sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Não mais

Quando eu confiar mais em você, pode ser que lhe mostre minha tristeza. Um dia exibi meu amor e foi como se um palhaço caísse de ponta-cabeça no picadeiro.

$$$

O agente funerário queixa-se dos negócios: "Os mortos de hoje só têm parentes sovinas."

Ressalva

Despedir-se da vida é fácil. Difícil é dizer adeus àquele sol que a Paulista exibe em manhãs nas quais quer se dizer mais majestosa do que é.

Hoje no portal do Estadão

Frases curtas - e talvez não muito ruins.

https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/amor-etc/

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Um poema de Roberto Piva

"vou moer teu cérebro
vou retalhar tuas
coxas imberbes &
brancas.
vou dilapidar a riqueza
de tua
adolescência. vou
queimar teus
olhos com ferro em
brasa.
vou incinerar teu
coração de carne &
de tuas cinzas vou
fabricar a
substância das
cartas de amor."

Dados

Quanto ao amor, convém admitir que ele é a fonte de nossas mais ingênuas e mais ignóbeis mentiras.

Porcentagem (para Ana Farrah Baunilha)

O amor, se levado a sério, tem mais contra que indicações.

Preferência (para Priscylla)

Gosto daquele amor que é bem mais fusco do que lusco.

Perfil

O mais comovente tipo de derrotado é o persistente.

Até nós

Até entre os corintianos você encontra chatos. Por exemplo, aqueles mil duzentos e quarenta e nove e meio que não só sabem como fazem questão de lembrar a todo instante que o nome do Doutor era Sócrates Brasileiro Sampaio de Sousa Vieira de Oliveira.

Sugestão

Mesmo que você não seja apaixonada por palavras, dê uma chance a quem as diz, se as diz com amor.

Só por dizer

A condessa censurava minhas mãos, acusando-as de incompetência. Mas mordia as duas, uma por uma, quando eu tentava ensinar-lhes alguma ousadia.

Fulgor

A condessa acendia
um teclado de marfim
toda vez que sorria.

Excelência

O cão parnasiano não late au au -
emite com sua garganta
sílabas de genuíno cristal.

Remorso

O poeta velho hoje
tem pena de sua poesia -
tantos anos em tão má companhia.

A pergunta

Você me pergunta como eu estou. É a mesma pergunta que você me fez há cinco anos ou seis. Lembra-se do que eu respondi então? Pois eu lhe digo agora: estou muito pior.

Meus tempos de objeto

Tenho consciência: fui usado pela condessa. Pena que não mais vezes, pena que não como um objeto um pouco mais precioso.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Um poema de Régis Bonvicino

"O suicida
vê na morte
um direito civil

mata
o que acha
imbecil

por uma utopia
causa
ou fantasia

o ato de sentir-se
sutil
ou inconsútil

o caso
pouco divulgado
daquele homem

que bater pregos
no próprio cérebro
preferiu

o suicida
é o que não se repetiu."

(De Más companhias, Olavobrás.)

Um poema de Edgar Braga

"na minha luva de ouro na minha luva de prata
escondi raças e povos escondi minha vergonha

na minha luva de ferro
escondi o meu silêncio

cavaleiro cavaleiro cavaleiro  cavaleiro
joga tua luva ao vento joga tua luva ao vento

cavaleiro cavaleiro
joga tua luva ao vento

cavaleiro cavaleiro
guarda tua luva
e
vento."

(De Desbragada, Max Limonad, organização de Régis Bonvicino.)

Le mot juste

Um dos dois mais notáveis dons de Flaubert era o de se obstinar noites e noites em procurar as palavras certas. O outro era o de sempre encontrá-las.

Tocaia

Os advérbios são uma raça traiçoeira. Ficam ocultos, e silenciosos acompanham as frases. Se um verbo descuidado ou um adjetivo retardatário se desgarram um pouco das demais palavras, eles saltam sobre a vítima e a dominam. Se estão ariscos os verbos e adjetivos, eles se lançam sobre outro advérbio, como se fosse outra sua categoria gramatical.

