quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Desejar um bom ano...

... a todos, e especialmente àquela única pessoa, no mundo, que se recusará a receber esse voto: Priscylla Mariuszka Moskevitch.

Soneto das duas naus

Buscando o amor, duas naus,
Uma de nobres guerreiros,
E a outra de flibusteiros,
Por ventos bons e por maus

Lançaram-se pelos pélagos,
Rondaram todas as ilhas
E com o furor de suas quilhas
Rasgaram os arquipélagos.

Depois de intensos tormentos
O desatino dos ventos
A nau dos bons afundou

E o canto dos vencedores,
Dos vis, dos estupradores,
Sobre as ondas se elevou.

Presa e predador

Sempre damos mais uma chance ao amor. Está em nossa índole e convém à sua natureza de predador.

Quem faz o quê

Não é o amor que nos mata. Nós é que morremos por ele. E que escandaloso é o nosso sorriso.

Cena final

Não há mais o que fazer.
Viveste, esparso ou inteiro,
E o que consta no roteiro
Depois da vida é morrer.

"Antigo pensar", poema de Li Qi

"Homens recentes cumprem expedições longínquas
- Parti novo. Forasteiro nas regiões do Nordeste
Jurei vencer, deitado - uma aposta - sob os cascos de um cavalo
Já que pouca atenção dou a este corpo de sete polegadas.
Matar, isso, sim sou capaz. Quem me vai fazer frente
É a feroz barba igual a picos de ouriço.
No sopé da cordilheira amarelas brumas voam nuvens brancas
- Enquanto estiver no serviço não pode ir de volta,
Uma rapariga coreana, dos seus quinze anos
Sabendo tocar hábil em dança e cantares
Entoa na flauta bárbara uma canção das raias
Em três corpos de exército correr faz as lágrimas."

(Do livro Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil Carvalho, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Balança

Nossa valia é variada,
É tudo muito fortuito.
Dez vezes valemos muito,
Mil vezes valemos nada.

Menosprezo

Querer que a arte exprima a vida é esperar muito pouco dela.

Lacuna

Não ser o autor de  Romeu e Julieta ou Crime e castigo é uma desgraça que acontece à maioria dos escritores.

Sorte

Escrever é sempre um jogo.
A sorte pode nos dar
Ulisses, O velho e o mar
Ou Marimbondos de fogo.

Férias

A nenhum escritor faria mal ser Paulo Coelho por seis meses, ou por um ano, e depois voltar ao que lhe parecesse literatura.

Antimemória de dezembro

Sempre que chega dezembro,
Em nome da sanidade,
De mim escondo a verdade,
E finjo que não me lembro.

E esfolo a manhã, e mato
Também a tarde em que amei
E amei tanto que pensei
Que o amor fosse mesmo um fato.

Hem?

Importa acaso dizer,
Agora que te perdi,
Que sou capaz de viver
E até de morrer por ti?

Cotação do dia

Armei uma tempestade, como se eu fosse um transatlântico e precisasse testar-me. Tolo. Eu era o que sempre fui, o que sou. Uma folha que o vento tem pejo de empurrar.

Um trecho de Diogo Mainardi

"Até aquele momento, eu sempre pensara que, se meu filho permanecesse em estado vegetativo, eu esperaria que ele morresse. Depois do primeiro contato com Tito no corredor do claustro do hospital de Veneza, tudo se transformou. Eu só queria que ele sobrevivesse, porque eu o amaria e o acudiria de qualquer maneira. Entre a vida e a morte, aferrei-me à vida."

(Do livro A queda, publicado pela Record.)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Diagnóstico

Notando que estertorava,
Lhe deram anestesia
E vupt!, para a cirurgia.
Porém o mal que o matava
Ninguém ali pressentia
E nem sequer suspeitava.
Sofria só porque amava,
Morreu no sétimo dia.

Soneto do Amor e seus feitos

Para as suas epopeias,
O Amor reputa propícias
Tanto as enjoadas patrícias
Quanto as alegres plebeias.

Para as suas melopeias
Lhe servem puras Alícias,
De recatadas delícias,
E desbocadas Frineias.

Ele tem fama de puro
Mas não pode ver um furo
Sem querê-lo aprofundar.

De lua fala e poesia
Mas o que mais aprecia
É buracos escavar.

domingo, 28 de dezembro de 2014

Soneto da celebração

O amor será celebrado
No que tiver nos servido,
No que tiver nos valido,
No que tiver nos somado.

Será também decantado
No que tiver nos doído,
No que tiver nos pungido,
No que tiver nos magoado.

Fazermos isso será
O que mais belo haverá
Para por ele fazer.

Cantar o único motivo
Para alguém continuar vivo,
Ou para querer morrer.

Corda

Tantas vezes ele te falou da corda, tantas vezes ele a tirou da gaveta para mostrá-la, e não lhe deste atenção. Já não a acharás na gaveta. Hoje a encontraram em volta do pescoço dele, derradeira gravata.

Quarto 424

Um dia alguém perguntará no saguão e saberá que o teu quarto é o 123 (não, não, desculpe, é o 424, dirá o atendente, que cabeça a minha) e teu (ou tua) visitante comentará como tu sempre foste querido e como é bom que estejas te recuperando. Será como se, no 424, tu, destinatário de tão poucas palavras doces na vida, tivesses ouvido isso. Fecharás os olhos, te entregarás ao teu último momento, e estarás com um rosto tão feliz que, quando entrar no quarto, o teu ou a tua visitante sorrirá e ficará em silêncio, imaginando que estarás dormindo.

Intensidade

Ao contrário do que dizes
Convictamente, jamais
Seremos tão infelizes
Que não possamos ser mais.

Bivalente

Deste aforismo singelo
Quem haverá de descrer?
O amor é o modo mais belo
De viver e de morrer.

Soneto das letras escarlates

Resolvi hoje queimar
As fotos, cartas, mensagens
Que em mil felizes passagens
Tu me quiseste mandar.

Antes de me desfazer
Dessa parte, a mais querida
De todas na minha vida,
Jurei não me enternecer.

Como um carrasco agiria,
Indiferente à agonia
E isento de compaixão.

Assim fiz. Sem chorar vi
O que de melhor vivi
Queimar-se com lentidão.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Confissão

Porque teus pés estavam longe, beijei teus sapatos, com o fervor de um devoto.

Soneto dos dois viciados

Sim, ainda nos recordamos
Com ressentido prazer
Das juras que nos juramos
De amar-nos até morrer.

Nós conosco nos viciamos,
Nós nos demos de beber,
Conosco nos injetamos,
Soubemos nos perverter.

Mas um dia, de repente,
Injustificadamente,
Te foste sem dizer nada

Para um destino ignorado.
Que farei, de ti viciado?
Que farás, de mim viciada?

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Soneto da absolvição

Quando vier o dia em que eu,
Depois desta vida fútil,
Sem ter feito nada de útil,
For alguém que já morreu,

Serei de tudo absolvido
Como se fosse perfeito
Em tudo que houvesse feito
E em nada fosse excedido.

Mesmo tu, minha querida,
Que nunca os chegaste a ler,
Irás a todos dizer

Que pelo resto da vida
Versos como os meus jamais
Chegarás a ler iguais.

Cotação do dia

Eu estou carente, sim.
Se fosse um poste, olharia
Para os cães e pediria:
"Por favor, mijem em mim."

Patifes

Patifes sois e sereis
Vós todos que amor jurais,
Se ao jurardes já sabeis
Que não cumprireis jamais.

Éreis?

Naquele dia em que ouvi
Aquelas coisas amáveis,
Éreis vós mesma que vi
Ou vós ali não estáveis?

"Visita", de Mariana Ianelli

"Envelheceu o nosso pai,
Se fez longínquo.
De olhos abertos
Dorme o sono das pedras,
Seu reino é uma ilha.

Ele sabe o nosso horror
Debaixo do sorriso,
Tudo ele vê, toca, atravessa,
Nossa bruma,
Nossa mão escondida.

O silêncio está tão perto,
Nós fechamos os ouvidos.
Ele passa lentamente,
Envergonha a nossa pressa
E se retira.

A penumbra de cada visita
Nos dai hoje,
Rezamos (sem rezar)
Todos os dias."

(D livro Terra alvorada, edições ardotempo.)

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Falsidade

O que o amor nos prometeu
Com tanto empenho, fervor
E tão atroz despudor,
Tu recebeste? Nem eu.

Crianças

Crianças têm expressões que espantam e encantam os adultos. Meu amigo Oswaldo de Camargo conta que numa festa em sua casa o filho dele, então com cinco anos, ficou extasiado com os enormes seios de uma convidada. Começou a segui-la por toda parte. Naturalmente vieram os comentários: olha aí, Camargo, teu filhote está apaixonado, isso vai dar em casamento. A mulher ria, mas o garoto continuou sério, até que criou coragem e, apontando os seios pródigos, perguntou: a sua bunda é aí, é? E meu filho Edu estava com uns oito anos quando, vendo na tevê o par romântico de uma novela esbanjando beijos e amassos num carro, disse, com aflição: pai, eu estou ficando com raiva no pinto.

Soneto do bem e do mal do amor

Acordo como dormi.
Da vida desiludido,
Magoado, triste, vencido,
Pensando apenas em ti.

O que contigo vivi
Naquele tempo querido
Tão ido, já, e vivido,
Ainda hoje não esqueci.

Lembro de tudo acordado
E, quando o corpo cansado
Se entrega ao sono, afinal,

Sonho e, no sonho que vem,
Teu amor, todo o meu bem,
É também meu maior mal.

A norma

Há muito sabes, de cor,
Porque isso é que é o habitual:
Irá tudo sempre mal,
E de mal irá a pior.

Musa

Minha musa é sóbria, fria.
Distante por natureza,
Abre os braços à tristeza,
Fecha os olhos à alegria.

Rumo

Como um rio somos nós.
Jorramos furiosamente,
Cantamos alegremente,
O túmulo é a nossa foz.

Compromisso

Embora pareça uma atitude de extrema presunção, o escritor, quando escreve a primeira palavra de um texto, deve pensar que está começando algo que se relacione com a arte.

Uma fala de Romeu










"É suplício, e não favor! O céu está onde Julieta viver; e qualquer gato, cão e camundongo, qualquer coisa por indigna que seja, aqui vive no céu e pode contemplá-la; só Romeu não pode! Mais felizes do que Romeu, mais honrosa situação, maior cortesania alcançam as moscas que vivem na podridão! Elas podem pousar no branco prodígio da mão de minha amada Julieta e roubar a dita mortal dos seus lábios, constantemente ruborizados pelo puro e virginal pudor, como se tivessem por pecado seus recíprocos beijos! Porém Romeu não pode a tanto chegar! Está banido!"

(Romeu e Julieta, ato terceiro, cena 3, tradução de F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes, publicado pela Abril.)














quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Soneto de Natal

Se eu tivesse ainda a pureza
Que tinha quando menino,
Me encantaria a beleza
Do alegre toque do sino.

E riria, com certeza,
Como quando, pequenino,
Me alegrava a singeleza
Das notas de qualquer hino.

Passou o tempo, cresci,
E a lição desaprendi
De que o precioso é o banal.

Triste, mudo, só, alheio,
Eu vi ir-se, como veio,
O indesejado Natal.

Banquete

Do que respingou nas toalhas,
Do que ficou sob as mesas,
Das carnes, das sobremesas,
O amor recolhe as migalhas.

Do ouro cuspido nas palhas,
Das maçãs e das framboesas
Mordidas sem sutilezas,
O amor recolhe as rapalhas.

Amor, que praga rogaram,
Que maldição te lançaram,
Que te fizeram, amigo?

Para a fartura nasceste
E na opulência cresceste,
Mas morres como um mendigo.

Soneto da salvadora

Se quem sou queres saber,
Te digo: sou este traste
A quem tu deste e tiraste
A vontade de viver.

