quinta-feira, 31 de maio de 2018
Lógica
Se um gato estiver no pior sofá da casa, não o lastime. O que você entende de gatos e de sofás?
Fim
Sou como aqueles palhaços velhos cujo único público são os netos,que os aplaudem porque aprenderam que a compaixão não precisa ir socorrer órfãos na Índia, tendo a família por perto.
Técnicas orientais
Na terceira ou quarta vez, a condessa me disse, como se estivesse me contando que gostava de ravióli, que conhecia técnicas de beijo orientais. Mas nunca, nas outras tantas ocasiões em que depois voltamos a trair o conde, recebi dela mais do que aqueles beijos que uma condessa fria concede, por desfastio, a um lacaio não especialmente sedutor.
quarta-feira, 30 de maio de 2018
terça-feira, 29 de maio de 2018
Crestomatia
Se eu resolver publicar um livro de poemas, seu nome será Crestomatia. Não venderei vinte exemplares, mas será um fracasso justificado, a começar pelo título.
segunda-feira, 28 de maio de 2018
Valsa (para Silvana Guimarães)
Meus queridos meus primores
canta e dança o poeta octogenário
com seus sonetos sensabores.
canta e dança o poeta octogenário
com seus sonetos sensabores.
Armageddon
Que até o Dia do Juízo Final
Minha memória já tenha conseguido
Livrar-se ao menos do principal.
Minha memória já tenha conseguido
Livrar-se ao menos do principal.
Tarde demais
Aprendeu hábitos saudáveis aos setenta e sete anos. Precisou abandoná-los aos setenta e nove.
O essencial
Esperanças eu tenho uma porção, todas mortas, na gaveta. Só preciso de um razoável final para a minha velhice.
Classificado (para Rose Marinho Prado)
Vendo poema concretista
por dez parcelas de dez
ou noventa reais a vista.
por dez parcelas de dez
ou noventa reais a vista.
domingo, 27 de maio de 2018
Cotação do dia
Devo confessar, não sou o mesmo. Já não sofro com a mesma convicção. O tempo é cruel com os nossos ideais.
Avenida
Um bem-te-vi automático
desses de repetição
me alvejou desde o primeiro
até o derradeiro quarteirão.
desses de repetição
me alvejou desde o primeiro
até o derradeiro quarteirão.
Na embalagem (para Ana Farrah Baunilha)
Me consumam logo por favor.
Sou mais perecível
Que uma jura de amor.
Sou mais perecível
Que uma jura de amor.
Culpa
Há sempre um morto que nos desperta um remorso especial, quando nos lembramos de lhe ter dado, no seu último dia, menos atenção do que à viúva, tão impecavelmente bela toda vez que vinha com a bandeja e o café.
Aspiração
Continuo com a pretensão de ser poeta, mas o que mais apreciaria, mesmo, seria sentir-me um pouquinho menos longevo.
Perfeição
Alguns mortos têm um rosto tão familiar e tão típico que acabam dando a impressão de que os vimos em outros velórios, no mesmo papel de protagonistas.
Escala
Escrever todos os dias foi no começo um compromisso e, em seguida, uma obsessão. Tantas décadas depois, é uma tolice.
Celebridades (para Silvana Guimarães)
Ter um sonetista na família é tão desonroso quanto ter um ladrão de gado, mas bem menos vantajoso.
sábado, 26 de maio de 2018
Pose
Presumir-se escritor pode não melhorar os textos de alguém, mas suas fotos passam a ser bem mais imponentes.
sexta-feira, 25 de maio de 2018
Pragmatismo
Mulheres que dez anos depois continuam chorando a morte de maridos escritores são invenção de biógrafos. Qualquer uma hoje, já no primeiro dia de viuvez, está cuidando da fundação homônima.
Antes e depois (para Silvana Guimarães)
Antes dos primeiros quinhentos mil exemplares vendidos, o escritor precisa ter uma opinião sobre a arte. Depois, os entrevistadores só querem saber o que ele pensa de seus gatos, seus carros e suas mulheres.
