinho que canta
Tenho um passarinho que trina
Eu tenho um passarinho que canta
Mas eu não tenho Corrina
A vida não faz sentido

Corrina, Corrina
Menina, eu só penso em você
Corrina, Corrina
Menina, eu só penso em você
Eu estou com você na cabeça, amor
Eu simplesmente não consigo segurar o choro."
(De Bob Dylan - Letras (1961-1974), Companhia das Letras.)

domingo, 17 de dezembro de 2017

Imanência

Deixaste o teu cheiro
marcado como um pecado
no meu travesseiro.

Acidente (haicai para Jiro Takahashi)

Bebeu um gole de chuva
e (sem vê-la)
engoliu uma estrela.

Registro

Morrer por amor é um dos hábitos que só encontramos mencionados nos livros antigos.

Ato derradeiro

Para um dândi a humilhação fatal:
exibir no pescoço uma corda
como gravata final.

Correspondências

A todo grande homem uma glória grande
A todo suicida sucesso no final da vida
A todo prepúcio uma glande.

Trajetória

Aos poucos nós fomos
piorando - e e pioramos até chegar
ao que hoje somos.

Cotação do dia

Não sou ainda
um morto perfeito
mas já levo certo jeito.

Tempero

Ao amor às vezes
não cai mal
ser um tantinho imoral.

Festa

No nosso aniversário
o chato ausente
é o nosso melhor presente.

Processo civilizatório

Apesar de toda minha evolução
ainda não consegui superar
meus defeitos de fabricação.

Melhor se pior (para Rose Marinho Prado)

Sou daquela espécie de homens que transformam um transtornozinho qualquer em calamidade, para se dizerem poetas e começarem a medir versos com seus dedos decassilábicos.

Hoje, na revista Rubem,

ofereço alguns biscoitos, alguns talvez crocantes.
https://rubem.wordpress.com/2017/12/17/soltinhos-e-talvez-crocantes-raul-drewnick/

Uma frase de Alfredo Aquino

"Um lugar verdadeiramente perigoso, como se fora o Paraíso perdido, depois do desvio primordial."
(Do romance Carassotaque, Edições Ardotempo.)

sábado, 16 de dezembro de 2017

Odisseia à moda da casa (para Silvana Guimarães)

Em meio às tempestades
aos desastres e às vicissitudes
munido de loquazes falsidades
de parcas virtudes
e de meias-verdades
busquei meu porto

Errando por um roteiro torto -
tudo era sempre um pouco abaixo
ou um tanto mais acima -
cheguei no fim ao porto
mas por força da rima
quando cheguei estava morto.

No limite (para Alfredo Aquino)

O maior feito que pode alcançar
um poeta de setenta
é chegar aos oitenta.

Antiguidades

Arrastar um bonde por amor, beber leite com groselha ou dançar boleros de rosto colado são coisas que você não pode dizer ter feito se não tiver provas.

De Mariana Ianelli

"Cuidado, muito cuidado, abra o olho, não seja bobo, não vá dando assim de graça confiança, não se exponha a esse ponto. Se até um poeta já disse que a ingenuidade é louca."
(Da crônica "De pé no boulevard das misérias", do livro Entre imagens para guardar, Edições ardotempo.)

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Desonestidade

Em tudo venho ostentando a minha tristeza, como se fosse uma glória. Se for, é a única e a maior que tenho.

CV

Quem há de dar-nos valor?
Em tudo nós fracassamos
E em nada nos destacamos,
Nem na tosca arte do amor.

Hoje no portal do Estadão

Falo de um desses homens tão bons que é difícil acreditar que existam mesmo.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/um-bom-sujeito/

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Proeza

Equiparar flores a ti
seria uma proeza
para aqueles poetas antigos
que sabiam lidar com coisas
como magnificência e beleza.

"Sopra no vento", de Bob Dylan

"Quantos caminhos há de um homem percorrer
Antes de se dizer que ele é um homem?
Sim, e quantos mares há de uma pomba branca navegar
Antes de adormecer nas areias?
Sim, e quantas vezes voarão as bolas de canhão
Antes de serem proibidas pra sempre?
A resposta, meu amigo, sopra no vento
A resposta sopra no vento.

