Se você não for obstinado,
nem comece: escrever
é mais longe do que parece.
sábado, 30 de junho de 2018
Por quê? Por quê?
Amor, por que vos calais?
Dizei-me, amor: adoecestes?
Confessai-me, amor: morrestes?
Por que não me doeis mais?
Dizei-me, amor: adoecestes?
Confessai-me, amor: morrestes?
Por que não me doeis mais?
Dupla revelação
O amor não nos deixa dúvida: temos alma. Ele a revela inteira para nós - quando vem e quando se vai.
Preferência
Encantam-me as notas agudas e os sentimentos exacerbados. Fascinam-me violinos e os amores que se estilhaçam como taças de cristal tocadas por um fantasma rancoroso num castelo milenar.
Polos
A ousadia, apontada como decisiva na história dos vitoriosos, é, no caso dos derrotados, uma daquelas presunções das quais não se pode querer nada além de suplício e danação.
PC jamais
"É, eu nunca vou ser Paulo Coelho", o escritor admite esparramado no meio da sala, depois de mais uma desastrosa tentativa de levitação, sob as gargalhadas da mulher e dos filhos.
sexta-feira, 29 de junho de 2018
Clímax
Há nas palavras um erotismo que, se levado ao extremo, não encontra resposta na carne, mas só nos mais insanos delírios místicos.
Boletim médico
Se em algum momento de uma ação erótica não houver indício de febre ou sinal de espasmos, acredito que se possa honestamente duvidar de sua autenticidade.
Leitor especial
O poeta deve ter alguém para quem escreva como se não se dirigisse a mais ninguém. Alguém especial, muito especial, tão especial que talvez só ele consiga criar, com sua presunçosa imaginação.
Preocupações de seu Jarbas
Seu Jarbas espera morrer de banho tomado. Precisa avisar às irmãs de caridade que lhe vistam o terno cinza. O outro está bem mais gasto e é de um bege comprometedor.
O Quintana
A melhor autobiografia de um passarinho seria aquela que Mario Quintana teria escrito, se não fosse tão modesto.
Poesia e acessórios (para Alfredo Aquino e Gabriel Perissé)
Os antigos enfeitavam a poesia com flores e passarinhos. Gerações posteriores desenvolveram o conceito de que as flores e os passarinhos não eram adornos, mas a essência da poesia. Tudo isso até que as flores, os passarinhos e a poesia entraram no ciclo de decadência que os atiraria ao tristíssimo marasmo atual.
Fome
Eu também acho que o sexo não é o mais importante, ele diz, esperando que ela, para lhe responder, mova os lábios que, como se fossem a fruta mais preciosa, ele espreita com os olhos famintos e ardilosos.
O peculiar sarcasmo da condessa
O que se entende por sarcasmo era, na condessa, algo natural e sem maldade, uma espécie de divertimento, como se ela fosse uma menina (que menina deve ter sido) e estivesse fazendo uma travessura. Sarcasmo é uma arma nobre que não se desperdiça com lacaios. Ela, ainda que por pura intuição, sabia muito bem disso.
No portal do Estadão
Hoje, alguns disparates que conseguiram escapar da fiscalização.
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/ofertas-de-hoje/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/ofertas-de-hoje/
quinta-feira, 28 de junho de 2018
O que escrevo sobre a condessa
Em tudo quanto escrevo sobre a condessa há um ressentimento que seria odioso se não fosse tão evidentemente infantil. Infantil, essa é a palavra. Fui, sou um daqueles meninos adoráveis cujo rosto assume de repente um ar malévolo e cujas unhas se cravam nas palmas das mãos, buscando um prazer tão mais intenso e agudo quanto mais difícil de justificar.
A condessa - lembranças e fantasias
Além das intensíssimas lembranças, a condessa, tantos anos depois, atormenta a minha imaginação e nela semeia cenas que me consomem. Algumas são surpreendentemente ingênuas. Como aquela na qual peço a ela que diga lentamente a palavra delícia, para que eu a saboreie em sua boca.
A sóbria condessa
A condessa era lacônica durante as práticas amorosas. Permitia-se no máximo dois ais ou três, espaçados o bastante para não serem considerados fraqueza ou rendição.
Educação (para Lígia e Silvia Bejar)
Poetas são seres educados. Dificilmente algum deles nos desmentirá se dissermos que antes deles as flores e os passarinhos não eram mais que coisas ou objetos.
quarta-feira, 27 de junho de 2018
O caminho (para Jiro Takahashi)
São as brisas mais modestas que conhecem as trilhas que levam aos haicais.
A emoção da condessa
Se tardar a morrer, seu Jarbas receia tornar-se igual aos piores sentimentais. Hoje, recordando-se de uma história que lhe contaram na infância, precisou concentrar-se para não chorar no final, quando anjos vêm buscar um menino morto para levá-lo ao Céu.
A cautelosa condessa
Na primeira vez, a condessa me examinou tão minuciosamente que, se ela tivesse colocado luvas antes de me tocar, eu não estranharia.
O autojulgamento de seu Jarbas
Agora que, por interesse próprio, dá como certa a existência do Céu, seu Jarbas vem se empenhando em apagar da memória, ou em atenuar, tudo que possa definir-se como pecado. Acaba de absolver-se da morte de um passarinho. Era na ocasião um garoto de dez anos e como atenuante havia o fato de, nunca havendo acertado uma pedrada antes desse dia, ser escarnecido pelos outros meninos.
Aflição de seu Jarbas
Seu Jarbas vem se achando um patife. Há três semanas, quando as dores no peito se tornaram mais agudas, pensou melhor no assunto e resolveu aceitar que o Céu existe.
Como jamais chamei a condessa
Para escapar do sarcasmo com que a condessa recebia minhas tentativas de romantismo, eu a chamava de rainha só para dentro de mim, para o centro de minha alma torturada, mesmo nos momentos em que a intimidade febril de nossa carne talvez pudesse fazê-la deixar de lado sua índole zombeteira.
De Milan Kundera, sobre a condição humana
"E depois, um dia, cai o véu e nos deixa a sós com o corpo, à mercê do corpo."
(De Um encontro, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, publicado pela Companhia das Letras.)
(De Um encontro, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, publicado pela Companhia das Letras.)
terça-feira, 26 de junho de 2018
Olho vivo
Se um poeta lhe oferecer um soneto, examine bem a mercadoria. Poetas vendem a mãe para pagar a viagem a Estocolmo.
Palavras
Nos livros de autoajuda, nossa estupidez é chamada ou de persistência ou de obstinação e continua não levando a lugar nenhum, apesar do que dizem os autores.
Uma definição da condessa
Numa das noites em que, estando o conde em viagem, a condessa me chamou ao quarto, ela deu uma curiosa definição ao que fazíamos: exercícios. E completou: saudáveis. Foi nesse dia, tenho certeza, que morreu o romantismo em mim.
segunda-feira, 25 de junho de 2018
Zás (para Rosi Maciel e Yasshu Noguchi)
Um haicai acontece tão rápido que às vezes nem ele mesmo sabe se aconteceu.
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O receio de seu Jarbas
Há mais de um mês que, nos seus passeios pelo jardim do asilo, seu Jarbas não vê Cristo. Se O encontrar de novo, teme não reconhecê-Lo.
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Aperitivo
Epígrafes são aquelas duas ou três frasezinhas que vêm no início de um texto e costumam ser muito melhores que ele.
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Pega leve (para Jiro Takahashi)
Não se estresse:
um haicai não se faz -
um haicai acontece.
um haicai não se faz -
um haicai acontece.