Pensaste em tudo: nos teus
Amigos, nos teus parentes,
Nos planos teus, tão coerentes.
Pensaste acaso nos meus?

Tantas baleias salvaste,
Das crianças não descuraste,
De tudo cuidaste, enfim.

Fizeste tantas cruzadas,
Tão nobres, tão abençoadas.
Fizeste alguma por mim?

Da bênção imerecida

Depois dos erros tão crassos
Que ontem nós dois cometemos,
Mesmo assim hoje nos temos
Outra vez em nossos braços.

Se erramos todos os passos
E os rumos todos perdemos,
Não sei como merecemos
A bênção destes abraços.

Depois de tanto descaso,
Este milagre, ou acaso,
Seja por nós entendido

Para que erro nenhum mais,
Dos grandes ou dos usuais,
Seja por nós repetido.

Natal

Talvez alguém se enterneça
E me deixe algum recado.
Ou então talvez esqueça.
Eu já estou habituado.

Cotação do dia

Resistir ao sentimentalismo e assegurar à minha fiel tristeza que não me deixarei iludir pelo que me desejarem hoje.

Segunda chance

Se um dia acaso tivermos
O amor novamente à mão,
Não percamos a ocasião,
Se ainda o que é amor soubermos.

Ninguém mais diz adeus

Como eram comoventes aquelas longas cartas em que as mulheres renunciavam ao amor e apresentavam dezenas de argumentos, ditados pela razão e pelo coração, em folhas e folhas manuscritas e molhadas pelas lágrimas. Não existe adeus na linguagem amorosa atual, nem lágrimas. Por e-mail ou pelo msn, sem preâmbulo e sem argumentação, vêm as quatro incisivas palavras: "Fulano, olha, já deu." Ou, quando há um pouco mais de consideração, estas oito: "Fulano, é pena, mas não vai mais rolar."

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Cotação do dia

Alguém que continua a tocar a campainha, sabendo que todos da casa já morreram.

Folha corrida

O amor é aquele farsante
Que nos dá um golpe aqui,
Outro golpe aplica ali,
Ri de nós e segue adiante.

Horror

Nos pesadelos, Mario Quintana era enfiado numa gaiola por um homem que tinha suas mãos e seu rosto.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Assim todos nós começamos por representar e quanto mais perto estivermos do que seríamos, mais perfeito é o nosso disfarce. Finalmente, vem o momento em que não mais estamos representando; isso pode até nos pegar de surpresa. Podemos olhar estupefatos para nossas plumagens não mais emprestadas. Elas se fundiram: a que vestimos juntou-se à que existia; representar se transformou em atuar. A alma aceitou como sendo sua essa libré, depois de um período de experiência e aprovação."

(D livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Solução

Morrer é um modo sucinto
De fazer voltar a calma
Tanto à nossa sofrida alma
Quanto ao nosso tolo pinto.

Cotação do dia

Acordar e ver-me venturosamente preso ainda pelo amor. Sorrir e desdenhar os que lá fora passam cantando a liberdade.

"Semelhança", de Mariana Ianelli

" - E se a tua mudez
For a superfície de um lago
Que nada recusa refletir

E se eu ali mergulhado
Feito um cego
Compreender
Que o rosto que me falta ver
É este rosto
Que sempre te ofereço
Mas que frente a frente
Jamais encontrei

E se o pranto for a verdade
Do canto

O assombro de um horizonte
Tão brando
Que desde longe me obriga
A trazer à tona, um dia,
O teu rosto  refletido -"

(D livro O amor e depois, edições ardotempo.)

domingo, 21 de dezembro de 2014

No cativeiro

Para cantar seu encanto,
Para nós, seus sentenciados,
O amor, nos dias marcados,
Patrocina aulas de canto.

Do fulgor decadente

Será possível que o encanto
Inigualável do amor
E seu mágico fulgor
Sejam jogados a um canto?

Parece que não. No entanto,
Arrefeceu seu calor
E o que tinha antes valor
Agora já não tem tanto.

Logo chegará o dia
Em que a já pouca magia
Se desfará totalmente.

Quando esse dia chegar,
Iremos nos perguntar
Se o amor existiu realmente.

Rota

Conhece bem o amador
De alto-mar ou cabotagem
Que sempre será o amor
A mais turbulenta viagem.

www.rubem.wordpress.com

Na crônica de hoje, falo dessas pessoas que, sempre alegando que agem ou se omitem por nosso bem, nos dilaceram e matam.

Assim seria

Eu saberia dançar. E dançaríamos. A janela estaria aberta, e pétalas de rosas flutuariam entre nós como se fossem as notas da canção. Quando a música acabasse, as notas continuariam flutuando. Você, gentil, me perguntaria onde eu tinha aprendido a dançar tão bem, e eu tentaria retribuir recolhendo algumas pétalas, para dá-las a você. Você riria muito: "Você aprendeu a dançar, seu tolinho, mas nunca vai saber apanhar pétalas."

Cotação do dia

Depois que você se habitua a estar morto, o amor não vem mais tocar a campainha.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Quanto pesem os maus bocados, as páginas rasuradas e sem nexo de minha vida, sempre te encontro debaixo de um céu imenso, num sossego que torna ridículo qualquer acesso de impaciência. E que vida cinzenta seria a minha se não estivesse ali contigo, se apesar de tudo não conseguisse estar, se inventasse uma desculpa por medo, medo da noite, medo do sossego, medo dos teus olhos tocando os meus, lá no fundo de um poço, como só aqueles que se amam sabem fazer. Mas até hoje alguma coisa em mim foi maior que o medo, alguma coisa de bicho desaçamado que fareja a terra e se sente bem."

(Da crônica "Carta para o amigo", extraída do livro Breves anotações sobre um tigre, editora ardotempo.)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Serventia

Para que te servirá o amor, se não te doer? O amor deve roer o corpo, supliciar a alma. O amor não é isso que estão dizendo. O amor não é um nome na agenda e um encontro marcado para um cineminha, um jantarzinho e o motel. O amor será aquilo que clamaremos sempre para ter, sempre em vão. O amor é aquilo que, felizmente, nunca chegaremos a merecer.

Síntese

Pelos meus planos, esta seria a época em que os críticos literários me avaliariam, assombrados. Algo não deu certo, e mais adequado seria chamar um açougueiro para pesar e ver quanto vale minha carcaça.

Cotação do dia

O tempo propício passou. Hoje o homem pendurado na corda já não seria aquele que dela precisava e a merecia.

Saudosismo

Na barraca dos pastéis
Ele, com muito desgosto,
Lembra que tinham mais gosto
Quando custavam cem réis.

"Canção do vidraceiro", de Jacques Prévert

"Como é bonito
o que se pode ver de repente
através da areia através do vidro
através dos caixilhos
olhe lá veja por exemplo
como é bonito
aquele lenhador
bem distante no fundo
que derruba uma árvore
para fazer tábuas
para o carpinteiro
poder fazer uma grande cama
para a pequena vendedora de flores
que vai se casar
com o acendedor de lampiões
que acende todas as noites as luzes
para que o sapateiro possa ver bem
ao consertar os sapatos do engraxate
que escova os do amolador de facas
que afia as tesouras do barbeiro
que corta o cabelo do vendedor de pássaros
que presenteia pássaros para todo o mundo
para que todo o mundo fique de bom humor."

(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

É fantástico

Há alguns anos escrevi uma crônica sobre um menino de uns dez anos que só pensava em matemática. Quando lhe perguntavam o que pretendia ser quando adulto, não vacilava: queria ser uma pessoa jurídica. Assim que o texto foi publicado, recebi uma ligação. Era da produção do Fantástico. Queriam o telefone do menino. Não pude dar. O menino era uma invenção minha.

Melhor

Se posso ainda algo querer
É que depois desta vida
Tão duramente vivida
Seja mais fácil morrer.

Ofertas

Tudo o amor nos oferece,
Mas, todavia, contudo,
Da promessa logo esquece
E nada nos dá de tudo.

Aflição

E o amor será tão grande que não daremos conta dele. Ele começará a escapar pelos nossos olhos, pelos lábios, e haverá nas ruas uma aflição para guardar ao menos um fiapo dele, como lembrança.

Eros

Disse-me que era cego e pediu desculpas antecipadas. Talvez errasse. Disparou a seta com tanta inabilidade que precisei deslocar-me rapidamente, para que ela me acertasse bem no centro do coração.

A vilã

Numa de minhas recentes visitas a colégios, tive uma surpresa. Vi-me de repente diante de uma classe de meninos e meninas não de doze ou treze, mas de cinco a seis anos. O que iria dizer a eles? Disse que ia contar uma história. Oba, oba, oba. E que história iria contar? Não tinha preparado nenhuma. Eu disse: vocês devem ter cuidado quando forem abrir uma gaveta. Outro dia uma caiu no meu pé. Os meninos me olharam. Começo de história esquisito. Perguntaram: e aí? Aí está doendo até agora. Um perguntou: está doendo muito? Respondi: um pouco. Nesse momento, várias mãos se levantaram. Todos queriam me contar uma história. Contaram. No pé de todos, um por um, havia caído uma gaveta, e a pancada ainda doía. Ah, como podem ser gentis as crianças. A professora sorriu quando os garotos e eu fizemos um coro para mostrar como doíam nossos pés: ai, ai, ai. À noite, na feirinha de livros do colégio, alguns me apontavam para os pais: foi no pé dele que caiu a gaveta.

Onipresente

O sexo é sempre um perigo,
Em tudo ele está presente,
Porém mais frequentemente
Um palmo abaixo do umbigo.

As fotos de Paula Saraiva

Esta noite segui num sonho uma das mulheres das fotos de Paula Saraiva. Acordei de manhã com fiapos de nuvens na cabeça e, por um instante, julguei que me coroavam poeta.

"Canção dos caramujos que vão ao enterro", de Jacques Prévert

"Ao enterro de uma folha seca
Vão dois caramujos
Têm a concha negra
E véu negro em volta das antenas
Vão pela noite
Uma bela noite de outono
Quando chegam coitados!
Já chegou a primavera
E as folhas que jaziam pelo chão
Todas tinham ressuscitado
Os dois caramujos
Ficam muito desapontados
Mas eis o sol
O sol que lhes diz
Façam o favor façam
O favor de sentar
Tomem um copo de cerveja
Se vontade lhes dá
Tomem caso queiram
O ônibus para Paris
Parte esta noite
Poderão admirar a paisagem
Mas não ponham luto
Sou eu quem lhes aconselha
Escurece o branco do olhos
E também enfeia
Histórias de enterro
São tristes e nada belas
Ganhem as suas cores
As cores da vida
Então animais
Árvores plantas todos
Começaram a cantar
A cantar aos berros
A verdadeira canção viva
A canção do verão
E todo o mundo a beber
E todo o mundo a saudar
É uma bela noite
Uma bela noite de verão
E os dois caramujos
Voltam pra casa
Voltam muito comovidos
Muito felizes
Como beberam demais
Ziguezagueiam um pouco
Mas no céu lá no alto
A lua protetora."

(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

























quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Obra

Em tudo fomos deixando
Nosso estilo, nossa marca,
Nossa arte, bisonha e parca,
Que o tempo foi apagando.

Mais um sonetinho que até um amor morto pode produzir

Não me agrada dizer isso,
Mas chegou já o momento
De me declarar isento
De ti e de teu feitiço.

Foram anos de loucura,
Infindáveis, angustiantes,
Em troca de alguns instantes
De comedida ternura.

É o fim de tudo, querida.
De ti e de tua vida
Não quero mais saber nada.

Perdoa-me se ocorrer
Que algum dia eu, ao te ver,
Mude para a outra calçada.


Lista

Papai Noel, no caderninho,
Marcou diligentemente
Para o lobo um bom presente:
O mais tenro cordeirinho.

E

E o amor será tão grande em nós que não daremos conta dele. Ele começará a escapar pelos nossos olhos, pelos nossos lábios, e haverá nas ruas uma aflição para apanhar ao menos um fiapo dele.