Quantos anos há de uma montanha existir
Antes de ser levada pelo mar?
Sim, e quantos anos pode um homem existir
Antes do direito de ser livre?
Sim, e quantas vezes pode um homem virar a cabeça
E fingir que simplesmente não enxerga?
A resposta, meu amigo sopra no vento
A resposta sopra no vento.

Quantas vezes há de um homem erguer os olhos
Antes de poder ver o céu?
Sim, e quantos ouvidos há de um só homem ter
Antes de poder ouvir os gritos?
Sim, e quantas mortes há de haver antes de ele saber
Que gente demais já morreu?
A resposta, meu amigo, sopra no vento
A resposta sopra no vento."

(De Bob Dylan - Letras (1961-1974), tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

O melhor

A maior inveja que nos causam os poetas é a presumida intimidade com mulheres, centenas, que ao vê-los se põem a dar gritinhos de ai, ai, ai, milhares, e a beijá-los antes, durante e depois de cada um deles.

Bons sujeitos (para Rose Marinho Prado)

Há defuntos que, como certos vivos, são incapazes de matar uma mosca

O defunto (para Rose Marinho Prado)

O defunto é um personagem intransitivo.

Cotação do dia

Sinto-me como uma mancha sobre o tapete que pode ser mencionada como um desmentido à reputação de zelo da dona de uma quadricentenária mansão.

Arrependimento

Você poderia ter sido tão mais tolo, tão mais piegas. Ah, nunca mais!

Destinatário

Chorar por um poeta não melhora ninguém além do próprio poeta.

Fração ideal

Não seria mau os poetas terem ao menos um décimo do misticismo que os leitores lhes atribuem.

Estatística (para Raul Drewnick)

Certos poetas têm apenas algum talento. Outros, nem isso.

Conselho talvez útil

A quem já não suporta viagens compridas, recomenda-se que não morra longe do cemitério.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Assim

A melhor forma de se expressar que os advérbios de modo têm é adverbialmente.

Fobia

Substantivos coletivos costumam causar arrepios em adjetivos que têm pavor de aglomerações.

Assim (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

As vírgulas às vezes atuam em nós como certas mulheres: nos fazem perder o fôlego.

Ainda

Estou aqui continuo aqui
onde há tantos anos um dia
você me viu com a minha melancolia.

Falha minha

Se você encontrar em mim alguma alegria, será por um descuido meu.

Condição

Tudo bem, pode me levar para a cama. Mas antes me diga algumas palavras românticas. As melhores que você souber.

Diálogo literário

"E então, como vão os livros?"
"Mal. Vendendo cada vez menos."
"Precisa descobrir qual é o problema."
"Isso eu já sei. São os leitores."

Prazo de validade

Sou um homem todo vencido.
Já não funcionam bem
Nem meu coração nem a libido.

Haicai para os jovens

Se vocês querem um lugar ao sol
larguem tudo que vocês estão fazendo
e vão para uma escolinha de futebol.

Desculpas

Que me perdoem todos aqueles com quem eu possa ter sido falso. Devem ter sido, muitas vezes, tentativas do bisonho poeta para esconder os defeitos do homem.

Basta (para Angela Brasil)

Chamar alguém de musa está dia a dia mais constrangedor. Nem os poetas têm mais o direito de ser assim ultrapassados.

Fama

Se eu estivesse um pouquinho mais morto, teria chance de entrar no Guinness.

3x4

Se você dissesse que me ama e eu tivesse trinta anos, como nesta foto, talvez eu acreditasse.

Ego

Nos dias nos quais a presunção me toma, acho que estou plagiando Shakespeare.

No início

Alma era só uma palavra que inventamos.
Gostamos dela e passamos
A achar que tínhamos uma.

No dia

No dia, você estará de olhos fechados e não notará a pobreza melancólica das flores nem a ausência dos amigos.

ABNT (para Rose Marinho Prado)

Um poema concreto
há de ser sólido
do piso até o teto.

Receita médica

Só com um remedinho agora eu
posso me aninhar
nos braços de Morfeu.

Não mais

Foi-se o tempo em que podíamos falar com os nossos botões. Hoje eles não querem saber de conversa.

Enfim

Teria sido tão simples eu me calar. Tanto tempo perdido. Calo-me agora.

