domingo, 10 de outubro de 2010
Lírica (927) - Essa palavra
Chamou o amor com tanta febre e loucura que seus lábios sangraram. Implorando por água, foi-se enfiando mais e mais num deserto que havia sido visitado pela última chuva num dia impreciso, quarenta ou cinquenta anos antes. Esqueceu-se da sua infância, da adolescência, de tudo. Esqueceu-se do seu nome, e todas as outras palavras, não mais ditas pela sua boca, morreram também na sua memória. Andou, continuou andando, não porque tivesse um rumo, mas porque lhe parecia vagamente que andar era a maldição que devia cumprir. Não buscava mais o amor. Queria beber um gole de água, nada mais do que isso, antes de entregar o corpo à areia quente. Mas, na tarde em que recebeu a bênção ansiada, as duas gotas que deslizaram dos seus olhos e umedeceram por um instante seus lábios eram salgadas como a saliva do demônio. Mesmo assim, balbuciou ainda a derradeira palavra, a única da qual nesse instante se lembrou. Se alguém estivesse com ele ali, poderia dizer, mais pelas sílabas desenhadas na sua boca do que pelo som, que essa palavra era amor.
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