Para o dia

Saio para a manhã. No jardim, olho com ansiedade para as folhas no chão. Todas da minha ameixeira. Um folheto de pizzaria, outro de encanador. A amada não se lembra mais de mim. Deve estar dormindo agora, depois de dançar toda a noite com marinheiros holandeses e beber vinho nos lábios deles.

"Tantas florestas...", de Jacques Prévert

"Tantas florestas arrancadas da terra
e massacradas
arrasadas
rotativadas

Tantas florestas sacrificadas para virar pasta de papel
milhares de jornais chamando anualmente a atenção dos leitores para os perigos do desmatamento dos bosques e das florestas."

(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Meia-noite

Esta é a hora em que os fantasmas dos amores mortos começam a andar pelos corredores e a pregar o suicídio. Vêm de branco, tão diferentes do que eram quando viviam, e sua voz é persuasiva.

Esperteza

Mario Quintana fingia ser homem para não ter que ficar voando e cantando todo o tempo.

Sermos

Aos poucos mudando fomos
E, ai de nós, tanto mudamos
Que já nem sabendo estamos
Se somos nós, ou quem somos.

O nome do amor

Pelo que me prometia
E pela traição que fez,
O nome do amor seria
Joaquim Silvério dos Reis.

Defesa

Seja a evidência qual for
E o indício o mais definido,
Sempre que o culpam, o amor
Se faz de desentendido.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Como o amor nos treslouca

Em verdade vos digo que o amor nos enlouquece de tal modo que desandamos a usar expressões despropositadas e tratamentos de vários séculos atrás. Como esse "vos" que está aí em cima, indesmentível. Se a amada chegasse agora, eu perderia meu último pudor e a chamaria de idolatrada, esperando que a brisa desta primavera fosse repeti-la à árvore mais florida do jardim: idolatrada, idolatrada.

Cotação da noite

Alguém que morreu há uns dois ou três anos, foi avisado disso e está esperando a etapa seguinte.

Um desses sonetinhos que até um amor morto é capaz de produzir

Morta a estação dos amores
Depois de crua agonia,
Perdi a mão para as flores
E o jeito para a poesia.

Por onde agora tu fores
Em trilha clara ou sombria,
Serão teus teus dissabores
E tua tua alegria.

Não mais te acompanharei,
Não mais tua sombra serei,
Serei eu, apenas eu.

Que lástima ter morrido
O amor tão terno e querido,
Se a memória não morreu.

Cotação do dia (2)

Pelos meus planos, tenazmente desenvolvidos desde a adolescência, esta seria a época em que os críticos literários estariam me avaliando. Houve algum erro, e mais adequado seria chamar um açougueiro para pesar e ver quanto vale minha carcaça.

Custo-benefício

O amor me poupou porque acha a minha voz apropriada para as canções com as quais ele dança no convés, com os marujos.

Cotação do dia

Houve alguém que, atormentando os meus dias, me lançou de novo aos braços do desassossego e da poesia. Que seja duas vezes amaldiçoada (ou abençoada).

Terça-feira, 16 de dezembro de 2014, 9h

Saiamos e enfrentemos nosso leão diário. É nossa sina, e o leão precisa comer.

Má vontade

As palavras são discriminadas, como as pessoas. Houve um tempo em que fui apaixonado por mormente. E riam de mim.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Daqui de onde escrevo, à noite, vejo os aviões. Tem sua beleza um ponto de luz esfumaçado, deslizando no escuro como um farol de embarcação. A miragem me faz pensar nas viagens à moda antiga, quando a distância era tão longa quanto a espera e os ventos tão caprichosos quanto as vontades. Amo as noites por isso, por essa miragem de navegação. É quando vigora outro tempo, o tempo da crisálida, da luz amarela, o tempo do hibisco se fazendo atrás dos galhos. Enquanto os gatos saem para caçar mariposas, a cidade desaparece debaixo da cerração."

(Da crônica "Mensagem na garrafa", do livro Breves anotações sobre um tigre, edições ardotempo.)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Teste

Um dia farei um texto em que a palavra entrementes não causará estranheza e será tão bem aceita quanto uma rosa. Nesse dia poderei ser chamado de escritor.

De poetas e passarinhos

Pensando na dificuldade que têm os poetas para publicar seus livros, lembrei-me da piada do empresário que, encarregado de recrutar artistas para um show, recebeu um rapaz que dizia ser imitador de passarinho. Recusou-o imediatamente, furioso. O rapaz então saiu voando pela janela. Ao poeta que for procurar um editor não basta dizer que escreve como Fernando Pessoa. Precisará ser o próprio.

Calças curtas

O escritor quer afagos. Quando rima rosa com majestosa, está pedindo que digam "ai, que lindo". Quando se espeta com os espinhos, está esperando que venham soprar sua mão. Quando vai receber o Nobel, há um instante em que pede licença ao público circunspecto, puxa um lenço e diz "obrigado, mamãe".

"O gato e o pássaro", de Jacques Prévert

"Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro deixa de cantar
O gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Funerais maravilhosos
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não para de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Você teria sofrido menos
Só tristeza e saudades

É preciso nunca fazer as coisas pela metade."

(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)


domingo, 14 de dezembro de 2014

Por dentro

Toda inquietação há de provir do amor, para ser legítima. E deve provocar em nosso peito um alvoroço como o de um bando de pássaros desprendendo-se repentinamente de um telhado.

Escândalo

Nesta época de escutas clandestinas e câmeras ocultas, ai de ti, minha amiga, se disseres que vais dormir com Deus.

A mesma história

O escritor geme, lastima-se, ameaça atos desatinados. Ah, nunca mais conseguirá escrever nada. As palavras, com pena, vão voltando aos poucos e se põem à sua disposição. E ele, mais uma vez, as esbanja com temas corriqueiros como o amor.

Embuste

Amo as crases. Por me suporem especialista nelas, consegui por muitos anos sustentar decentemente minha família, sob o disfarce de revisor de textos.

Luxúria

Os domingos têm dedos macios de meninos mimados. Ah, ser estrangulado por eles lentamente, com tempo de dizer o nome do amor, quem sabe diante do mar, sob as estrelas.

Cotação do dia

De manhã, os infortúnios têm aroma de flor.

Retoque

Deus nos fez à Sua imagem e semelhança, mas fizemos tudo para mudar.

Um tipo de amor

Há um tipo de amor que parece uma tempestade no mar. As gaivotas desaparecem, as nuvens se carregam rancorosamente, os trovões sacodem o céu. Os navios empinam-se, corcoveiam como cavalos dopados, atirando os marinheiros uns contra os outros, entre maldições e apelos a Deus. São vinte minutos, meia hora de horror. Aos poucos, o céu se abre, ressurgem as gaivotas, os navios deslizam como veleiros de regata. Os marujos, então, suspiram. Estarem vivos é quase um milagre. Voltam à rotina. Mas logo o sorriso se apaga. O sangue anseia ainda pelo tumulto, pela loucura, pelo caos, pelos gritos de maldição e pelas invocações a Deus. Esse amor, novelesco e insano, não deixa de ser uma bênção enquanto dura. Dura pouco. Nisso estão seu feitiço e encanto.

Não sou eu

Quem fala diariamente de amor a vocês não é o homem que minha foto mostra. A este caberia discorrer sobre outros assuntos, como a existência da alma e o destino dela quando a carne assumir sua natureza de pó. O homem que fala de amor a vocês é uma criação minha, dos meus desvarios e de minhas leituras românticas. Ele se recusa a ser o que os estereótipos determinaram. Ele desafia a chacota, o escárnio, a zombaria e ousa ir tirar para dançar a jovem que três garbosos rapazes rodeiam, sem se sentirem capazes. Ele não crê que seu rosto seja o da foto e acredita que também a jovem seja capaz de ver isso.

"Batismo de ar", de Jacques Prévert

"Essa rua
outrora chamada de rua do Luxemburgo
por causa do jardim
Hoje é chamada de rua Guynemer
por causa de um aviador morto na guerra
No entanto
essa rua
é a mesma de sempre
o jardim é sempre o mesmo
é sempre o de Luxemburgo
Com alamedas... estátuas... fontes -
Com árvores
árvores vivas
Com pássaros
pássaros vivos
Com crianças
todas as crianças vivas
Então a gente pergunta
a gente pergunta pra valer
por que um aviador morto foi ali meter o bedelho."

(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

sábado, 13 de dezembro de 2014

Cotação da noite

O barco dos meus ideais não busca mais o horizonte. Aspira ao fundo mais profundo.

Na real

Nenhum homem é uma ilha.
Sempre haverá outra mão
Para atiçar o tesão
E para abrir a braguilha.

Intuição

Sinto que escrever cada vez menos é o que de melhor posso fazer para os leitores.

Folha corrida

O amor é uma dessas bobagens que tentamos justificar pelo resto da vida.

Imposição

Falar de amor é a tarefa que a vida me impôs. Todo dia me obrigam a desempenhá-la. E, quando se esquecem de ordenar, acuso os capatazes de negligência.

Benevolência

Escrever cada vez menos é sempre o melhor tributo que podemos prestar ao leitor.

Cotação do dia (2)

O amor é uma dessas bobagens que tentamos justificar pelo resto da vida.

Presente de grego

Deus nos fez à sua imagem e semelhança, mas fizemos tudo para mudar.

"O terno e perigoso rosto do amor", de Jacques Prévert

"O terno e perigoso
rosto do amor
me apareceu numa noite
depois de um dia muito comprido
Talvez fosse um arqueiro
com seu arco
ou ainda um músico
com sua harpa
Não me lembro mais
Nada mais sei
Tudo o que sei
é que ele me feriu
talvez com uma flecha
talvez com uma canção
Tudo o que sei
é que me feriu
feriu aqui no coração
e para sempre
Ardente muito ardente
ferida de amor."

(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Mortes

O amor nos pesa na consciência como aquele passarinho que matamos com uma pedrada, na infância.

Polissílabo

Mesmo que sejam mais de quatro as sílabas de nosso nome, o amor saberá escrevê-lo em nossas costas com seu chicote senhorial.

Soberania

No dia em que formos nós os escolhidos para entreter o amor, só teremos um pedido a lhe fazer, quando ele chegar com o pelotão de fuzilamento: que não nos vende os olhos, para podermos vê-lo mais uma vez no esplendor de sua presunção e soberania.

Bibelô

Ninguém que idealize o amor há de ser inábil a ponto de concebê-lo de tal forma que pareça possível vir a apropriar-se dele, como se fosse um desses objetos que ornam estantes.

Pieguice

O amor é um cego que toca violino na escadaria da Sé. Quase não lhe dão esmolas. Se fosse apenas cego, o aceitariam melhor. Acham que o violino é uma forma de chantagem.

Banquete

Os devotos do amor cultivam flores para ele. Se o vissem à noite, fazendo escorrer sua ávida baba sobre carnudas coxas de frango...

"Café da manhã", de Jacques Prévert

"Pôs café
na xícara
Pôs leite
na xícara com café
Pôs açúcar
no café com leite
Com a colherzinha
mexeu
Bebeu o café com leite
E pôs a xícara no pires
Sem me falar
acendeu
um cigarro
Fez círculos
com a fumaça
Pôs as cinzas
no cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
o chapéu na na cabeça
Vestiu
a capa de chuva
porque chovia
E saiu
debaixo de chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
Quanto a mim pus
a cabeça entre as mãos
E chorei."

(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Bom de bico

O amor vem sempre com aquela
Conversa para encantar.
Fala baixo, terno. Azar
De quem cair na esparrela.

Cotação da noite

Os leitores rareiam. Quatro, cinco, agora. Logo não precisarei mais de palavras. Poderão ser ouvidas, sem intermediários, as batidas do meu coração.

"Domingo", de Jacques Prévert

"Entre as fileiras de árvores da avenida dos Gobelins
Uma estátua de mármore me puxa pela mão
Hoje é domingo os cinemas estão lotados
Os pássaros nos galhos olham os humanos
E a estátua me beija mas ninguém nos olha não
Só um menino cego nos aponta com o dedo."

