quarta-feira, 31 de março de 2010

O significado da palavra "humano"

Há palavras astutas como os camaleões. Camuflam-se, escondem-se, disfarçam-se. "Humano" é uma dessas palavras, talvez a mais enganadora de todas. Por força da habilidade que tem para o embuste, ludibria principalmente os mais jovens, que são também os mais propensos à ingenuidade. Tenho notado, em bate-papos com alunos das séries iniciais, que para eles "humano" tende a ser considerado sinônimo de generoso, compassivo, benevolente, bondoso. A maioria se surpreende quando digo que "humano" pode ser também, e costumeiramente é, abjeto, repelente, desprezível, asqueroso. Para a religião, para a ética, para a moral e para as relações humanas, isso pode ser horrível. Para a literatura, é maravilhoso, quase uma bênção. Uma literatura construída com base só em bons sentimentos mataria os leitores de enfado. Seria algo do tipo "João era piedoso, mas Pedro talvez fosse mais ainda, e Antônio possivelmente ainda mais". Leríamos trezentas páginas para desvendar maravilhados, na última, o grande mistério: qual deles -- João, Pedro ou Antônio -- seria mesmo o mais piedoso dos três. Realmente emocionante. Chego a este ponto e me vem de novo uma antiga ideia. Quando finalmente será erguido um monumento ao Vilão, esse personagem sem o qual o conto, a novela, o romance, o teatro e o cinema não sobreviveriam? Escritores, dramaturgos, roteiristas, é hora -- eu penso -- de se abrir a subscrição.

domingo, 28 de março de 2010

O bagaço e o suprassumo

Quando adolescente, eu respirava ideais. Sei hoje que não entendia nada de nada -- não melhorei muito, de lá para cá --, mas estava disponível para tudo aquilo que pudesse ser considerado uma grande causa. A poesia era, para mim, a maior de todas as grandes causas. No meu amor ingênuo, moldei um lema: o essencial é poesia; o resto é prosa. Nele, estava clara a condição inferior que eu atribuía à prosa. Ontem, num trecho do romance Juventude, que é uma espécie de relato dos anos de formação de J.M. Coetzee, encontrei esta frase, que resume o meu sentimento na ocasião. "Será que, secretamente, é isso a prosa: a segunda escolha, o refúgio de espíritos criativos fracassados?" Coetzee, nessa época, tendia a resvalar para a prosa e, assim, achava-se à beira de uma traição à poesia, que busca sempre -- ou teoricamente deve buscar -- a perfeição, aquele momento único que pode justificar as aflições e o sofrimento de uma vida. A poesia emana do espírito e a ele se dirige. Mas a vida não é só espírito. Na vida, o momento único de beleza e esplendor é isso: um momento único, uma exceção. Aos outros momentos (quase todos e, às vezes, lastimavelmente, todos) cabe melhor a prosa. Marguerite Yourcenar falou disso com clareza e brilho, ao enaltecer o romance como o melhor instrumento para traduzir a vida humana. Porque num romance se admite o bagaço, a dura substância de que são feitos os dias. Os momentos únicos de beleza, que a poesia exprime, faíscam mais veementemente no meio dessa matéria comum, pela força do contraste. Uma vida só de instantes sublimes seria insuportável, levaria possivelmente à alienação e à loucura. Marguerite disse basicamente isto, confrontando gêneros: a poesia almeja a perfeição, o ensaio procura a exatidão, o romance contenta-se com uma expressão que delineia -- em suas misérias e raros êxtases, em seu lixo e em suas parcas estrelas -- um retrato mais próximo da existência humana. Essa talvez seja, no fundo, uma falsa inferioridade do romance.