Hábito
Extraiu tanto de sua tristeza, explorou-a tanto que hoje ela é como o nariz postiço que o velho palhaço põe antes de entrar em cena: um objeto que às vezes ele mesmo se pergunta para que serve.
Similaridade
Um poeta só difere dos mendigos que vão às esquinas expor as pernas por uma sofisticação que os faz acreditar que a caridade possa estar atenta também às chagas da alma.
Artimanhas
Descobri, e com atraso, que sou só um ser sensível que tentou aproveitar-se disso para se exibir como um ser especial, usando os mais rasteiros truques poéticos.
Cotação do dia
Nem mais o legítimo rancor dos perdedores me anima. Renunciei a tudo, e foi mais fácil do que eu supunha. Ideais? Foi só o nome que dei a ninharias que hoje me envergonho de ter cultivado. Deus! Que ridículo tenho sido todo esse tempo.
Último engano
A viúva aproxima-se: "Escolhi mal o terno. Desculpe, João. Acho que à noite você vai sentir frio."
Cotação do dia
Tenho consciência de que, quando digo ser tolo, há nisso certa astúcia, quase uma desonestidade. Não gosto disso. Seria bom dizer que sou tolo sem provocar suspeitas.
Forma e essência
Num poema, todas as palavras devem estar no seu apogeu, como se fosse a última oportunidade que tivessem de servir à beleza. E, mesmo assim, há de ficar a impressão de que elas ainda teriam o que dizer, se houvesse algo que com palavras pudesse ser dito.
Qualificação
Não sou perito, sempre fui périto.
Se prêmio um dia me derem
Será por honra ao demérito.
Se prêmio um dia me derem
Será por honra ao demérito.
Sobre a autenticidade
Não acreditam em mim quando digo ser o verme que sou. Preferem me julgar mentiroso a me considerar autêntico.
O momento exato
Luxúria é uma daquelas palavras que passam a impressão de não dizerem tudo, de ocultarem algo, de guardarem para o momento exato talvez o melhor.
Se
Eu gostaria mais dos meus sonhos se quem neles dançasse boleros com a magnífica loira fosse vinte anos menos velho, não tropeçasse a todo instante e conseguisse ir além dos beijos.
Hoje no portal do Estadão...
... faço mais algumas brincadeiras, como se o momento as abonasse.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/brincando-um-pouco/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/brincando-um-pouco/
quinta-feira, 24 de maio de 2018
Naftalina
O pior tipo de poeta é o sonetista. Quarenta anos depois, seu cisne continua encalhado no décimo quarto verso, e a lua, tuberculosa, implora que troquem sua bateria.
Mania
Continuam perguntando ao escritor por que escreve, como se ele tivesse obrigação e meios de saber.
O texto
Você gostaria de escrever um texto tão belo que, se alguém ao lê-lo dissesse meu Deus, você saberia por que e para quem ele estaria dizendo.
quarta-feira, 23 de maio de 2018
Persona (para Silvana Guimarães)
Espera um pouco ofélia
enquanto vou aqui matutando
que tipo hoje estou de fernando.
enquanto vou aqui matutando
que tipo hoje estou de fernando.
Resumo (para Silvana Guimarães)
Há seis décadas é assim:
eu diante da porta da poesia
gritando o nome de william
como na caverna do tesouro
ali babá berrando abre-te gergelim.
eu diante da porta da poesia
gritando o nome de william
como na caverna do tesouro
ali babá berrando abre-te gergelim.
A decisão
Um dia, o velho escritor se sentiu tão aniquilado que resolveu: nunca mais faria coisa alguma. Comunicou aos amigos. Não disseram nada, mas sorriram. Sabiam que seria fácil. Precisava só continuar repetindo o que vinha fazendo havia tantas décadas.
terça-feira, 22 de maio de 2018
Pode?
Pode algo mais doce haver
Do que calar, se omitir,
Do que falhar, desistir,
Do que ausentar-se e morrer?
Do que calar, se omitir,
Do que falhar, desistir,
Do que ausentar-se e morrer?
Menos
O que eu tive com a poesia não chegou a ser um caso. Foi um desses namoricos em que a ousadia máxima é abrir a braguilha e mostrar o pipi.