(Do livro Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicação da Editora Nova Fronteira.)

Cotação do dia (3)

Tudo já foi visto, lido ou imaginado. O cicerone, encabulado, espera um momento de distração nosso para se esgueirar e desaparecer.

Cotação do dia (2)

Escrever cada vez menos, deixar quietas as palavras. Aonde logo iremos, não teremos nem a quem desejar um bom dia.

Cotação do dia

Tudo é tão gasto, passado. Rosas florescem ainda, mas não para os meus olhos.

"Breve anotação sobre um tigre", de Mariana Ianelli

"Júbilo é uma palavra difícil de viver. Algo raro, tão raro quanto um tigre. Demora para acontecer, mas, quando acontece, uma pessoa já não pode mais voltar ao que era antes de ter sentido o que sentiu. Um acontecimento assim é o que excita um poeta a meter-se no escuro, procurando. Porque se existe um lugar além de um templo na Tailândia onde ainda hoje esse tigre passeia livre, longe de armadilhas, este lugar é um poema."

(Do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela ardotempo.)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Cotação da noite

Aqueles momentos em que tornar-se pó não é um destino, mas uma aspiração.

"O grande homem", de Jacques Prévert

"No ateliê do talhador de pedra
onde o encontrei
lhe tiravam medidas
para a posteridade."

(De Poemas, tradução de Silviano Santiago, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

Ele

Quando o amor nos bate à porta
É sempre aquele alvoroço.
Até a esperança morta
Sai lá do fundo do poço.

Itinerário

Amar é o modo correto,
O mais seguro e o mais terno,
De estar no céu e ir direto
Parar no portão do inferno.

Se fosse possível

Vocês eu não sei bem, mas,
Mesmo que ele fosse um ogro,
Bem que podia o meu sogro
Ser pai da Juliana Paes.

Tesouro

A maior riqueza a que pode aspirar um escritor é a fortuna crítica.

Polacaria

Se eu me chamasse Leminski
em vez de Drewnick
não seria uma boa rima
mas seria uma solução.

Paz

O amor não pode mais nos fazer mal. Estamos mortos. Mas deixemos que o tonto nos diga ainda seus versinhos melados, com essa ridícula mão no peito e seus perdigotos.

Você

Há quem cuide do amor, e há quem o afogue na bacia, como se fosse um gatinho cego.

Enredo

Amor, eu quero propor-te
Um papel na história minha:
Serei o bobo da corte,
Serás a minha rainha.

Caminho

A evolução do poeta deveria ir da exclamação aos pontos, dos pontos às reticências e, destas, ao silêncio.

Tema

Se eu não falar do amor, meu
Irmão não me reconhece,
Não tem valor minha prece,
Sou alguém que não sou eu.

Cotação do dia

Morto não é como você está. É como você se sente. É sempre uma questão de amor - ou de falta dele.

"Cântico", de Mariana Ianelli

"Apenas o tempo necessário
Nos separa.

Fina medula sobre a terra,
Benemérita da alegria
Quando canto,
Sonho que flutuo sobre um pélago,
Sonhar é o meu trabalho.

Minha forma disjunta
Uma crisálida
Que da morte se enamora
E não cogita
Se esse amor compensa
A pena e a confiança.

Todo o tempo de um instante
Eu me fazendo plana,
Ideia de um deus menino,
Isca para um colosso de asas,
Teu manto."

(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Como antes

Amor, tira-me as algemas. Ao menos hoje quero acariciar-te como se eu fosse tão livre quanto no dia em que te conheci.

Futuro

Estaremos mortos - e, se formos abençoados, ninguém voltará a pronunciar nosso nome.

Uma palavra

Amor é uma palavra tão santa que deveria ser dita só em voz baixa, como se ao redor de nós dormissem anjos.

Baixinho

Vou descobrindo que escrever não deve ser nada altissonante. A voz de escrever deve ser a mesma que usamos para falar com os gatos.

Vocação

Viver de amor é uma felicidade. Morrer por amor é um destino, uma vocação.

Biografia

Ao seu último gemido acrescentaram uma palavra, e ficou assim: ai, amor.

Que

Que no sonho de hoje haja um veleiro que me conduza até onde o mar, com uma guarda de golfinhos, mantém sepultados os que morreram de amor em suas ondas.

Sonho

Você se aproximou de mim lentamente. No ar, notas de um bolero convidavam à alucinação de todos os sentidos. Seu vestido de seda farfalhava escarlate e seus sapatos de salto alto feriam os tacos com presunção. Você me abraçou, seus lábios disseram amor para dentro dos meus, e eu caí de novo na esparrela.

Mil e um

O amor, quando vem, nos traz
Por si, infalivelmente,
Seu mal, cruel, persistente,
E mais mil que vêm atrás.

"À meia-voz", de Mariana Ianelli

"A terra fraca eu amei,
A terra fraca e desdenhada.

Amei tua carnadura
Sedenta de cuidados,
Meu Deus.

Me doía a casa morta
Erguida sobre séculos,
Em toda parte o ressaibo
De uma guerra difícil.

O leão de pedra na porta
Foi sempre o guardião
Dos jardins
E eu nem sabia.

Não sabia
Do que uma prece é capaz
Quando te abisma
Meu Deus
Num mundo de humana ira."

(Do livro Terra alvorada, edições ardotempo.)

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Como vier

Quem se dá ao amor deve dar-se sem condições. Aturar tudo, seus maus modos, suas birras, aquele rosto enjoado de quem tem sempre coisa melhor para fazer.

Hoje

Hoje talvez o amor não ache tão ruins nossos versos e quem sabe nos dê aquele sorriso que esperamos desde a última primavera.

Descoberta

Vou descobrindo que escrever não deve ser nada altissonante. A voz de escrever deve ser aquela que usamos para falar com os gatos.

"Pietà", de Mariana Ianelli

"Por delicadeza
Devia cada um resolver seu vestígio,
Não deixar o corpo a esmo,
Atravessado na passagem,
Sem desejo, sem enigma.

Mas, se me fica o teu corpo,
Eu te arrepanho nos braços
Com a maternidade do ofício
E lavo os teus ombros
De quanto pesou sobre eles,
O teu sexo, que a nenhum afago responde,
Lavo os teus pés, o ato mais santo.

Eu te arremato, eu te limpo da vida,
Faço com que desapareças,
Que o teu equívoco me abasteça
Da razão dos humildes.

Fardo ensoalhado, esse,
De amparar o meu próprio destino."

(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)

Tenho escrito

Tenho escrito pouco. Luto para me livrar do desejo de escrever frases definitivas, que soem como verdades. Ornamentamos a vida e chega um momento em que se requer simplicidade. Nosso rito é simples: viver, morrer. Somos o que fica no meio disso, e presumo que sejamos recebidos melhor, qualquer que seja o lugar para onde formos, se chegarmos com um sorriso em que não haja o mínimo sinal de empáfia.

Cotação do dia

Nem alegre nem triste. A impressão de que o passado há de ser trazido à tona, ainda que doa, e de que é preciso ver o que ele nos deixou de bom. Se ele nos modificou, aceitemos essa modificação. O que não se pode é ficar atolado na vida. Lágrimas são bem-vindas. Com elas sempre vem também um sorriso, um filete de sol que brilhou por um instante nas nuvens, ainda que muito outrora.

Bom dia

Para os que chegaram primeiro, já são cinco anos de conversa diária. É ela que me mantém. Tenho chorado no ombro de vocês e me mostrado inteiro. A paciência e o carinho de vocês são comoventes. Falo de mim, mostro-lhes minha poesia, a poesia de quem viveu para aprendê-la e ainda não aprendeu. Gosto de me dizer tolo, porque é assim que eu sou. Ser tolo é a minha honestidade. Não me aprecio quando faço truques. Gosto de dizer-lhes bom dia, como agora.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Agradecimento

Quando eu fui lhe dar o pão,
O amor, veloz e traiçoeiro,
Se soltou do seu poleiro
E veio bicar-me a mão.

www.rubem.wordpress.com

Na revista Rubem, meu texto de hoje fala de um desses homens que só se lembram da família quando precisam dela.

Gente

Não percamos a esperança. Ainda há quem se lembre do nome dos trinta e dois gatos de sua vida e chore quando diz como e com que idade cada um morreu.

Suspeito

Já deveríamos ter
A lição assimilado:
Se culpa houver, há de ser
O amor o maior culpado.

Sitcom

O velho disse que ia falar de amor. Aplausos e gargalhadas o impediram de continuar. A melhor piada da noite.

Cotação do dia

Pois é, continuo assim:
Um filme que terminou
Porém ninguém se lembrou
De pôr-lhe a palavra fim.

"Cerimônia", de Mariana Ianelli

"Agora o vigor ignorado do tempo.
De uma vez serás efêmera e eterna
como o animal que anda sobre a campina.
Tua boca de amar,
mas amar com demorados intervalos ausentes,
se abrirá sem música, murcha e seca, pedindo água.
Então eu virei de outros mundos
em minha jornada violenta para te aliviar
e suportar o deserto contigo.
Virei de uma andança antiga te pertencer
e debaixo de um ramo de avencas
pentear teu cabelo com as unhas.
Serás a mulher dentro do meu abraço
e, para quem eu terei vindo, serás mãe.
Como o animal que caminha francamente
e amoroso sobre a grama, serás mãe."

(D livro Duas chagas, Editora Iluminuras.)

sábado, 6 de dezembro de 2014

Castigo

Surpreendido em teu quarto quando cheirava tua roupa íntima, eu seria condenado a dormir todas as noites contigo, algemado.

Difícil

Se o amor não se fizesse de rogado, quem nós chamaríamos, com quem gastaríamos nossa voz e as palavras que nos ensinou a poesia?

Vassalo

Seguirás o amor como se ele fosse o que é, um grão-senhor, e como se tu fosses o que sempre quiseste ser: um lacaio dele.

Eco

Às vezes, à noite, o vento resgata na ameixeira o canto de um pássaro que a habitou no final da primavera.

Cena

"Mãe, ela vai beber todo o meu leite", diz a menininha, apontando a mosca afogada no copo.

Lembrança

Se te recordares de mim um dia, que seja por um instante só. Mesmo que estejas em 2030, não quero enfear o fino contorno do teu sorriso.

Saudade

Dos cinquenta anos de casamento, ela se lembra com mais ternura do primeiro, aquele em que um dos seis copos era um pote de requeijão cremoso.

Tela

As cores do amor esmorecerão na tela. Será difícil distinguir os rostos do casal, e o braço com que ele envolve os ombros dela será visto só por um minuto ou dois, em manhãs de primavera, por benevolência do sol.

Resumo

Tínhamos tanto a falar.
Hesitamos, relutamos,
Nem começamos. Deixamos
O tempo todo se escoar.

"Visita", de Mariana Ianelli

"Envelheceu o nosso pai,
Se fez longínquo.
De olhos abertos
Dorme o sono das pedras,
Seu reino é uma ilha.

Ele sabe o nosso horror
Debaixo do sorriso,
Tudo ele vê, toca, atravessa,
Nossa bruma,
Nossa mão escondida.

O silêncio está tão perto,
Nós fechamos os ouvidos.
Ele passa lentamente,
Envergonha a nossa pressa
E se retira.

A penumbra de cada visita
Nos dai hoje,
Rezamos (sem rezar)
Todos os dias."

(Do livro Treva alvorada, edições ardotempo.)









ê

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Negócios

O amor encontrou em mim o freguês ideal. Comprei seu bilhete premiado, o apartamento em Miami e o terreno na lua.

Pão

Amor, tu dizes a todos que mataste minha fome. Deste-me só algumas migalhas, que não ousei macular. Tenho-as ainda comigo. São, de ti, minha mais cara recordação.

Reserva

Amor, eu guardo os meus cios
Para os teus beijos ansiosos,
Para os teus lábios sedosos,
Para os teus dedos macios.

