segunda-feira, 31 de agosto de 2015
Cotação do dia
Hoje, sentindo um arrepio que escritores antigos definiam como um discreto aviso da morte, o que fiz? Nada de útil: três sonetos, como se eles viessem a fazer falta àquilo que, quando eu me considerava escritor, talvez tivesse o desplante de chamar de obra. São três sonetos ruins. Esperemos uns dias. Se eu me revelar um bom vidente, logo o mau poeta deixará de importunar os leitores. Três sonetos ruins num dia. Haverá no Guinness algo prevendo isso?
Soneto do que podemos dar ao amor
Enquanto estivermos vivos,
Mesmo que mal estejamos
E ainda que muito soframos,
Nos mantenhamos altivos.
Ao amor não concedamos,
E aos seus esquemas esquivos,
E aos seus apelos furtivos,
Nada que nós não queiramos.
Se bem que, diante do amor,
Seja por qual razão for,
De forma ou de conteúdo,
Queiramos sempre lhe dar
O que ele quer nos tomar,
Mesmo que ele queira tudo.
Mesmo que mal estejamos
E ainda que muito soframos,
Nos mantenhamos altivos.
Ao amor não concedamos,
E aos seus esquemas esquivos,
E aos seus apelos furtivos,
Nada que nós não queiramos.
Se bem que, diante do amor,
Seja por qual razão for,
De forma ou de conteúdo,
Queiramos sempre lhe dar
O que ele quer nos tomar,
Mesmo que ele queira tudo.
Soneto do que eras e do que és
Como mudou teu destino
E como és diverso agora
Daquele que foste outrora,
No tempo em que eras menino.
Ah, como eras duro, forte,
Como tu te jactanciavas
E em cada gesto zombavas
Da senectude e da morte.
Daqui a um ano ou um mês,
Uma semana talvez,
Tu não te lembrarás nem
Do nome. Balbuciarás
Algo que nem saberás,
Mas que talvez seja amém.
E como és diverso agora
Daquele que foste outrora,
No tempo em que eras menino.
Ah, como eras duro, forte,
Como tu te jactanciavas
E em cada gesto zombavas
Da senectude e da morte.
Daqui a um ano ou um mês,
Uma semana talvez,
Tu não te lembrarás nem
Do nome. Balbuciarás
Algo que nem saberás,
Mas que talvez seja amém.
Homenagem
Se ele não estivesse bem morto, consideraria consagradora a cintilação do sol sobre seu caixão fechado e a estridente liberação do trânsito para o cortejo - oito carros, contando o funerário.
Gangorra
O melhor que pode acontecer a um poeta é andar nas nuvens. O pior é ser chamado de nefelibata.
Soneto do que deveríamos ter dito ao amor
Melhor seria não ter
Jamais o amor conhecido,
Jamais seu gosto sentido,
Jamais o seu rosto ver.
Por que, tolos, fomos crer
No seu charme produzido,
No seu sorriso fingido,
Se era tão fácil descrer?
Quando ele o corpo pediu
E depois a alma exigiu
(A alma, que pretensão, a alma!),
Devíamos dizer não,
De jeito algum, maganão,
Espera aí, vamos com calma.
Jamais o amor conhecido,
Jamais seu gosto sentido,
Jamais o seu rosto ver.
Por que, tolos, fomos crer
No seu charme produzido,
No seu sorriso fingido,
Se era tão fácil descrer?
Quando ele o corpo pediu
E depois a alma exigiu
(A alma, que pretensão, a alma!),
Devíamos dizer não,
De jeito algum, maganão,
Espera aí, vamos com calma.
"Fantasia", de Mariana Ianelli
"Depois da bruma que seduz ao erro
Depois da grande decepção e do escrúpulo
Mesmo que te doendo como a um animal
Perdido, arremessado no vazio de um campo,
Pudesse vingar pura a criança
No sopro que te deu vida, coração fremente,
Deslumbramento à margem dos abismos,
Um guizo de túrgidas estrelas e nada mais..."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Depois da grande decepção e do escrúpulo
Mesmo que te doendo como a um animal
Perdido, arremessado no vazio de um campo,
Pudesse vingar pura a criança
No sopro que te deu vida, coração fremente,
Deslumbramento à margem dos abismos,
Um guizo de túrgidas estrelas e nada mais..."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Nosce te ipsum
Quem há de nos compreender
Se quando nos avaliamos
Concluímos sempre que estamos
Entre o ser e entre o não ser?
Se quando nos avaliamos
Concluímos sempre que estamos
Entre o ser e entre o não ser?
Roteiro
Porque vivemos demais
E a vida se foi inteira,
Que ela não nos fira mais
E a morte seja maneira.
E a vida se foi inteira,
Que ela não nos fira mais
E a morte seja maneira.
Escolha
Se não for pela beleza, por que o passarinho insiste em apanhar pedrinhas brilhantes e exibi-las no bico, para o sol, como um mascate gabando seus tecidos?
Biografia
Um dia me disseram que eu tinha jeito para escrever. Às vezes é assim que acontece: um setentão esperando que se cumpra a previsão feita por uma tia amorosa quando ele tinha dez anos.
Visita
Enquanto escrevíamos
a vida tocou a campainha
Gritamos que esperasse
porque assim que pudéssemos
e o texto aceitasse
colocaríamos o ponto-final
e a atenderíamos
Fazia já muito tempo
que nós não a víamos.
a vida tocou a campainha
Gritamos que esperasse
porque assim que pudéssemos
e o texto aceitasse
colocaríamos o ponto-final
e a atenderíamos
Fazia já muito tempo
que nós não a víamos.
Sim
Ah, você falou de amor, sim, num tempo em que o amor não era encontrado só nos dicionários, como hoje. Você não se lembra das palavras e sabe que aquela a quem você as disse não as lembre também. Talvez não tenham sido suficientemente belas.
"Dois vocativos", de Adélia Prado
"A maravilha dá de três cores:
branca, lilás e amarela,
seu outro nome é bonina.
Eu sou de três jeitos:
alegre, triste e mofina,
meu outro nome eu não sei.
Ó mistério profundo!
Ó amor!"
(De poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
branca, lilás e amarela,
seu outro nome é bonina.
Eu sou de três jeitos:
alegre, triste e mofina,
meu outro nome eu não sei.
Ó mistério profundo!
Ó amor!"
(De poesia reunida, publicado pela Editora Siciliano.)
domingo, 30 de agosto de 2015
Cotação do dia
A obsessão amorosa é uma das tolices pelas quais se vê que o homem nunca deixará de ser um menino.
"Olhando um velho álbum", de Georg Trakl
"Sempre voltas, melancolia,
Mansidão da alma solitária,
Por fim arde um dia dourado.
Com humildade curva-se à dor o paciente
Ressoando harmonia e suave loucura.
Olha! Já escurece.
Volta de novo a noite e um mortal lamenta-se
E com ele sofre um outro.
Arrepiada sob estrelas de outono,
A cabeça mais baixa a cada ano."
(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicação da Iluminuras.)
Mansidão da alma solitária,
Por fim arde um dia dourado.
Com humildade curva-se à dor o paciente
Ressoando harmonia e suave loucura.
Olha! Já escurece.
Volta de novo a noite e um mortal lamenta-se
E com ele sofre um outro.
Arrepiada sob estrelas de outono,
A cabeça mais baixa a cada ano."
(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicação da Iluminuras.)
sábado, 29 de agosto de 2015
Assim
Morrer não requer prática ou habilidade. Digamos que você se chame Altair. Um dia a Morte chegará e dirá: oi, Altair. Acredito que ela será tão convincente que você não lhe pedirá a identidade.
Em vermelho na folhinha
Juro que agora já eu não me lembro
Quando tu me mataste, o mês, o dia.
Como isto aqui talvez seja poesia,
Digamos que foi 7 de setembro.
Quando tu me mataste, o mês, o dia.
Como isto aqui talvez seja poesia,
Digamos que foi 7 de setembro.
Poetas
Alguns só fabricam ouro,
Brincos, diademas, anéis.
A mim restou o desdouro
De produzir ouropéis.
Brincos, diademas, anéis.
A mim restou o desdouro
De produzir ouropéis.
Soneto do bem e do mal que nos vêm do amor
O amor será o que for.
Num dia felicidade
E no outro contrariedade,
Treva agora, depois cor.
Ele é o nosso senhor,
E se ele age com maldade
Ele age com a autoridade
Que lhe advém de ser o amor.
Ele faz tudo que quer
E se muito mais quiser
Não negaremos jamais.
O mal que dele nos vem
É para nós sempre um bem
E lhe pediremos mais.
Num dia felicidade
E no outro contrariedade,
Treva agora, depois cor.
Ele é o nosso senhor,
E se ele age com maldade
Ele age com a autoridade
Que lhe advém de ser o amor.
Ele faz tudo que quer
E se muito mais quiser
Não negaremos jamais.
O mal que dele nos vem
É para nós sempre um bem
E lhe pediremos mais.
De flores
Quem sou eu
poeta de safra modesta
para entender de flores?
Delas não sei nada
mas essas que vejo nos jardins
não parecem flores necessitadas
de metáforas rebuscadas
de rimas em cores e primores
para ser as flores
que são
Eu as chamarei
de flores só
porque bem menos
que os adjetivos
os substantivos
estão sujeitos ao pó.
poeta de safra modesta
para entender de flores?
Delas não sei nada
mas essas que vejo nos jardins
não parecem flores necessitadas
de metáforas rebuscadas
de rimas em cores e primores
para ser as flores
que são
Eu as chamarei
de flores só
porque bem menos
que os adjetivos
os substantivos
estão sujeitos ao pó.
Pedra
Há quem não acredite na sinceridade do amor, mesmo que ele lhe seja declarado infatigavelmente durante a vida toda, e ainda que uma voz além-túmulo volte a declará-lo.
Patente
Afortunado foi aquele primeiro escritor que pôde dizer simplesmente que o sol era brilhante. Os seguintes, para fugir à qualificação de plagiários, precisaram especializar-se na árdua busca de adjetivos.
Imagem
Ele gostaria que ela fosse um tantinho mais robusta, tivesse pernas mais gorduchas e seios mais espalhafatosos, para dar mais verossimilhança aos momentos em que, arrebatado pelo desejo, a chamava de meu continente, antes de se deixar engolir inteiro por ela.
A diferença
Um homem sábio não se atira num poço. Um tolo enfeitiçado pelo amor se atira três vezes, se não morrer nas duas primeiras.
Guichê um
Por que toda essa alegria?
Viver é só um passaporte
Emitido numa via,
Com um carimbo para a morte.
Viver é só um passaporte
Emitido numa via,
Com um carimbo para a morte.
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
Viver (11)
Geralmente, os chamados exemplos de vida nos provocam mais bocejos do que a vontade de segui-los.
Viver (10)
Viver deveria ser algo que se pudesse fazer só de segunda a quarta, reservando-se os demais dias para atividades que realmente valessem a pena.
Viver (9)
Melhor não falar mal da vida diante de jovens. Em nossa juventude, ouvimos tantas advertências. Nós as ouvimos?
Viver (8)
Viver é a designação genérica que se dá a atividades díspares como compor uma sinfonia ou ir fazer exames de laboratório numa sexta-feira de manhã.
Viver (6)
Deveria haver nos jornais uma cotação diária do amor. E ela deveria ser feita por alguém que não tivesse pudor nenhum em ser otimista.
Viver (4)
Viver não é tão difícil. Vamos lá, você já conseguiu outras vezes. Recorra à memória. Algo deve ter ficado nela, desse tempo. Ao menos um pouco daquela esperança, que era feita da errônea interpretação que você dava às intenções de certo sorriso e de certos traiçoeiros olhos verdes.
Viver (2)
Gostaria de dizer que Priscylla Mariuszka Moskevitch foi uma criação de minha mente amorosa e perturbada. Gostaria de dizer que ela não pesa em minha alma nada mais que uma pluma flutuando num céu de primavera. Gostaria de saber mentir e dizer que essas marcas que a alma ostenta, fundas e dolorosas, não têm nada a ver com os dedos dela, longos e às vezes ternos.
Viver (1)
Parece belo viver em certos dias, se conseguimos nos esquecer de que sóis tão majestosos e pássaros tão alvissareiros brilharam e cantaram para Romeu e Julieta, quando os induziram àquele horrível erro.
"Haikai da palavra andorinha", de Mario Quintana
"A palavra andorinha
Freme devagarinho
E some em silêncio..."
(Do livro A cor do invisível, publicado pela Alfaguara.)
Freme devagarinho
E some em silêncio..."
(Do livro A cor do invisível, publicado pela Alfaguara.)