Aquele
Sim, eu sou um
dos que cismaram de fazer poesia,
um daqueles mil. Lembra? Sim,
eu sou aquele que não conseguiu.
dos que cismaram de fazer poesia,
um daqueles mil. Lembra? Sim,
eu sou aquele que não conseguiu.
Soneto do que nos coube
Por nossos planos frustrados,
Por nossos feitos sem glória
E os fiascos de nossa história,
Nós fomos condecorados.
São troféus foscos, fanados,
Que não honram a memória,
Não estimulam vanglória
E nem louvores dourados.
São pobres, mas os amamos,
São poucos, são quase nada,
Mas são o que conquistamos.
A cada qual o seu ouro.
De lata velha e trincada
É feito nosso tesouro.
Por nossos feitos sem glória
E os fiascos de nossa história,
Nós fomos condecorados.
São troféus foscos, fanados,
Que não honram a memória,
Não estimulam vanglória
E nem louvores dourados.
São pobres, mas os amamos,
São poucos, são quase nada,
Mas são o que conquistamos.
A cada qual o seu ouro.
De lata velha e trincada
É feito nosso tesouro.
Pelo menos duas
As piadas de velório e o cafezinho são tão ruins que em meia hora já podemos citar pelo menos duas vantagens que os mortos levam sobre nós.
Melhor não
Melhor não perguntar nunca a um defunto se ele está se sentindo bem. Pode calhar de ele ser um morto astuto, descobrir que somos tolos, começar a nos contar uma história muito triste e acabar nos pedindo um dinheirinho para alguma eventualidade.
segunda-feira, 21 de maio de 2018
Persistência
Não inveje a tristeza alheia. Continue cuidando da sua. Se ela não lhe agrada como outrora, talvez seja hora de você se perguntar se a culpa não é sua. Talvez você precise empenhar-se mais na autoflagelação, sem condescendência. Notou que você não tem lido a Florbela? E que você nunca mais ouviu Chopin?
Flash (para Amauri Ernani, Paula Giannini, Vera Helena Saad Rossi e Veronica Stigger)
Sempre fui contraditório. Até na dispersão procurei a unidade, e em todas as rebeldias literárias nas quais me aventurei havia, no fundo, uma aspiração de classicismo. Para resumir, sempre fui um tanto falso.
domingo, 20 de maio de 2018
O dia
A condessa não era de ternurinhas nem agradinhos. Por isso, extraordinário foi aquele dia em que ela pegou minha mão e, apertando um a um os dedos, ia dizendo: meu amiguinho, meu queridinho.
Hoje na revista Rubem
falo de frases que não têm nenhuma relação - a não ser a de não terem relação nenhuma.
https://rubem.wordpress.com/2018/05/20/frases-sem-nenhum-parentesco-raul-drewnick/#comment-43060
https://rubem.wordpress.com/2018/05/20/frases-sem-nenhum-parentesco-raul-drewnick/#comment-43060
O de sempre
Se um galo canta cocó
e outro cocoricó
o terceiro com oportunismo
declara fundado mais um modernismo.
e outro cocoricó
o terceiro com oportunismo
declara fundado mais um modernismo.
Quase
Há uns trinta anos, quase atingi a celebridade, quando defini numa crônica o perfil de um menino surpreendentemente apaixonado pela matemática. Em dois ou três segundos dava o resultado da multiplicação de 1.237 por 5.518 ou da divisão de 8.427 por 1.324. Falava de números como outros meninos falavam de gatos queridos ou cachorros. Dizia que seu sonho era crescer e tornar-se uma pessoa jurídica. Esses detalhes encantaram um produtor de tevê que me ligou: queria fazer uma reportagem comigo e com o garoto, para o Fantástico. Quando eu lhe expliquei que o garoto era uma criação minha, ele só fez ah, antes de desligar o telefone. Ainda ouço esse ah quando, oprimido pelos meus fracassos, lembro esse único caso no qual estive tão perto do sucesso.
Desencontros
Venho tendo cada vez menos prazer em encontrar-me comigo. Às vezes finjo que não me vejo e me deixo parado na esquina.