Oi, pessoal

Eu poderia estar roubando, importunando, molestando. No entanto, o que faço? Escondo-me em casa e me mortifico. Queixo-me de tudo e anseio ser mártir, me crucifico. Grito. Grito. Ninguém acredita em mim.

Privações

Pobres mortos: nunca mais o amor, as aflições, a melancolia.

Virtude

Pode-se acusar um morto de quase tudo. Dificilmente de desdém.

Papel

Pode não ser o caso, mas um morto sempre parece estar sabendo muito bem o que faz.

Detalhe

Não sei, acho que as flores não estão combinando com a gravata - diz a mulher do morto à filha.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Projeto (para Alfredo Aquino)

Pretendo morrer poeticamente, quando descobrir como.

Decisão

As licenças poéticas deveriam ser concedidas por uma comissão da qual participassem uma borboleta, um beija-flor e um bem-te-vi.

Preferência

De todas, a que eu mais admiro é a associação de ideias.

Os tolos (para Ana Martins Marques, Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)

Os poetas que todos fomos
Morreram sem uma missa.
Fomos tolos, ainda somos,
Cremos ainda na justiça.

Viagem

Estou pronto para morrer. Pastas em ordem, tudo. A única dúvida são os sapatos.

Empurrãozinho

Morrer é uma atitude que a vida toma por nós.
Morrer deveria ter como causa, sempre, um sentimento nobre. O amor, por exemplo.

Marketing

Morrer é uma oportunidade única.

A poesia (para Maria Alice Prata)

A poesia ainda acende em mim, de vez em quando, uma luz, tão baça, tão envergonhada, tão coitadinha.

Cotação do dia

Venho morrendo com regularidade.

A que tenho

Resta-me a esperança
de ser um morto
que não assuste criança.

Final apoteótico

Lamentável é a oratória dos dias finais. Quem a vida toda foi para ali e para acolá começa a dizer que vai partir para o além,

Pelo menos isso

Uma coisa decente que posso dizer de mim: eu nunca seria meu ídolo.

Compensação

Os poetas sem talento deveriam ser compensados com uma tristeza especial.

Mea culpa

Tenho exibido minha tristeza
como se fosse uma cotidiana
uma costumeira uma rameira qualquer.

O significado

De uns tempos para cá, venho entendendo melhor aquela história de que o essencial é o primeiro passo. Sempre que vou subir uma escada, acho improváveis o segundo, o terceiro e os demais.

Ativismo

Estamos numa época de reivindicar direitos. Eu mesmo, pela idade que tenho, deveria contentar-me em respirar, mas vivo me queixando e pensando em petições e requerimentos.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Recidiva (para Rose Marinho Prado)

Na aurora da minha vida
Eu quis ser poeta.
Às vezes tenho uma recaída.

Melindre

Diga que sou
isto isso aquilo
mas nunca fale mal
do meu estilo.

Inaceitável

A velhice alheia eu não sei.
A minha não fica bem
Nem com roupa nem sem.

Ali, ó

Os cinquenta minutos de um mentiroso são sempre marcadinhos no relógio.

Argh

A palavra genitália é de esfriar qualquer ereção.

Assim (para Ana Farrah Baunilha)

Se pronunciada pelos lábios certos e com a umidade exata, a palavra amor dá à brisa a mornidão que faz escorrer seiva entre as pernas das árvores.

De pecados

Acho simpáticos
Os pecados veniais.
Mas prefiro os geniais.

Paisagem (para Celina Portocarrero e Jiro Takahashi)

As árvores acalentam nas folhas a brisa, a lua cochila, o lago dorme. O silêncio prepara um haicai.

Aos borbotões

Escritores detalhistas são aqueles que não conseguem fazer um romance com menos de quatrocentas páginas.

O tipo

Os pensadores antigos convenciam mais, principalmente os ingleses que usavam cachimbo.

Só o verbo

Bem, mal ou mediocremente, continuo a escrever. Podem advérbios influenciar quem julga fazer o que lhe cabe?

Velório

Ao morto e às flores, no seu peito, não importaria sair para beber a chuva que começa com uma trovoada que põe medo no rosto dos vivos.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Ali mesmo

Eu estarei no metrô, como se fosse aquele dia tão distante e ainda houvesse esperança. Se me achares meio morto, não será uma falsa impressão.