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
Sorte
Às vezes pensa que seria mais querido se fosse um menino indiano abandonado, inscrito num programa de caridade internacional.
Morte (17)
Querendo morrer por um motivo justo, engajou-se na causa do Amor. Melhor teria sido entrar na quadrilha que desviava os fundos da merenda escolar.
Morte (16)
Como são exagerados esses poetas que beberam o leite do romantismo. Alguém lhes nega um beijinho, e eles já falam em morrer.
Morte (14)
Há um momento, quando a Morte começa a dar sinais para que nos preparemos, em que se deve declarar tudo sem subterfúgios. O amor, por exemplo, deve ser dito como se suas quatro letras fossem puro fogo.
Morte (13)
Como é tola a Morte. Quando vem buscar o seu butim, o Amor já recolheu o que havia de melhor e vendeu aos mercadores cujos camelos embosteiam a praça.
Morte (12)
Agonizar com certo nome entalado na garganta, e morrer no instante exato de conseguir pronunciá-lo como se pronunciou pela primeira vez, no primeiro idioma, a palavra rosa.
Lição
Julguei-me poeta
injustiçado
até o dia em que o acaso
com justiceira premeditação
pôs diante dos meus olhos
e de minha estupefação
um livro de salmos
que eu juraria ser
do rei Salomão
se não fosse
de Adélia Prado.
injustiçado
até o dia em que o acaso
com justiceira premeditação
pôs diante dos meus olhos
e de minha estupefação
um livro de salmos
que eu juraria ser
do rei Salomão
se não fosse
de Adélia Prado.
"Trégua", de Adélia Prado
"Hoje estou velha como quero ficar.
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
Sem nenhuma estridência.
Dei os desejos todos por memória
e rasa xícara de chá."
(De Poesia reunida, publicação da Editora Siciliano.)
Soneto do fruto tantas vezes provado (versão definitiva)
Hoje afinal compreendemos
Que jamais termos provado
O gosto do amor negado
É uma vantagem que temos.
Agora ciência detemos
De que o fruto desejado
Tinha sido mordiscado
Por quantos não saberemos.
Louvemos quem nos magoou
Quando beijos recusou
À fome de nossos lábios.
Quem nos diz que apreciaríamos
O gosto, que sentiríamos,
De Ândersons, Ivos e Fábios?
Que jamais termos provado
O gosto do amor negado
É uma vantagem que temos.
Agora ciência detemos
De que o fruto desejado
Tinha sido mordiscado
Por quantos não saberemos.
Louvemos quem nos magoou
Quando beijos recusou
À fome de nossos lábios.
Quem nos diz que apreciaríamos
O gosto, que sentiríamos,
De Ândersons, Ivos e Fábios?
Morte (9)
Qualquer CPIzinha com um mínimo de boas intenções descobriria facilmente que a Morte e o Amor são sócios antigos.
Morte (8)
Quem sabe na voz da Morte haja algo assim como uma mistura do sotaque de Greta Garbo e Melanie Griffith, ambas um pouco tocadinhas pelo álcool.
Morte (5)
Talvez a Morte, para nos levar até a floresta, nos faça aqueles agradinhos que esperamos inutilmente dos vivos.
Morte (4)
Talvez descubramos, quando ela chegar, que a Morte é aquela loira que num dia de 1996 nos piscou na rua Santa Ifigênia e não quisemos ou não pudemos seguir. Ah, quanto tempo nós teríamos poupado.
Morte (2)
Não há maior conforto
que cutucar-se
beliscar-se
e verificar-se
que quem nos cutucou
e nos beliscou
é um morto.
que cutucar-se
beliscar-se
e verificar-se
que quem nos cutucou
e nos beliscou
é um morto.
Morte
Talvez nem seja ruim
Quem sabe seja assim
como uma tela à nossa frente
apagando-se lentamente
e ao fundo the end
ou simplesmente fim.
Quem sabe seja assim
como uma tela à nossa frente
apagando-se lentamente
e ao fundo the end
ou simplesmente fim.
"Nesta hora", de Mariana Ianelli
"O espasmo e um facho de luz
Embebido nos vitrais de um templo,
Ou talvez um dilúvio,
A voragem de um estupro, e então
A calma trevosa debaixo d'água -
Algum arrebatamento
Algum sortilégio sobre a realidade
Que deixa um corpo lívido e cheio de glória
Como reminiscência de um bosque
Rebrilhando em noite de geada."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Embebido nos vitrais de um templo,
Ou talvez um dilúvio,
A voragem de um estupro, e então
A calma trevosa debaixo d'água -
Algum arrebatamento
Algum sortilégio sobre a realidade
Que deixa um corpo lívido e cheio de glória
Como reminiscência de um bosque
Rebrilhando em noite de geada."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
Paradoxo
Há defuntos
(e defuntas)
de tão pétreo coração
que plantar-lhes no peito
no último dia
as flores da comiseração
é com certeza desrespeito
e falta de consideração
com a natureza.
(e defuntas)
de tão pétreo coração
que plantar-lhes no peito
no último dia
as flores da comiseração
é com certeza desrespeito
e falta de consideração
com a natureza.
Pra valer
Quando você resolve
que morreu
você deve
para manter a resolução
lançar ao sol
olhares só breves
e fugir à tentação
de contemplar as mulheres
e os arcos-íris.
que morreu
você deve
para manter a resolução
lançar ao sol
olhares só breves
e fugir à tentação
de contemplar as mulheres
e os arcos-íris.
Sentimental
Sentimental é quem
como rotina anual
abre a gaveta
e pega a foto amarela
para ver como era
no terceiro colegial.
como rotina anual
abre a gaveta
e pega a foto amarela
para ver como era
no terceiro colegial.
Proeza
Respeitemos os poetas concretistas. Que sensibilidade é necessário ter para exprimir a alma imortal de um tijolo.
Resultado
Quando a vã filosofia
À divagação se junta,
Lá vem mais uma teoria,
Lá vem mais uma pergunta.
À divagação se junta,
Lá vem mais uma teoria,
Lá vem mais uma pergunta.
Marcas
Quando as mordidas do amor forem esmaecendo em nossa pele, devemos, ainda que em certos casos se exijam malabarismos, renová-las enquanto os dentes merecerem ser chamados assim e ainda souberem para que servem.
Um trecho de Schopenhauer
"Não há erro maior do que cer que a palavra enunciada por último seja sempre a mais correta, que tudo o que foi escrito posteriormente seja um aprimoramento do que foi escrito antes e que toda modificação seja um progresso."
(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, publicado pela Martins Fontes.)
(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, publicado pela Martins Fontes.)
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Questão securitária
O problema dos poemas concretos é que o seguro nunca cobre totalmente os danos materiais.
Acidente
Um poeta concretista feriu a testa ao batê-la numa nuvem que trafegava em área proibida e com a luzinha de advertência apagada.
Materiais
Paulo Leminski parece ter sido o último poeta a usar suor e sangue na composição dos poemas. Depois dele veio uma geração que, por amor à assepsia, utilizava só o plástico e as normas da ABNT.
Moda
Como costumam ficar sem jeito certos versinhos que o autor cisma de enfiar numa fatiota de haicai.
Ser escritor
Ser escritor há de considerar-se uma honra ou uma desgraça, porque um modo de vida jamais será.
Cena
No enterro do rei da carne, uma chuva repentina e feroz fez abrir-se uma centena de guarda-chuvas funestos como urubus.
Homenagem
Morre o poeta e, à beira do túmulo, um fã, um rapazola de voz esganiçada, resolve ler justamente o pior poema do defunto e, ainda por cima, engole por conta própria uma sílaba e mutila o alexandrino final.
To be
Não aceite fantasmas se não forem os legítimos, aqueles capazes de declamar, no original, ao menos um ato de tragédia de Shakespeare.
Filme
Se na hora de morrer vemos mesmo passar vertiginosamente, da primeira à última, as cenas de nossa vida, espero que sejam cortadas todas aquelas em que você aparece: elas já pertenciam à morte, embora eu não soubesse.
Quem?
O coração humano é frívolo e ingrato. De alguns seres que nos foram caros, hoje mortos, não lembramos sequer do nome. Perguntamos àqueles que os amaram tanto quanto nós. E nos devolvem a pergunta: quem?
Um trecho de HenryMiller
Àqueles que pensam que a Grécia de hoje não tem mais importância alguma, deixem-me dizer que não se poderia cometer maior engano. Hoje, como antigamente, a Grécia é imprescindível a qualquer homem que esteja em busca de si mesmo. A minha experiência não é única. E talvez fosse bom que eu acrescentasse que nenhum outro povo precisa tanto do que a Grécia tem a oferecer como o americano. A Grécia não é apenas a antítese da América, mas, principalmente, o remédio para os nossos males. Economicamente ela pode parecer destituída de importância, mas espiritualmente a Grécia ainda é a mãe de todas as nações, a fonte maior de sabedoria e inspiração."
(Do livro O colosso de Marússia, tradução de Cora Rónai, publicado pela L&PM Editores.)
(Do livro O colosso de Marússia, tradução de Cora Rónai, publicado pela L&PM Editores.)
segunda-feira, 24 de agosto de 2015
Nem mais isso
Para maior desgraça de sua condição de cachorro abandonado, as caravanas mudaram de trajeto e era comum ele ficar semanas sem ferir o ar com seus latidos rancorosos.
Transporte
Palavras como beleza, quando requisitadas por um poeta, deveriam vir trazidas por um passarinho de alta hierarquia, como um beija-flor.
"Mãe, vem aqui. Sabe do que ele me chamou agora? De gazela, mãe, de gazela. Ah, meu amorzinho, ah, meu amorzinho."
Chapéu
O amor há muito tempo não é a mesma coisa, mas pedir em nome dele ainda rende alguma moedinha.
PMC
Às vezes o poeta Paulo Mendes Campos, sem ser chamado, se intrometia no que o cronista Paulo Mendes Campos estava escrevendo, para introduzir no texto uma flor ou um passarinho.
99,99%
Exigente, no dia em que afinal fez um poema perfeito logo viu nele um defeito: era perfeito demais.
"Soneto", de Ana Cristina César
"Pergunto aqui se sou louca
Quem quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
Que uso o viés para amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?"
(De Inéditos e dispersos, Editora Brasiliense.)
Quem quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu
Que uso o viés para amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida
Pergunto aqui meus senhores
Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina
E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?"
(De Inéditos e dispersos, Editora Brasiliense.)
domingo, 23 de agosto de 2015
Quincas
Sempre achei curioso que maridos de professoras fossem conhecidos como quincas. Nunca me ocorreu averiguar se a designação era pejorativa, embora tivesse essa suspeita. Hoje, sei lá por que diabos, me voltou a dúvida. O professor Deonísio Da Silva deve ter alguma pista.
O "x"
De tempos em tempos, alguém volta ao assunto e tenta definir o que é a poesia. Hoje, um desses estudiosos, por desconfiar que ela fosse um passarinho, aproximou-se com um pano e o jogou sobre ela. Apanhou seus instrumentos de avaliação. Quando pegou de novo o pano, o passarinho não estava mais lá. Mas o pano levantou voo e começou a cantar.
Morte
Só dormindo e cochilando,
Deixando a vida passar,
Ele vai se preparando.
Vem vindo o vestibular.
Deixando a vida passar,
Ele vai se preparando.
Vem vindo o vestibular.
Diagnóstico
A família chamou o médico. A garota de dezessete anos, que nunca adoecera, fazia um mês que não comia bem, dormia mal, estava pálida, não falava. Só suspirava, suspirava. O médico viu logo do que se tratava quando pediu para abrirem a janela: as rosas do jardim, tocadas pela brisa, suspiravam como a garota, e quem conhecesse minimamente a linguagem das flores traduziria imediatamente o que com insistência diziam: amor, amor, amor.
"Na madrugada", de Mariana Ianelli
"Se conheceu uma passagem
Ou se de dor alucinava,
A verdade é que se viu numa jornada
E não pesando mais sua angústia,
Era suave, qualquer coisa como um nó
Se desatando, ver a si próprio
Num mirante e no horizonte
Apenas neblina sobre as casas,
Branca lã sobre todas as suas vidas
Já confundidas, remotas e perdoadas."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Ou se de dor alucinava,
A verdade é que se viu numa jornada
E não pesando mais sua angústia,
Era suave, qualquer coisa como um nó
Se desatando, ver a si próprio
Num mirante e no horizonte
Apenas neblina sobre as casas,
Branca lã sobre todas as suas vidas
Já confundidas, remotas e perdoadas."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
sábado, 22 de agosto de 2015
Perícia
Que um passarinho voe e cante já impressiona. O extraordinário é que consiga fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
Números
Imaginem como seria muito mais encantador um gato, se tivesse no repertório algo além de miar e cochilar.