"Outubro", de Mariana Ianelli

"(...) Diz agora se te lembras da casa
Onde a gigantesca mariposa debatia
Suas asas de seda através das grades,
Onde os anos pesavam tanto
Que a chuva descia com seus tentáculos d´água
Pelo vértice dos nossos quartos cerrados...
Diz se ainda estamos contigo nesta felicidade
Ou se inventamos uma falsa alegoria
De tua verdadeira história desalmada."

(D livro Passagens, edições ardotempo.)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Comissão

Aos olhos dos forasteiros
Pareceu encantador
O campo no qual o amor
Mantém os seus prisioneiros.

Dezena

Quando contempla os dedos dela, imagina o que poderiam fazer os dez se finalmente resolvessem se pôr sob as ordens do amor.

Cotação do dia

Aos olhos teus jamais fui
Senão um tolo de quem
Tu não te lembras nem
Se eu era João, Raul ou Rui.

Sangue-frio

O amor às vezes me dá a impressão de ser capaz de mastigar uma rosa e devorá-la, pétala por pétala.

O único

Abraça-me como se eu fosse não o teu bem mais precioso, mas o único.

Per Baco

Vós, que vos proclamais poetas,
Enquanto o vinho provamos,
Comemos e fornicamos,
Escrevei por nós, patetas.

Pele

Amor é aquilo que a gente não sabe o que é, só sente como dói.

Como se

O amor, quando mencionado, há de provocar em nós um suspiro longo e profundo, como se a alma estivesse querendo nos dizer a única indesmentível verdade.

Fernanda Takai

Onde Fernanda Takai estiver cantando, a brisa será levíssima, suficiente só para manter flutuando um invisível fio de seda, provavelmente azul.

Vassalo

Seguirás o amor como se ele fosse o que é, um grão-senhor, e como se tu fosses o que sempre quiseste ser: um lacaio dele.

Nisso ou naquilo

O amor no fim se desmente
Em tudo ou em quase tudo:
Ou peca no continente
Ou falha no conteúdo.

Dedo

As feridas do amor verdadeiro não chegam a doer. Posto sobre elas, o dedo volta com açúcar aos lábios.

Amor, ato 3º, cena II

O bobo da aldeia vai à frente, exclamando amor, amor, amor. Atrás, cães e o coro da multidão: bocó, bocó, bocó.

Sotto voce

O amor há de ser uma confidência que se faz ao coração, e só a ele.

O que ele é

O amor é sempre uma farsa
Que para bem funcionar
Necessita só de um par:
Uma vilã e um comparsa.

Cotação do dia

Toda vez que ouve a palavra amor, ele olha tristemente para o céu, como se tivesse sido mencionada uma estrela, a mais longínqua, que ele já nem em sonhos imagina poder alcançar.

Soberano

Para o mal ou para o bem,
Para o que der e vier,
O amor nos torna refém,
Faz de nós o que quiser.

Despertador

Foi beijado outrora por lábios perniciosos, e todas as manhãs, às cinco, independentemente de sua vontade, põe-se a berrar amor, amor, amor, até que a enfermeira do manicômio venha lhe aplicar uma injeção.

As razões

Muitas das juras eternas,
Atribuídas ao amor,
Devem todo o seu fervor
A um par de peitos e pernas.

Simples assim

Enlouquecer de amor é fácil. Quando você vê, já está montado no cavalo branco de Napoleão e destroçando impérios para impressionar Josefina.

Ou por ou por

Que coisa tonta, sem nexo,
Porém tão doce e gostosa,
Perder a vida preciosa
Ou por amor ou por sexo.

Eternamente

O amor te atormentará
Enquanto tu respirares,
E ainda mais te afligirá
Se acaso ressuscitares.

Um pouco de Lourenço Diaféria

"Desconfio que a primeira pessoa que anteviu e sacou o caos urbano, tal como o conhecemos hoje nas grandes metrópoles, foi o poeta Dante Alighieri (1265-1321) em sua monumental obra Divina comédia. A vantagem de Dante sobre os urbanistas, os prefeitos e os donos de imobiliária é que não pretendeu fazer um tratamento técnico, e sim um poema épico.
   Ora, não existe nada mais pateticamente épico do que um sujeito, com hora marcada para encontrar a namorada no fim do expediente, se ver engarrafado num congestionamento de trânsito num viaduto da cidade."

(Da crônica "Que inferno!", do livro Papéis íntimos de um ex-boy assumido, publicado pela Editora Olho Dágua.)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Inocente

Nós morreremos jurando
Que simplesmente mentiram
Todos aqueles que viram
O amor nos estrangulando.

Teclas

Aos poucos vamos mudando
O nosso modo de ser,
As teclas modificando
De viver para morrer.

Vanidade

Depois do esforço final,
Ficamos nos perguntando,
Nossos escombros juntando:
De que serviu, afinal?

Cartão

Não lembro o que disse a ti
Nem como me apresentei.
Sou um poeta? Não sei.
Se fui, há muito esqueci.

Ocaso

Tínhamos tanto a falar.
Hesitamos, relutamos,
Nem começamos. Deixamos
O tempo todo se escoar.

Verdes

Amor, querido vampiro, cravo-te a adaga prateada e me olhas com esses olhos que suplicam mais.

O nome

Ele se lembrará dela com ternura. Às vezes lhe fugirá o nome, mas se acostumará a dizer um qualquer, nas noites frias do asilo, todas parecendo sempre a última.

Cotação do dia

Para a vida e para a morte, o que nos move são as obsessões.

Estratégia

Quem me dera eu fosse teu prisioneiro. Me insultarias, me chicotearias. Eu te chamaria de malévola, pérfida, infame, e te amaldiçoaria, para que novamente me insultasses, para que outra vez, amor, me chicoteasses.

CEP

Amor, inepto carteiro,
O que houve? Que mal te fiz?
Nunca mais vieste. Me diz,
Perdeste meu paradeiro?

Traços

Amor querido, amor terno,
Que o nosso rumo traçaste,
Por que a esboçar passaste
Agora o mapa do inferno?

Um trecho de Mariana Ianelli

"Erico Verissimo dizia que os escritores são todos uns mentirosos. Não é à toa que o avô o reprovava por se divertir  'inventando histórias que nunca aconteceram sobre gente que nunca existiu'. Há uma espécie de dança de Salomé na arte da escrita, um aperfeiçoamento, um ludíbrio que dá prazer e no fim nos presenteia com alguma coisa surpreendentemente cruel e verdadeira."

(Extraído da crônica "A verdade nua por baixo dos sete véus", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Em verdade

Em verdade vos digo que, se não houver amor, e se o amor não doer, a vida será não mais que um bocejo antes do seguinte, numa pescaria de domingo.

Capítulo

Quando relataram que ele havia enlouquecido de amor, uma das mulheres do grupo de visitantes disse: "Amor?" Depois abriu o livro no capítulo das doenças em extinção.

Do amor

Do amor se espera que não morra. E, se morrer, que ninguém se assombre se, numa cálida tarde de primavera, ele se erguer e se puser a andar como se tivesse acabado de nascer.

Ali

Ele gostaria de ir andando até o coração do mar e dizer amor ali, para que as ondas engolissem a palavra e, com ela, os seus lábios, indignos de pronunciá-la.

O chefe

O amor nos fez cavar a nossa própria cova. Quando terminamos, ele, lá de cima, disse: está bom. Agora não sai daí, ouviu?

Ideal

Bom amor é aquele que não se consuma, não se perfaz, não se completa. O corpo padece, a alma agoniza, a poesia agradece.

Todos

Não há um ponto de sua alma que não tenha sido dilacerado pelo amor. Se houvesse, ele se lastimaria.

Mea-culpa

Por mim não chores nem rezes,
Eu não sou merecedor.
Sou eu quem do abjeto amor
Engoli a urina e as fezes.

O "x"

Tudo que ele fez foi por amor. Ele se pergunta onde foi, então, que errou.

Guia

O amor será sempre o guia
Do nosso róseo caminho,
Da nossa trilha sombria,
Do nosso norte daninho.

O de sempre

Logo o amor nos cativou
E, tendo nos cativado,
Sua ternura trocou
Pelo chicote aguçado.

Capitis diminutio

Expulso de régia cama
E do luxo despojado,
Hoje o amor dorme na lama
Ou sobre o barro amassado.

Trovinha

Amor, mesmo, de verdade,
É sempre um tipo confuso
Que vive de caridade
E ao qual falta um parafuso.

Muito, e um pouco mais

Se for chorar por amor, chore tudo. Não há nada que mais mereça suas lágrimas.

Camisa 12

Não posso deixar a camisa no varal, que vêm ventos de todos os quadrantes soprar Corinthians.

Imposição

O amor me submete a isto. Devo falar sobre ele o dia todo, todo dia, até que ele se dê por satisfeito e perdoe ao menos um dos meus cento e quarenta e sete erros.

Quando for a hora

Amor, quando você for me matar, olhe-me com esses olhos que há tanto tempo não me olham.

Ou isso ou isso

Pois é, nunca me calo: ou falo de amor, ou de amor falo.

BO

Na hora de revelar o nome de quem furtou minha alma, eu disse só Amor.

Categorias

Só os poetas e os velhos sonsos falam de amor. Eu sou um velho sonso.

Campainha

"Vizinha, tem um pouco de sal aí?", disse ele, com a língua toda esperta, embora já fosse mais de meia-noite.

Novidade

"Este teu ombro foi sempre lisinho assim? Jesus!"

Brinde

Ela não precisava nem ter sorrido. Deus, eu já estava todo embrulhado para ela.

Congraçamento

No fim da festa de Natal da firma, o boy notou que sumiu seu panetone. Puseram-lhe a mão no ombro: ano que vem tem mais.

Rumo

O sol há de seguir a garota mais linda da cidade, até que ela, tirando o olho do celular, dê uma espiada para cima e sorria.

Exortação

Mulher única, me leva para águas profundas, aonde não cheguem esses barquinhos presunçosos que se julgam transatlânticos.

Passos

O amor nos segue como um destino, uma bênção, uma maldição. E nós andamos devagar, para que ele não se canse.

O dia de esvaziar a alma

Rasgando velhos papéis
Numa gaveta encontrados,
Senti como são cruéis
Os belos tempos passados.

E como amargam os méis
Outrora doces provados
E como são ouropéis
Os astros ontem dourados.

Rasgando os papéis dispersos,
Não poupei sequer os versos
Que um dia te dirigi.

Depois de tudo rasgar,
Eu, começando a chorar,
Chorei por mim e por ti.

Cotação do dia (2)

Quando a peça chega ao fim
E a morte nos bate à porta,
A nós já não mais importa
Se o sim é não, e o não sim.

Cotação do dia

Ao ver-me vencido assim,
Depois do que me sonhei,
Depois de quanto lutei,
Eu tenho nojo de mim.

Novo tempo

O incorrigível amor continua atraindo velhotes como eu, com a antiga balinha de hortelã e a novidade de um comprimido azul.

Nem um grão a mais

Ao artista bastam um sorriso e meia dúzia de palmas. Tudo que exceda isso tende a deturpar sua arte.

Um trecho de Mariana Ianelli

"A chegada do verão é um chão de ardósia quente depois que anoitece. Para temperar o calor, um calor infernal, como se costuma dizer, nada melhor que uma boa antologia de poetas russos, com seus campos gelados e seus domos escondidos na bruma. Joseph Brodsky junta os dedos em volta da pena, menos por costume de escritor que por ter sido educado pelo frio. Boris Pasternak faz descer a geada num canteiro e esta imagem é sua definição de poesia. Marina Tsvetáieva imita a tempestade rebentando em versos exclamativos feito bátegas. Anna Akhmátova nos envolve em nuvens sombrias."

(Extraído da crônica "Quarteto de sombras", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Bah

"Poesia? O que é isso?", disse o homem, cuspindo na poça em que se refletia o arco-íris.