A carne

Quem disse que a carne é fraca? Os que lidam com ela, no Brasil, andam tão em alta que passaram de magarefes a megarefes.

La verité (para Luiz Carlos Cardoso, Oswaldo Mendes e Regina Helena Paiva Ramos)

Falo isto com todos os efes:
Certos poetas parecem magarefes.
Escrevem coisas profundas,
Mas só pensam em coxas, peitos e bundas.

Elixir

Os poetas oficiais
vivem todos
cem anos ou mais.

Prodigalidade (para Silvana Guimarães)

Ainda escrevo. Por que não?
Não vou levar para o túmulo
Meu formidável acúmulo
De rimas em inho e ão.

Obra (para Rose Marinho Prado)

O poema concretista ficou melhor depois da segunda reforma.

Hem?

E aquele chato que diz ter lido Proust e achou aquela procura toda uma perda de tempo?

História

A espécie dos chatos é mais ou menos recente. Não há menção a ela, por exemplo, entre as sete pragas do Egito.

Sáfaro (para Priscylla Mariuszka Moskevitch)

Amor que dá certo não dá poesia.

Burocracia (para Silvana Guimarães)

No balcão poético
o parnasiano pede segunda via
frente e verso
de sua cotovia.

Harmonia

Estou muito bem. Morto
De fato, de direito, de corpo
E de alma também.

Razão de viver (para Celina Portocarrero e Silvana Guimarães)

Ainda escrevo. Por que não?
Não vou levar para o túmulo
Meu formidável acúmulo
De rimas em inho e ão.

Hoje no portal do Estadão

http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/o-4734-rumo-ao-ponto-final/

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Síntese

Tudo que não me fale artisticamente não me diz nada.

Harmonia

Estou muito bem. Morto
De fato, de direito, de corpo
E de alma também.

Prerrogativa

Um morto pelo menos
não está mais sujeito
a ser devolvido por defeito.

Pronúncia (para Rose Marinho Prado)

A mulher se mata
para ser Cleópatra
e um apedeuta vem
e a chama de Cleopatra.

Vingança

Ficarmos velhos é a mais eficaz de nossas represálias contra o menino que nos contaminou com tantos sonhos.

Sed

Estou no fim,
Fodido e malpago,
Mas conservo meu latim:
Delenda est Cartago.

Etapas

Viver é fácil. Conviver, uma utopia.

Pecado

Meu pecado não foi a cobiça, a inveja, a luxúria. Foi o mau exercício da literatura.

A chance

Se você nunca amou loucamente, perdeu a única oportunidade que a vida nos dá de sermos tolos por um bom motivo.

Fotogenia

Boas fotos são as em que apareço no fundo, quase conseguindo me esconder. As melhores são aquelas nas quais consegui.
Se fiz algo apreciável, está aqui, neste pedaço de terra que venho regando com lágrimas presumivelmente honestas. A Morte não é uma boa crítica literária, porque desde 2010 tem permitido esta tola atividade diária. Hoje ou amanhã atingirei 30 mil textos plantados aqui e, como alguns são transcrições de pecados pretensamente poéticos cometidos na juventude, posso dizer que neste blog está a minha vida inteira. Apesar de minha fama de casmurro, e até de misantropo, agradeço aos que me visitaram nestes oito anos. A casa continuará aberta enquanto eu tiver, ainda que dia a dia mais fraca, a esperança de que nasci para juntar palavras.

Cotação do dia

Você é lento, convenhamos, mas um dia acaba descobrindo que seu tempo de morrer, assim como o de viver, há muito já passou.

Rede social

O gramático afamado
quer tirar selfie
com um sujeito indeterminado.

Perdedor

No campeonato da velhice
eu também fracassei:
fui vice.

Sofá (para Aden Leonardo, Arlene Colucci, Arlete Franco e Tuca Kors)

Eu gostaria de ser um gato meio gorducho que só precisasse dividir o sofá com a dona da casa, uma loira que, se gatos falassem, eu chamaria de majestosa.

Mito (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Não é verdade que coceira
Seja sinal de poesia.
Mas bem que poderia.

Lógica

Senão vejamos:
se viver é escrever,
escrevamos.

Ela e eu (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)

Perguntam-me como vai a literatura. Acredito que vá bem. Quem está mal sou eu.