Oitiva
Ouvidas em inquérito, as entrelinhas declararam nada ter a dizer sobre supostos encontros de Capitu com Escobar.
Compostura
Diante do morto, compenetradamente deitado no caixão, a viúva diz tão baixinho ao amante que ele pode ir vê-la às dez e meia que ele põe a mão no ouvido e, também baixinho, pergunta: onze e meia?
Carma
Me diz de que nos valeu
Termos dado a tudo fim.
Tu não te esqueces de mim
E nem de ti me esqueço eu.
Termos dado a tudo fim.
Tu não te esqueces de mim
E nem de ti me esqueço eu.
Mario Quintana
Crendo que fosse possível,
Quintana tanto insistiu
Que a forma e o olor definiu
E até a cor do invisível.
Quintana tanto insistiu
Que a forma e o olor definiu
E até a cor do invisível.
Soneto de quem perdeu por não cantar
Para exprimir-te eu julgava
Que me seria preciso
Dispor do som que cantava
Nas fontes do Paraíso.
Do amor eu, tolo e ignorante,
Te achava tão intangível,
Tão irreal, tão distante,
Tão longe, tão impossível,
Que imaginei que louvar-te
De mim pediria uma arte
Que eu jamais alcançaria.
Resta-me hoje lastimar
Que te deixaste encantar
Por quem nem cantar sabia.
Que me seria preciso
Dispor do som que cantava
Nas fontes do Paraíso.
Do amor eu, tolo e ignorante,
Te achava tão intangível,
Tão irreal, tão distante,
Tão longe, tão impossível,
Que imaginei que louvar-te
De mim pediria uma arte
Que eu jamais alcançaria.
Resta-me hoje lastimar
Que te deixaste encantar
Por quem nem cantar sabia.
Pois é
Denominador comum é uma dessas coisas que sabemos precisar atingir, embora não saibamos bem o que é.
"Verão", de Mario Quintana
"Quando os sapatos ringem
- quem diria?
São os teus pés que estão cantando!"
(De A cor do invisível, publicado pela Alfaguara.)
- quem diria?
São os teus pés que estão cantando!"
(De A cor do invisível, publicado pela Alfaguara.)
sexta-feira, 21 de agosto de 2015
Mario Quintana
Sinto-me cada dia mais semelhante àquele caminho que Mario Quintana dizia ser tão velho que nem lembrava mais para onde ia.
Galanteria
Se eu soubesse contar até duzentos,
Minha querida, em tuas mãos formosas
Uns dois centos das mais bonitas rosas
Colocaria, e talvez mais dois centos.
Minha querida, em tuas mãos formosas
Uns dois centos das mais bonitas rosas
Colocaria, e talvez mais dois centos.
Perfil
Não me perguntem por quê,
Nem me perguntem pour quoi.
Gentil mesmo, de A a Z,
Só Silvia Galant François.
Nem me perguntem pour quoi.
Gentil mesmo, de A a Z,
Só Silvia Galant François.
Futebol
Gordo, sanguíneo, quando assiste a uma partida do seu time preocupa os amigos. Nos momentos decisivos, seu rosto se infla como um tomate e parece que o corpo vai explodir. Há uns dias, durante um jogo, abraçou a barriga, com expressão de insuportável dor. Correram para socorrê-lo: "O que foi?" Ele arriscou novo olhar para a tevê. O perigo havia passado, a bola estava nas mãos do goleiro. Recomposto, ele explicou, ainda segurando a barriga: "Quase perdi meus gêmeos."
Pechisbeques
Fiz odes para ela, sonetos, quadrinhas. Talvez tivesse obtido êxito, se um marinheiro que lhe deu uma concha apanhada no Mediterrâneo, e que reproduzia as vozes de César e Cleópatra, não lhe dissesse o que sempre fui: um mau poeta.
Estoque
Ainda há quem procure nos livros valores como a beleza e o misticismo. Se um escritor não pode atender os leitores nesses desejos básicos, que mostre honestamente o que tem no estoque e peça as desculpas devidas.
Mario Quintana
Ter havido Drummond, ter havido Quintana significa que a beleza não é tão rara nem tão avarenta quanto às vezes se diz.
Modo de usar
Morrer deveria ser sempre simples como estar na praia, ver no horizonte um veleiro muito branco e fechar os olhos no instante em que ele é assimilado pela repentina noite.
A busca
Quando estiverem limpando a casa depois da morte dele, um neto falará vagamente de um livro que o avô vinha escrevendo desde os vinte anos. Uma neta fará uma busca no arquivo do micro: nada. Nas gavetas, também nada. Outra neta dirá: ah, deixa, era só poesia.
Glória
Um dia talvez as palavras se compadeçam de nós e pelo dez ou quinze delas resolvam juntar-se numa quadrinha que um neto possa mostrar aos amigos, no colégio, e ouvir: "Seu avô era poeta, é?"
Cotação
Concordem ou não concordem os mestres da autoajuda, um homem, faça o que fizer, se não for movido pela beleza valerá sempre menos do que possa vir a supor.
Alma
Quando me vejo no espelho, como agora, sinto que seria crueldade se eu fosse só esse rosto inexpressivo que não parece ter sido jamais tocado pela arte e pela poesia. Hei de ter uma alma, ainda que seja a mais insignificante de todas.
Sobre o leitor cúmplice (p/ Márcia Denser e Marcelo Mirisola)
Quando a literatura é considerada apenas brilho, é fácil. Acende-se um fósforo e, por um instante, qualquer estrela parece pálida diante dele. É um truque antigo, que conta com a conivência dos leitores. Estes precisam aprender a exigir dos escritores um brilho que dê ao menos uma impressão de eternidade.
"Terno de vidro sem gravata e licença poética", de Renato Vieira Ostrowsky
"Quando nasci, um anjo errante,
desses sem bússola nem direção
disse: vai cara, ser ignorante.
Não aceitei o mister me revoltei
minha mãe alinhavou o meu destino
e, no escuro, plantou em mim,
o sonho de menino.
Alguém me apresentou ao Dicionário
eu me embrenhei nas palavras
levei uma surra de fonemas e sintaxes
com metáforas bordei minha estrada.
Vesti meu terno de vidro
exerci minha opaca transparência
me apaixonei pela vida
bradei meu grito de independência."
(Do livro Opaca transparência.)
desses sem bússola nem direção
disse: vai cara, ser ignorante.
Não aceitei o mister me revoltei
minha mãe alinhavou o meu destino
e, no escuro, plantou em mim,
o sonho de menino.
Alguém me apresentou ao Dicionário
eu me embrenhei nas palavras
levei uma surra de fonemas e sintaxes
com metáforas bordei minha estrada.
Vesti meu terno de vidro
exerci minha opaca transparência
me apaixonei pela vida
bradei meu grito de independência."
(Do livro Opaca transparência.)
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
Prêmio
Aos poetas deveria ser dada como prêmio, na hora da morte, a bênção de não estrebucharem, não babarem, não estertorarem, e terem no rosto uma expressão como a de um recém-nascido a quem a mãe pela primeira vez indica um ponto no céu e diz: sol.
Alarme falso
Esta noite sonhou que tinha morrido. Acordado, sente falta de todos os rostos que o fitavam como se ele fosse um homem importante, e não esse que abre a janela agora para ver se precisa levar guarda-chuva porque o ponto de ônibus fica a quase meio quilômetro.
O livro de Giovanna
Ela começou a escrever um livro hoje. Vai ser sobre a sua gata Kelly. Por enquanto, tem só uma frase: Kelly é bonita. Precisa perguntar à tia escritora se uma garota de sete anos pode fazer um bom livro. E, também, se conserva seu nome na história ou inventa um. Giovanna talvez não seja o melhor nome para uma menina que tem uma gata chamada Kelly. Ah, não pode esquecer de perguntar se uma gata pode se tornar bailarina do Bolshoi. Quer que Kelly seja isso no capítulo final.
(Dedicado à menina que aos domingos vai disseminar livros na aridez do Minhocão. Vejam no google texto publicado na Carta Capital e voltem a acreditar que ainda há coisas belas em São Paulo.)
(Dedicado à menina que aos domingos vai disseminar livros na aridez do Minhocão. Vejam no google texto publicado na Carta Capital e voltem a acreditar que ainda há coisas belas em São Paulo.)
Prodígio
Que um homem consiga destruir-se com o álcool, o jogo e as mulheres é compreensível. Que atinja o mesmo resultado com a prosaica literatura é uma façanha.
Quando o pior é o melhor
Quem contrata um engenheiro, um arquiteto, um médico, há de querer que eles estejam no auge, no ponto máximo da realização profissional. No caso de um escritor, o melhor para os leitores, quase sempre, será que ele esteja inseguro, imaturo, indeciso, e escreva exatamente sobre essa insegurança, essa imaturidade e essa indecisão. Quando se sente dono de um estilo, o escritor fica parecendo aqueles atiradores de faca incapazes de causar um arranhão na parceira, ainda que façam cinquenta arremessos por noite, sendo os últimos vinte às escuras e de costas.
Um trecho de Henry Miller
"Ser livre, como naquele momento eu senti que era, e chegar à conclusão de que toda conquista é vã, mesmo a conquista do próprio ser, que é o último ato de egoísmo. Ser feliz é levar o ego ao ápice e entregá-lo triunfalmente. Conhecer a paz é mais: é o momento seguinte, quando a rendição é completa, quando não há sequer a própria consciência dessa rendição. A paz está no centro e, quando é alcançada, a voz se eleva em louvor e bênção. Então a voz vai longe e fundo, aos limites extremos do universo. Então ela cura, porque traz luz e o calor da compaixão."
(Do livro O colosso de Marússia, tradução de Cora Rónai, publicação da L&PM Editores.)
(Do livro O colosso de Marússia, tradução de Cora Rónai, publicação da L&PM Editores.)
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
Mau contato
Se as pessoas se afastam de ti, pode não ser uma questão de princípios, mas de bom olfato.
Saúde pública
Quando um charlatão tentasse escrever um poema, como eu agora, sua mão deveria começar a feder tão insuportavelmente que o único recurso fosse amputá-la e atirá-la aos urubus, se eles a aceitassem.
Conduta
Perante a vida me ponho
Como alguém que por sonhar
Mais do que deve almejar
Fica sempre aquém do sonho.
Como alguém que por sonhar
Mais do que deve almejar
Fica sempre aquém do sonho.
Fim
Eu que vivi
tão cosmopolitanamente
gostaria de morrer
paulistanamente
Saltar
do viaduto do chá
e gritar
amorosamente
ah são paulo
ah são paulo
ah ah ah
até chegar.
tão cosmopolitanamente
gostaria de morrer
paulistanamente
Saltar
do viaduto do chá
e gritar
amorosamente
ah são paulo
ah são paulo
ah ah ah
até chegar.
Forasteiro
Com esta cara feia
de inadimplente
esta meia furada
esta calça rasgada
este tênis indecente
o último lugar
em que vocês me verão
causar no próximo verão
será a ilha de caras.
de inadimplente
esta meia furada
esta calça rasgada
este tênis indecente
o último lugar
em que vocês me verão
causar no próximo verão
será a ilha de caras.
Menos
A pior coisa que pode acontecer a um escritor é achar que tem uma missão. Uma vocação ainda se admite, desde que seus surtos sejam bem ocasionais.
Pensemos em quantas vezes nos leem por delicadeza e não nos apressemos em submeter nossos amigos a mais uma dessas provas com as quais os temos tão continuadamente constrangido.
Tudo
Pelo amor um homem deve ir à loucura, nunca menos do que isso. Para que, no inevitável dia em que começar a relatar sua desgraça, suas perdas soem como ouro numa mesa de cristal, e não como berloques na mesa de madeira de um prostíbulo, na qual as facas dos marinheiros talharam os nomes de suas favoritas e suas especialidades de alcova.
Um trecho de Henry Miller
"A missão do gênio - e o homem não é nada se não for gênio - é manter vivo o milagre, viver sempre no milagre e torná-lo a cada dia mais milagroso, não jurar fidelidade a nada - apenas viver milagrosamente, pensar milagrosamente e morrer milagrosamente. Se a semente do milagre for preservada e nutrida, pouco importa o que foi destruído."
(De O colosso de Marússia, tradução de Cora Rónai, publicação da L&PM Editores.)
(De O colosso de Marússia, tradução de Cora Rónai, publicação da L&PM Editores.)
terça-feira, 18 de agosto de 2015
Soneto dos encarcerados pelo Amor
Do porão onde os mantém
Sem piedade encarcerados
O Amor ouve queixas, brados,
Dos que outrora tratou bem.
