terça-feira, 23 de março de 2010
Um Shakespeare em cada quarteirão
Algo que espero jamais ter de fazer é aquilo que se chama, sem nenhum pejo, de reescrever os clássicos. Tenho tanta ojeriza a isso que a primeira palavra que me ocorre para definir essa aberração é heresia. Reescrever Shakespeare, Joyce, Dostoiévski, simplificar Cervantes, Dante, Homero, é -- digam o que disserem os editores e apresentem os argumentos que apresentarem os autores e até os professores que se encarregam de divulgar esses abomináveis experimentos -- transmitir aos jovens leitores a impressão de que um romance, uma novela e um conto são "aquilo" que neles é narrado: a trama, o enredo, a história. Com a possível autoridade que me concede o fato de ser um leitor muito antigo e muito apaixonado, acredito que essa visão seja um brutal desserviço à causa da literatura. A literatura é, basicamente, a forma de narrar, o modo de descrever, o estilo. Para ela, a palavra básica é "como". "Como" se desenvolve a trama, o enredo, o tema. Do contrário, "Romeu e Julieta" seria só uma história de dois jovens enamorados cujo amor é proibido por antigas desavenças familiares. "Romeu e Julieta" escrito por alguém que não Shakespeare seria um livro comum, desses justamente destinados às traças e ao olvido. Hoje há clássicos e mais clássicos reescritos por escritores que não são Shakespeare, Dante ou Cervantes e nunca chegarão a ser nada sequer parecido. A literatura, a verdadeira, não se deixa alcançar com facilidade. O assombroso é que esses que reescrevem, resumem e mastigam os clássicos têm às vezes o nome impresso em corpo maior, na capa, que o dos gênios que imortalizaram essas obras. Há nisso certa lógica de mercado, deve-se reconhecer: os jovens leitores ainda não ouviram falar de Shakespeare, mas conhecem J. João Júnior, autor de livros infantis que assina a adaptação. Muitos desses leitores chegarão aos 30, aos 50 anos, e morrerão julgando que "Romeu e Julieta" é uma obra de J. João Júnior... Um absurdo entre tantos outros. Recentemente, a autora de uma adaptação de Eça de Queirós para a tevê não declarou que havia melhorado o original? Ela estava sorrindo ao dizer isso -- e seu sorriso não era irônico: era o sorriso de alguém que presumia estar expondo os aleijões de uma obra-prima e que de certo modo se escusava porque, precisando tomá-la como base para o seu trabalho, não conseguira dar a ele o brilho que certamente seria atingido se ela pudesse ter mandado ao diabo o original e seguido rumo próprio.
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Você tem razão, Raul.Eu, como professora do ensino médio que fui, nunca permiti que meus alunos lessem estas resenhas e dizia que deveriam ler as obras,pois só com elas poderiam adquirir cultura.Carmencita55
ResponderExcluirconcordo plenamente. E o pior é que essas publicações, cada vez mais disseminadas, só contribuem para o empobrecimento cultural de gerações inteiras.
ResponderExcluirCarmencita, Patrícia, infelizmente algumas editoras às vezes sacrificam a qualidade ao lucro. Quanto à adaptadora que "melhorou" o Eça, tomara que ela não queira aperfeiçoar também o Machado de Assis. Uma boa, embora também difícil tarefa para ela, seria tentar traduzir o Paulo Coelho -- de preferência para o português.
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