Lanterna

Encontrar alguém que ame a poesia - e confesse amar - é tarefa para gps.

Oh, oh

Oh tempora, oh mores!
Não há hoje quem
Saiba lidar bem
Sequer com um clitóris.

Condições

Conforme a ocasião, o espaço e o teor alcoólico, o sexo pode tornar-se um esporte coletivo.

Eu

Ao ver-me vencido assim,
Depois do que me sonhei,
Depois de quanto lutei,
Eu tenho nojo de mim.

Carcará

E sempre chega aquela hora
Em que, por ordem do autor,
O famigerado amor
Nos pega, mata e devora.

Comparação

Bem pesadas as coisas, os mortos vivem melhor do que nós.

Única

Amor é a única palavra essencial. As outras servem só para engordar o dicionário.

Finalidade

O amor pode não ser uma boa justificativa para a vida, mas é um bom começo.

A tarde é uma criança. Vamos vê-la antes que se torne uma adolescente metida a mulher fatal.

Hem?

Nos fazemos de surdos, para que o amor derrube estrelas ao gritar nosso nome.

Cotação do dia (3)

Vivi pelo amor. Meu erro foi não ter morrido por ele.

Julgamento

Já não me sinto culpado.
Obrigaram-me a viver
E não quiseram saber
Se eu estava preparado.

Pureza

Pegue o lápis e desenhe um belo coração, mesmo que não seja para mim. Se for para mim, não precisa caprichar.

"Annie", de Guillaume Apollinaire

"Do Texas sobre o costão
Entre Mobile e Galveston ficam
Grandes jardins cheios de rosas
Eles contêm uma mansão
Que é uma grande rosa

Uma mulher sempre passeia
Solitária nesse jardim
E quando passa pela estrada ladeada de tílias
Nós nos olhamos

Como essa mulher é menonita
Suas roseiras e suas roupas não têm botão
Faltam dois no meu gibão
A dama e eu seguimos quase o mesmo rito."

(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)

Legítimo

O amor foi feito originalmente só para poetas e donzelas pálidas.

Escrever

Escrever com a alma é sempre o melhor modo de escrever.

Negativo

Não, definitivamente. Estar na lista telefônica não é estar na mídia.

Sadomasô

Todos conhecem o Marquês de Sade. Já o pobre Leopold von Sacher-Masoch, coerente com sua sina, permanece quase anonimo, espiando pela fresta do armário.

Cotação do dia (2)

Está chegando a hora de eu ir aprender a escrever com o Manoel de Barros, lá em cima. Ou com o Marquês de Sade, lá embaixo.

Cotação do dia

Os derradeiros passos da vida são dados sob um sol benevolente, como se estivéssemos no teatro, fossemos um personagem já sem função e o iluminador nos desse ainda, por senso profissional, um último destaque.

Futebolística

Não sei se vivo, se morro,
Ou se só vou empatar.
Nunca me apresso, não corro,
Só deixo a bola rolar.

Um trecho de Tadeusz Dolega Mostowicz

"Até então, o coração de Nicodemo Dyzma jamais fora tocado pelo amor. As passagens românticas de sua vida resumiam-se a algumas ocasionais lembranças secundárias, que, aliás, não eram muitas. Agora, quando pensava em dona Nina, não previa nada, não fazia quaisquer projetos. Além disso, seu inato sentido de preservação o alertava contra passos mais ousados, que poderiam prejudicá-lo caso fosse flagrado pelo marido."

(Do romance A extraordinária carreira de Nicodemo Dyzma, tradução de Tomasz Barcinski, publicado pela Civilização Brasileira.)

domingo, 30 de novembro de 2014

Expectativas

Apagar tudo, esquecer,
Deitar, cochilar, sonhar,
Entrar no lago e afundar,
Beber toda a água e morrer.

Prestação de contas aos leitores do blog

Nesses últimos cinco anos, tenho tocado aqui a tecla do desencanto. Não poderia tocar outra. Os ideais se foram, e a vida se tornou um mero desenrolar de dias. Este blog, que é uma espécie de diário desses cinco anos, não poderia ser senão o que tem sido. Dez por cento dele - a parte representada por textos alheios - podem ter sido interessantes para os leitores. No mais, sempre esta automortificação e estas confissões de um morituro. Como já fiz outras vezes, peço desculpas. E, ainda que seja estranho, recomendo novamente que é melhor não me lerem mais. O que tenho escrito aqui, se algum valor tiver, será o da sinceridade. Se a alguém interessarem os textos, será à minha família, na improvável hipótese de ela os ler, e ao meu psicanalista. Creio que, como todos os escritores, até os verdadeiros, o que faço tenha a intenção de me render palmas. Para recebê-las, eu seria capaz de, se fosse uma celebridade, prometer bônus a quem me lê, como talvez anunciar em primeira mão meu suicídio, dez minutos antes de cometê-lo. Como sou anônimo até entre meus vizinhos, continuo só com os duvidosos trunfos das derrotas diárias e da narração delas, com a minha parca literatura.

Leitmotiv

Em tudo quanto eu escrevo,
Só tenho o  amor entre os temas.
Ele é e será o enlevo
E a inspiração dos meus poemas.

Porque sim

Quando penso nos motivos pelos quais amo a literatura, sinto-me tentado a responder como as crianças: porque sim. A idade adulta tem o inconveniente de precisarmos dar explicações, enumerarmos causas, empilharmos argumentos para responder a perguntas que ficariam muito bem respondidas com essas duas palavras: porque sim.

Classe

À poesia nunca fica bem abrir as pernas. É mais coisa da prosa.

Torneios sexuais

Estarmos mortos é tudo
Que no final sobrará
De tanto dá mas não dá,
De pode, sim, mas, contudo.

Saldo

Com as nossas perdas lançadas
E os prazeres subtraídos,
Com as contas todas fechadas,
Estamos todos fodidos.

Fora de tudo

Já morto estou. Não reclamem
Se eu faltar às bacanais.
Não me convidem, não chamem,
Que eu não irei nunca mais.

Simplicidade

A luz é opaca,
A sorte é incerta,
A carne é fraca,
A morte é certa.

No asilo

Na hora de tomar a sopa, nós atuamos como uma orquestra. Sorvemos todos ao mesmo tempo: dezesseis velhotes ávidos afugentando as duas horrorizadas irmãs de caridade que nos servem. Elas saem correndo do refeitório e só voltam quando não há mais gota nenhuma em nenhum dos pratos. Quando chegam com a sobremesa, ainda está no rosto delas o asco que provocamos. Sorrimos. Não é maldade. Vejo mais como uma travessura. Pobres irmãs. Amar o próximo é uma desgraça.

Definição

O amor, se pensarmos bem,
Com toda a nossa isenção,
É só uma distração
Enquanto a morte não vem.

Liquidação

Vou colocando aqui tudo que me calha escrever. Logo haverá na frente do blog uma placa: passa-se o ponto.

Mordida

Quando ela me leva à beira da insanidade, mordo meu pulso como se fosse sua jugular. Depois sopro sobre ele palavras adocicadas.

Se ela

Se ela demora para dizer amor, seus viciados lábios fazem beicinho.

Estoque

Se não fosse o amor, o que eu faria com minhas lágrimas?

Antigamente

De homens como eu se dizia que não tinham conteúdo, só verniz.

Cotação do dia (2)

Quando penso na morte, é como se surpreendesse um vento benfazejo abrindo a cortina do quarto.

Portos

Eu, que a vida esperdicei
Na busca insana de portos,
Agora só buscarei
O reino ignoto dos mortos.

Extrato

No fim, apenas sobrou
Um pouco do que fui eu.
Minha alma me abandonou
E meu corpo apodreceu.

Jeito

Morrer de amor é uma das coisas que melhor faço.

Dupla ação

O amor, porque somos seu brinquedo, nunca nos mata sem nos ressuscitar.

Cotação do dia

Se os amigos nos observassem melhor, saberiam que há muito estamos mortos.

Os domingos

Os domingos mais tristes são esses de sol pleno, como os de hoje, que insinuam caminhos que não percorreremos.

Ana C.

Ninguém melhor que você
Para chamar a ternura,
Para cantar a amargura,
Ninguém melhor, Ana C.

Sanguessuga

O amor é aquele patife
Que nos lesa totalmente,
Contínua e implacavelmente,
Desde o berço até o esquife.

Empréstimo

Estamos aqui emprestados pela morte. Ela é quem sabe o prazo e as condições.

Estilo de vida

"Se eu lucrar dez reais por dia com as paçoquinhas e as balas de goma, já tá bom. Eu não sou luxento."

Orçamento

"Vô, levanta e vai cochilar um pouco na sala, que a Naldinha chegou com um freguês."

Perfeito

O amor é a ocupação ideal para um sonso como eu. Vê a minha cara.

Umbra

Agora que para as frutas
Já não te servem os dentes,
Melhor a sombra desfrutas
Ao som das folhas cadentes.

O quê?

Não tenho nada a dizer.
Não sei do ser ou não ser.
O que há de novo em viver,
O que há de novo em morrer?

Equívoco

Escrever bem quase nunca é fazer literatura.

Formigas

O chicote do amor deixa uma trilha de açúcar em nossa carne.

Inépcia

Para cantar a beleza,
Não usemos nossa voz.
Para encontrar a pureza,
Não a busquemos em nós.

Um poema de Guiilaume Apollinaire

"O maio o belo maio enfeitou as ruínas
De hera de vinha virgem e roseiras
Do Reno vento agita os vimeiros nas beiras
E o junco falador e as flores nuas das vinhas."

(De Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)

sábado, 29 de novembro de 2014

Chaves

Tuas piadas todas, Chaves,
E os gestos de tua mão
Se transformarão em aves
E pelo céu voarão.

Por

Por minhas noites de insônia,
Pelos meus dias de drama,
E porque és meu amor, me ama,
Mesmo que com parcimônia.

Opção

A insanidade é uma questão de escolha. E ele já há muito tempo a fez.

Espelho

Sempre que me encaro assim,
Vejo que só um sandeu
Exatamente como eu
Daria importância a mim.

Cotação do dia (III)

É triste quando nos falta coragem para a única viagem que realmente muda alguma coisa.

Verniz

Uso a poesia para dar uma feição triste à minha insanidade.

Futuro

Não sei de nada, nem quero.
Na vida não mais me fio.
Só na morte hoje confio,
E por ela anseio, e espero.

Poesia e prosa

Há quem considere poesia só a romântica. Venturosos estudantes, tímidas colegiais, vovozinhas zelosas, para quem os maus hábitos, a libertinagem e os pecados em geral, se encontram eco na literatura, é sempre pelo sombrio caminho da prosa.

Pecado

Meu vício mais sério sempre foi a poesia. Meu contato inicial com ela foi morno, lânguido, doentio. Só viria a  ter impressão igual anos depois, numa rua de ar salgado, posta a serviço do lenocínio.

Cotação do dia

Sinto-me cansado, imundo,
Tenho nojo de ser eu.
Eu não entendi o mundo
E o mundo não me entendeu.

Mantra

Acredito ainda no meu mantra: amor, amor, amor. Digo, repito, espero. Amor, amor, amor.

"Carta a um candidato aos exames imperiais", de Yu Xuanji

"Fiz poesia, triste e quieta no meu canto
Já tantas vezes à montanha recolhi-me
A leste, oeste a voz ecoa pelos picos
Sul, norte corre este cavalo sem descanso

Noites chuvosas, nosso encontro era um festim
mas chega a primavera, as flores, e te vais.
Se um dia à porta chamem, fosse tua mensagem
alcançaria a erma choupana uma alegria

Acaba a música, rompeu-se o instrumento
Se o par de pássaros se aparta, gela o ninho
Lembra da amiga só, no campo, à própria sina
É primavera, passa ao rio este momento."

(Do livro Poesia completa de Yu Xuanji, tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, publicado pela Editora Unesp.)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Fernanda Lima

Se o tema a ser discutido
For beleza ou obra-prima,
Mencionar Fernanda Lima
Faz sempre todo o sentido.