Sempre essa atitude tem.
No início, gozos dobrados,
Depois enjoos, enfados,
E nada mais lhe convém.
Para não assumir culpa,
Os súditos inculpa
E enquanto outros não seduz
Mantém esses no porão
Sem um pedaço de pão,
Sem uma réstia de luz.
Sem piedade encarcerados
O Amor ouve queixas, brados,
Dos que outrora tratou bem.
Sempre essa atitude tem.
No início, gozos dobrados,
Depois enjoos, enfados,
E nada mais lhe convém.
Para não assumir culpa,
Os súditos inculpa
E enquanto outros não seduz
Mantém esses no porão
Sem um pedaço de pão,
Sem uma réstia de luz.
Aniversário
Um aniversário é somente
a lembrança de um dia
em que no céu
onde antes não luzia
luziu uma estrela
subitamente
Um aniversário é isso somente
(tão pouco e tão suficiente).
a lembrança de um dia
em que no céu
onde antes não luzia
luziu uma estrela
subitamente
Um aniversário é isso somente
(tão pouco e tão suficiente).
"Panorama", de Mariana Ianelli
"Já esquecemos o quanto foi destruído
Até que se abrisse essa paisagem -
Só o que vemos são essas formas escavadas pelo vento
A beleza de uma terra violada até a pureza -
Esse vazio das estepes onde nada cresce
Além de uma relva amarela que é o pasto das ovelhas."
(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Até que se abrisse essa paisagem -
Só o que vemos são essas formas escavadas pelo vento
A beleza de uma terra violada até a pureza -
Esse vazio das estepes onde nada cresce
Além de uma relva amarela que é o pasto das ovelhas."
(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
Lendo o céu
Ela aprendeu a ler o céu com seus ancestrais indígenas. Quando aparece uma luminosidade tênue, que só ela distingue, diz: amanhã vai nascer uma estrela. Na noite seguinte, aponta o dedo com uma precisão indubitável: olhem lá, não falei? E em seu rosto se acende uma luzinha que brilha um momento apenas, porque os milagres aprenderam a ser discretos.
Mario Quintana
Na época de Mario Quintana não havia um gps. Se houvesse, em todos os caminhos que levassem a Quintana ele indicaria o rumo da poesia.
Soneto da hora final
Quando vier o último dia,
Que possa o amor ser lembrado
Como era quando, dourado,
Em nossa vida luzia.
E possa, assim recordado
Quando era luz e alegria,
Nos aliviar a agonia
Como aliviou no passado.
E, na hora de a alma entregar,
Que sejamos tão ditosos,
Felizes e venturosos
Que consigamos louvar
Quem nos levou a viver,
Quem nos levou a morrer.
Que possa o amor ser lembrado
Como era quando, dourado,
Em nossa vida luzia.
E possa, assim recordado
Quando era luz e alegria,
Nos aliviar a agonia
Como aliviou no passado.
E, na hora de a alma entregar,
Que sejamos tão ditosos,
Felizes e venturosos
Que consigamos louvar
Quem nos levou a viver,
Quem nos levou a morrer.
Soneto de quem alimenta o amor
Ao amor somos quem traz
Os melhores argumentos
E todos os instrumentos
Com que rouba nossa paz.
Ao amor somos quem dá
Sangue e vida ao coração
E destreza à dura mão
Que nos estrangulará.
Quando nos couber morrer,
Se nós o quisermos ver,
Como será? Ai de nós.
Já mudos nos encontramos
Desde que dizer ousamos
Seu nome com a nossa voz.
Os melhores argumentos
E todos os instrumentos
Com que rouba nossa paz.
Ao amor somos quem dá
Sangue e vida ao coração
E destreza à dura mão
Que nos estrangulará.
Quando nos couber morrer,
Se nós o quisermos ver,
Como será? Ai de nós.
Já mudos nos encontramos
Desde que dizer ousamos
Seu nome com a nossa voz.
Mais uma demão
O artista vive moldando o mundo conforme sua visão. Mexe, remexe, volta a mexer e a remexer. Pronto! Assim é que deveriam ter sido o mar, a rosa, a lua, desde sempre. O artista suspira de satisfação. Isso dura um minuto. No minuto seguinte, lá está ele, mexendo de novo, remexendo. A Deus pode ter faltado, mas ao artista jamais falta autocrítica.
Calpúrnia
Se a de César deve ter
Sempre uma feição honesta,
Como deve parecer
Uma mulher que não presta?
Sempre uma feição honesta,
Como deve parecer
Uma mulher que não presta?
O morto cordato
Você será
um morto perfeito
um defunto exemplar
Você se deixará
ver
observar
tocar até
se alguém quiser
ou ousar
Você igual será
ao que foi em vida
pacato cordato
e se por algo torcer
será para continuar
a não feder
nem cheirar.
um morto perfeito
um defunto exemplar
Você se deixará
ver
observar
tocar até
se alguém quiser
ou ousar
Você igual será
ao que foi em vida
pacato cordato
e se por algo torcer
será para continuar
a não feder
nem cheirar.
Uma elegia de Friedrich Hölderlin
"Mas nós caminhávamos juntos pela terra, num mútuo contentamento,
Como os cisnes amantes, ao repousarem no lago,
Ou embalados pelas ondas, olhando as águas,
Espelho de nuvens de prata e esteira de azul etéreo
Rasgada pelos barcos de passagem. E quando o vento norte ameaçava,
Inimigo dos amantes espalhando lamentos, e as folhas
Caíam dos ramos e a chuva caía ao sabor do vento,
Seríamos serenos, experimentando Deus em nós
Em diálogo confiante, num uníssono canto interior,
Num âmbito de paz, em solidão alegre de meninos.
Mas na minha casa está agora o vazio, levaram-me
Os meus olhos e a mim, tal como a ela, me perdi.
Por isso ando errante e é forçoso que viva como
As sombras e tudo o mais há muito perdeu o sentido."
(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Como os cisnes amantes, ao repousarem no lago,
Ou embalados pelas ondas, olhando as águas,
Espelho de nuvens de prata e esteira de azul etéreo
Rasgada pelos barcos de passagem. E quando o vento norte ameaçava,
Inimigo dos amantes espalhando lamentos, e as folhas
Caíam dos ramos e a chuva caía ao sabor do vento,
Seríamos serenos, experimentando Deus em nós
Em diálogo confiante, num uníssono canto interior,
Num âmbito de paz, em solidão alegre de meninos.
Mas na minha casa está agora o vazio, levaram-me
Os meus olhos e a mim, tal como a ela, me perdi.
Por isso ando errante e é forçoso que viva como
As sombras e tudo o mais há muito perdeu o sentido."
(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
domingo, 16 de agosto de 2015
Kama Sutra - CXVIII (versão final)
Quase me envergonho da reverência que eu tinha até nos sonhos e que me impedia de ir além dos beijos, mesmo quando mordiscavas minha orelha e me dizias vem!
www.rubem.wordpress.com
Na revista Rubem, arremesso hoje para o alto um punhado de frases, com a vã esperança de que, quando caírem, apontem algum sentido à vida e ao coração atormentado.
Recriador
Disseram ao escritor que ele é o intérprete do mundo e da vida, e a partir daí não houve mais um canto de pássaro, uma aparição de arco-íris, uma rosa que ele não se ache com o dever de melhorar.
Um trecho de Schopenhauer
"Portanto, a primeira regra do bom estilo, que por si só já é quase suficiente, é a de ter algo a dizer: oh, com ela se vai longe! Mas negligenciá-la é um traço característico dos escritores filosóficos e, em geral, de todos os escritores que refletem na Alemanha, especialmente depois de Fichte."
(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, publicação da Martins Fontes.)
(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, publicação da Martins Fontes.)
Criador
Disseram ao escritor que ele é o intérprete da vida, e a partir daí não houve mais um canto de pássaro, uma aparição de arco-íris, uma rosa que ele não se ache com o dever de melhorar.
sábado, 15 de agosto de 2015
Kama Sutra - DCXV (versão final)
No quarto paira certa maresia, como se a mulher e o homem houvessem deixado a janela aberta para o mar. O lençol parece um veleiro, calmo agora.
Nem todos
Escrever é uma obsessão que se manifesta já na adolescência e, quando persiste décadas afora, representa, salvo as pouquíssimas exceções nas quais o obcecado se trone um escritor, uma das tantas provas de que a maturidade não é algo com que todos os homens possam contar.
Da poesia e da alma
Se a alma pode expressar-se, é na poesia que ela o fará melhor. A novela e o romance têm territórios demarcados e ocupam-se das misérias e das conquistas do homem. A poesia, como a música, não se deixa prender e, com a irresponsabilidade de um garoto que brinca de juiz, aceita em seu tribunal petições de quem quer que as faça, seja uma formiga, um fiapo de nuvem ou a alma imortal.
Sempre a mesma
Quem escreve está condenado, desde o começo até o fim, dure isso dez, trinta ou cinquenta anos, a responder à mesma estúpida e inútil pergunta: por que escreve?
Engano
O haicai transplantado para o Brasil trouxe o inconveniente de fazer parecer que cinco ou seis palavras distribuídas graciosamente por três linhas são sempre o suprassumo da poesia. Um haicai é o pássaro, não a sua plumagem.
Contrastes
Achados e golpes de sorte, que são como falhas de planejamento e quase um contrassenso para um novelista ou um romancista, constituem muitas vezes o que de melhor pode acontecer a um poeta.
Um trecho de Henry Miller
"Naquele momento, eu me alegrei em ser livre, livre de bens materiais, de qualquer vínculo, livre de inveja, de medo e malícia. Poderia ter passado tranquilamente de um sonho a outro, devendo nada, lamentando nada, desejando nada. Nunca estive mais certo de que a vida e a morte são uma só e que nenhuma delas pode ser apreciada ou alcançada se a outra não estiver presente."
(De O colosso de Marússia, tradução de Cora Rónai, publicação da L&PM Editores.)
(De O colosso de Marússia, tradução de Cora Rónai, publicação da L&PM Editores.)
sexta-feira, 14 de agosto de 2015
Sofrer e gozar na literatura
Sei que tudo é relativo, mas sou tentado a não confiar em escritores que dizem ter prazer em escrever. Acredito que na literatura, de modo geral, as recompensas devam caber aos leitores. Aos escritores cai melhor o perfil de sofredores, embora em muitos esse sofrimento não passe de uma máscara, como um desses penduricalhos, um desses brindes que certas revistas anexam à capa e com os quais tentam desculpar-se por sua falta de conteúdo.
Inaptidão
Poetas são aqueles seres bizarros que há milhares de anos lançam ahs e ohs às estrelas, sem nunca terem conseguido derrubar uma.
Sobre o poeta
Um poeta não é um político, não é um professor, não é um filósofo. De um poeta não convém esperar pronunciamentos nem verdades. Um poeta não só deve ter o direito de cometer erros, mas deve ser estimulado a cometê-los. Um poeta pode tentar mil vezes a melhor forma de definir uma estrela. Haverá maneira mais adequada de transformar uma estrela em mil e uma? Ou de encontrar enfim a definição única de estrela, aquela que há milênios se busca em nome da perfeição absoluta da beleza?
Língua
O que de melhor sua língua tem a oferecer não são palavras, mas a excitação com que ela se move em certas ocasiões e que não seria descabido chamar de luxúria.
Kama Sutra - DCXIV (versão final)
Agora que os dois dormem, o sol entra no quarto, insinua-se no lençol e deita-se sobre a mulher, como se o homem, inábil, tivesse deixado algo por fazer.
Requinte
O amor tem sutilezas de artista. Para que eu não me prive do seu gosto, desenhou, embaixo dos meus olhos, delicados sulcos que conduzem as lágrimas para os meus lábios sempre sedentos do amargor que ele me impõe.
Falsa impressão
Estar respirando apesar de todas as misérias do corpo e da alma poderia considerar-se uma benevolência do amor, que manipula os fios da vida e da morte, se não fosse um dos indícios de sua maldade. A ele agradam nossas súplicas, feitas com nossa voz de moribundo, nossos apelos para que nos desfira o golpe de misericórdia.
Dizer quando se diz
Quando digo rasgar
digo rasgar
quando digo dilacerar
digo dilacerar
O amor rasga
O amor dilacera
Se não rasgar
se não dilacerar
se não nos arrancar a pele
ele para nada nos serve
O amor não deve
ter tempo para durar mais
do que o tempo exigível
para ser um momento único
e irrepetível
um momento
que é hoje
agora só
e nunca jamais.
digo rasgar
quando digo dilacerar
digo dilacerar
O amor rasga
O amor dilacera
Se não rasgar
se não dilacerar
se não nos arrancar a pele
ele para nada nos serve
O amor não deve
ter tempo para durar mais
do que o tempo exigível
para ser um momento único
e irrepetível
um momento
que é hoje
agora só
e nunca jamais.