Versão impressa

Gosto de mim por escrito.

Bela adormecida

Nunca falhou.
Mal o noturno de Chopin começava,
Ela cochilava.

Ser (para Celina Portocarrero)

Viver, nem tanto.
Escrever ou não,
Eis a questão.

Como ontem (para Vera Helena Saad Rossi)

Não tenho nada a dizer.
A falha não vem de agora.
Foi assim, também, outrora.
Só custei a compreender.

Quando necessário

Falo ainda de borboletas e de flores, quando noto que começam a não me achar tão poeta quanto me proclamo.

Requisitos

houve tempo em que o amor exigia dos súditos um coração sensível. Hoje dispensa a sensibilidade e, dependendo da conversa, dispensa também o coração.

Em cena (para Amauri Ernani, Paula Giannini e Veronica Stigger)

Em um, em dois ou três atos,
Viver é um teatro.
Morrer é ter atuado.

Resignação

Venho me adaptando bem. Já não falo fase da vida. Digo fase, só.

Lembrança

Lembro-me dela com aflição. Acho, hoje, que me faltou entender alguma coisa, talvez tudo. Pode ser falsa aquela impressão de que eu era um lacaio submetido ao jugo do amor. Pode ser que eu tenha sido mais do que isso. Já não importa. Foi como foi.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Estirpe

Diga-se, em honra dos cachorros que ela toda manhã leva para passear: nunca vi um deles regando um poste. São todos fêmeas.

A razão

Por que eu caí fora? Ora essa,
Ponham-se na minha pele.
Eu falava de Machado, Eça,
Ela falava de Zoë Heller.

Chato autoral

Devia ser horrível
aturar Pasolini:
quando não falava de Marx
falava de Mussolini.

Em cena (para Amauri Ernani, Paula Giannini e Veronica Stigger)

Em um, dois ou três atos,
Viver é um teatro.
Morrer é ter atuado.

Senilidade

Venho me adaptando bem.
Já não falo fase da vida.
Digo fase, só.

Logo de cara

O chato já começa a nos irritar quando diz que seu problema é não ter problema nenhum.

Datas (para Celso Unzelte)

Sr. Ademir, o futebol não começou em 1990. Foi em 1910.

Lembrança talvez triste

Eu a conheci tarde,
Ela já não ouvia rock.
Estava na fase do baião
E do que mais se gabava
Era do nhoque com parmesão
Que com paixão preparava.

Inferno (para Celina Portocarrero)

Homem de papel
se tivesses dez almas
trocarias onze pelo nobel.

Resumo (para Mariana Ianelli, Paula Giannini, Silvana Guimarães e Veronica Stigger)

Quisemos demais.
Não fomos deuses nem somos,
Apenas mortais.
Fizemos o que pudemos.
Os deuses fariam mais.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

E se...

E se o chato que vive dizendo que só quer nos ajudar aparecer no momento em que estivermos subindo na mesa e ajeitando a corda no pescoço?

Tanca asinino

Entre ser e não
Se bate, move e debate
A minha razão.
Sou burro, sou mulo ou muar?
Eu zurro ou devo ornejar?

Melhor

Morrer de escrever é melhor que morrer de amor. Às vezes a família ganha uns trocados, depois de mexer nos arquivos e encontrar (quem diria) aquelas pornografias.

Tanca (para Celina Portocarrero e Jiro Takahashi)

Que nunca voltemos
A estar no mesmo lugar
No qual nos perdemos.
Estamos tão bem assim.
Que fim melhor almejamos?

Nós não

Que nunca venham a pensar de nós o que pensamos sempre dos chatos.

Novidades parisienses

Que atencioso é o chato que todo dezembro vai a Paris e, quando volta, sempre marca um almoço, naturalmente em nossa casa, para mostrar em fotos como vem mudando a torre Eiffel.

Missão (para Celina Portocarrero, Inês Pedrosa e Marisa Lajolo)

Enquanto não se tornam
clássicos os modernistas,
aturemos os vanguardistas.

Bênção

Os chatos agem por intuição e instinto. Se fossem premeditados, Jesus!

Previsão meteorológica

Se um chato abre o guarda-chuva dentro do cinema, pode-se esperar água - ou na plateia ou no filme.