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Glória
Toda manhã, em caminhada pelo bairro, o velho poeta vai até a rua D e fica algum tempo olhando a placa. Suspira. No suspiro há um pouco de decepção e um pouco de esperança. Um dia talvez lhe reconheçam o valor e na placa se lerá, com letras espremidas, para que o nome todo caiba: Lúcio Epaminondas Magno de Montemaior.
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"Censo", de Wislawa Szymborska
"Na colina onde ficava Troia
foram escavadas sete cidades.
Sete cidades. Seis a mais
para uma única epopeia..
Que fazer com elas? Que fazer?
Arrebentam os hexâmetros,
um tijolo afabular espia pelas brechas,
no silêncio do filme mudo, muros derrubados,
vigas queimadas, correntes rompidas,,
cântaros esvaziados até a última gota,
amuletos da fertilidade, caroços de fruta
e caveiras tangíveis como a lua de amanhã.
Nossa dose de antiguidade vai crescendo,
fica apinhada de gente,
inquilinos brutais
se empurram na história,
hordas de carne para a espada,
extras de Heitor iguais a ele em bravura,
milhares e milhares de rostos singulares,
cada um o primeiro e o último no tempo,
e em cada rosto dois olhos sem par.
Era tão fácil não saber nada sobre isso,
tão comovedor, tão amplo.
Que fazer com eles? O que lhes dar?
Algum século pouco povoado até agora?
Um pouco de apreço pela arte da ourivesaria?
Pois é muito tarde para o juízo final.
Nós, três bilhões de juízes,
temos nossos problemas,
nossas turbas inarticuladas,
estações, arquibancadas, procissões,
incontáveis números de estranhas ruas, andares, paredes.
Desencontramo-nos para sempre nas grandes lojas
comprando um jarro novo.
Homero trabalha num instituto de estatística.
Ninguém sabe o que ele faz em casa."
(Do livro Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
foram escavadas sete cidades.
Sete cidades. Seis a mais
para uma única epopeia..
Que fazer com elas? Que fazer?
Arrebentam os hexâmetros,
um tijolo afabular espia pelas brechas,
no silêncio do filme mudo, muros derrubados,
vigas queimadas, correntes rompidas,,
cântaros esvaziados até a última gota,
amuletos da fertilidade, caroços de fruta
e caveiras tangíveis como a lua de amanhã.
Nossa dose de antiguidade vai crescendo,
fica apinhada de gente,
inquilinos brutais
se empurram na história,
hordas de carne para a espada,
extras de Heitor iguais a ele em bravura,
milhares e milhares de rostos singulares,
cada um o primeiro e o último no tempo,
e em cada rosto dois olhos sem par.
Era tão fácil não saber nada sobre isso,
tão comovedor, tão amplo.
Que fazer com eles? O que lhes dar?
Algum século pouco povoado até agora?
Um pouco de apreço pela arte da ourivesaria?
Pois é muito tarde para o juízo final.
Nós, três bilhões de juízes,
temos nossos problemas,
nossas turbas inarticuladas,
estações, arquibancadas, procissões,
incontáveis números de estranhas ruas, andares, paredes.
Desencontramo-nos para sempre nas grandes lojas
comprando um jarro novo.
Homero trabalha num instituto de estatística.
Ninguém sabe o que ele faz em casa."
(Do livro Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
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domingo, 24 de junho de 2018
A face honesta
Embora nem ele mais acredite, o poeta deve dar a impressão de que escreve ainda para expressar o que há tantos anos lhe pediu aquele menino, e não o que lhe cobra hoje o velho envenenado pela ambição de sucesso e glória.
Desvio
Sou o que sou: um menino
Que tido como brilhante
Não era mais que um farsante
E não foi mais que um cretino.
Que tido como brilhante
Não era mais que um farsante
E não foi mais que um cretino.
sábado, 23 de junho de 2018
sexta-feira, 22 de junho de 2018
Em causa própria
Sinto, já há algum tempo, que na minha simpatia pelos fracos sempre houve algo suspeito, uma espécie de autoafago.
Seu Jarbas e os velhos
Depois de tantos anos, seu Jarbas notou hoje que só há velhos no asilo. Essa deve ser a razão da tristeza que há por ali sempre. Pensa em queixar-se à direção. Desiste. O que aconteceria se se fosse perguntar às irmãs de caridade por que aceitaram tantos velhos? Diriam que é mesmo um criador de casos.
Vá lá, que seja
Quando aquele ser lamuriento aparecer de novo, digam-lhe que ele é escritor, sim, e dos maiores. Mentiras piedosas não mandam ninguém ao Inferno - e que mal pode fazer ao mundo mais um pateta que julga ser Dante Alighieri?
Hoje no portal do Estadão
Algumas miudezas, talvez literárias. Bom dia.
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/
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quinta-feira, 21 de junho de 2018
O conde, a condessa, as vozes
Não vou dizer que a voz da condessa era sensual. Era agradável, normal. E não posso, embora me agradasse, afirmar que a voz do conde era desagradável. Voltei a ouvi-las num sonho, esta noite. A condessa perguntava: está bom assim? E o conde: ai, quer me matar? Estavam na cama, e não sei nada além disso. Acordei com os olhos úmidos e uma palavra que gritei três vezes: não, não, não.
Ali
São Paulo é aquela cidade onde os corações de cimento e as almas de pedra se encontram na Ipiranga com a São João.
Justiça
Sonhou que lhe davam enfim o prêmio e que certa manhã tomava na Rodoviária do Tietê um ônibus para Estocolmo.
Mais
De um poeta se espera sempre alguma coisa notável, nem tanto no que escreve, mas em pormenores como um terno amarelo ou uma gravata borboleta.
Outro tempo (para Silvana Guimarães)
Os poetas antigos tinham e inspiravam mais confiança. Alguns até declaravam o ofício no cartão de visita e garantiam à clientela o conserto, sem despesas, dos sonetos que apresentassem defeitos de fabricação, principalmente na chave de ouro.
Tevê
Quando um personagem da novela perguntou a outro pelo paradeiro do rei, a menina na sala estranhou: "Quem é esse Paradeiro?
Dica para petizes
Às vezes uma inversão na frase
em bom efeito redunda:
melhor que morder a bunda do pai
é morder o pai na bunda.
em bom efeito redunda:
melhor que morder a bunda do pai
é morder o pai na bunda.
Posse
A Rainha Louca
me pôs as chaves na mão
me disse que meu ofício
a partir dali era diretor de hospício
e desejou: boa sorte, Napoleão.
me pôs as chaves na mão
me disse que meu ofício
a partir dali era diretor de hospício
e desejou: boa sorte, Napoleão.
terça-feira, 19 de junho de 2018
A voz (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)
Não queiram mal ao poeta por ele sempre erguer a mão antes mesmo que alguém pense em falar em tristeza. Ele acha que tem o dever de representá-la, para que nunca a subestimem.
Hospitalidade
Nada mais daqueles tapetinhos. Arranje um gato, instale-o no sofá e deixe que ele dê as boas-vindas aos visitantes.
Modos de dizer
Tenha pudor: nunca diga as palavras pundonor e pudicícia. Mas, se disser, não suplique perdão nem clemência. Peça desculpas, já está bom.
Questão de tempo
Se não tivesse morrido no fim da tarde, ouviria, no início da noite, quando começaram a chegar os detestáveis parentes, que era o melhor de todos os homens.
Identidade (para Inês Pedrosa)
Se eu fosse quem gostaria, Ofélia provavelmente estivesse me dizendo: hoje, sim, estás Fernando; ontem me parecias mais o Ricardo.
Verões
Os mortos devem ter desfrutado verões melhores. O de 1942, por exemplo. Os sobreviventes nostálgicos talvez mencionem o de 1949.