Um trecho de Robert Musil
"Se, por exemplo, se julga uma reprodução mais artística do que um quadro pintado à mão, existe nisso uma verdade mais fácil de provar do que provar que Van Gogh foi um grande artista. Assim, é muito fácil e compensador ser um dramaturgo mais forte que Shakespeare e um narrador mais equilibrado do que Goethe: e um verdadeiro lugar-comum é sempre mais humano do que uma nova descoberta. Não há nenhum pensamento importante que a burrice não saiba usar, ela é móvel para todos os lados e pode vestir todos os trajes da verdade. A verdade, porém, tem apenas um vestido de cada vez, e um só caminho, e está sempre em desvantagem."
(De Um homem sem qualidades, tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth, publicação da Editora Nova Fronteira.)
(De Um homem sem qualidades, tradução de Lya Luft e Carlos Abbenseth, publicação da Editora Nova Fronteira.)
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
Estúpida alquimia
Transformar o amor em amizade? As feridas que a paixão abre, nenhum afeto suaviza, nem é isso que os vitimados querem. Seria como renunciar ao único triunfo que o amor pode proporcionar. O amor foi feito para rasgar e dilacerar. Que bizarra alquimia é essa de transformar o rubro, o dourado, o aflitivo, o agônico em água que escorre pela pia?
Aparências
Valorizamos o amor, damos-lhe melhor aspecto e caráter, ocultamos o pendor que ele tem pelos maus hábitos e pela crueldade, para não dizerem, depois, que fomos mortos por um tipo qualquer.
Mario Quintana
Os passarinhos eram econômicos nas saudações matutinas que faziam ao sol porto-alegrense. Poupavam gorjeios para a hora em que Mario Quintana, sempre acompanhado pela Poesia, saía de casa.
Sofá
Eu gostaria de ser teu gato preferido, aquele que acariciasses com dedos lentos nas tardes em que nenhum dos teus amigos te convidasse para uma saidinha rápida e uma passadinha pelo motel.
Essencial
O amor é aquele ladrão que vamos buscar lá fora, se ele não vem tocar a campainha para furtar-nos em casa.
Outro departamento
Faço versos de ocasião
de casamento
de nascimento
de primeira comunhão
poesia de terceira mão
Se é poesia o que tu queres
poesia de verdade
uma boa recomendação
é Giórgos Seféris ou
Carlos Drummond de Andrade.
de casamento
de nascimento
de primeira comunhão
poesia de terceira mão
Se é poesia o que tu queres
poesia de verdade
uma boa recomendação
é Giórgos Seféris ou
Carlos Drummond de Andrade.
Depois da última curva
Chega a etapa em que, já irrecorrivelmente nos domínios da Morte, sentimos que não podemos retroceder. Olhamos para trás e vemos que aqueles sentimentos todos que nos trouxeram até aqui têm escárnio no rosto. De todos, a face mais terrível e zombeteira é a do Amor.
"Aos emudecidos", de Georg Trakl
"Oh, a loucura da cidade grande, quando ao entardecer
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.
A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.
Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora."
(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicação da Iluminuras.)
Árvores atrofiadas fitam inertes ao longo do muro negro
Que o espírito do mal observa com máscara prateada;
A luz, com açoite magnético, expulsa a noite pétrea.
Oh, o repicar perdido dos sinos da tarde.
A puta, em gélidos calafrios, pare uma criança morta.
A cólera de Deus chicoteia enfurecida a fronte do possesso,
Epidemia purpúrea, fome que despedaça olhos verdes.
Oh, o terrífico riso do ouro.
Mas quieta em caverna escura sangra muda a humanidade,
Constrói de duros metais a cabeça redentora."
(Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, publicação da Iluminuras.)
quarta-feira, 12 de agosto de 2015
Cotação do dia
A certeza de que minhas tentativas de construir uma identidade poética e ficcional só tiveram como resultado me desacreditar como homem.
Fora do alvo
A presunção dos poetas é julgarem que sua tristeza interessa aos leitores. Se vissem a cara que eles fazem ao ler suas queixas, quando as leem...
Boa vontade
Frases de amor devem ser recebidas condescendentemente, como a garota que vai declamar uma quadrinha, esquece os dois versos finais, tenta de novo, com o mesmo resultado, e desiste afinal, pedindo desculpas com tanto empenho que é aplaudida como se tivesse declamado uma longuíssima ode.
Beckett
Os mendigos de Beckett não são metáforas. É possível sentir-lhes o cheiro e ouvir o rancoroso ruído de suas vísceras famintas.
Soneto de como é difícil lidar com o amor
O amor é como um objeto
Que por sem o manual vir
É difícil conseguir
Usar do modo correto.
Aperta-se a tecla afeto
E pode-se ou usufruir
O que ela diz, ou sentir
O desamor mais completo.
Tolo é quem nele confia.
Se tecla a tecla alegria
Recebe às vezes tristezas.
O amor não merece fé.
O amor sempre foi e ainda é
Uma caixa de surpresas.
Que por sem o manual vir
É difícil conseguir
Usar do modo correto.
Aperta-se a tecla afeto
E pode-se ou usufruir
O que ela diz, ou sentir
O desamor mais completo.
Tolo é quem nele confia.
Se tecla a tecla alegria
Recebe às vezes tristezas.
O amor não merece fé.
O amor sempre foi e ainda é
Uma caixa de surpresas.
"Pedra de Sísifo", de Mariana Ianelli
"Ainda que tão longe no tempo
(Já quase adormecendo no mito)
Regressa agora num arrepio
O inferno que era rolar a pedra
Até o alto de uma colina
Quando nada na paisagem dizia
Que dali alguma coisa brotaria,
Além do infinito esforço inútil,
Que nasceria, sangrando em flor,
Esse tempo de agora, sem castigo."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
(Já quase adormecendo no mito)
Regressa agora num arrepio
O inferno que era rolar a pedra
Até o alto de uma colina
Quando nada na paisagem dizia
Que dali alguma coisa brotaria,
Além do infinito esforço inútil,
Que nasceria, sangrando em flor,
Esse tempo de agora, sem castigo."
(De O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
terça-feira, 11 de agosto de 2015
Soneto de como nos demos ao amor
Ao amor nós demos tudo:
O principal, o excedente,
O líquido, o recipiente,
O continente, o conteúdo.
Nos demos inteiramente
Embalados em veludo,
Dóceis, submissos, contudo
Ele achou insuficiente.
Nós lhe levamos então
A nossa alma e o coração
E ele nos disse que aquilo
Era coisa sem valia,
Escória que se vendia
De sacolada e por quilo.
O principal, o excedente,
O líquido, o recipiente,
O continente, o conteúdo.
Nos demos inteiramente
Embalados em veludo,
Dóceis, submissos, contudo
Ele achou insuficiente.
Nós lhe levamos então
A nossa alma e o coração
E ele nos disse que aquilo
Era coisa sem valia,
Escória que se vendia
De sacolada e por quilo.
Quem
Digam quem está errado:
Quem o perdão a alguém pede
Ou quem, de nariz emproado,
Perdão a ninguém concede?
Quem o perdão a alguém pede
Ou quem, de nariz emproado,
Perdão a ninguém concede?
Soneto do amor insensível
Quanto mais requisitado
Pelos recursos normais
Ou pelos mais raros, mais
O amor se faz de rogado.
Surdo, indiferente aos ais,
Ele fica encastelado
Em seu castelo dourado
E não atende jamais.
Quem quer curvar-se aos seus pés
É devorado na entrada
Pelos cinco jacarés,
Sem tempo nem de escutar
A sinistra gargalhada
Que corta em pedaços o ar.
Pelos recursos normais
Ou pelos mais raros, mais
O amor se faz de rogado.
Surdo, indiferente aos ais,
Ele fica encastelado
Em seu castelo dourado
E não atende jamais.
Quem quer curvar-se aos seus pés
É devorado na entrada
Pelos cinco jacarés,
Sem tempo nem de escutar
A sinistra gargalhada
Que corta em pedaços o ar.
Um trecho de Schopenhauer
"Nua, a verdade é belíssima, e a impressão que causa é tanto mais profunda quanto mais simples é sua expressão; em parte porque, nesse caso, ela ocupa sem dificuldades toda a alma do ouvinte, que não é distraído por nenhum pensamento secundário; em parte, porque ele sente que não foi corrompido ou iludido por nenhum artifício retórico, e que o efeito inteiro advém do assunto em si."
(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, publicado pela Martins Fontes.)
(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, publicado pela Martins Fontes.)
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
Soneto do valor que assumem os mortos (versão final)
Como banais e maçantes
Aos mortos devem soar
As odes tonitruantes
Com que os queremos louvar.
Se eles soubessem disso antes,
Se alguém os fosse avisar,
Decerto de comediantes
Viriam a nos chamar.
São todos agora bons,
Sem ressalvas ou meios-tons.
No entanto, quando viviam,
Dez homens em cada dez
Os julgavam réus ou rés
E sem dó os maldiziam.
Aos mortos devem soar
As odes tonitruantes
Com que os queremos louvar.
Se eles soubessem disso antes,
Se alguém os fosse avisar,
Decerto de comediantes
Viriam a nos chamar.
São todos agora bons,
Sem ressalvas ou meios-tons.
No entanto, quando viviam,
Dez homens em cada dez
Os julgavam réus ou rés
E sem dó os maldiziam.
Seleção natural
A verdadeira arte costuma tratar-nos como certas garotas da nossa adolescência, que se deixavam tocar aqui e ali, mas sempre resguardadas por algum tecido, ainda que fino, porque sua pele estava reservada para rapazes melhores.
Bobinho
Um dos quatro peixinhos do aquário amanheceu morto, emaranhado entre as pedrinhas do fundo. A avó culpou a ração nova, mas o netinho acha que, por ter sido sempre o mais bobinho de todos, o peixe conseguiu morrer afogado.
O piano
Por destoar dos móveis novos, o piano foi para o porão. Certas noites, o fantasma da avó vai bulir em algumas coisinhas lá, como o cesto de costura, mas o piano jamais soou, talvez por ser pesada sua tampa, da qual a avó ainda em vida se queixava.
Girassol
Depois de esvoaçar dois dias pela casa, sem encontrar a janela por onde entrara, a borboleta pousou sobre o girassol de plástico no jarro da sala e acomodou-se para morrer.
Item
Um decorador nunca será o melhor se não souber que um sofá deve atender menos a questões de arranjo e simetria que ao conforto do gato que nele se instalará.
Um trecho de Schopenhauer
"O público, porém, dedica seu interesse muito mais à matéria do que à forma e precisamente por isso se atrasa em sua formação superior. Do modo mais irrisório, ele revela esta sua tendência quando se trata de obras poéticas, procurando apurar com zelo os acontecimentos reais ou as circunstâncias pessoais que serviram de ensejo ao poeta: com efeito, tais acontecimentos e circunstâncias acabam por interessar-lhe mais do que as próprias obras, e ele lê mais sobre o que foi escrito a respeito de Goethe do que por Goethe e estuda com mais diligência a lenda de Fausto do que o próprio Fausto.)
(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Reppa e Eduardo Brandão, publicação da Martins Fontes.)
(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Reppa e Eduardo Brandão, publicação da Martins Fontes.)
Cotação do dia
Uma dessas certezas que só nos ocorrem numa segunda-feira: o amor ou é surdo ou é desalmado.
Castigo
Numa noite de sábado, três estrelas infantes, dessas que cabem em palmas de mão, curiosas, resolveram descer à terra. Uma se afogou no mar, outra se espatifou ao cair numa caçamba, na praia. A terceira foi engolida por um gato guloso, que passou a miar fosforescências.
Photoshop
Quando se trata do amor, a memória assemelha-se à alcoviteira que, semanas depois, importuna ainda um cliente, como se ele não tivesse pago o bastante pelos encantos da pupila.
"Legião", de Mariana Ianelli
"As estátuas cobertas de hera
Os casulos debaixo da escada
O chão perigoso, esverdeado
Mas ninguém se lembra
Que em outros tempos
Coisas minúsculas se agarravam
E cresciam atrás dos reposteiros -
Toda uma orgia assim igual a essa,
De trepadeiras e crisálidas,
Uma legião de verdades escondidas
Que a seu tempo conquistaria tudo,
Rebentando a céu aberto, arremetendo
Sem mais fazer sombra pela casa."
