domingo, 2 de janeiro de 2011

Alma

Quando penso em alma, quando falo de alma, sinto em mim algo que, se for humano, deveria nos pertencer sempre e sempre, em cada instante, para que não nos víssemos órfãos depois, irremediavelmente órfãos, quando o encanto do momento se vai. Quando penso em alma, quando falo de alma, sinto em mim algo que também sinto quando penso em amor e falo de amor, mas que é um pouco mais leve, um pouco mais profundo e um pouco menos humano do que o amor.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Tela

Azul, me faz prisioneiro,
Azul grave, duro, denso,
Azul voraz, azul tenso,
Azul, engole-me inteiro.

Nosotros

Quando fala de amor, ele já não sabe muito bem do que fala. Tem certa desconfiança, às vezes certeza de que alguma coisa soa em falso nesses momentos. Sente ainda o alvoroço de cinquenta anos atrás, um tremor nas pernas e uma hesitação de voz que podem ser ainda atribuídos à emoção, e não aos estragos da idade. Começa a falar de amor às jovens e elas o ouvem e parecem entendê-lo, e continuam a ouvi-lo, mas há um instante, o supremo, em que ele, talvez mais enternecido do que deveria estar, ouve, tocado pela memória, o bolero Nosotros. Põe-se a chorar, então. E a ele, e também às jovens, parece que o amor de que ele fala é como certos utensílios caídos em desuso.

Única

Hoje ele viu a beleza
E o atormenta, desde já,
A dor, a dura certeza
De que jamais a verá.

Nada

Nas suas noites vazias
Ele ainda sonha com seios
E bocas de lábios cheios
E coxas amplas, macias.

E abraça loiras esguias
E dança em doces volteios
E enleado em mornos enleios
Acaba-se em agonias.

Acorda com as mãos crispadas
Retendo as formas amadas
Ou pensando que as retém.

Com o sol no seu quarto entrando
Ele descobre, chorando,
Que não abraça ninguém.

Me diz

Estrelas, posso contá-las?
Anseios, posso contê-los?
Desgraças, posso aplacá-las?
Amores, posso esquecê-los?

Destroços

Depois da tempestade da madrugada, o vento marinho trouxe para a praia e expôs ao sol da manhã pedaços de madeira, restos de um banquete noturno e uma garrafa de vinho que o marinheiro em quem o menino tropeçou ao ir encher de água seu baldinho jamais beberá.

Caminho

Seu rumo agora é a derrota.
Os frutos amadurecem
E pendem e se oferecem
Mas ele já nem os nota.

Obsessão

Já sobreviveu a uma pneumonia, a uma hepatite, a várias bronquites e até àquela doença cujo nome, por temor, não se pronuncia. Obstina-se em morrer por amor e exercita-se lendo os poemas de Sylvia Plath.

Nome

Então, se não é amor isso,
Que nome haverá de ter
Esse enleio, esse feitiço
Que mata e que faz viver?