Ah, a condessa (para Ana Farrah Baunilha)
Se a condessa acordasse de manhã com o Diabo na cama e ele dissesse que a havia possuído, ela, antes de ordenar que ele trouxesse o café, gargalharia: eu não senti nada.
Furor
Meu filho Edu estava com uns cinco anos na noite em que, vendo uma cena amorosa numa novela, virou para mim o rosto agoniado: "Estou ficando com raiva no pinto."
Essas coisas
Perguntam ao filho de um escritor o que o pai faz.
"Ele mexe com essas coisas de literatura."
"Ele mexe com essas coisas de literatura."
Modernidade (para Jiro Takahashi)
Fazer haicais com o quê? Estrelas não caem mais em lagos; pulam direto nas caçambas.
Uns sete a menos
Se perguntassem sua opinião sobre a velhice, seu Jarbas diria o óbvio. Acha que ela é triste e que poderia suportá-la melhor se não estivesse num asilo e se seus setenta e nove anos fossem setenta e três ou setenta e dois.
O gajo
Se Fernando Pessoa não tivesse existido, alguém precisaria criá-lo. Mas quem (perdão, Quem) se atreveria?
Contraste
A condessa era mandona, ríspida, grosseira. Às vezes penso se naquela noite o que ela me disse foi mesmo: "Parece que seu amigo aqui está triste. Posso brincar um pouquinho com ele?"
segunda-feira, 18 de junho de 2018
Num lugar abandonado
Morra sozinho num lugar abandonado, espere seu corpo misturar-se à terra e confie na sabedoria do vento. Que ele o deixe lá, que não mexa em nada seu, principalmente nos lábios. Que eles permaneçam fechados. O mundo não precisa de más palavras.
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Polos
Os velhos esperam em casa a sabedoria, enquanto os jovens vão buscá-la em copos, lábios e seios.
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O tesouro de Wislawa (para Danusia Curyl)
Quem teria se atrevido a pedir por empréstimo a Wislawa Szymborska alguma coisa bem simples, uma ninharia qualquer, se nas coisas bem simples e nas ninharias estava o seu tesouro?
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Cartola (para Silvana Guimarães)
Fazer chorar é um truque simples, mas ainda aquele que os leitores mais apreciam nos poetas.
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Trajetória (para Danusia Curyl)
A loucura o cativou com uma melancolia que, satisfazendo-se na adolescência com torpes boleros, passou no fim da vida a exigir Chopin.
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Como?
Houve um tempo em que eu era digno da poesia. Como pode um homem lembar-se disso e continuar impune, asqueroso e vivo?
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Pacto
Não me diga nunca a verdade.
Minta-me sempre.
Se possível, poeticamente.
Minta-me sempre.
Se possível, poeticamente.
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domingo, 17 de junho de 2018
Suprassumo
Sejamos perfeccionistas, por que não? Até em nossos pecados. Que eles provoquem a ira de Deus e a inveja do Diabo.
Ousadia
Diga-se o que se disser deles, não se pode negar a coragem dos poetas que usavam palavras como sempiterno, excelsitude e rosicler.
Exposição de motivos
Escrevo não só como se soubesse, mas como se fosse a única coisa que eu soubesse fazer. Escrevo como se tivesse algo a oferecer.
Meio a meio (para Inês Pedrosa e Xico Sá)
Quando jovem, ele punha na conta de Deus os pecados que cometia. Depois, passou a assumi-los. Hoje, com a maturidade, divide-os em partes iguais. Gosta de dizer que é delicioso ir com o Velhote aos lupanares.
Hoje na Rubem
Ofereço aos leitores alguns textos que talvez não sejam de todo detestáveis.
https://rubem.wordpress.com/2018/06/17/tudo-junto-e-amontoado-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2018/06/17/tudo-junto-e-amontoado-raul-drewnick/
Será que não?
Assumirmos as culpas que outros atribuem a Deus não será uma espécie de presunção nossa?
Uma pequena lição de RD
"Sabe qual é a única coisa que um escritor não pode deixar de ter?", RD me perguntou numa daquelas manhãs.
"Talento?"
"Não."
"Inspiração?"
"Não."
"Perseverança?"
"Não."
"Uma amante?"
"Não."
"Duas?"
"Não", ele sorriu.
"Desisto."
Ele substituiu o sorriso por um olhar triste.
"Um escritor precisa de publicidade, de barulho, de escândalo."
Depois de conceder o tempo necessário para que a surpresa se manifestasse em meu rosto, ele disse:
"A literatura é uma coisa nojenta."
"Talento?"
"Não."
"Inspiração?"
"Não."
"Perseverança?"
"Não."
"Uma amante?"
"Não."
"Duas?"
"Não", ele sorriu.
"Desisto."
Ele substituiu o sorriso por um olhar triste.
"Um escritor precisa de publicidade, de barulho, de escândalo."
Depois de conceder o tempo necessário para que a surpresa se manifestasse em meu rosto, ele disse:
"A literatura é uma coisa nojenta."
O desafio de Antero de Quental (para Inês Pedrosa)
Antero de Quental desafiou Deus a fulminá-lo. Parece nada, uma coisinha de não estar sequer entre as trinta e seis e meia façanhas de Hércules. Mas naquele tempo Deus ainda metia algum medo.
Mais ou menos assim (para Inês Pedrosa e Xiico Sá)
Você nunca será um escritor de verdade se não recear, todo o tempo, que pode ser um escritor de mentira.
sábado, 16 de junho de 2018
A irmã estranha Você
Ter dado o nome de Você à formiga com que fala toda manhã causou hoje mais uma suspeita no asilo sobre o estado mental de seu Jarbas. No almoço, uma das irmãs de caridade perguntou se tinha sido bom seu passeio. Ele disse que sim. "Foi ótimo. Eu conversei com Você."
Ressalva
No caso dos poetas, a tristeza passa às vezes a impressão de ser mera demonstração de habilidade profissional.
Uma ou três
Chato é aquele que aponta uma vírgula errada numa frase nossa de cinco linhas.Gramático é aquele que aponta pelo menos três.
A hora da decisão
O velhote sonha que, chamado a dar uma aula no palácio, é levado diretamente aos aposentos da rainha. A rainha. Por que não tinham dito a ele? Deitada na cama, ela não tem nada no corpo além de um caderno no ventre e um lápis na boca. Está claro que não lhe interessam os conhecimentos gramaticais que ele se gaba de ter. A rainha dá uma última mordidinha no lápis e o convida, com um sorriso: vem. Abandonado pelas vírgulas e pelas crases, ele suspira e, temendo não responder satisfatoriamente, pergunta-se intimamente: afinal, sou ou não sou um homem?
Oração (para Marisa Lajolo e Rose Marinho Prado)
Para afastar infortúnios, diga uma palavra mágica qualquer, a melhor que você conheça, e dê três batidinhas num poema concretista.
Seu Jarbas e Você
Seu Jarbas chama de Você a formiga com que fala toda manhã no jardim do asilo. Foi fácil fazer amizade com ela. Já na primeira vez, ela é que se afastou das outras e foi até ele. Você é calada, como todas as formigas. Seu Jarbas é quem fala. Agora ele está dizendo: "Oi, Você. Como vai? Está meio frio hoje, não é? É esquisito. Já é verão."
Balela
Querer é poder? Pois sim. Eu tinha doze anos e chamava-me Raul Drewnick, quando resolvi: seria escritor. E Deus sabe como venho tentando. Ou deveria saber.