Empulhação (para Silvana Guimarães)
Gostaria de encontrar um dos idiotas que falam da importância do primeiro passo. Dei o meu há seis décadas, com o pé direito, seguindo uma seta que indicava em letras maiúsculas um lugar ao qual nunca cheguei: POESIA.
Virtude (para Ana Clara Piai)
Se há alguma coisa a ser louvada em mim é a constância com que não tenho conseguido ser poeta.
sábado, 19 de maio de 2018
Pesadelo
Descobrem subitamente
que não sou flor
que sou um poste
que sempre fui assim -
e me punem
mijando todos em mim.
que não sou flor
que sou um poste
que sempre fui assim -
e me punem
mijando todos em mim.
19/5/2018
Acordei ouvindo falar
de reis e de rainhas.
Gloriosas são todas as histórias
que não são iguais à minha.
de reis e de rainhas.
Gloriosas são todas as histórias
que não são iguais à minha.
sexta-feira, 18 de maio de 2018
Por uma boa causa
Para ser Shakespeare, eu me acostumaria a tudo: à inveja, às calúnias, e até ao friozinho que deve sentir um morto.
Nove
Ao dizer que houveram oito mortes no acidente, o apresentador de tevê fez também a língua portuguesa agonizar sob os escombros.
Hoje no portal do Estadão
Esparramo pequenos poemas, com a intenção única de agradar.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/para-comer-como-pipoca/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/para-comer-como-pipoca/
quarta-feira, 16 de maio de 2018
terça-feira, 15 de maio de 2018
Ou não
Seres ou não seres poeta - a preocupação de toda a tua vida - é hoje tão importante quanto saberes se o olho cego de um defunto é o esquerdo ou o direito.
Safra ruim
Nem aqueles versinhos agradavelmente consumidos na hora do chá os poetas conseguem fazer mais.
A.C.
Machado de Assis é o mais importante escritor brasileiro entre aqueles que não conheciam ainda os poderes do misticismo e da levitação.
segunda-feira, 14 de maio de 2018
Miséria
O lirismo no qual quase me afoguei, como Alice em suas próprias lágrimas, hoje não daria para aliviar a sede de um periquitinho de realejo.
domingo, 13 de maio de 2018
Errata
Eu nunca disse que escrevo como Shakespeare, você me entendeu mal. Eu disse que escrevo muito melhor.
Finalmente
Eu lhe falei outro dia sobre aquilo que há muitos anos é meu único assunto: como amo a literatura. Disse-lhe, como venho dizendo a todos, que se tenho algo a dizer e mostrar é algo que me vem da literatura. Não sei se pareci mais honesto do que nunca nesse dia. Sei que finalmente tive a impressão de ser compreendido.
O pecado
Ninguém jamais lhe perguntou, mas ele faz questão de dizer: se for para arder no inferno, que seja pela luxúria, uma daquelas que, sem eufemismo, fazem um homem trepar pela parede.
Desforra
Era um morto que eu não conhecia muito bem. Manteve-se todo o tempo com o nariz tão empertigado que fiquei feliz ao saber, alguns dias depois, que ele devia até a alma aos bancos.
"A carta", de Mario Quintana
"Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta esmarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!"
(De 80 anos de poesia, Editora Globo.)
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os naufrágios!"
(De 80 anos de poesia, Editora Globo.)
sábado, 12 de maio de 2018
O ideal de justiça da condessa
Nos sonhos em que quase diariamente me vem visitando, a condessa tem mostrado um curioso senso de equidade. Se está me acariciando com a mão direita, consola a esquerda: calma, queridinha, eu sei, já está chegando a sua vez; vou contar até vinte.
Ruptura
Quando me dizem que certo sucesso do sertanejo universitário ganhou o disco de platina, sinto-me desobrigado de ter afeto pelo povo. Cambada!
Praga (para Rose Marinho Prado)
Lá pelo fim da década de 1960, a inveja das outras escolas poéticas começou a fazer efeito, e os poemas concretistas, como se tivessem sido atingidos por uma maldição, passaram a apresentar o que se tornou conhecido como síndrome da Torre de Pisa. No máximo um mês depois da inauguração, já estavam todos empenados, como se aspirassem à horizontalidade.