Parafraseando George Best

Gastei noventa por cento da vida com o amor. O resto eu desperdicei.

Uniforme

Na minha camisa de força há um coração atravessado por uma flecha.

Propina

Não precisa abrir a mala. Quero a minha parte em amor.

Tenho a caneta, o caderno,
O peito pleno de amor.
Sou apaixonado, terno,
Falta-me ser escritor.

Sensível

Sou o cara mais sonso do mundo: sinto o amor em cada poro.

Proporção

Besta não é quem sofre por amor. É quem sofre pouco.

Tanto faz

Continuarei falando de amor. Ninguém se importa, mesmo

Indiferença

Era frio. Dava de ombros
A tudo, e a nada ligava.
Nem o edifício exaltava
Nem lamentava os escombros.

Final

Do grande amor morreu tudo.
Lembrança dele não há,
Senão muito vaga, já
Sem forma e sem conteúdo.

Vir a ser

Não é o que foi que eu choro.
Isso já está esquecido.
O que me dói e eu deploro
É o que podia ter sido.

Rosas

Se penso em ti, uma rosa
Desperta no meu jardim.
Se em mim não pensas, formosa,
Uma rosa morre em mim.

Cotação do dia

Em São Paulo, carretas desatinadas derrubam viadutos, enquanto o amor falha mais uma vez e não cumpre a promessa de remover montanhas.

Trecho de Katherine Mansfield

"Estou escrevendo para você do Café Mathieu. Está um dia divino, quente. Estou sempre pensando, e pensando em você, meu querido, e desejando, e desejando - você sabe o quê."

(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan,)

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Desencontros

Enquanto ela busca um homem
E ele procura Mercedes,
O amor sucumbe de fome
E o afeto morre de sede.

Emoticons

Bom nos comunicarmos só assim, com esses emoticons. Te mando uma careta, me respondes com outra, e vamos indo. Palavras, nunca mais. As palavras nos assassinaram.

Último

Ele a beijou como quem
Todo o gosto já perdeu
E a si mesmo prometeu
Nunca mais beijar ninguém.

Comme il faut

Não há por que me gabar.
Amei com todo o fervor,
Até matar-me de amor.
Há outro modo de amar?

Tédio

São longas as tardes aqui no asilo. O sol parece que dorme lá em cima e esquece de ir embora. Já tentamos antecipar o horário, mas as irmãs nunca servem o jantar antes das sete.

No asilo

Ontem morreu aquele velhote que sempre contava a mesma história, do tempo em que foi casado com a Greta Garbo. Ele dizia assim: "Quando contraí núpcias com a Greta..."

Sonso

Em matéria de amor eu sou como um menino de dez anos, mas sem juízo nenhum.

Cotação do dia

Sinto-me como o personagem de um romance russo. Ouvindo Tchaikovsky no salão, você, condessa, espera há três dias que eu morra aqui fora, de fome, na neve.

Com e sem

O amor é aquela balela
Sempre igual, do início ao fim:
Insuportável sem ela
E com ela muito ruim.

Ampulheta

Perdoem-me se falo cada vez mais de amor. Tenho cada vez menos tempo.

Condescendência

Mesmo que ele fosse um ogro
bom seria se o pai de Scarlett Johansson
fosse meu sogro.

Prado

Gostaria, quando falo de amor, que se abrisse diante de mim um verdíssimo prado, por onde pudesse correr meu coração, esta lebre alvoroçada.

Livros

O de odes não concluirei
E o de sonetos jamais.
A vida desperdicei
Toda em quadrinhas e haicais.

Seis versos de Friedrich Hölderlin

"Os meus pais? E os amigos, se ainda forem vivos, de outras coisas
Desfrutam, já não me pertencem.
Chegarei, como sempre, e pronunciarei os antigos
Nomes bem-amados, interpelarei o coração, para vibrar como dantes,
Mas eles estarão em silêncio. Assim o tempo muitas coisas
Une e separa. Eles julgam-me morto e eu a eles."

(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Atestado

O amor ainda é o melhor modo de alguém ser reconhecido como insano.

Fresta

Se você espiar sorrateiramente, me verá andando pela sala à noite e declamando meu triságio: amor, amor, amor.

Persistência

Eu lhe diria só uma coisa: que sou ainda o mesmo tolo de cinco anos atrás.

Assunto

Louco, idiota, cretino, sonso ou tonto, continuarei falando de amor.

É o que era

Rememorando agora, o amor parece o que era: uma tolice, uma fantasia. Pena que não tenha durado um pouco mais.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é uma dessas circunstâncias em que o belo se exerce na sua plenitude.

Aquele, sim

Sou aquele que o amor espezinhou. Tenho as marcas ainda. São meu orgulho.

Eu

Eu sou aquele chato que só fala de amor e, quando para, continua a falar.

Limiar

Quando o amor me leva à beira da insanidade, mordo meu pulso como se fosse sua jugular. Depois sopro sobre ele palavras adocicadas.

É

O amor é essa loucura que me mantém respirando.

Se ela

Se um dia ela escrever amor em meu peito, que seja com as unhas de intenso escarlate.

Causas

A literatura e o amor são as mais graves deformações do meu caráter.

Cartas

Da gaveta, onde por trinta anos dormiram, as cartas de amor foram parar num lixão em que destoam como lírios num matadouro.

Cotação do dia

Os passarinhos têm vindo ciscar no meu colo. Não descobriram uma santidade que não tenho, mas sabem que minhas mãos não têm mais força para magoá-los.

Sim e não

O amor, por definição,
É coisa dessas assim
Que dizem não quando sim,
E dizem sim quando não.

Amor meu

Amor meu, belo, esplêndido, inocente,
Amor intenso, pleno de grandeza,
Amor meu, paradigma da beleza,
Tão vivo, e morto tão precocemente.

Às vezes

Às vezes, como hoje, olho-me no espelho e digo: aí está mais um que foi aniquilado pelo amor. E uma felicidade absurda me invade.

Haicai

O vento no cio
Espreita e febril se deita
No dorso do rio.

Negativo

Quando eu me for lembrarás
De mim, talvez. Pobrezinha!
Para uma boa coisinha,
Ou duas, tantas tão más.

Mimo

Que me desprezes aceito.
Quem sou para censurar-te?
Mas olha: para louvar-te,
Sangro a alma e rasgo o peito.

Negociação

Beijar o chicote do amor nem sempre poupa as costas.

Um poema de Emily Dickinson




















u


"Tão antiga quanto Deus,
A Verdade é Sua identidade gêmea
E, assim como Ele, suportará
Uma coeternidade.

E haverá de perecer no dia
Em que Deus, carregado, sair
Da mansão universal
Como divindade sem vida."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)










uu

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O que é

Viver é apenas fazer
Tudo aquilo que nos cabe,
Por dever ou por prazer,
Antes que viver acabe.

Léu

De repente eu me vi na rua, esmolando. O farnel que ela me deu durou três dias - um pouco menos que o seu amor.

Ainda

Às vezes ainda o amor me sacode, como os espasmos de uma lagartixa moritura.

E ele

O amor é como um zumbi.
Tantas vezes o matei,
Tantas vezes o enterrei,
E ele continua aqui.

Saudosismo

Certas noites, chega aos mortos no Araçá uma música que os mais velhos definem como foxtrote.

Um trecho de François Ponge




"A beleza das flores que murcham: as pétalas se retorcem como sob a ação do fogo: é bem isso, aliás: uma desidratação. Retorcem-se para deixarem ver as sementes às quais decidem dar sua chance, o campo livre.
   É então que a natureza se apresenta perante a flor, força-a a se abrir, a se desabotoar: ela se crispa, se retorce, recua, e deixa triunfar a semente que sai dela que a havia preparado."

(Do livro O partido das coisas, tradução de Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson, publicado pela Iluminuras.)












u

Xucro

Em matéria de amor eu sou como um menino de dez anos, mas sem juízo nenhum.

Cotação do dia

Dizer amor, pronunciar amor, proclamar amor, não porque seja minha sina, mas porque já não sei fazer outra coisa.

Memória

Um dia, perto do fim,
Talvez de mim lembrarás
E terna me chamarás
De Ânderson ou Serafim.

Scarlett Johansson (2)

Diante de Scarlett Johansson eu seria capaz de falar aramaico, se conseguisse dizer alguma coisa.

Scarlett Johansson (1)

Scarlett Johansson! E há quem duvide da existência de Deus! E do Diabo!

Haicai (p/ Fernanda Takai)

Relembra a primícia,
O tato leve, o contato,
A breve carícia.

Haicai

O vento no cio
Espreita e febril se deita
No dorso do rio.

Pacto

Então fiquemos assim:
Eu te amo adoidadamente,
Mesmo que provavelmente
Nem gostes muito de mim.

Haicai

Agora já não
Desliza na pele lisa
A palma da mão.

O amor em dados contábeis

Mesmo quando o assunto é o amor
Com suas complicações,
Podemos obter quinhões
Se for bom o contador.

Apesar dos seus senões,
De ser régio esbanjador,
O amor pode ser, se for
Glosado, compensador.

Assim como no demais,
O menos pode ser mais
E a simulação, verdade.

O que agrada nós lançamos,
O que incomoda ignoramos.
Viva a contabilidade!

De Manoel de Barros

"O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia."

(Do livro Poesia completa, publicado pela LeYa.)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Interdição

Ele não pode mais dizer amor. Quando diz, as quatro letras se transformam em pétalas, e as pessoas começam a pedir uma nova mágica.

Deus e amor são palavras que só devemos pronunciar em estado de graça.

Ainda

Às vezes o vento ainda nos traz um lamento do amor, assim como a consciência insiste em evocar o miado do gatinho que deixamos vinte anos atrás na casa abandonada.

Alô

Não sei o caminho para Conselheiro Lafaiete, mas se você me chamar eu chego aí num minuto.

Eu gostaria de ser torturado

Por cento e nove libidinosas loiras que imaginassem haver em casa um cofre com o inefável segredo da poesia.

Eu me desonraria

Por uma loira deliberadamente lenta, que me obrigasse a pedir, pelo amor de Deus, que enfiasse logo as garras em meu pescoço tenro.

Eu renegaria a moral

Por uma loira de dentes agudos que me fizesse ter a vontade de ser um delicioso cordeiro de receita.

Eu venderia a pátria

Por uma loira bregona de unhas longuíssimas cutucando ouro no fundo da orelha.

Quanto à corrupção,

Prefiro a do sexo. Que prazer há em manusear um pacotão de dólares?

Eu sujaria meu nome

Por mulheres que só ousasse tocar com a reverente ponta dos dedos.

Eu me deixaria subornar

Por uma loira que, na hora de passar batom, colocasse uma camadazinha a mais, por saber como gosto de morango.

Eu me deixaria corromper

Por uma loira que conhecesse a arte de sorrir com terceiras intenções, equilibrando uma gotinha de saliva no lábio superior.

Ele

O Diabo crê na fraqueza da carne e na curiosidade dos sentidos.

Selfie

Que sorte nós temos por andar sempre em nossa companhia.

Cotação do dia

Pronto para a travessia, desde que seja a última.

O erro

Perdemo-nos quando fomos
Sonhar o que não devíamos,
Querer o que não podíamos,
Almejar o que não somos.

Que tal?

Esta segunda me veio com seus dentes de falso ouro e uma pergunta: gostou?

Bela viola

A autoajuda é um mascate de gravata borboleta e cueca furada.

Sons

Cautela com os sons tonitruantes. O bumbo sufoca a voz do violino.

Conselho

Diante do amor, convém ser tolo como a menina que pergunta quem desenhou no céu o arco-íris.

Volume morto

Vivi já tudo que pude.
De mim só esperem mais
Virtudes excepcionais
Se na morte houver virtude.

Frase de Manoel de Barros

"Camaleões são pertencidos pelas cores; eles se aperfeiçoam das paisagens."