terça-feira, 23 de março de 2010

Um Shakespeare em cada quarteirão

Algo que espero jamais ter de fazer é aquilo que se chama, sem nenhum pejo, de reescrever os clássicos. Tenho tanta ojeriza a isso que a primeira palavra que me ocorre para definir essa aberração é heresia. Reescrever Shakespeare, Joyce, Dostoiévski, simplificar Cervantes, Dante, Homero, é -- digam o que disserem os editores e apresentem os argumentos que apresentarem os autores e até os professores que se encarregam de divulgar esses abomináveis experimentos -- transmitir aos jovens leitores a impressão de que um romance, uma novela e um conto são "aquilo" que neles é narrado: a trama, o enredo, a história. Com a possível autoridade que me concede o fato de ser um leitor muito antigo e muito apaixonado, acredito que essa visão seja um brutal desserviço à causa da literatura. A literatura é, basicamente, a forma de narrar, o modo de descrever, o estilo. Para ela, a palavra básica é "como". "Como" se desenvolve a trama, o enredo, o tema. Do contrário, "Romeu e Julieta" seria só uma história de dois jovens enamorados cujo amor é proibido por antigas desavenças familiares. "Romeu e Julieta" escrito por alguém que não Shakespeare seria um livro comum, desses justamente destinados às traças e ao olvido. Hoje há clássicos e mais clássicos reescritos por escritores que não são Shakespeare, Dante ou Cervantes e nunca chegarão a ser nada sequer parecido. A literatura, a verdadeira, não se deixa alcançar com facilidade. O assombroso é que esses que reescrevem, resumem e mastigam os clássicos têm às vezes o nome impresso em corpo maior, na capa, que o dos gênios que imortalizaram essas obras. Há nisso certa lógica de mercado, deve-se reconhecer: os jovens leitores ainda não ouviram falar de Shakespeare, mas conhecem J. João Júnior, autor de livros infantis que assina a adaptação. Muitos desses leitores chegarão aos 30, aos 50 anos, e morrerão julgando que "Romeu e Julieta" é uma obra de J. João Júnior... Um absurdo entre tantos outros. Recentemente, a autora de uma adaptação de Eça de Queirós para a tevê não declarou que havia melhorado o original? Ela estava sorrindo ao dizer isso -- e seu sorriso não era irônico: era o sorriso de alguém que presumia estar expondo os aleijões de uma obra-prima e que de certo modo se escusava porque, precisando tomá-la como base para o seu trabalho, não conseguira dar a ele o brilho que certamente seria atingido se ela pudesse ter mandado ao diabo o original e seguido rumo próprio.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Roteiro de NY

A Estátua da Liberdade
Se pode até descartar.
O que não pode faltar,
O que há de ocorrer, o que há de
A viagem fazer valer
(Pegue o caderninho e marque)
É correr ao Central Park
E o Woody Allen conhecer.

Ardil

Como se viver a pena
Valesse, o sol fez faiscar
Uma moeda pequena
Para o mendigo a encontrar.

domingo, 21 de março de 2010

Para aquele doutor em Viena

No sonho, seu corpo frio
Era enterrado na tumba
Ao som de um torpe assobio
Que assobiava uma rumba.

Balanço

Então, no fim da jornada,
Exausto de riso e pranto,
Descobriu, com desencanto,
Que nada valia nada.

sábado, 20 de março de 2010

A eterna causa

O que é que na vida existe
De mais doce e mais pungente?
O amor, disse um homem triste,
O amor, disse outro, contente.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Ponto de vista

Porém logo se descobre
Que onde não haja ninguém
Que disponha de um vintém
Quem tem um centavo é pobre.

Do manual de um pragmático

Ter tudo me faz contente.
Dinheiro? Não vivo sem.
Só do que os bolsos não têm
Meu coração se ressente.

Cem anos

Ladrão que rouba ladrão
Pode até ser perdoado,
Louvado e condecorado,
Mas jamais por minha mão.

Quadrinha circunstancial

O raio traz o trovão,
A trovoada traz a chuva,
A morte faz a viúva,
A ocasião faz o ladrão.

Contradição

Se é certo que a discussão
Traz a luz, por que ontem, quando
Estávamos dialogando,
Baixou aquele apagão?

Estoicismo

O passarinho que vem
E sem nem sentir engulho
Põe no bico um pedregulho
Sabe o estômago que tem.

Por quê?

Hoje fui escrever mau
E escrevi mal. Companheiro,
Por que em casa de ferreiro
O espeto é sempre de pau?

Provérbios de ponta-cabeça

Agora sejamos francos:
Se de noite os gatos são
Escuros como carvão,
De dia os coelhos são brancos?