Discrição
Admiro a falta de memória e a delicadeza dos defuntos. Nunca nenhum deles nos pergunta onde está aquele nosso tio que se tornou conhecido como o molestador da Linha Verde do Metrô.
Um sonho com a participação da condessa
Tantos anos depois, voltei a ter sonhos com a condessa. São perturbadores, cada vez mais. Não sou um homem recatado, mas confesso que não me animo a relatar todos os detalhes dessas cenas noturnas. Na desta noite, já no fim, a condessa me ordenava, com sua voz de marujo embriagado: me dá teu leite.
Arquivo (para Rose Marinho Prado)
A primeira oficina do poeta concretista foi aberta na Mooca, na década de 1950, época de progresso industrial em São Paulo.
Indecisão (para Celina Portocarrero e Jiro Takahashi)
As duas borboletas não sabem se continuam voando ou se pousam num galho para fazer um haicai.
Missão
Por décadas ele não fez nada além de escrever. Quando o aconselhavam a viver um pouco, ele dizia estar ocupado em ser um mártir. Mártires eram seus leitores.
Por pouco
Quando os participantes do velório começavam a se acostumar com o defunto, e até a achá-lo agradável, chegou a hora de enterrá-lo.
A mesma tecla
O que todo modernista em qualquer tempo quer é a maneira mais rápida de se tornar um clássico.
sexta-feira, 11 de maio de 2018
Culpa
Ultimamente, quando penso em morrer, lateja em mim uma mornidão, uma sensualidade, quase um gozo. Ter lido os românticos foi meu vício e meu pecado.
Compostura
Quando tocavam a campainha, a tristeza parnasiana pedia cinco minutinhos para se arrumar.
Poder
Um advérbio, um adverbiozinho de nada, pode pôr um texto a perder. Completamente. Ou salvá-lo. Improvavelmente.
Como seria
Escrevi alguns poemas para a condessa, mas nunca os mostrei a ela. Fui sábio, acho. Imagino hoje o que ela faria com qualquer um deles: certamente o deixaria prudentemente longe dos olhos e o leria rapidamente, ou fingiria ler, segurando-o a contragosto com os dedos enluvados.
Causa e efeito
Olhe, aqui é que eu crio os passarinhos. Alpiste do melhor, água de chuva. Você acha que meus gatos são bonitos por quê?
Merecimento
Trabalhou a vida toda para ser reconhecido. Conseguiu. Alguém diz seu nome e imediatamente vem o comentário: ah, aquele dos sonetos...
Época dourada
Se pudesse voltar no tempo, eu escolheria os promissores anos em que fui bem jovem e imaginava poder ser poeta.
"Bilhete", de Mario Quintana
"Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem que ser bem devagarinho, Amada,
que a Vida é breve, e o amor mais breve ainda..."
(De 80 anos de poesia, Editora Globo.)
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem que ser bem devagarinho, Amada,
que a Vida é breve, e o amor mais breve ainda..."
(De 80 anos de poesia, Editora Globo.)
quinta-feira, 10 de maio de 2018
Exceção (para Ligia Bejar e Silvia Bejar)
Pode-se mentir sobre tudo, até sobre o amor. Mas a tristeza há de ser sempre honesta e, se possível, honestíssima.
Nova vida (para Aden Leonardo, Arlene Colucci e Arlete Franco)
Tomou-se de tanto amor pelo novo gato que, receando perdê-lo tão cedo quanto perdeu os outros, decidiu tratá-lo como nunca fez com nenhum, começando pela alimentação: armou um alçapão no quintal.
"Envelhecer", poema de Mario Quintana
"Antes,todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
quarta-feira, 9 de maio de 2018
Exercício
A condessa era disciplinada no sexo. Parecia uma espécie de ginástica, para ela. Fechava os olhos desde o início e mantinha a respiração controlada até o momento em que, depois de um suspiro, assumia um ritmo que ia crescendo metodicamente, sem que eu pudesse fazer alguma coisa para acelerá-lo bruscamente, embora bem quisesse.No final, ela abria os olhos e sorria, como se fosse uma aluna de academia feliz por comprovar que mais uma vez tivera sucesso num exercício.