(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Os casulos debaixo da escada
O chão perigoso, esverdeado
Mas ninguém se lembra
Que em outros tempos
Coisas minúsculas se agarravam
E cresciam atrás dos reposteiros -
Toda uma orgia assim igual a essa,
De trepadeiras e crisálidas,
Uma legião de verdades escondidas
Que a seu tempo conquistaria tudo,
Rebentando a céu aberto, arremetendo
Sem mais fazer sombra pela casa."
(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
domingo, 9 de agosto de 2015
"Na cidade do Porto", de João Cabral de Melo Neto
"Numa dessas tardes vazias
em que só se está, não se vive,
da janela que dá para a rua,
comercial, consular e triste,
vi passar, entre as que passavam,
uma mulher de andar sevilha:
o esbelto pisar decidido
que carrega a cabeça erguida,
cabeça que é, soberana,
de quando a espiga mais se espiga,
que carrega como uma chama
negra, e apesar disso acendida,
que a mulher dali não conhece:
que é a da mulher da calle Feria,
que é onde as mulheres da plebe
passam com porte de duquesas.
(De Crime na calle Relator - Sevilla andando, publicação da Alfaguara.)
em que só se está, não se vive,
da janela que dá para a rua,
comercial, consular e triste,
vi passar, entre as que passavam,
uma mulher de andar sevilha:
o esbelto pisar decidido
que carrega a cabeça erguida,
cabeça que é, soberana,
de quando a espiga mais se espiga,
que carrega como uma chama
negra, e apesar disso acendida,
que a mulher dali não conhece:
que é a da mulher da calle Feria,
que é onde as mulheres da plebe
passam com porte de duquesas.
(De Crime na calle Relator - Sevilla andando, publicação da Alfaguara.)
O Amor na cama
Do porão
úmido
abafado
sobem as lamentações
os brados
as imprecações
dos condenados
O Amor acorda
aborrecido
estremunhado
e lembra
ter esquecido
outra vez
de levar-lhes a ração
Boceja
se coça
fecha os olhos
e vira de lado.
úmido
abafado
sobem as lamentações
os brados
as imprecações
dos condenados
O Amor acorda
aborrecido
estremunhado
e lembra
ter esquecido
outra vez
de levar-lhes a ração
Boceja
se coça
fecha os olhos
e vira de lado.
sábado, 8 de agosto de 2015
Regra do jogo
Devíamos ter intuído,
Já que ninguém explicou,
Que quando o amor nos deixou
Devíamos ter morrido.
Já que ninguém explicou,
Que quando o amor nos deixou
Devíamos ter morrido.
Soneto do sentimento chamado Amor
Ele é sutil, ardiloso,
E faz-nos crer, se preciso,
Que estamos no paraíso
No inferno mais horroroso.
Ele, ladino e manhoso,
Aliena nosso juízo
E desata nosso riso
Com o canto mais lastimoso.
Ele nos trai, nos ilude,
Confunde o mal com virtude
Em tudo de quanto trate.
Seu nome é simples - Amor -
E ele é tão encantador
Que há quem por ele se mate.
E faz-nos crer, se preciso,
Que estamos no paraíso
No inferno mais horroroso.
Ele, ladino e manhoso,
Aliena nosso juízo
E desata nosso riso
Com o canto mais lastimoso.
Ele nos trai, nos ilude,
Confunde o mal com virtude
Em tudo de quanto trate.
Seu nome é simples - Amor -
E ele é tão encantador
Que há quem por ele se mate.
Cemitério
Onde estão enterrados
os mortos do amor
certas noites se ouve
um murmúrio
um rumor
A vigilância
chamada
vai ver
e não é nada
só uma flor
falando com outra flor.
os mortos do amor
certas noites se ouve
um murmúrio
um rumor
A vigilância
chamada
vai ver
e não é nada
só uma flor
falando com outra flor.
Soneto do conhecimento do amor
Talvez um dia saibamos
Por que é que o amor nos aflige,
Tantas dores nos inflige
E no entanto nós o amamos.
Talvez um dia possamos,
Como a razão nos exige,
Conhecer a causa, a origem
Dos males que suportamos.
Talvez nos chegue esse dia
Com sua sabedoria.
Talvez saibamos então
Que o amor sempre foi só isso,
Um sortilégio, um feitiço
Cravados no coração.
Por que é que o amor nos aflige,
Tantas dores nos inflige
E no entanto nós o amamos.
Talvez um dia possamos,
Como a razão nos exige,
Conhecer a causa, a origem
Dos males que suportamos.
Talvez nos chegue esse dia
Com sua sabedoria.
Talvez saibamos então
Que o amor sempre foi só isso,
Um sortilégio, um feitiço
Cravados no coração.
"Uma manhã", de Mariana Ianelli
"Haverá nisso pureza, sob a luz
Que ainda nos chega
De uma estrela há anos extinta:
Duas sombras que se amam
Porque foi em outra vida
A encruzilhada
De irreconciliáveis diferenças.
Desabrochada da noite
Como de um combate imenso,
Uma centelha do princípio dos tempos:
Numa cama de escombros
Nosso abraço inevitável,
Nossa nudez sem vexame
No ermo das coisas desfeitas."
(Do livro O amor e depois, publicação da Iluminuras.)
Que ainda nos chega
De uma estrela há anos extinta:
Duas sombras que se amam
Porque foi em outra vida
A encruzilhada
De irreconciliáveis diferenças.
Desabrochada da noite
Como de um combate imenso,
Uma centelha do princípio dos tempos:
Numa cama de escombros
Nosso abraço inevitável,
Nossa nudez sem vexame
No ermo das coisas desfeitas."
(Do livro O amor e depois, publicação da Iluminuras.)
sexta-feira, 7 de agosto de 2015
Soneto da obsessão pela arte (versão definitiva)
Nós, seres mais que imperfeitos,
Mantemos a pretensão
De erguer com os nossos defeitos
A torre da perfeição.
Confiamos em nossa mão,
Nos nossos dedos perfeitos
E temos a exatidão
Como um de nossos preceitos.
Erguemos o monumento
E não há nenhum momento
Em que deixemos de crer
Na sua notável grandeza,
Na sua soberba beleza
E em que eterno possa ser.
Mantemos a pretensão
De erguer com os nossos defeitos
A torre da perfeição.
Confiamos em nossa mão,
Nos nossos dedos perfeitos
E temos a exatidão
Como um de nossos preceitos.
Erguemos o monumento
E não há nenhum momento
Em que deixemos de crer
Na sua notável grandeza,
Na sua soberba beleza
E em que eterno possa ser.
Estágio um
Antes de se transformar em obsessão, o amor parece o mais inocente dos sentimentos. É a fase em que ele ainda finge não ter dentes nem garras. Em suma, um consumado idiota.
Mezzo a mezzo - p/ o Xico Sá (versão final)
Na rede ele postou:
se ela fosse mesmo
como dizia
loira bela esguia
ele a receberia
Era misantropo
ma non troppo.
se ela fosse mesmo
como dizia
loira bela esguia
ele a receberia
Era misantropo
ma non troppo.
Epifania
Seria como se
a alma tivesse pele
e sobre ela pousasse
não o dedo
mas a sombra do dedo
de Mariana Ianelli.
a alma tivesse pele
e sobre ela pousasse
não o dedo
mas a sombra do dedo
de Mariana Ianelli.
"Como quem pesca", de Mariana Ianelli
"Esperar ainda é pouco.
Mais é esperar como quem pesca
Absorto entre dois céus -
Um barco fadado às trevas
Feito para ser levado ao fundo
E o mar, desmesurado, não leva...
Serena e soberana fera
Que vem lamber as mãos de um homem
Por um instante e obséquio."
(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
Mais é esperar como quem pesca
Absorto entre dois céus -
Um barco fadado às trevas
Feito para ser levado ao fundo
E o mar, desmesurado, não leva...
Serena e soberana fera
Que vem lamber as mãos de um homem
Por um instante e obséquio."
(Do livro O amor e depois, publicado pela Iluminuras.)
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
Regressão - para o Xico Sá (versão final)
Se sabem o que eu fui ontem,
Permitam-me avisar antes:
Imploro que só me contem
Se fui Camões ou Cervantes.
Permitam-me avisar antes:
Imploro que só me contem
Se fui Camões ou Cervantes.
Soneto da canção equivocada (versão final)
Sou eu aquele que um dia,
Embriagado de grandeza,
Escarneceu da alegria
E enalteceu a tristeza.
Sou eu quem do riso ria
E proclamou a vileza
De quem num sorriso via
Uma expressão da beleza.
Cantei a dor, o tormento,
O valor do sofrimento
E da mortificação.
Errei, ah, como eu errei,
Mas já é tarde, eu bem sei,
Para mudar a canção.
Embriagado de grandeza,
Escarneceu da alegria
E enalteceu a tristeza.
Sou eu quem do riso ria
E proclamou a vileza
De quem num sorriso via
Uma expressão da beleza.
Cantei a dor, o tormento,
O valor do sofrimento
E da mortificação.
Errei, ah, como eu errei,
Mas já é tarde, eu bem sei,
Para mudar a canção.
Soneto da aranha e da sua teia
Aquele que o amor receia
E foge do seu encanto,
Assim que escapa da teia
Compõe um épico canto.
E nele sempre alardeia,
Para quem o ouve com espanto,
Quão cruel era a aranha, e feia,
E como o feriu, e quanto.
Julgando-se um vencedor,
Ele desmerece o amor
E nem sequer imagina
Que possa alguém exultar
Por preso na teia estar
Da mesma aranha assassina.
E foge do seu encanto,
Assim que escapa da teia
Compõe um épico canto.
E nele sempre alardeia,
Para quem o ouve com espanto,
Quão cruel era a aranha, e feia,
E como o feriu, e quanto.
Julgando-se um vencedor,
Ele desmerece o amor
E nem sequer imagina
Que possa alguém exultar
Por preso na teia estar
Da mesma aranha assassina.
Soneto do amor mais eu (versão final)
Por ser do dele e também
Inteiro do meu agrado
O amor conseguido tem
Conservar-me subjugado.
Se aquilo que me convém
Não lhe causa desagrado,
Daquilo que de mim vem
Ele se diz agradado.
Nenhum de nós é revel.
Cumprimos nosso papel
Ou de vítima ou de algoz.
Nos dividimos, nos damos,
Nos somos, nos completamos,
O amor mais eu somos nós.
Inteiro do meu agrado
O amor conseguido tem
Conservar-me subjugado.
Se aquilo que me convém
Não lhe causa desagrado,
Daquilo que de mim vem
Ele se diz agradado.
Nenhum de nós é revel.
Cumprimos nosso papel
Ou de vítima ou de algoz.
Nos dividimos, nos damos,
Nos somos, nos completamos,
O amor mais eu somos nós.
Pris
Quando tudo isto tiver passado, daqui a um ano ou dois (não ouso projetar para mim nada além disso), eu me lembrarei dos clamores e dos fragores ou da falta que me fazia Priscylla Mariuszka Moskevitch?
Testamento
Quando a Morte vier, se decepcionará com a nossa penúria, com o nosso rosto encovado, nossos olhos baços e nossas palavras murchas. Teremos colocado tudo em nome do Amor.
Mario Quintana
O sentido das palavras depende de quem as pronuncia. Mario Quintana, mesmo quando queria dizer só algo, dizia sempre tudo, como se tudo fosse a única coisa que as palavras pudessem dizer.
Paulo e Clarice
Sempre que imagino Paulo Mendes Campos caminhando ao sol do Rio com Clarice Lispector, sei que, apesar das provas em contrário, a alguns poetas Deus concede o céu na terra.
Bruxa
A vida
essa desmancha-prazeres
quando negligencia seus afazeres
e faz poesia
rima tulipas com tripas
e disenteria.
essa desmancha-prazeres
quando negligencia seus afazeres
e faz poesia
rima tulipas com tripas
e disenteria.
Um trecho de "A borra do café", de Mario Benedetti
"María Eugenia era de uma beleza singular. Não se parecia com nenhuma atriz ou modelo famosa. Quatro anos antes havia sido eleita Miss Soriano, mas depois não quis voltar a competir nesses concursos, por considerá-los frívolos demais. Todos pensavam que, se ela tivesse desejado, já figurariam entre seus títulos os de Miss Uruguai, Miss Mundo, Miss Universo e até Miss Galáxia, se existisse. Tinha curvas perfeitas, estatura ideal e um rosto que podia ter sido escolhido por Filippo Lippi para uma de suas virgens. Seus atrativos eram tão intimidantes que nenhum dos rapazes capurrenses se atrevera a cortejá-la, coisa que não impediu que, anos mais tarde, quando María Eugenia se casou com um 'estrangeiro' (montevideano mas do Cordón), fosse considerada pouco menos que uma traidora."