(Esta quadrinha e outras recentes, colocadas aqui (ainda não me dou bem com o verbo "postar"), integram o projeto de um livro em que tentarei ler os mais conhecidos provérbios de um jeito diferente, ora crítico, ora jocoso. Peço boa vontade e até clemência para essas estrofes, infantis como o autor é ou gostaria de ser.)

quarta-feira, 17 de março de 2010

Boletim meteorológico

Se quem tem fé, de verdade,
Tudo que deseja alcança,
Por que é que peço bonança
E vem sempre tempestade?

Quem conta um conto...

Se quem conta um conto aumenta
Um ponto, te dou desconto
E no meu caderno aponto
Quarenta em lugar de oitenta.

Devagar se vai ao longe

A preguiça ouviu falar
Que é possível ir adiante
Com passo lento e constante,
E não saiu do lugar.

Quadrinha alada

Se uma andorinha verão
Não faz, por que ela, a andorinha,
Insiste ainda e, pobrezinha,
Se esmera e crê na criação?

terça-feira, 16 de março de 2010

Aquele provérbio dos dois pássaros

Bem melhor do que ter um
Na mão em vez de dois voando
É ver os três flutuando
E na mão não ter nenhum.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Deixado por uma mulher na pasta de um executivo

O amor jamais deve estar
Na agenda. Deve mudá-la,
Violá-la, deve apagá-la.
Deve reuniões desmarcar,
Deve atrasos promover,
Negócios arruinar,
Empregos fazer perder
E a Bolsa se esfacelar.
Deve triunfar, se impor,
A lógica subverter
E a razão espezinhar,
Senão não será amor.

domingo, 14 de março de 2010

Elizabeth Costello, suprema criatura de Coetzee

Madame Bovary é tão naturalmente viva, para mim, quanto Anna Kariênina. E as duas são mais vivas e presentes -- tão veraz pode ser a criação literária -- do que muitas mulheres, do que muitas pessoas a quem vejo e cumprimento diariamente. Tão vivas, e não só para mim, que talvez sejam mais conhecidas -- elas, que oficialmente são personagens de ficção -- do que os homens de carne, osso e gênio que as criaram, Flaubert e Tolstói. Elizabeth Costello, criatura ficcional de J.M. Coetzee, parece fadada ao mesmo glorioso e intenso destino. Ela tem uma força que o tempo não se atreverá a atenuar. Defensora de um tratamento digno aos animais, ela (alter ego de Coetzee) é mais incisiva e convincente, nessa defesa, do que talvez possa vir a ser qualquer defensor "real". Naquilo que considera ser a tarefa de sua vida, ela utiliza não só razões de coração, mas a razão tomada em sentido amplo, e cita argumentos de uma consistência e um impacto dificilmente refutáveis, como este, de Plutarco, que se encontra na página 95 do livro (Elizabeth Costello, de J.M. Coetzee, traduzido por José Rubens Siqueira e publicado pela Companhia das Letras):

"Você me pergunta por que eu me recuso a comer carne. Eu, de minha parte, fico assombrada de você ser capaz de colocar na boca o corpo de um animal morto, assombrada de você não achar horrendo mascar a carne mutilada e engolir os sucos de feridas mortas."

quinta-feira, 11 de março de 2010

Um pouco mais sobre Sándor Márai

Há alguns dias disse que estava lendo um romance de Sándor Márai - De Verdade - e, numa atitude quase leviana, o recomendei como obra notável. Hoje, lidas as 445 páginas do livro, posso dizer, com alívio e muito prazer, que não me arrependo do arroubo. É mesmo uma obra dessas que o leitor não esquece. Sándor Márai, no seu texto, comparável ao dos maiores ficcionistas, analisa as paixões humanas com a segurança que só um homem afeito a essas paixões poderia ter. É uma história de amor, ódio, inveja, ciúme, rancor, vingança, contada por quatro narradores, cada um contestando (ou enriquecendo com detalhes) a versão dos outros. Vai aqui mais um trecho do romance:

"Em toda vida de verdade chega um momento em que mergulhamos numa paixão, como se nos atirássemos nas cataratas do Niágara. E, naturalmente, sem colete salva-vidas. Não acredito nos amores que começam como uma excursão ao piquenique da vida, de mochila e com cantos alegres na mata ensolarada... Sabe, o sentimento transbordante de "festejo" que permeia o início da maioria das relações humanas... Como ele é suspeito! A paixão não festeja. A força sombria que ao mesmo tempo cria e extermina o mundo não espera resposta de quem ela atinge, não pergunta se ele está bem, não se ocupa muito dos sentimentos humanos de reciprocidade. Dá tudo e exige tudo: a paixão incondicional cuja energia mais profunda é a própria vida e a morte. Não se pode conhecer a paixão de outro modo... e como são poucos os que chegam lá! As pessoas fazem cócegas uma na outra e se acariciam na cama, mentem muito e falseiam os sentimentos, tiram, avarentas, do outro o que é bom para elas, e da própria felicidade talvez empurrem um resto para o companheiro... E elas não sabem que isso tudo não é paixão."

segunda-feira, 8 de março de 2010

Metrô

Sentiu, revendo o passado,
Sem fé nem consolação,
Que a vida havia ficado
Perdida numa estação.

domingo, 7 de março de 2010

Cançãozinha

Joana, o fogo queimou.
Brigitte, o mundo esqueceu.
Januária, o tempo venceu.
Virginia, o rio levou.

sábado, 6 de março de 2010

Memória

O que se compartilhar
Com a força do pensamento
E o fogo do sentimento
Jamais há de se apagar.

Ocaso

Já perto do fim, colheu
Na trilha uma flor. Pensou
Que o dia se estenderia
E que outras flores traria.
Sonhando com isso, esqueceu
O cansaço e caminhou.
Mas logo o dia morreu
E a flor nas mãos lhe murchou.

Ceticismo

Até que afinal, um dia,
Fechou o livro e a janela:
Por ele nada viria
E muito menos por ela.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Pondo a mão no fogo por Sándor Márai

Um amigo, Moacir Amâncio, amante da literatura e professor da USP, comentou certa vez que nem ao escritor mais renomado se deveria permitir enfadar os leitores por mais do que algumas páginas. É uma ideia mais do que interessante. Aceita-se normalmente que um Balzac, um Joyce, um Dostoiévski nos impinjam vinte ou trinta páginas monótonas, porque acreditamos -- com base na opinião de milhões de leitores -- que na página 21 ou 31 o gênio finalmente se mostrará. Com escritores obscuros nos impacientamos logo na primeira página e, às vezes, até no parágrafo inicial, arriscando-nos a deixar de apreciar talvez um bom livro. Sándor Márai é um escritor que teve grande prestígio na Europa, na metade do século passado. Sua obra não é muito conhecida no Brasil, mas, embora eu até agora tenha lido só pouco mais de cem páginas do seu romance De Verdade, digo sem receio que ele é um desses autores aos quais os apreciadores da boa literatura estão sempre dispostos a conceder crédito por uma infinidade de páginas e livros. Desse romance (traduzido por Paulo Schiller e publicado pela Companhia das Letras), centrado nas contradições do amor e da paixão, extraí este trecho:

"Mágoa. Vaidade. É o que você encontra no fundo da maioria das enfermidades e das desgraças humanas. A vaidade. O orgulho. O medo, porque por orgulho as pessoas não têm coragem de aceitar o dom do amor. É necessária muita coragem para que alguém aceite ser amado sem resistência. Muita coragem, quase heroica. A maioria das pessoas não sabe dar nem receber amor: por covardia e vaidade receia o fracasso. Tem vergonha de se entregar, e mais vergonha ainda de revelar ao outro seu segredo. O segredo humano, triste, de que ela precisa de ternura, que não vive sem ela."

terça-feira, 2 de março de 2010

Felicidade

Ninguém na rua notou
Quando o sol apareceu.
Somente um homem o olhou,
O saudou, e agradeceu,
Como se o sol corriqueiro
Para ele fosse o primeiro.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Proverbiozinho matemático

Se minha conta não peca,
O cântaro é tão enchido
E tantas vezes reenchido,
Que no fim a fonte seca.