Dois trechos de Haruki Murakami
"Um dia, de repente, você vai ser um dos homens sem mulheres. Esse dia chegará subitamente, sem nenhum aviso prévio nem sinal, sem premonição nem pressentimento, sem uma tosse que seja ou uma batida na porta. Ao virar a esquina, você vai descobrir que já está ali. Mas não poderá voltar atrás. Uma vez que virar a esquina, será o único mundo para você. Nesse mundo você estará entre "os homens sem mulheres". Em um plural infinitamente indiferente,
***
"É muito fácil ser um dos homens sem mulheres. Basta amar profundamente uma mulher e ser abandonado por ela. Na maioria das vezes (como você sabe), são os marinheiros astutos que as levam. Eles seduzem as mulheres com bajulações e as carregam rapidamente para Marselha ou para a Costa do Marfim. Não há praticamente nada que possamos fazer diante deles. Ou elas podem dar fim à própria vida, sem a ajuda dos marinheiros. Nesse caso também não há nada que possamos fazer. Os marinheiros tampouco.""
(Do livro de contos Homens sem mulheres, tradução de Eunice Suenaga, publicado pela Alfaguara.)
***
"É muito fácil ser um dos homens sem mulheres. Basta amar profundamente uma mulher e ser abandonado por ela. Na maioria das vezes (como você sabe), são os marinheiros astutos que as levam. Eles seduzem as mulheres com bajulações e as carregam rapidamente para Marselha ou para a Costa do Marfim. Não há praticamente nada que possamos fazer diante deles. Ou elas podem dar fim à própria vida, sem a ajuda dos marinheiros. Nesse caso também não há nada que possamos fazer. Os marinheiros tampouco.""
(Do livro de contos Homens sem mulheres, tradução de Eunice Suenaga, publicado pela Alfaguara.)
sexta-feira, 15 de junho de 2018
De RD sobre a implacabilidade do tempo
Quando me disse que Vinícius de Moraes, que então começara a escrever letras para canções, estava liquidado como "poeta sério", RD deve ter percebido que provocava um choque em mim, porque imediatamente se justificou, argumentando, com obviedade, que isso era perfeitamente normal na literatura, como na vida. Tudo que ganha altura serve à decadência - foi o que ele disse, com uma empáfia que até hoje não perdoei.
O preferido de RD
Lembro que RD amava Vinícius de Moraes. Chegou a me dizer que Vinícius era o cantor máximo do amor e da juventude. Concordei com RD, e quando, meses depois, ele colocou Vinícius entre os poetas superados, eu me surpreendi como poucas vezes na vida.
A condessa
Há anos me pergunto por que a condessa acabou dispensando os meus serviços. Venho chegando a conclusões que a retratam como uma mulher dada a pequenas crueldades, mas a hipótese mais provável é esta: eu não era hábil o bastante nas tarefas nas quais eu devia substituir o conde e que, embora eu achasse especiais, para a condessa tinham o mesmo valor que as outras tantas que me cabiam como lacaio. Eu era inapto, inepto, despreparado, talvez mais que o conde, para aquilo que ela esperava de mim. Ela me ensinou dois ou três truques de alcova, é verdade, mas eu tão mal os aprendi que, na prática, eles não serviram ao prazer dela nem acrescentaram nada significativo aos meus conhecimentos. Notando certamente que com minha ingenuidade eu a via como uma espécie de objeto sagrado, o que não lhe convinha, ela uma manhã me deu a notícia, como se me comunicasse que à tarde choveria, de que iria acertar minhas contas.
Lágrimas de seu Jarbas
Seu Jarbas não é, nunca foi, um sentimental. A música não lhe diz muito, a poesia não lhe diz nada. Quem o visse hoje desconfortavelmente agachado no jardim do asilo, falando às formigas e chorando, pensaria possivelmente em demência senil, e talvez não se equivocasse.
Sic transit
Logo estaremos comprando os livros de Monteiro Lobato em ruas escuras, com o coração aos pinotes, diretamente das mãos dos traficantes.
Nobreza
Há ainda os que acreditam que a verdadeira literatura deve ser construída sobre nobres princípios, embora não saibam nos dizer o que é literatura verdadeira nem bons princípios. Se fossem convidados a dar um exemplo, é possível que citassem o folheto de uma dessas associações que se empenham em salvar homens e focas pelo mundo.
Que F. Pessoa me perdoe
Faço mais uma brincadeirinha hoje no portal do Estadão. Possivelmente sem graça.
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/algo-a-ver-com-poesia/
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quinta-feira, 14 de junho de 2018
O Diabo cobra ingresso (para Ana Farrah Baunilha)
O velhote vem tendo um sonho no qual é conduzido numa carruagem a um salão enorme ocupado por mulheres que se oferecem despidas. Cauteloso como um agiota, ele se põe a examiná-las e quando, tendo escolhido uma, caminha para ela tomado pela luxúria, desce do teto uma porta que lhe impede a passagem. O Diabo, grotescamente nu, o encara e, gargalhando, lhe pergunta se trouxe o ingresso. Ele coloca a mão abaixo do umbigo, apalpa, apalpa. Não, não trouxe.
Meu nome é Pablo
Em sonhos que tenho esporadicamente com a condessa, ela me cavalga e chicoteia. O nome que ela me dá nessas ocasiões é Pablo, que eu acho pouco apropriado para um cavalo.
Proporção (para Gabriel Perissé)
Digam o que continuarem dizendo os desafortunados escritores, é evidente que entre os leitores é que está a maior parte dos mártires da literatura.
O chato euclidiano
Aquele chato, sempre que nos encontra, pergunta como ousamos continuar falando de literatura, se ainda não lemos Os sertões.
O místico RD
Todos nós, na Mário de Andrade, pretendíamos ser místicos. RD também. Mas o que não conseguíamos nem com o máximo esforço era natural nele. Era um eleito, o único entre nós. Os anos seguintes vieram lançar algumas dúvidas sobre a imagem que tínhamos dele. Gostaria de conservá-la como era naquela época. RD era o que eu queria ser.
Jarbas e Jesus
Há três dias, já, seu Jarbas não é acompanhado por Jesus em seu passeio matinal pelo jardim do asilo. Acostumado a rejeições, esta porém lhe dói como se fosse a primeira. Pensa em perguntar a uma das irmãs de caridade por que Jesus, justamente ele, procederia assim, mas desiste. Há muito tempo, por um cobertor a mais que lhe negaram, acha que elas não entendem nada de Jesus.
Salve-se quem puder
Alguns autores de novelas eróticas fazem de uma cama um campo de batalha cheio de fragores, retumbâncias e tinires de espada.
Perfil
Talvez não se possa atribuir ao chato um talento especial, mas não se deve negar a ele certa obstinação.
Tempo e lugar
O asilo fica muito afastado do centro. Agora que está chegando a hora, seu Jarbas tem medo de que a Morte não consiga encontrá-lo.
Até isso (para Helena Russano Alemany, Lígia Bejar e Silvia Bejar)
Um chato sabe sempre a pronúncia certa de catarse.
Artifícios da condessa
Nunca pensei que a condessa pudesse me considerar nada além de um lacaio capaz de lhe prestar sem alarde alguns serviços especiais. Jamais me ocorreu que, estando como estava segura de minha disposição de servi-la, ela recorresse a qualquer artifício para se tornar aos meus olhos mais desejada do que era. Mas às vezes ela me dizia, como se não fossem dirigidas a mim, frases como: o conde anda descuidando tanto dos seus deveres noturnos...
O ambíguo RD
RD tomava algumas daquelas atitudes ambíguas que podem ser atribuídas tanto a gênios quanto a farsantes. No dia em que lhe perguntei o que era literatura, sua resposta foi: literatura é tudo.