(Tradução de Joana Angélica d'Avila Melo, publicação da Alfaguara.)
(Tradução de Joana Angélica d'Avila Melo, publicação da Alfaguara.)
Um rapaz de valor (versão final)
Que pena tenho de mim
do rapaz que estudou trigonometria
história gramática filosofia
e até um tantinho de latim
Que pena tenho de mim
do rapaz tão tolo e patético
que a vida transformou num velho
patético entre os patéticos
Nos livros confiei e hoje
eles apodrecem na estante
enquanto eu murcho no sofá -
eu e eles frutos que a morte colherá.
do rapaz que estudou trigonometria
história gramática filosofia
e até um tantinho de latim
Que pena tenho de mim
do rapaz tão tolo e patético
que a vida transformou num velho
patético entre os patéticos
Nos livros confiei e hoje
eles apodrecem na estante
enquanto eu murcho no sofá -
eu e eles frutos que a morte colherá.
Pris
A palavra amor não é a mais querida por mim. A palavra que expressa o meu melhor sentimento é ternura. Ternura é seda, é brisa, é arrepio da alma. Ternura é o que sinto quando me lembro de Priscylla Mariuszka Moskevitch.
Pris
O sol não brilhou ontem na janela da qual Priscylla Mariuszka Moskevitch olha para suas árvores. Hoje ele ensaia aparecer, mas teme o reencontro com a amiga. Como pode ser terrível a censura nos olhos de uma mulher bela!
"Rio límpido corre", anônimo
"A torre que do vento leva um choupo
A pátios vazios
De encontro à balaustrada me tem sozinha.
Caem flores de pessegueiro, altas.
A montanha, azul. Ele partiu, ou fugiu, perco-o da vista."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
A pátios vazios
De encontro à balaustrada me tem sozinha.
Caem flores de pessegueiro, altas.
A montanha, azul. Ele partiu, ou fugiu, perco-o da vista."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
quarta-feira, 5 de agosto de 2015
Pris
Alguém me disse ter visto Priscylla Mariuszka Moskevitch na Consolação, e eu invejei doentiamente esses olhos, como se me tivessem furtado a visão do céu.
Pris
Na última vez em que a vi, Priscylla Mariuszka Moskevitch pisava num fiozinho de sol na Augusta. Em vez de recuar, o fiozinho a acompanhou, como se fosse um ornamento do seu sapato.
Nome
Quem se chamar Saul que me desculpe. Por pouco não somos xarás. Quando foram me registrar, o escrevente do cartório trocou o S por um R. Eu tinha uns cinco dias de vida. Perdoem-me, Sauis, mas considero isso um caso de típica sorte de principiante.
Expectativa
Aos poucos, o amor vai se assemelhando àquele parente que todo Natal nos visitava e no ano passado, por um problema qualquer, não veio. Este ano, com a proximidade de dezembro, nos surpreendemos a imaginar que talvez, dependendo de nosso horóscopo, ele possa ter novamente um problema qualquer.
Soneto dos dois sonsos no metrô
Às vezes assim, do nada,
Com seu estilo retrô,
Numa estação do metrô
Completamente apinhada,
O amor inventa um roteiro
E provoca um esbarrão
Desprovido de intenção
Entre uma e um passageiro.
Os dois corações palpitam.
Deus, nunca bateram tanto!
Porém, tímidos, hesitam
E quando vão perceber
Ele está só, em um canto,
E ela acabou de descer.
Com seu estilo retrô,
Numa estação do metrô
Completamente apinhada,
O amor inventa um roteiro
E provoca um esbarrão
Desprovido de intenção
Entre uma e um passageiro.
Os dois corações palpitam.
Deus, nunca bateram tanto!
Porém, tímidos, hesitam
E quando vão perceber
Ele está só, em um canto,
E ela acabou de descer.
"Numa sessão do grêmio", de João Cabral de Melo Neto
"Sessão do Grêmio da ex-Capital.
Hora (são horas!) de anotar mortes.
O Tabelião, Imortal, soletra:
W.H. Auden.
Ninguém sabe quem, de onde vem.
Aceitam o voto e te aplaudem,
que é da morte ser celebrada,
W.H. Auden.
A nenhum grêmio como o nosso,
que assegura a imortalidade,
pertenceste, estás mesmo morto.
W.H. Auden.
Ao entrerriso dos Imortais
e ao descobrir que um Auden morre,
invejei-te a mortalidade,
W.H. Auden."
(De Crime na calle Relator- Sevilha andando, publicação da Alfaguara.)
Hora (são horas!) de anotar mortes.
O Tabelião, Imortal, soletra:
W.H. Auden.
Ninguém sabe quem, de onde vem.
Aceitam o voto e te aplaudem,
que é da morte ser celebrada,
W.H. Auden.
A nenhum grêmio como o nosso,
que assegura a imortalidade,
pertenceste, estás mesmo morto.
W.H. Auden.
Ao entrerriso dos Imortais
e ao descobrir que um Auden morre,
invejei-te a mortalidade,
W.H. Auden."
(De Crime na calle Relator- Sevilha andando, publicação da Alfaguara.)
terça-feira, 4 de agosto de 2015
Pris
Priscylla Mariuszka Moskevitch brincava com o colar e, ao perceber que o pescoço ansiava por ele e pelo contato dos seus dedos, demorou-se perversamente na brincadeira, acariciando mais e mais as pérolas.
À sombra
Para os amantes clandestinos
o amor nunca sorrirá
no álbum de família
folheado num domingo de chuva
no sofá
Desse amor não haverá
áudios nem vídeos
e ninguém dirá
olha aqui ó
nem olhe lá
E se vídeo e se áudio
e se fotos houver, lá
onde um rosto triste estiver
ao lado de um rosto culpado
lá é que o amor estará.
o amor nunca sorrirá
no álbum de família
folheado num domingo de chuva
no sofá
Desse amor não haverá
áudios nem vídeos
e ninguém dirá
olha aqui ó
nem olhe lá
E se vídeo e se áudio
e se fotos houver, lá
onde um rosto triste estiver
ao lado de um rosto culpado
lá é que o amor estará.
Pris
Que proíbam Priscylla Mariuszka Moskevitch de participar de qualquer um dos atos que vêm se realizando no País. Um só dos fios de seus cabelos pode incendiar a Nação.
Mario Quintana
No rosto de Mario Quintana havia sempre um brilho maroto, como se fosse o sorriso de um menino que tivesse acabado de comer às escondidas uma fatia de sol.
Pris
Priscylla Mariuszka Moskevitch gostava dos dias frios. E não lhe desagradavam os outros, aquecidos generosamente pelo sol. Era retribuída regiamente. Difícil dizer quem homenageava quem.
Títulos
Os títulos pelos quais ansiou
não lhe deram
Concederam-lhe um
que não pleiteou
És cruel
lhe disseram
Ele aceitou.
não lhe deram
Concederam-lhe um
que não pleiteou
És cruel
lhe disseram
Ele aceitou.
Pris
Priscylla Mariuszka Moskevitch é uma garota infiltrada entre os adultos. Ela os olha, os avalia, e sai de cena sempre com um sorriso zombeteiro. Ah, dar-lhe umas palmadas, que vontade. Mas Priscylla nunca se deixa apanhar. Priscylla é rápida como todas as meninas levadas.
"Augúrio enquanto monta a cavalo", anônimo
"Encontros bastantes e foram felizes.
É muita aflição? Sentimentos
Se embrulham - pacotes de cânhamo,
Passeios sob o muro de Leste por acaso
Ajudam, mas pouco. Lamento. Ah! O frio. Límpida
A lua e contra o seu amarelo a flor."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
É muita aflição? Sentimentos
Se embrulham - pacotes de cânhamo,
Passeios sob o muro de Leste por acaso
Ajudam, mas pouco. Lamento. Ah! O frio. Límpida
A lua e contra o seu amarelo a flor."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
segunda-feira, 3 de agosto de 2015
Pris
A Priscylla Mariuszka Moskevitch agrada a transitoriedade. Apossar-se não é nela uma atitude. Ela ama a fugacidade, a efemeridade. Um dia, teve na mão um filete de sol. Brincou com ele um pouco e o soltou. Observador da cena, eu vi a dolorosa relutância com que o fiozinho dourado se resignou a afastar-se dela.
Pris
Priscylla Mariuszka Moskevitch tinha um jeito delicado de abrir o sachezinho de açúcar, como se despetalasse uma flor que lhe houvesse suplicado piedade.
Pris
Em meu breve convívio com Priscyylla Mariuszka Moskevitch, cheguei a pensar, por atitudes dela, que a beleza pudesse ter como um de seus atributos a crueldade. Hoje vejo a questão por outro ângulo. A beleza há de se fazer de rogada, não há de estar permanentemente ao nosso alcance. A beleza é rara e - para o nosso próprio bem - deve resistir às nossas bisonhas súplicas.
Pris
Às vezes me pergunto se Priscylla Mariuszka Moskevitch não foi apenas mais uma das criações de minha mente insana, como a aspiração de ser escritor.
Sobre a crueldade
Outro dia, disseram-me que sou cruel. Estranhei. Quem poderia chamar-me assim seria só meu coração. Eu o lancei a tantas aventuras malogradas. Meus olhos cobiçosos e minha mente parva o obrigaram a postar-se diante de tantas portas, antes de ser enxotado, e a dizer tantos nomes, antes do último e fatal...
Cotação do dia
Diante da alma e do coração mortos, o amor prepara o bico e estuda por qual deles começará.
Lunático
Talvez eu só não tenha morrido porque precise pagar ainda uma última conta com o romantismo. Imaginava ter saldado todas, desde o momento em que, com os olhos tomados pela insanidade do amor, por mil e uma noites tentei seduzir estrelas. Na milésima segunda consegui trazer uma que levei, na palma da mão, à casa de minha amada. Ela me chamou de louco. Ficou com a estrela, mas passou a me evitar. A esse episódio somaram-se outros (num deles fisguei um fiapo de arco-íris, que a amada recusou e guardei num livro de contos de Katherine Mansfield). Não posso queixar-me. Tenho sido chamado talvez de todos os nomes que designam um homem ao qual, como se diz, faltam vários parafusos. Isso me lisonjeia, mas penso ter feito pouco para merecer tudo isso. Ultimamente venho me dedicando, noite após noite, a observar a Lua.
Má sorte
Só descobriram que ele era uma celebridade quando já estava morto. Precisaram recriar sua história.
Pris
Priscylla Mariuszka Moskevitch é ubíqua: está sempre onde está, e também onde estou eu, contemplando as flores com os olhos maravilhados e vendo-a em todas.
Como se
Que tolos somos nós quando revelamos a pretensão de eternizar certos momentos, como um beijo que se obteve enfim como dádiva suprema ou o voo de um pássaro que por dois segundos marcou a linha do horizonte. A beleza é a beleza por ser um lampejo único e irrepetível. Como nos pareceria insípido o beijo se os lábios se mantivessem colados para sempre, como o de duas estátuas, e se o pássaro se fixasse como se o céu fosse um cenário de teatro pregado por mão inábil e as asas não passassem de dois pregos negligentemente deixados à mostra.
Pris
Se Priscylla Mariuszka Moskevitch perguntar por mim, digam por favor que perdi a vontade de viver, mas que de resto vou indo muito bem.
Pris
Conheço Priscylla Mariuszka Moskevitch da melhor forma possível: como um poeta, por olhá-la sempre com amor, julga conhecer uma estrela.
Pris
Bom tempo foi aquele em que me imaginava um gato ensaiando a escala de minha asma no colo de Priscylla Mariuszka Moskevitch.
Mario Quintana
Certas manhãs porto-alegrenses, especialmente as de feriados, esperavam Mario Quintana acordar para dizer-lhes se estavam apresentáveis.
"A bela de Yu", de Jiang Jie
"Quando era novo, ouvia a chuva
Acompanhado por bailarinas,
As velas tremulando, no vermelho
Das cortinas de cama.
Depois, ouvi-a nos barcos errantes,
Nos imensos rios,
sob nuvens baixas,
No vento de Oeste - lá onde
Grita o ganso selvagem.
Ouço-a agora junto à cabana dos monges
Com prata nos cabelos.
Tristeza, alegria, ausência, encontro -
Passam, indiferentes.
Que ela tombe - a chuva, sobre os degraus,
Gota a gota, a noite inteira, até ser dia."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Acompanhado por bailarinas,
As velas tremulando, no vermelho
Das cortinas de cama.