(De Poesia completa de Manoel de Barros, publicação da LeYa.)

domingo, 23 de novembro de 2014

Promessa

Prometi à minha mãe ser um grande escritor. Ter morrido em 1970 isentou-a de se decepcionar.

Mais

Chorar por amor é um desses espinhos que só extraímos da carne para enterrá-lo mais fundo e mais prazerosamente.

Hábito

Dizer sempre alguma coisa, ainda que seja insignificante como isto que você lê. Não é uma vocação, é um hábito que os amigos talvez consintam em suportar.

Um poema de Emily Dickinson

"Eu fui um pintassilgo, nada mais;
Pintassilgo, nada menos -
A pequena nota musical desprezada,
Em seu lugar a inscrevia.

Por andar tão junto ao solo,
Ninguém me procurava;
Era tão tímido que não me acusavam de nada -
Um pintassilgo deixa pegadas mínimas
No assoalho da fama."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)







u

www.rubem.wordpress.com

Na crônica de hoje, na revista Rubem, falo de um menino que não quer um piano, quer uma mãe.

Tecnologia

Virá um tempo em que para morrer bastará apertarmos uma tecla verde no celular.

Verde

Sob o espantado olhar do menino de quatro anos, o cavalo, sem deter o galope, lança meia dúzia de pepitas fumegantes que explodem e rolam no solo. A cada uma o menino festeja: verde, verde, verde.

O castelo, a princesa

O castelo existe ainda. Também a princesa, que me espera com os olhos afogados em lágrimas. Eu sempre disse isso, mas só agora, aqui, meus colegas e os doutores acreditam.

Tão poucas

As humilhações que o amor nos impõe são sempre tão bem-vindas. Pena serem tão raras.

Um poema de Guillaume Apollinaire

""ADEUS

Colhi um ramo de urze
O outono morreu lembra-te
Não nos veremos mais na terra
Odor do tempo ramo de urze
E lembra-te de que te espero."

(Do livro Álcoois, tradução de Mario Laranjeira, publicado pela Hedra.)

sábado, 22 de novembro de 2014

Poesia é

Poesia não tem roteiro.
É dado lançado à sorte,
É barco sem timoneiro,
É itinerário sem norte.

Recado

Se vocês encontrarem Pâmella Martinelli Merchyora, digam-lhe que ela me matou, embora ela já saiba. Faz bem ao ego dela e afia suas unhas.

Passatempo

O amor, se considerado como um entretenimento, é uma indignidade.

Agora que

Agora que o amor morreu, quando olho para ele o vejo tão fraco, tão desprezível. Deus, como ele pôde me atormentar tanto? Quantas cordas, quantas lâminas, quantos venenos ele me incitou a usar para merecê-lo. Sobrevivi para a tristeza de vê-lo assim, como um trapo. Pobre amor, por que resisti à tentação de tuas cordas, de tuas lâminas, de teus venenos?

Emperiquitadas

As frases imponentes têm mais pose que beleza. As de autoajuda vêm sempre engravatadas.













A verdade

A verdade, no fim. é sempre tão monótona. Trocá-la pelos mitos é tão idiota.

Fernanda Lima

Quantas palavras vale uma imagem de Fernanda Lima? Talvez uma só: beleza, multiplicada por mil.

Eu também

Eu também ousei pronunciar a palavra "amor", com estes lábios que lamberam a pele morna da devassidão.

Tudo, e tudo de novo

Dizer tudo que se devia e se queria, com as vogais afogadas de lágrimas, e ouvir da amada o pedido: me diz tudo de novo, tudo.

Itens

Humilhar-se por amor, ajoelhar-se, beijar pés pretensiosos - não há prazeres maiores.

Anotação

Sim, fui escravo do amor. Foi a melhor época de minha vida.

Conivência

Se ouvimos os passos do amor nos seguindo, sentimos um frisson de ovelha e nossas pernas se recusam a andar.

Heroísmo

Roubar um beijo com gosto de hortelã, na última fileira do cinema, nos igualava aos heróis do faroeste.

Cotação do dia

Ter morrido há tanto tempo nos dá certa segurança.

Manoel de Barros

"Esfregar pedras na paisagem."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Cotação da noite

Chamam o que escrevo de versinhos. É o que eles são.

Autoestima

Se a encontrarem por aí, digam-lhe que ela me matou. Ela sabe, mas é sempre bom para a sua autoestima.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é uma maravilhosa explosão de encantamento.

Obsessão

Ai, doce obsessão querida,
Me deixa os dias fruir,
Me deixa à noite dormir,
Me deixa viver a vida.

Já ou ainda

Tu serás, ou terás sido,
Não importará saber,
Ou belo instante a viver,
Ou belo instante vivido.

Tão, tão, tão, tão

Tão doce te abraçaria,
Tão doce, tão docemente,
E leve, tão levemente,
Tão leve te beijaria.

Ontem

Recordando o que vivi,
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.

Álibi

Se você não se importa com o mundo, finja sempre estar dormindo. É um bom álibi.

O que dirão

Dirão de mim: ah, era aquele que escrevia aquelas coisinhas.

Pecado original

O grande infortúnio de minha vida foi presumir, adolescente, que escrever pudesse ser o meu destino.

Madrugada

Na caçamba, o relógio descartado não perturba o sono do gato morto.

Três meses

Dona Olga, toda madrugada, acorda com a algazarra dos gatos enlouquecidos pelo cio, na rua. Faz três meses que isso acontece. Ela se queixa ao marido, grita para ele ir acabar com aquilo. Faz três meses que ele morreu.

Indícios

Quando os amigos começam a morrer, ou a se mudar para Pindamonhangaba, é sinal de que não estamos agradando.

Só se

Querida, quando voltares
Dali de onde agora estás,
Somente me encontrarás
Se a terra fundo cavares.

"Ode vingativa", de Manoel de Barros

"Ela me encontrará pacífico, desvendável
Vendável, venal e de automóvel.
Ela me encontrará grave, sem mistérios, duro
Sério, claro como o sol sobre o muro.

Ela me encontrará bruto, burguês, imoral,
Capaz de defendê-la, de ofendê-la e perdoá-la;
Capaz de morrer por ela (ou então de matá-la)
Sem deixar bilhete literário no jornal.

Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico
Anticristão e, talvez, campeão de xadrez.
Ela me encontrará forte, primitivo, animal
Como planta, cavalo, como água mineral."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O único

Só eu mesmo, amor, para te receber com flores depois de voltares com a bolsinha cheia de fumo e essa mordida de marinheiro sueco no ombro.

Cotação do dia

Um trapo que limpa uma estante que não é tua, esfregado por uma que não é nenhuma de tuas mãos.

Herói

No sonho te vi num navio que levava escravas para os jogos sexuais de milionários em Madri. Lutei para resgatar-te, e acordei gritando teu nome e mordendo meu pulso, como se fosse o pulso do capitão.

Em vão

Para aumentar o que somos,
Nós inventamos o heroísmo.
Ah, como tolos nós fomos...
Nascemos para o ostracismo.

Praga

O amor é pior do que um vício.
Te dá um pouco, promete
Mais, te ganha, te submete,
Te atira no precipício.

Como deve

O amor há de ser lembrado como deve: como se estivesse vivo ou como se fosse possível ressuscitá-lo.

Mario e Manoel

Mario Quintana e Manoel de Barros não voavam por modéstia.

Cinco pepitas de Manoel de Barros

"As árvores me começam."

"Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde."

"Os patos prolongam meu olhar... Quando passam levando a tarde para longe eu acompanho..."

"Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem voz."

"Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silencio estica os lírios."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Ciúme

Ela rejeita o amor como alguém que rejeita um gato que mia à porta, por ser novo e belo seu sofá vermelho.

Regressão

Sua solidão começou a ser frequentada por mulheres que a memória ia buscar nos livros sujos da adolescência. Uma delas, a mais habitual, usava espartilho.

Escrever

Escrever é uma atividade com a qual nos cansamos e maçamos os outros.

Colaboração

O amor continua a nos enganar, mas que esforço fazemos para ajudá-lo.

Geografia

O amor é aquela aparição que você espera em Amsterdã, Nova York, Kuala Lumpur ou em uma esquina de São Miguel Paulista.

Cotação do dia

Nas redes, corre um aviso para os amigos: ele está muito mal. E um pedido: elogiem seus sonetos, ainda que nenhum deles tenha chave de ouro.

Gps

Poesia com ideias é passarinho com gps: dobre à direita, na pitangueira, dê dez batidas de asa e pouse na ameixeira. Ali, cante.

Ingenuidade

Apenas eu para crer
Que o amor fosse um sentimento
Imune ao esquecimento
E ao destino de morrer.

Quase

A beatitude do amor foi o máximo que nossa alma almejou. Chegou perto de alcançá-la, ou assim pensou. Não alcançou.

Coragem

Amor, quem há de dizer-te
Que és o rei da crapulagem,
Quem há de ter a coragem,
Patife, de maldizer-te?

Antes do amor

Naquele tempo eu não tinha
Problema de identidade.
A minha alma era só minha
E eu a gastava à vontade.

Script

É sempre igual o roteiro
Da peça chamada vida.
Os sonhos morrem primeiro,
A carne morre em seguida.

Heráclito

Jamais beberei da chuva em lábios tão preciosos. Jamais me banharei de novo num rio como o daquela tarde, que subia à calçada alimentado pelas nuvens generosas.

Despacho

Toda frase que comece com "O amor é" merece o carimbo de importante.

Ego

Tantas coisas tão belas, pássaros, flores, canções. Por que insistimos em falar de nossa imagem refletida no lago?

Trecho de Manoel de Barros

"Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades."

(Do livro Poesia completa de Manoel de Barros, publicado pela LeYa.)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Sem nexo

Curioso aconselharem que nos preparemos para a morte, quando nunca chegamos a estar preparados para a vida.

Utilidade

Os riachos existem para transformar as folhas em barcos.

Se

Se eu te trocasse, seria só por uma estrela com certificado de origem.

O que era

Rememorado agora, o amor parece o que era: uma tolice, uma fantasia. Pena que não tenha durado um pouco mais.

Como se

E no entanto alguns falam do amor como se fosse coisa corriqueira.

Cotação do dia (2)

Para quem sofre, um dia a mais traz sempre o alívio de ser um dia a menos.

Medula

Nos meus sonhos, o que mais excita é o farfalhar dos vestidos de seda, que fazem algum charme antes de se deixarem vencer pelos meus dedos.

Parágrafo inicial de "Estado de graça", de Ann Patchett

"A notícia da morte de Anders Eckman chegou por aerograma, uma fina folha de papel azul forte que tanto fazia as vezes de papel de carta como, estando dobrado e colado nas extremidades, de envelope. Quem imaginaria que ainda existia esse tipo de coisa? Aquela folha simples viajara do Brasil até Minnesota para comunicar o falecimento de um homem, uma nesga de material tão insubstancial que apenas o selo parecia ancorá-lo a este mundo. O Sr. Fox segurava a carta quando entrou no laboratório a fim de dar a notícia para Marina. Assim que ela o viu à porta, sorriu, e ele, diante daquele sorriso, hesitou."

(Tradução de Maria Carmelita Dias, publicação da Intrínseca.)

Cotação do dia

Sentindo a vida pela lógica fria da matemática: mais um dia.

Hem?

Se o amor viesse me procurar, eu lhe perguntaria três vezes: eu, eu, eu? E mais uma: eu?

Arte

Meu mais precioso troféu de amor é a camisa em que desenhaste tua boca com batom.

Sotaque

Mexeram em meus dentes e hoje, se pronuncio amor, a palavra soa como se dita por uma mercenária do sexo.

Maçãs

Sou um tolo. Como um menino, levei maçãs diariamente ao amor, como se ele fosse uma professora velha e subornável. Ela as deu, todas, a homens de dentes pontudos e famintos.

Sensatez

Sensato é o homem que usa as palavras somente quando o silêncio já não pode dizer nada por ele.