O admirável RD
No tempo em que frequentávamos a Mário de Andrade, eu admirava RD por muitos motivos, alguns dos quais me fazem sorrir hoje, por minha ingenuidade. Um deles era a habilidade que ele tinha para contar sílabas poéticas. Essa era, juntamente com a capacidade de rimar, a principal virtude requerida por quem quisesse ser um poeta respeitável. Não tínhamos aprendido nada com Drummond, nem queríamos. Poesia moderna era um sinônimo de pobreza artística.
Um trecho de Haruki Murakami
"É apenas minha opinião pessoal, mas muitas mulheres (especialmente as atraentes) estão bastante cansadas de homens desesperados por sexo."
(Do livro de contos Homens sem mulheres, tradução de Eunice Suenaga, publicado pela Alfaguara.)
(Do livro de contos Homens sem mulheres, tradução de Eunice Suenaga, publicado pela Alfaguara.)
quarta-feira, 13 de junho de 2018
A cançãozinha da condessa
De vez em quando a condessa assobiava como um moleque. Era sempre a mesma musiquinha, acho. Não lhe guardei o nome. Mas, pelo que a condessa fez e desfez comigo no tempo em que fui seu lacaio, sou tentado a dizer que era uma cantigazinha medíocre e obscena. Não era Bach, seguramente.
Nem tudo isso (para Mag Buzzo, Inês Pedrosa e Xico Sá)
A década e meia em que o sr. Jarbas já mora no asilo talvez seja o melhor exemplo do que as filantrópicas mantenedoras chamam de lar, em seus discursos. Se bem que ele se queixe a todo instante de quase tudo.
Cavar, em latim
Tenho certeza de que nunca mais verei demonstração mais desbragada de hilaridade que a da manhã em que meu professor de latim do curso clássico, julgando com isso tornar mais cotidiana sua matéria, nos explicou que foder vinha de "fodere", cavar. Também nunca mais verei tantos rostos ruborizados: as garotas da classe, todas, e quase todos os garotos.
Retrato (para Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)
Todo escritor, seja qual for sua idade, é um menino insuficientemente mimado.
Três casas adiante
Que delícia os beijos úmidos, quentes, lambões, com segundas e terceiras intenções.
Imagem (para Amauri Ernani, Paula Giannini, Vera Helena Saad Rossi e Veronica Stigger)
No fundo, o que um escritor quer é a atenção máxima do público para sua pessoa. Quando jovem, ele pode contar com dois olhos verdes e um rosto possivelmente simpático. Depois, para o bem de seus textos, é melhor que os leitores não os relacionem a ele.
Carapuça
Velhote, para mim, soa como depreciativo. Não à toa, é o termo que aprecio usar quando me refiro a mim, embora seja fácil verificar, para quem me conhece, que nele há uma justeza e uma justiça impecáveis.
Maldição (para Deonísio da Silva, Gabriel Perissé e Liberato Vieira da Cunha)
Desde quando se consolidou o reinado abominável dos provérbios, o hábito não faz mais o monge.
RD, o leitor
Se me perguntassem o que RD fazia na época em que nos víamos todos os dias, eu precisaria responder, prosaicamente, que ele fazia o que todos supostamente faziam ou deveriam fazer numa biblioteca. Ele lia, lia, lia, talvez não tanto quanto viria a dizer depois, quando uma súbita e fugaz notoriedade o levou a dar uma entrevista, mas certamente lia muito. Éramos ratos, traças, ou qualquer outra denominação capaz de definir seres estúpidos o bastante para desperdiçar com falsas expectativas o irrecuperável dom da juventude.
Inferno
Quando conheci RD, é possível que eu não soubesse o significado da palavra megalômano. Mas sei, hoje, que ela define bem o que ele era. Sob uma aparente e estudada apatia, sua ambição fervia. Frequentemente ele se esquecia de sua cautela e nos seus olhos brilhavam promessas de glória. Como devem estar sendo dilacerantes para ele todos estes anos de fracasso, primeiro, e de anonimato.
Precisão
O chato é naturalmente o único na sala a saber se o século XX começou em 1900 ou em 1901, embora não tenha estado presente em nenhuma das datas, para sorte dos que estavam.
terça-feira, 12 de junho de 2018
Cotação do dia (para Priscylla Mariuszka Moskevitch)
Preciso aprender a desistir de tudo com um pouco mais de empenho e esperança.
Joio e trigo
Conheci RD no final dos anos 1950. Era comum vê-lo diariamente, de manhã, à tarde e à noite, sentado nas escadarias da Biblioteca Mário de Andrade com jovens que, como ele, tramavam uma conspiração para tornar a literatura brasileira a primeira no mundo. Isso, sabe-se hoje, só foi conquistado décadas depois, com Paulo Coelho. Mas não se pense que não havia talentos no grupo. Alguns se destacaram - e até muito.A esses peço desculpas por relacioná-los, ainda que sem citar seus nomes, a RD.
Questão de fé
Quando conheci RD, por volta de 1960, ele me disse que era poeta. Eu, que por ser jovem mantinha alguns bons princípios, acreditei nele.
Metrô Saude
"Aqui", diz a garota.
O velho olha para o vertiginoso movimento do meio-dia na estação do metrô.
A garota insiste:
"Aqui. Aqui não. Aqui, aqui."
Ela tira as mãos dele dos ombros e puxa-as para os peitos:
"Aqui, aqui, aqui. É tão difícil entender?"
O velho olha para o vertiginoso movimento do meio-dia na estação do metrô.
A garota insiste:
"Aqui. Aqui não. Aqui, aqui."
Ela tira as mãos dele dos ombros e puxa-as para os peitos:
"Aqui, aqui, aqui. É tão difícil entender?"
Honra ao mérito (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)
Se ainda fosse tempo de estátuas, os escritores de todo o mundo deveriam cotizar-se para erguer uma em homenagem ao leitor ideal. Quando falo em leitor ideal, penso num que na semana passada me disse que nunca descarta de vez um escritor. Está sempre disposto a conceder mais uma chance. Atualmente considera a hipótese de perdoar Shakespeare.
Passarinho em festa (para Silvana Guimarães)
Se, no meio de uma festa, um passarinho entrar na sala, esvoaçar na direção de um rapaz pálido, pousar em seu colo e o chamar de Federico García, podem todos acreditar: o rapaz é um poeta.
Sinal
O sr. Jarbas acha que alguma coisa está para acontecer em sua vida. Nas caminhadas matutinas que faz pelo jardim do asilo, tem sido acompanhado, já há duas semanas, por Jesus. Hoje Jesus sorriu e acenou para ele.
Como era mesmo?
Na missa de primeiro aniversário, alguns parentes daqueles chamados distantes já não lembram se o nome do defunto era Célio Rangel ou Hélio Rangel.
Imunidade
Quando os dois homens chegaram, cada um com seu terno, sua calva e sua pasta de cobradores, só as duas moscas de plantão no velório e o defunto não demonstraram preocupação e continuaram a fazer o que não estavam fazendo.
"Amorosa antecipação", de Jorge Luis Borges
"Nem a intimidade de tua fronte clara como uma festa
nem o costume de teu corpo, ainda misterioso e tácito e de menina,
nem a sucessão de tua vida assumindo palavras ou silêncios
serão favor tão misterioso
como olhar teu sonho envolvido
na vigília de meus braços.
Virgem miraculosamente outra vez pela virtude do sono que absolve,
calma e resplandecente como a alegria que a memória elege,
vais me dar essa margem de tua vida que tu mesma não tens.
Lançado no silêncio ,
fitarei essa praia última de teu ser
e hei de te ver pela primeira vez, quem sabe,
como Deus há de ver-te,
a ficção do Tempo dissipada,
sem o amor, sem mim."