Depois, ouvi-a nos barcos errantes,
Nos imensos rios,
sob nuvens baixas,
No vento de Oeste - lá onde
Grita o ganso selvagem.
Ouço-a agora junto à cabana dos monges
Com prata nos cabelos.
Tristeza, alegria, ausência, encontro -
Passam, indiferentes.
Que ela tombe - a chuva, sobre os degraus,
Gota a gota, a noite inteira, até ser dia."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
domingo, 2 de agosto de 2015
Pris
Não, Priscylla Mariuszka Moskevitch não é um estado de espírito. Seria pouco. É um estado de alma.
Pris
Certa noite, na balsa Santos-Guarujá, ao dizer o nome de Priscylla Mariuszka Moskevitch, descuidei-me e o deixei cair no mar. No mesmo instante, mil trezentos e setenta e quatro estrelas atiraram-se à água para resgatá-lo, enquanto a Lua, do alto, comandava: mais para a direita, isso, aí, ai meu Deus, como esse Raul é sonso.
Compensação
Aos velhos a vida concede a falsa sabedoria de julgarem o amor dispensável, quando ele vem a lhes faltar.
Padrão
Se o amor não é mais a medida de todas as coisas, lhes digo que todas as coisas estão erradas.
Pris
Certa manhã, fui proibido pela Aviação Civil de voltar a pronunciar o nome de Priscylla Mariuszka Moskevitch em Congonhas, depois que de minha boca começaram a sair pétalas que num instante cobriram de neblina rosa todo o céu azul.
Pris
Se Priscylla Mariuszka Moskevitch fosse o título de todos os textos que escrevi, eles certamente seriam melhores, já desde as três primeiras palavras.
Pris
Agradeço a todos, mas não precisam mais procurar Priscylla Mariuszka Moskevitch. Eu a recuperei e a mantenho presa numa nuvem que só se abre com a chave de ouro de um soneto.
Pris
Não é verdade que Priscylla Mariuszka Moskevitch fica mais bela quando se zanga. Ela fica muitíssimo mais bela, e ser aniquilado pela dureza dos seus olhos, nessas ocasiões, é como ser chicoteado pela mão de uma estátua de Michelangelo.
www.rubem.wordpress.com
Na revista Rubem, falo hoje de uma porção de coisinhas, pequenos sentimentos, bugigangas, quinquilharias com as quais cada um de nós tenta dar importância à vida.
Visita do general Amor às tropas
No campo de batalha, o Amor examina os que morreram por ele. Foi uma boa geração. Não se salvou nenhum. Pelo estado dos corpos, horrivelmente mutilados, o Amor vê que lutaram com bravura. E no sorriso morto de cada um sente o que sente há milênios: morreram felizes. Trazido pela curiosidade, um grupo de meninos e meninas olha para os combatentes derrotados e, em seguida, para o Amor. É uma troca de olhares que assegura ao Amor: seu reino está garantido. Os urubus esvoaçam, felizes.
"Fortuitamente", de Wang Wei
"Compor uns versos. Com a idade, preguiça tenho.
Os vários anos somente tenho por companhia.
Vida anterior: por engano, me votaram à poesia.
Se noutra fosse teriam feito pintor de mim.
Nesta medida é difícil abandonar uns hábitos.
Mesmo acontece ser conhecido por tal coisa.
Nome de nascença, nome do fundo, certo ambos,
Mas o coração pelo contrário ninguém conhece."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Os vários anos somente tenho por companhia.
Vida anterior: por engano, me votaram à poesia.
Se noutra fosse teriam feito pintor de mim.
Nesta medida é difícil abandonar uns hábitos.
Mesmo acontece ser conhecido por tal coisa.
Nome de nascença, nome do fundo, certo ambos,
Mas o coração pelo contrário ninguém conhece."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
sábado, 1 de agosto de 2015
Aviso
Que me avises, antes de ires,
As trilhas pelas quais fores,
Para eu semeá-las de flores,
De estrelas e de arcos-íris.
As trilhas pelas quais fores,
Para eu semeá-las de flores,
De estrelas e de arcos-íris.
Se e se
Se fui direito ou fui torto,
Se fui torto ou fui direito,
Não tenho agora mais jeito:
Dei-me ao amor, e estou morto.
Se fui torto ou fui direito,
Não tenho agora mais jeito:
Dei-me ao amor, e estou morto.
Pris
Não me lembro do nome de todos os meus algozes. Posso dizer que o mais cruel e querido deles atende pelo poético nome de Priscylla Mariuszka Moskevitch.
Pris
Priscylla Mariuszka Moskevitch, quando se zanga, tem olhos de menina malvada, daquelas que compram um periquito para o almoço do gato.
Tu
Quando acaso penso em ti,
No mesmo erro sempre incorro:
Não sei bem por que vivi,
Porém sei bem por que morro.
No mesmo erro sempre incorro:
Não sei bem por que vivi,
Porém sei bem por que morro.
Desencontro
Alguns saem do amor como se tivessem ido ver no sábado às dez da noite, no Paisandu, um show único que se realizou às seis da tarde da sexta, no Pacaembu.
Mario Quintana
Há os poetas que lemos por sua fama ou por recomendação, e há outros, os mais queridos, aqueles que, como Mario Quintana, escolhemos com o próprio coração.
Alexandrino
Ontem num sonho meu eu vi aparecer
Um fantasma que enfiado num vistoso fraque
Falava com as estrelas e dizia ser
Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac.
Um fantasma que enfiado num vistoso fraque
Falava com as estrelas e dizia ser
Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac.
Megafone
Confessar amor
faz sentido
mas melhor é gritar
declamar
proclamar
Sempre há quem ouça mal
ou se faça de desentendido.
faz sentido
mas melhor é gritar
declamar
proclamar
Sempre há quem ouça mal
ou se faça de desentendido.
"Impressão", de Wang Wei
"Leve na bruma o pavilhão miúda chuva tece
A esta hora fechado ainda o pátio fundo.
Com tempo, sentado, o nítido verde de musgo
Parece querer ganhar as roupas de um homem."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Pris
Não, não era eu o velhote que Priscylla Mariuszka Moskevitch ajudava a atravessar a Paulista na altura do 2.073, ontem, às oito da noite. Coisas boas há muito tempo não acontecem comigo. Enterraram um sapo na minha alma.
Pris
O platonismo esteve presente em mim, no meu convívio com Priscylla Mariuszka Moskevitch, e em certas ocasiões eu me perguntei se não seria uma posição equivocada. Falar em tática seria uma grosseria que não me permiti então e não me permito agora.
Pris
Enquanto Priscylla Mariuszka Moskevitch fala, eu vou devagar escapando com a imaginação para um campo extenso, em cujo verde me embrenho. Deixo que ela fale, que ela conte suas histórias, nas quais sempre aparecem os cães e os gatos que ela ama. Quando ela percebe, eu já estou longe e chega a hora de minha recompensa. Ela nota a minha ausência e me chama. Sou então o que gosto de ser: um cão, um gato que chega ofegante ao colo de Priscylla.
Pris
Talvez eu tenha, no início, pensado em apossar-me da beleza da Priscylla Mariuszka Moskevitch. Não fui suficientemente rápido. Sua beleza já se apossara de mim. Foi o começo de uma longa e agridoce vassalagem.
Pris
A partir da primeira manhã em que a vi, tornei-me um dependente de Priscylla Mariuszka Moskevitch. Eu era um cativo do amor e me sentia diferente de todas as pessoas pelas quais passava. Achava incrível que não me olhassem, que não me apontassem. Se me dissessem que eu flutuava, eu acreditaria. Eu flutuava dentro da nuvem em que Priscylla me enredara.
Pris
Conheci Priscylla Mariuszka Moskevitch numa dessas manhãs traiçoeiras que nada parecem ter de incomum e no entanto planejam fixar-se em nossa memória assim como os cravos na carne dos mártires.
Pris
Priscylla Mariuszka Moskevitch era uma moleca, uma molecona, uma admirável guria. Do que conversávamos no tempo em que a conheci não me lembro muito bem, mas era sempre de coisas alegres. Priscylla foi a maior trégua que a tristeza me concedeu em toda a vida.
Mario Quintana
Víamos em Mario Quintana alguém que sabia soprar uma nuvem e soprava-a exatamente como nós faríamos, se soubéssemos.
Soneto do que fomos um dia
Agora é tarde. Jamais
Nos tornaremos a ver,
E tudo em que ousamos crer
Pertence hoje ao nunca mais.
Os nossos sonhos e ideais
Não soubemos merecer
E dói-nos hoje saber
Que somos seres normais.
Por um instante somente,
Como um cometa fulgente,
O amor nos modificou.
Pobre de ti e de mim,
Estamos agora assim:
És o que és, sou o que sou.
Nos tornaremos a ver,
E tudo em que ousamos crer
Pertence hoje ao nunca mais.
Os nossos sonhos e ideais
Não soubemos merecer
E dói-nos hoje saber
Que somos seres normais.
Por um instante somente,
Como um cometa fulgente,
O amor nos modificou.
Pobre de ti e de mim,
Estamos agora assim:
És o que és, sou o que sou.
Poeminha dos giras
Ainda que
para ouvidos moucos
e ainda que
com nossos gritos roucos
devemos berrar o amor
até que alguma autoridade
pela lei ou por favor
reconheça nossa autenticidade
e citando o estatuto
das rimas consoantes
em seu artigo vinte e poucos
nos interne quanto antes
naquele instituto
exemplar
onde costumam internar
os amantes e os loucos.
para ouvidos moucos
e ainda que
com nossos gritos roucos
devemos berrar o amor
até que alguma autoridade
pela lei ou por favor
reconheça nossa autenticidade
e citando o estatuto
das rimas consoantes
em seu artigo vinte e poucos
nos interne quanto antes
naquele instituto
exemplar
onde costumam internar
os amantes e os loucos.
Paradoxo
Se o amor é doença doída,
Se é só tormento e aflição,
Por que é que achamos então
Tão gostosa a recaída?
Se é só tormento e aflição,
Por que é que achamos então
Tão gostosa a recaída?
"Rapaz raposa", de Shijing
"Este rapaz feiticeiro
Desdenha falar comigo.
Sim, é por causa dele, Senhor,
Que deixo a comida no prato.
Este rapaz raposa
Comigo comer não quer.
Sim é por causa dele
Que já descanso não tenho."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Desdenha falar comigo.
Sim, é por causa dele, Senhor,
Que deixo a comida no prato.
Este rapaz raposa
Comigo comer não quer.
Sim é por causa dele
Que já descanso não tenho."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Soneto das mentiras recíprocas (para Priscylla Mariuszka Moskevitch)
Nós bem sabemos que o amor
Não é a bênção suprema,
O sol de nosso sistema,
Nosso deus, nosso senhor.
Sabemos que não é flor,
Nem a razão do poema,
Os dois pontinhos do trema,
Do céu azulado a cor.
Mas continuamos fingindo,
Mas continuamos mentindo,
Com toda a força da voz.
Fazemos exatamente
O que persistentemente
Ele, o amor, fez para nós.
Não é a bênção suprema,
O sol de nosso sistema,
Nosso deus, nosso senhor.
Sabemos que não é flor,
Nem a razão do poema,
Os dois pontinhos do trema,
Do céu azulado a cor.
Mas continuamos fingindo,
Mas continuamos mentindo,
Com toda a força da voz.
Fazemos exatamente
O que persistentemente
Ele, o amor, fez para nós.
Pris
Priscylla Mariuszka Moskevitch foi sempre, para mim, desde a primeira manhã, uma ideia de beleza, uma exaltação do espírito, e todas as vezes em que me permiti pensar numa corporificação, a impressão que tive foi a de quem, ainda que com um dedo apenas, turvasse uma superfície límpida.
Um poema de Su Shi
"A vida humana é como? Em qualquer parte... Será
Ganso bravo, pousa e voa. Lama e neve
Deixa nelas traço de pata e unhas
Depois levanta. - Pra onde? Leste, Oeste
Já morreu o velho eremita
Fizeram pagode novo
Caído, o muro. Impossível ler o que lá vinha escrito.
Mas ainda te lembra a viagem longa feita para o ver: altos e baixos
Sem fim mesmo foi, estávamos cansados, e meu burro mancava e zurrava."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Ganso bravo, pousa e voa. Lama e neve
Deixa nelas traço de pata e unhas
Depois levanta. - Pra onde? Leste, Oeste
Já morreu o velho eremita
Fizeram pagode novo
Caído, o muro. Impossível ler o que lá vinha escrito.
Mas ainda te lembra a viagem longa feita para o ver: altos e baixos
Sem fim mesmo foi, estávamos cansados, e meu burro mancava e zurrava."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)