Império (para Rose Marinho Prado)

O concretista ambiciona fazer um poema monumental, sobre o qual o sol nunca se ponha.

Passadismo

Chatos costumam ser saudosistas. A maioria deles ainda conta as piadas de papagaio que ouvíamos na infância.

Viagem (para Paula Giannini, Vera Helena Saad Rossi e Veronica Stigger)

Se eu fosse um personagem de Joseph Conrad, entraria num navio e no meio do oceano daria um jeito de saltar para dentro das ondas numa noite em que não houvesse nenhuma possibilidade de um tripulante ou passageiro se exibir gritando humanitariamente homem ao mar.

99,99% (para Raul Drewnick)

Um escritor, quando dá para ser chato, é completo, em prosa e verso.

Índice

Os chatos são  como o dólar. Sua cotação muda diariamente, sempre para pior.

Pelo bem do povo

Um governo realmente sério deveria conceder adicional de insalubridade aos que são obrigados a lidar com chatos.

"Acalanto", de Yoji Fujyama

"Dorme tranquila...
Nada ouças a não ser
o passo macio do sono.
Fala mansamente à estrela
que chega e entrepara
junto do travesseiro.
Não a surpreendas com olhar
mesmo de esguelha.
Deixa que te fite e beije
curvando-se, no rosto.
Se te comoves e choras,
não importa. És jovem, te compreendo.
Um dia te lembrarás
tristemente, mas então
não saberás mais chorar.
Dorme tranquila, agora."
(Clube de Poesia.)

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Ingratidão

Nunca nos lembramos de agradecer àquele amigo chato que, toda vez que lhe apresentamos o esboço de cada um dos nossos malsucedidos projetos, nos avisa: "Vai dar merda."

Ainda que pouco (para Silvia Galant François)

Se eu pudesse ter
ainda que só um bocadinho
daquilo que em Mario Quintana
havia tanto de passarinho.

Entrões (para Rose Marinho Prado)

Conforme vão se habituando à casa, fantasmas chatos começam a abusar e aparecem quando bem entendem, até no café da manhã, e pedem ovos com bacon.

Carinho

Os parnasianos alimentavam seus cisnes só com água de nuvens cor-de-rosa e farelos de ambrosia.

Modéstia (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)

Na sua hora de morrer
diga palavras fáceis.
Deixe a retórica para os narradores
que falarão de você amanhã
se não quiser ser um morto
desses que por sua presunção
não merecem um verso
uma metáfora ou um chavão.

A casa (para Ana Martins Marques e Silvana Guimarães)

Chamemos o Amor novamente.
Talvez seja essa a casa
Que vimos buscando milenarmente
E um de seus lacaios
Venha à porta com o uniforme
Que nos agradaria tanto vestir
E nos diga que sim, que
Nosso senhor está presente
E nos pergunte afinal por que
Chegamos tão tardiamente.

"Orfeu", de Yoji Fujyama

"A lira soa: Orfeu canta.
Animais despertam como
se os tangesse a madrugada
e se entreolham, levitados.
As brisas de primavera
ainda dormem nas grutas
mas sorriem as ramagens
e entre elas, flores raras.
Até as fontes se calam
sob o musgo amanhecido.
Porém, homens e mulheres
cultivam seus desesperos
e ócios. Só Orfeu trabalha
a contínua solidão."
(Clube de Poesia.)

domingo, 3 de dezembro de 2017

Dois em um

Por ser imenso meu amor, eu tenho dois corações passionais: um é alucinado pelo Corinthians, o outro é ainda mais.

Oito ou oitenta

Os frasistas estão obrigados a ser geniais. A reputação dos que não são é idêntica à dos decifradores de palavras cruzadas.

Agenda

Mesmo quando não sabemos, os chatos têm encontro marcado conosco.

Unilateral

Um chato sempre está onde nunca deveríamos estar.

Cotação do dia

Talvez por ser domingo, acordei com um pensamento intoleravelmente otimista: pode ser que eu seja um pouco menos insignificante do que imagino.

Tal qual

A esperança, como a internet, é para os jovens. Os velhos não sabem lidar com ela.

Diversidade (para o Xico Sá)

Os chatos não torcem para os gregos e torcem contra os troianos.

Contra os chatos só há uma solução: o tribunal de Haia.