(De Fervor de Buenos Aires, tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz, extraído das Obras completas de Jorge Luis Borges, publicado pela Editora Globo.)
nem o costume de teu corpo, ainda misterioso e tácito e de menina,
nem a sucessão de tua vida assumindo palavras ou silêncios
serão favor tão misterioso
como olhar teu sonho envolvido
na vigília de meus braços.
Virgem miraculosamente outra vez pela virtude do sono que absolve,
calma e resplandecente como a alegria que a memória elege,
vais me dar essa margem de tua vida que tu mesma não tens.
Lançado no silêncio ,
fitarei essa praia última de teu ser
e hei de te ver pela primeira vez, quem sabe,
como Deus há de ver-te,
a ficção do Tempo dissipada,
sem o amor, sem mim."
(De Fervor de Buenos Aires, tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz, extraído das Obras completas de Jorge Luis Borges, publicado pela Editora Globo.)
segunda-feira, 11 de junho de 2018
Na proporção exata (para Rose Marinho Prado)
Você precisa aprender que dizer-se poeta não lhe impõe a obrigação de construir uma catedral por dia. Deixe isso para os concretistas.
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Literatura
"Foto de guerra 2", de Margaret Atwood
"Ainda que você continuasse vivo,
nunca teríamos nos falado.
Suponha que tivéssemos partilhado uma estrada,
um carro, um banco, uma mesa -
Talvez você me oferecesse
um pedaço de pão, uma fatia de limão.
Ou então haveria suspeita,
ou medo, ou nada.
Agora, contudo, parece que pergunto
e você responde:
Por que a árvore está morrendo?
Está morrendo por falta de verdade.
Quem tapou os poços da verdade?
Aqueles com as armas.
E se eles matarem todos os que estão sem armas?
Então vão se matar uns aos outros.
Quando haverá compaixão?
Quando a árvore morta florir.
Esse é o tipo de coisa
que só acontece na poesia.
Tem razão em suspeitar de mim:
não posso falar de sua ausência por você.
(Por que então consigo ouvi-lo com tanta clareza?)"
nunca teríamos nos falado.
Suponha que tivéssemos partilhado uma estrada,
um carro, um banco, uma mesa -
Talvez você me oferecesse
um pedaço de pão, uma fatia de limão.
Ou então haveria suspeita,
ou medo, ou nada.
Agora, contudo, parece que pergunto
e você responde:
Por que a árvore está morrendo?
Está morrendo por falta de verdade.
Quem tapou os poços da verdade?
Aqueles com as armas.
E se eles matarem todos os que estão sem armas?
Então vão se matar uns aos outros.
Quando haverá compaixão?
Quando a árvore morta florir.
Esse é o tipo de coisa
que só acontece na poesia.
Tem razão em suspeitar de mim:
não posso falar de sua ausência por você.
(Por que então consigo ouvi-lo com tanta clareza?)"
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Literatura
Vates da República
Tudo bem escreva
seus sonetos madrigais
escreva muito
escreva sempre
escreva mais
escreva à saciedade
saramindas marimbondos de fogo
anônimas intimidades
mas pela alma
de quem já morreu
de borges de pessoa
de dickinson de platt
se lhe perguntarem
diga que nunca os leu.
seus sonetos madrigais
escreva muito
escreva sempre
escreva mais
escreva à saciedade
saramindas marimbondos de fogo
anônimas intimidades
mas pela alma
de quem já morreu
de borges de pessoa
de dickinson de platt
se lhe perguntarem
diga que nunca os leu.
Estilo (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)
Peculiares formas de morrer costumam ter os poemas. Os românticos, de febre; os parnasianos, de soberba; os concretos, de fadiga dos materiais.
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Literatura
Astúcia (para Jiro Takahashi)
Digo a todos que sou especialista em haicais. Concisão é o nome que arranjei para a minha preguiça.
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Literatura
Aristocracia (para Silvana Guimarães)
Se seu nome fosse johann franz tulius egidius
numa noite de extremo tédio
se deitaria em sua banheira
e ofereceria ao mundo um alvirrubro e morno regicídio.
numa noite de extremo tédio
se deitaria em sua banheira
e ofereceria ao mundo um alvirrubro e morno regicídio.
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Literatura
Perversa geografia (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)
No sonho, a aeromoça lhe põe a mão no ombro: chegamos a Estocolmo. Ele acorda resmungando em sua cama, na Vila Brasilândia.
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Por que não?
Quando se lembra dos seus pecados, principalmente dos carnais, se de algo se arrepende é de não tê-los cometido melhor e mais.
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Amanhã
Alguns mortos, se pudessem ver que má figura farão no seu último dia, não andariam por aí rindo como bocós.
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De época (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha0
O trema é do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça.
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"Minha vida inteira", de Jorge Luis Borges
"Aqui outra vez, os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.
Persisti outra vez na aproximação da ventura e na intimidade do sofrimento.
Cruzei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca, de uma hispânica quietude.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Acredito profundamente que isso é tudo e que não verei nem farei coisas novas.
Acredito que minhas jornadas e minhas noites se igualam em pobreza e em riqueza às de Deus e às de todos os homens."
(De Fervor de Buenos Aires, tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz, Obras Completas de Jorge Luis Borges,Editora Globo.)
Persisti outra vez na aproximação da ventura e na intimidade do sofrimento.
Cruzei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca, de uma hispânica quietude.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Acredito profundamente que isso é tudo e que não verei nem farei coisas novas.
Acredito que minhas jornadas e minhas noites se igualam em pobreza e em riqueza às de Deus e às de todos os homens."
(De Fervor de Buenos Aires, tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz, Obras Completas de Jorge Luis Borges,Editora Globo.)
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domingo, 10 de junho de 2018
"Foto de guerra", de Margaret Atwood
"A mulher morta jogada na estrada poeirenta
é muito bonita.
Uma perna estendida, a outra flexionada, o pé apontando
na direção do joelho, o braço atirado acima da cabeça, a mão
relaxada num gesto adorável
que uma dançarina poderia estudar durante anos
e nunca conseguir fazer.
Sua túnica roxa tem o formato
de algo que esvoaça;
sua cabeça está virada para o outro lado.
Há mais mortos espelhados ao redor
como árvores destroçadas,
largados na esteira de homens amedrontados
que destroem tudo a caminho de um objetivo grandioso
de que já não conseguem bem se lembrar.
Mas minha atenção se fixa nesta bela mulher,
dançando ali no chão
com perfeição tamanha.
Oh bela mulher morta, se alguém
fosse capaz de me puxar através do desespero
e da árida impotência
até o coração da prece,
seria você
Em vez disso por você farei
a única coisa que posso:
embora nunca venha a saber seu nome,
jamais vou esquecê-la.
Veja: no chão poeirento
sob minha mão, neste papel barato e cinzento,
vou colocar uma pedrinha, pronto:
o"
(Tradução de Adriana Lisboa, do livro A porta, publicado pela Rocco.)
é muito bonita.
Uma perna estendida, a outra flexionada, o pé apontando
na direção do joelho, o braço atirado acima da cabeça, a mão
relaxada num gesto adorável
que uma dançarina poderia estudar durante anos
e nunca conseguir fazer.
Sua túnica roxa tem o formato
de algo que esvoaça;
sua cabeça está virada para o outro lado.
Há mais mortos espelhados ao redor
como árvores destroçadas,
largados na esteira de homens amedrontados
que destroem tudo a caminho de um objetivo grandioso
de que já não conseguem bem se lembrar.
Mas minha atenção se fixa nesta bela mulher,
dançando ali no chão
com perfeição tamanha.
Oh bela mulher morta, se alguém
fosse capaz de me puxar através do desespero
e da árida impotência
até o coração da prece,
seria você
Em vez disso por você farei
a única coisa que posso:
embora nunca venha a saber seu nome,
jamais vou esquecê-la.