Filme
Sou um cordeiro, feliz como todos. Chega um açougueiro, sanguinário como todos. O diretor, enigmaticamente, ordena: corta.
Conselho
Se você de repente for atormentado por uma dessas dúvidas crudelíssimas, como saber se é melhor ir trabalhar de carro, de ônibus ou de metrô, siga aquele velho conselho: procure o provérbio mais próximo.
"O poema", de Mario Quintana
"Um poema como um gole dágua bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza."
(De 80 anos de poesia, Editora Globo.)
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza."
(De 80 anos de poesia, Editora Globo.)
terça-feira, 8 de maio de 2018
A voz
Toda vez que você é vítima de um desses acidentes do dia a dia, como cair da escada ou escorregar no sabonete, ouve aquela voz triunfalmente punitiva: eu não falei? É um provérbio.
Do conde, sobre a condessa
Homem grosseiro, o conde. Um dia, embriagado como quase sempre, disse a um amigo, pelo telefone, que a condessa era espalhafatosa quando se entregava a prazeres sexuais. Tive o impulso de chamá-lo de porco - e de mentiroso, porque comigo ela nunca havia passado dos rotineiros e econômicos ais, uis e ahs.
O apelido
Quando morreu, deram-lhe o apelido de Pé-Frio, não pelo seu novo e definitivo estado, mas pela coincidência de nesse dia o Brasil ter levado uma goleada no futebol.
Cobrança
O velório ia já para o final e crescia a decepção com o defunto, imperdoavelmente apático para quem havia sido por mais de vinte anos animador de televisão.
Pensar bem
Entre gostarem de mim ou de minha tristeza, só optem por ela se vocês forem do tipo especialmente afetuoso. Ela exige muito mais do que um cafuné para se considerar consolada.
segunda-feira, 7 de maio de 2018
Arte dramática
Se parecesse mais morto, pensariam
ser um esforço dele para no último dia
obter uma póstuma honraria.
ser um esforço dele para no último dia
obter uma póstuma honraria.
Alerta
Deve ser visto com alguma desconfiança um poeta que subitamente se diga maduro e comece a negar suas ligações mais antigas, como o afero às flores e aos passarinhos.
Só se for assim
Não acreditem em mim, não aceitem uma palavra que eu lhes ofereça, se eu não estiver triste. Na tristeza está a minha única honestidade.
Simpatia (para Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)
Acredito que, no geral, os poetas largadões sejam mais amados que os poetas de ofício. Basta dar uma espiada neles, em seu jeito desmazelado, para sentir que, se nos mostrarem uma estrela, ela terá sido colhida diretamente no céu, e não num livro antigo, como costumam fazer seus colegas empertigados.
Melhor hoje
Confesso que sou indigno, inábil e inútil. E, se reconheço isso com ênfase hoje, é para meu alívio e proveito. Receio estar muito pior amanhã.
Má índole
Certos poetas são tão ardilosos que algumas de suas vítimas só descobrem o que eles são no momento fatal em que eles puxam o papel do bolso e anunciam: é um soneto.
Se
Se a poesia fosse
um pouco mais fácil
ou um pouquinho menos difícil
talvez eu já fosse poeta
ou pelo menos vice.
um pouco mais fácil
ou um pouquinho menos difícil
talvez eu já fosse poeta
ou pelo menos vice.
Eles e nós
Os filósofos podem não resolver problemas, mas são generosos. Mesmo que não os leiamos com muita atenção, acabam compartilhando conosco suas dúvidas.
Depois das dez
Você pode sobreviver talvez para sempre à solidão, desde que aprenda alguns truques. O principal deles é resistir às noites nas quais, depois das dez, começa a se ouvir, vindo do apartamento vizinho, aquele bolero que soluça como um tango.
"Os farsantes", de Mario Quintana
"Desconfia da tristeza de certos poetas. É uma tristeza profissional e tão suspeita como a exuberante alegria das coristas."
(De "80 anos de poesia", Editora Globo.