O prazer

O prazer dos chatos está em reincidir.

Pretexto

Tantos anos, tantas décadas, e você ainda não arranjou desculpa melhor para a sua infelicidade? Ninguém sabe o que é literatura.

Sócios

Os chatos teriam parte com o Diabo, se o Diabo os aturasse.

Vezes cem

Se um chato nos faz cem visitas, precisamos lhe explicar cem vezes que nosso gato se chama Ludwig em homenagem a Beethoven e cem vezes quem foi Beethoven.

O que é (para Paula Giannini e Veronica Stigger)

Escrever não é só escrever. Mas também não é muito mais do que isso.

Onisciência

Perguntar a um chato se conhece determinado assunto é cometer a gafe de desconhecer que ele conhece todos.

Naturalmente

É de um chato, naturalmente, a voz que no meio da festa pergunta: "João, você sarou das hemorroidas?"

Hoje na Rubem

https://rubem.wordpress.com/2017/12/03/o-joio-que-sobrou-do-trigo-raul-drewnick/

sábado, 2 de dezembro de 2017

Impressão

Receias morrer? Esquece.
Não te habituaste a viver?
Morrer talvez possa ser
Mais fácil do que parece.

Declaração (para Inês Pedrosa)

Minhas vitórias não nego.
As derrotas são
do meu alter ego.

Lembrete

Se você é do tipo que morre fácil, evite contato com o amor.

Pecado

A verborragia é a gula do escritor.

Talião

Um chato ativa em nós o mais agudo sentimento de legítima defesa.

100%

O chato é um daqueles tipos que estão sempre no seu dia de inspiração máxima.

Compensação

Um chato pode não ter dinheiro, mas tempo nunca lhe falta.

Passo a passo

Um chato nunca passa pela nossa vida com a rapidez necessária.

Flagelo

Os chatos vivem ameaçando o mundo com autobiografias.

Modernismos

Com a internet e tudo mais, já não temos tanto prazer com o exílio de certos chatos.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

De Lima Barreto, sobre a literatura

"O fim da minha vida é as letras. Eu não peço delas, senão o que elas me podem dar: Glória."
(Do livro Triste visionário, de Lilia Moritz Schwarcz, Companhia das Letras.)

Resumo

Tive uma vida longa para uma arte curta demais.

Da turma

Se um homem para diante de uma árvore e se põe a olhar para cima, ela e os passarinhos não têm dúvida: é mais um dos poetas do bairro.

Observador

O chato está sempre disposto a reconhecer os erros alheios e a apontá-los - de preferência em público.

Briga doméstica

A bem-te-vi para o companheiro infiel: "... e nem mais um pio..."

Lacuna

O que os chatos nunca vão ter, nem querem, é poder de síntese.

Modo de distinguir (para Silvana Guimarães)

O poeta chato tem sempre um cisne a mais no soneto.

Tradição

Os chatos antigos gritam ainda ó de casa.

Questão de direito

Os direitos dos chatos deveriam terminar onde nossa aporrinhação começa a espumar de raiva.

Critério

Um modo honesto de escolher os melhores chatos ainda é o da antiguidade.

Hipótese

Os chatos têm ocupado tanto meu tempo que eu já deveria estar refletindo sobre a hipótese de haver entre mim e eles cartas afinidades.

Norma

Um chato é um chato, até mil duzentas e noventa e sete provas em contrário.

Personalidade

Um chato seguro de si já nem nos avisa quando vai começar a cantar aquelas músicas do Roberto Carlos.

Modéstia

A modéstia impede alguns chatos de assim se reconhecerem, embora lhes asseguremos todo dia, com nosso rosto contrariado, que são, sim, e como!

Ressalva

Alguns chatos são até bons pais de família e têm filhos adoráveis.

Recurso

Se, tendo escrito uma frase que lhe pareça filosófica, ela for recebida com indiferença, diga que ela é de Confúcio e depois me conte.

Autoajuda

Que toda jornada, mesmo a mais longa, começa com o primeiro passo e termina com o último é um dos ensinamentos que eu teria aprendido com a autoajuda, se não o houvesse aprendido antes.

Detalhe

A surpresa não é o defunto estar deitado; é a ausência de cama na cena.

Hoje no portal do Estadão

http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/ainda-meu-vila-morais/