Veja: no chão poeirento
sob minha mão, neste papel barato e cinzento,
vou colocar uma pedrinha, pronto:
o"
(Tradução de Adriana Lisboa, do livro A porta, publicado pela Rocco.)
Como foi (para Inês Pedrosa)
Lembro-me de como me viciei em literatura. Claro, sempre há os gurus. Fizeram-me a cabeça especialmente Fernando Pessoa e William Saroyan. Foi uma época na qual as palavras tinham para mim um gosto que - eu supunha - apenas Deus ou o Diabo, ou os dois em conspiração, poderiam dar-lhes. Com Pessoa e Saroyan aprendi que nas palavras há sempre um gosto que cada homem pode buscar e que é essa a perversão das perversões, maior que as mesquinhas transgressões da carne.
Resumo
Escrever tem sido
prazeres e horrores.
Adivinhem o que para mim
e o que para os meus dez leitores.
prazeres e horrores.
Adivinhem o que para mim
e o que para os meus dez leitores.
Aviso
Gracinhas e truques são
o que melhor sei fazer.
Sacudam-me ao menos cem vezes
no dia em que eu morrer
(se um dia eu morrer).
o que melhor sei fazer.
Sacudam-me ao menos cem vezes
no dia em que eu morrer
(se um dia eu morrer).
Falta de imaginação
Tantas décadas passadas, e você - louvo sua coerência - me diz a mesma coisa: que quer ser escritor.
sábado, 9 de junho de 2018
Meu anjo torto
Quando eu nasci um anjo torto
como aquele do drummond
disse vai polaco
xispa poltrão.
Você tem sorte
se fosse outro
tinha nascido morto.
como aquele do drummond
disse vai polaco
xispa poltrão.
Você tem sorte
se fosse outro
tinha nascido morto.
Futuro
Chega o tempo em que você começa a pronunciar a palavra morte com a mesma doçura e expectativa com que pronunciava a palavra esperança.
"Casas", poema de Mario Quintana para Cecília Meireles)
"A casa de Herédia, com grandes sonetos dependurados como panóplias
E escadarias de terceiro ato.
A casa de Rimbaud, com portas súbitas e enganosos
corredores, casa-diligência-navio-aeronave-pano, onde
só não se perdem os copos de dados,
A casa de Apollinaire, cheia de reis de França e valetes
e damas dos quatro naipes e onde a gente quebra ad-
miráveis vasos barrocos correndo atrás de pastorinhas
do século XVIII,
A casa de William Blake, onde é perigoso a gente entrar,
porque pode nunca mais sair de lá,
A casa de Cecília, que fica sempre noutra parte...
E a casa de João-José, que fica no fundo de um poço,
e que não é propriamente casa, mas uma sala-de-espera no fundo do poço."
(De Os melhores poemas de Mario Quintana, Global Editora e Distribuidora Ltda.)
E escadarias de terceiro ato.
A casa de Rimbaud, com portas súbitas e enganosos
corredores, casa-diligência-navio-aeronave-pano, onde
só não se perdem os copos de dados,
A casa de Apollinaire, cheia de reis de França e valetes
e damas dos quatro naipes e onde a gente quebra ad-
miráveis vasos barrocos correndo atrás de pastorinhas
do século XVIII,
A casa de William Blake, onde é perigoso a gente entrar,
porque pode nunca mais sair de lá,
A casa de Cecília, que fica sempre noutra parte...
E a casa de João-José, que fica no fundo de um poço,
e que não é propriamente casa, mas uma sala-de-espera no fundo do poço."
(De Os melhores poemas de Mario Quintana, Global Editora e Distribuidora Ltda.)
sexta-feira, 8 de junho de 2018
"O grande circo místico", de Jorge de Lima
"O médico de câmara da imperatriz Teresa - Frederico Knieps
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia do circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun, a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo -o trapezista Ludwig nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela e o desejo dele.
Então o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem-fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculos têm esbarrado;
são as suas levitações que a plateia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas em que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças creem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helène se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A plateia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helène se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vâ as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do Grande Circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa."
(Extraído da coletânea "Nossos Clássicos", Livraria Agir Editora)
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia do circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun, a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun - a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo -o trapezista Ludwig nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela e o desejo dele.
Então o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem-fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculos têm esbarrado;
são as suas levitações que a plateia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas em que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças creem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helène se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A plateia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helène se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vâ as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do Grande Circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa."
(Extraído da coletânea "Nossos Clássicos", Livraria Agir Editora)
"O espelho", de Wislawa Szymborska
"Sim, lembro daquela parede
na nossa cidade destruída.
Projetava-se quase até o sexto andar.
No quarto havia um espelho,,
um espelho inacreditável,
não quebrado, fixo com firmeza.
Já não refletia a face de ninguém,
a mão de ninguém ajeitando o cabelo,
nenhuma porta defronte,
nada que se possa chamar
de lugar.
Era como nas férias -
via-se refletido nele o céu vivo,
as nuvens agitadas no ar feroz,
o pó do entulho lavado por chuvas luzentes,
voos de pássaros, estrelas, alvoradas.
E como cada objeto bem-feito
funcionava impecavelmente,
com uma profissional falta de assombro."
(Do livro Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
na nossa cidade destruída.
Projetava-se quase até o sexto andar.
No quarto havia um espelho,,
um espelho inacreditável,
não quebrado, fixo com firmeza.
Já não refletia a face de ninguém,
a mão de ninguém ajeitando o cabelo,
nenhuma porta defronte,
nada que se possa chamar
de lugar.
Era como nas férias -
via-se refletido nele o céu vivo,
as nuvens agitadas no ar feroz,
o pó do entulho lavado por chuvas luzentes,
voos de pássaros, estrelas, alvoradas.
E como cada objeto bem-feito
funcionava impecavelmente,
com uma profissional falta de assombro."
(Do livro Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
William e eu
Sim, Shakespeare foi maior que eu,
mas não tão versátil, vai.
Que se saiba, ele nunca escreveu um haicai.
mas não tão versátil, vai.
Que se saiba, ele nunca escreveu um haicai.
Castigo divino
Aspirei à beleza, julguei poder melhor que ninguém expressá-la. Aconselharam-me a não provocar os deuses. Deuses?, eu escarneci, e foi essa a última vez que ouvi voz humana. Hoje, quando chamo os deuses para lhes pedir clemência, eles se divertem com meus guinchos de porco arrependido.
Hoje no Estadão
Falo de uma porção de quinquilharias. Nada mais tenho além delas. Desculpem-me.
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/sem-compromisso/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/sem-compromisso/
quinta-feira, 7 de junho de 2018
Farsa
Se vocês me virem um dia com um terno de cerimônia em Estocolmo, estranhem o dia, estranhem o terno, estranhem Estocolmo e - embora não seja o caso - estranhem até o verbo: virem?
quarta-feira, 6 de junho de 2018
A condessa e o seminarista
Você acredita que eu, com esta cara de santa, desencaminhei uma vez um seminarista?, perguntou-me a condessa. Eu respondi que não me espantaria se ela houvesse seduzido dez cardeais, incluindo o camerlengo. Quer que eu conte?, ela propôs. Eu, já mortalmente enciumado, pus as mãos nos ouvidos: não, não.
As mãos da condessa
Uma noite a condessa me perguntou se eu achava bonitas suas mãos. Belíssimas, eu disse, com meu insuportável pedantismo. Se um dia o conde me jogar para a rua, não vou precisar vender o corpo, ela concordou. Com uma delas eu me garanto.
Espírito competitivo
Porque escreve romances esportivos, sonha não só com o Nobel, mas já com o bicampeonato.