(De "80 anos de poesia", Editora Globo.
domingo, 6 de maio de 2018
Teste
É aos domingos, ao cair da tarde, sozinho, que você pode avaliar se sua tristeza foi regada com as lágrimas certas.
O começo
Você lhes disse, por dizer, que era artista. Perguntaram-lhe que tipo de artista você era. Já na época a tristeza era seu bem mais precioso. Você pediu permissão para exibi-la. Você a exibiu.
Passagem
Até ontem estava vivo,
Cheio de planos, fanfarrão.
Sobrava-lhe esperança,
Faltou-lhe intuição.
Cheio de planos, fanfarrão.
Sobrava-lhe esperança,
Faltou-lhe intuição.
Opção
Pode parecer cínico, mas é melhor compartilhar culpas do que dividir alegrias. Ser humano não é necessariamente ser tolo.
Quadrinha propiciatória
Que sejas feliz sempre
Como merecem os escritores.
Que lhe sobrem admiradoras
Se lhe faltarem admiradores.
Como merecem os escritores.
Que lhe sobrem admiradoras
Se lhe faltarem admiradores.
Sobre a tristeza
Se é sua tristeza que você quer exprimir, exagere. Use as palavras mais pungentes. Mesmo assim, ainda faltará tanto, tanto. Pode um homem expressar integralmente algum dos seus sentimentos? Talvez os mais simples. Mas a tristeza, não. A tristeza é o mais genuíno de todos os sentimentos.
Invencíveis
Nem Deus consegue deter os sonetistas. Pune-os com bloqueios de um mês, um ano, uma década, e eles ressurgem sempre, com aqueles catorze versos que podem falhar no resto, mas nunca em ribombar, retumbar e estrondear.
Hoje na revista Rubem
Falo de uma porção de coisas provavelmente sem nenhuma conexão.
https://rubem.wordpress.com/2018/05/06/mortos-e-outros-itens-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2018/05/06/mortos-e-outros-itens-raul-drewnick/
sábado, 5 de maio de 2018
Lados
Estamos assim: de um lado, os que são deprimidos; de outro, os que querem ou fingem ser, para terem assunto nas redes sociais.
Ah...
Lembro-me dela quando ainda eu não imaginava que ela pudesse ter aquelas coisas todas que depois negaria a mim.
O ideal
Existem palavras cujo sentido não se deve procurar em dicionários. Saudade, por exemplo, haverá melhor forma de conhecê-la que num poema?
Projeto
Ocorreu-me hoje mais um desses projetos que não sairão disso: uma historiazinha que narrasse Lia tristeza de uma palavra que nunca tenha sido usada em um poema.
Déspota
Minha tristeza é daquelas desconfiadas. Se dou uma assobiadinha, fica inquieta. E, se cantarolo, começa a me acusar de traição.
Em tempo
Teve ciúme do defunto, dos elogios que lhe faziam, das virtudes que inventavam para ele à medida que se estendia o velório. Procurou alhear-se e teve sucesso até o momento em que alguém disse que com o defunto morria também a poesia brasileira. Então ele resmungou: a pior parte. Receando que o tivessem ouvido, gritou: a melhor parte. E puxou uma salva de palmas.
Menos (para Marcelo Mirisola)
Às vezes gostaria de ter uma tristeza menos sofisticada, que não exigisse Chopin e se contentasse com Sidney Magal e Benito Di Paula.
Escusas
Tão lastimável estava o defunto que os cinco ou seis parentes procuraram ficar longe dele todo o tempo, no velório, como se dissessem: não temos nada com esse aí; estamos esperando chegar o nosso morto.
"11/7", poema de Alice Ruiz S
"pressupondo que existe
memória na morte
e dentro dela um calendário
feliz aniversário."
(De Dois em um, publicado pela Iluminuras.)
memória na morte
e dentro dela um calendário
feliz aniversário."
(De Dois em um, publicado pela Iluminuras.)
sexta-feira, 4 de maio de 2018
Ficha funcional (para Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)
Há muito tempo estou a serviço da poesia. Sou um mau funcionário.
Destituição
Quando vi que ninguém sabia quem era Dostoiévski, parei de dizer que ele era meu parente.