O outro lado
Costuma-se falar mal dos editores. São insensíveis, indiferentes, cruéis. Mas imaginem o que é ser procurado todo dia por pelo menos três gênios que ainda não ganharam o Nobel embora o mereçam incontestavelmente.
Degradação
Até a última esperança perdeu o pudor: renova-se dia a dia e, como boa rameira, caminha sinuosamente para a esquina.
Fracasso
O velho escritor, que desde os vinte anos sonha com Estocolmo, desabafa com um amigo, também nobeleiro: até seu jabuti anda a passo de cágado.
Politeísmo
Quem assumir a literatura como religião deve dispor-se a cultuar pelo menos uma centena de deuses.
Receita
Quando você começar a se achar digno de prêmios, e a se lamentar por não obtê-los, diga um nome e, se for preciso, repita-o mil vezes para se convencer de que você não é William Shakespeare. Mas, se você for, mexa-se: faça uma greve de fome.
terça-feira, 5 de junho de 2018
Sob nova direção
A Eletropaulo, agora italiana,
oferece quilowatts à milanesa
e quilovolts à parmigiana.
oferece quilowatts à milanesa
e quilovolts à parmigiana.
Zero a zero
Quarenta anos depois da morte do poeta, alguém abriu a gaveta dos seus manuscritos e não havia ali nem traças nem sonetos. No primeiro momento, acendeu-se a discussão sobre se elas teriam acabado com eles ou se eles com elas. Porque numa e noutra hipótese não houvesse o que lamentar, esqueceu-se o assunto.
segunda-feira, 4 de junho de 2018
Em causa própria (para o Nelson Cunha)
Quando o homem armado invadiu o velório gritando "onde está você, filho da puta?", todos, num admirável gesto de autopreservação, apontaram o morto.
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Literatura
Maturidade
Já tenho idade bastante para dizer que, se eu houvesse morrido aos quinze anos, numa de minhas crises românticas, o mundo seria tolo se chorasse.
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Além do ponto
Imaginei que com a maturidade pudesse chegar o reconhecimento. Quando percebi, já estava velho demais para ser levado a sério.
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Obstinação (para Silvana Guimarães)
Lidar com a poesia é um vício que alguns conseguem manter até os noventa anos, mesmo sem a cumplicidade de um leitor sequer.
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Certeza
Se eu fosse um cão, nem minhas pulgas me amariam, por mais acolhedor que eu tentasse fazer parecer meu pelo.
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Sem provas
Continuo imaginando ter algum espírito, embora não possa dizer que alguma vez ele tenha se manifestado.
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A fórmula
Se um dia eu escrever um romance policial, tratarei com igualdade os personagens: eu os colocarei num castelo escocês, numa sexta-feira 13. Serão todos mordomos e estarão num evento anual. Dos cento e dezenove, restará um, de manhã.
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Bem o tipo
É um daqueles que, se o amor lhe dá um tapa, imediatamente oferece a outra face, e pede: mais forte, por favor.
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Completo
Sempre há um chato que, quando você diz, por dizer, que talvez a morte não venha a ser um mau negócio, apresenta dez razões em defesa da vida. E - claro - nos informa que aquilo é um decálogo.
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Trecho de Walt Whitman
" (...) A cidade dorme e o campo dorme.
Os vivos dormem o seu tempo, os mortos dormem o seu tempo.
O marido velho dorme junto à mulher e o marido jovem dorme junto à sua;
E estes moram em mim, e eu moro neles,
E sejam o que forem eu também sou parte deles,
E com todos e cada um vou tecendo o canto de mim mesmo."
(De Canto de mim mesmo, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Os vivos dormem o seu tempo, os mortos dormem o seu tempo.
O marido velho dorme junto à mulher e o marido jovem dorme junto à sua;
E estes moram em mim, e eu moro neles,
E sejam o que forem eu também sou parte deles,
E com todos e cada um vou tecendo o canto de mim mesmo."
(De Canto de mim mesmo, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
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Outrora agora
Se passar hoje pela estação do metrô onde naquela tarde me deixou esperando inutilmente, talvez você me encontre. Com a mesma cara de tonto, mas um pouco mais maduro, sabendo já fazer parecer que as lágrimas são só pingos da súbita chuva na Vergueiro.
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Relevância
Relevância não é palavra do meu cotidiano. Só tive alguma, a exata, quando me dizias, olhando-me com os olhos azuis de desdém: você não é nada.
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Cotação do dia (para Alfredo Aquino)
Não tenho importância nenhuma. Nem escritor eu sou. Sou só alguém que faz frases. Quando as faço.
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A tarefa
Alheio aos riscos
de catástrofe nuclear
o gramático segue estudando
quando se deve e quando
não se deve virgular.
de catástrofe nuclear
o gramático segue estudando
quando se deve e quando
não se deve virgular.
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A tarefa
Alheio aos riscos
de catástrofe nuclear
o gramático segue estudando
quando se deve e quando
não se deve virgular.
de catástrofe nuclear
o gramático segue estudando
quando se deve e quando
não se deve virgular.
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Exortação aos domingos
Os outros dias não sei, mas os domingos deviam tomar uma providência para que o Corinthians não os estrague. Se bem que as quartas e os sábados também não estejam grande coisa.
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Báquicas
Nas noites em que a condessa resolvia tomar vinho com o conde, era triste ouvi-la rir tão futilmente como ele e vê-la conduzida ao quarto como uma menina do campo a quem um velho libertino houvesse prometido um pirulito em troca de um joguinho no escuro.
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Má companhia
Alguns adjetivos mereciam estar relacionados a substantivos melhores. Esplênico, por exemplo, deveria vir de esplendor, jamais de baço.
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domingo, 3 de junho de 2018
Emergência
E o que se deve fazer quando
aparecem quatro fantasmas arruaceiros
dizendo que são os três mosqueteiros?
aparecem quatro fantasmas arruaceiros
dizendo que são os três mosqueteiros?
Exemplo
No barzinho de periferia, um bêbedo tenta convencer outro de que Deus está em toda parte. Na esquina, lambendo o óleo de uma lata de sardinha, o gato, se fosse consultado, concordaria.
Hoje na revista Rubem
Falo, como sempre, de insignificâncias.
https://rubem.wordpress.com/2018/06/03/pontas-de-estoque-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2018/06/03/pontas-de-estoque-raul-drewnick/
sábado, 2 de junho de 2018
Crueldade meritória
Tudo que ocorreu entre mim e a condessa foi há muito tempo. Não tendo registros da época, recorro à memória. Se a algum exagero ela me vem levando, certamente não é nas ocasiões em que me refiro à crueldade da condessa. Ela foi perversa comigo, mas não tanto quanto poderia ser uma criatura cuja presença impunha a todos a excelência de sua superioridade.
Questão de ouvido (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha
Pulcritude pode ser um bom sinônimo, mas não soa tão bem quanto beleza.
Quintarinho (para Silvia Galant François)
O que acho de Mario Quintana? Não entendo de passarinhos. Simplesmente gosto deles.
sexta-feira, 1 de junho de 2018
Desdém
A condessa não me insultava com palavras. Feria-me com o desdém. Depois de cada um de nossos encontros furtivos, ela me encarava como se tivéssemos participado de um joguinho de cartas. Eu sentia que nos lábios dela se formavam palavras que ela nunca chegou a pronunciar. Preferiria que ela as tivesse dito. Ah, condessa, eu, que a venho pintando em cores tão depreciativas e rancorosas, admito: fui, sim, fraco, frouxo, inútil. Não acreditava, e não acredito até hoje, que merecesse desfrutar tanta beleza.
Sejamos fúteis, ao menos por cinco minutos
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/ao-vento-da-sexta/
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