Depois das 22
Com tantos pseudônimos e heterônimos circulando por aí, recomenda-se aos poetas que portem sempre a certidão original de nascimento.
Indício (para Silvana Guimarães)
Soar bem, é bom ver,
É um sinal de que o soneto
Tem muito a esconder.
É um sinal de que o soneto
Tem muito a esconder.
Escala social
Prefiro as condessas quando já bem decadentes. Dão verossimilhança às histórias de que participam comigo.
Hoje no portal do Estadão
Tentativas de poesia satírica em que a única sátira talvez seja não haver nenhuma.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/ha-quem-goste/
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/ha-quem-goste/
quinta-feira, 3 de maio de 2018
Catação (para Maria Aparecida Martins Brandão)
Me pareceu tão bom
depois de escolhido
que fiquei com o joio
e descartei o trigo.
depois de escolhido
que fiquei com o joio
e descartei o trigo.
De Oswald para Mário de Andrade (para Gabriel Perissé)
Aquele chegando ali de tílburi não é o Graça Aranha?
Do velho Machado a Bentinho (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)
Já disse que não sei nada do Escobar e da Capitu, eu sou só o autor.
Síntese
Escrevo, sempre escrevi,
Dia, noite, madrugada.
Não sou, nunca serei nada.
Não fui, não vi, não venci.
Dia, noite, madrugada.
Não sou, nunca serei nada.
Não fui, não vi, não venci.
Costas largas
O Destino é o personagem que acaba assumindo todos os bons e os maus passos dados por um romancista.
Internet
Ergueram em 2016 uma estátua para homenagear o poeta desconhecido. Esta semana um grupo de pesquisadores levantou a suspeita de que esse poeta é responsável por uma série de assédios sexuais em 2015 - e nem poeta era.
Nem pensar (para Silvana Guimarães)
Os poetas não têm pacto nenhum com a beleza. Mas vá alguém isso a um deles.
Uma palavra (para Ana Clara Piai)
Sopremos toda manhã uma palavra capaz de agradar tanto à brisa que ela talvez queira levá-la: flor, pluma, passarinho. Amor, não. Amor não engana mais a brisa.
Um pouco de Marcelo Mirisola
"Tudo a ver. A antropologia ou aquilo que os baianos usam para enganar a gente (penso nos falecidos livros do Jorge Amado e no autismo babão da Zélia Gattai) sucumbia à realidade do Jardim Ângela."
(Do conto "Rio pantográfico", da coletânea Geração 90 - os transgressores, Boitempo Editorial.)
(Do conto "Rio pantográfico", da coletânea Geração 90 - os transgressores, Boitempo Editorial.)
quarta-feira, 2 de maio de 2018
O que resta
Urinar tem sido um dos prazeres da última idade do poeta. De outros ele não fala porque não lhe agrada ser grosseiro.
Ao extremo
A necessidade de beleza é tão urgente e dolorosa, em mim, que às vezes sinto que não me importaria morrer para alcançá-la.
Crença
Escrevo ainda por acreditar que à velhice, à qual tantas coisas se negam, não se cometa a crueldade de negar também a busca da beleza.
Esvaecimento
As impressões poéticas me vêm e se vão com tanta rapidez que às vezes imagino serem passarinhos ariscos.
Honestidade
Pão e poesia são duas das palavras mais honestas que conheço. Quando se juntam, são uma epifania.
Um poema de Alice Ruiz S
"tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado."
(De Dois em um, publicado pela Iluminuras.)
e tudo se passa
com passos já passados
tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido
e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado."
(De Dois em um, publicado pela Iluminuras.)
terça-feira, 1 de maio de 2018
Ego
Protejo-me como se protege quem se ama. Mesmo quando falo de maus sonetos, acabo falando dos meus.
Conhecimento de causa
Os poetas românticos sabiam tudo o que as musas precisavam ter, embora as desfrutassem pouco.
Sonho augusto (para Rose Marinho Prado)
Um poema concretista
que ocupasse o quarteirão
da augusta com a paulista.
que ocupasse o quarteirão
da augusta com a paulista.
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