Nem pensar

Nenhum concretista pensariam em empilhar seus poemas e, subindo até o mais alto, apanhar uma estrela para a bem-amada. Seria coisa para um parnasiano ou um romântico.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Paraíso

Ah se Deus a ventura me desse
de ser desencaminhado
pela voz da moça do gps.

Vida útil

Foi um autor venturoso. Viveu o suficiente para deixar duas gerações de leitores quase satisfeitas com seus romances quase bons.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Um poema de Dante Alighieri

"Vê-se dentro do céu prodigamente
quem minha amada entre outras damas veja.
E toda aquela que a seu lado esteja
rende graças a Deus por ser clemente.

Toda virtude tem sua beleza
que inveja acaso às outras não consente,
por isso as tem vestido simplesmente
de confiança, de amor, de gentileza.

Tudo se faz humilde em torno dela;
por ser sua visão assim tão bela
às que a cercam também chega o louvor.

Pela atitude mostra-se tão mansa
que ninguém pode tê-la na lembrança
que não suspire, no íntimo, de amor."
(Tradução de Henriqueta Lisboa.)

domingo, 26 de agosto de 2018

Dependência

Depois de três dias seguidos, hoje é meia-noite e não repetiram o trote dizendo que é uma ligação de Estocolmo. Ele já começa a sentir falta.

Bom exemplo

Continuemos escrevendo.
Se nós não,
quem acreditará em nossa vocação?

Talento

Reconheçamos: ninguém melhor que um poeta romântico para dar alpiste a passarinhos.

Hipóteses

Se você estiver triste, talvez seja o caso de recrutar meia dúzia de suas melhores palavras. Se alegre, não incomode nada nem ninguém. Ria, sorria, alegrias não necessitam de explicações

Um haicai de Guilherme de Almeida

E cruzam-se as linhas
no fino tear do destino.
Tuas mãos nas minhas.

Hoje na revista Rubem

Uma oferta quem sabe tentadora.

https://rubem.wordpress.com/2018/08/26/frases-com-desconto-raul-drewnick/


sábado, 25 de agosto de 2018

Em proveito próprio

Até o leitor mais desatento percebeu
que se algum prazer procuro escrevendo
é sempre menos o dele que o meu.

Astúcia

Uma das desculpas mais frequentes dos que insistem em continuar produzindo sonetos é a de que estão cumprindo uma missão.

Assim não

Talvez a poesia pudesse te redimir. Mas, pelo amor de Deus, não com esses sonetos acabrunhantes.

Falha de origem

Um dia você faz a besteira de se declarar poeta. Aí passa a vida inteira tentando provar.

Ofício

Os outros há muito não
mas nós ainda em nós acreditamos
e rabiscamos rabiscamos.

Prerrogativa

Uma das vantagens da velhice é ninguém nos pedir a carteirinha de poeta em lugar nenhum. Todos já sabem que não somos.

Período integral

Sou místico, de "a" a "u".
Se me mandarem para aquele lugar
Eu irei para Katmandu.

Legado

Escrevi algumas frases graciosas.
No mais, meia dúzia de versinhos
e uma dúzia e meia de prosas.

Grau de confiança

Dita por mim, até meia-verdade
deve ser levada a sério
só até a metade.

Melhor nem tanto

De hobby distração passatempo
melhor seria assim
tua literatura chamar
que de sonho ou ideal.

Seria melhor para ti
quando o dia chegar
de não te sentires mais digno dela
ou de ela te abandonar.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Guia literário

Não, aqui quem mora sou só eu.
Se um escritor viveu nesta casa
Faz muito tempo que morreu.

Hoje no portal do Estadão

Falo de Sartre e de Simone de Beauvoir

https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/falar-de-sartre/

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Nada menos que 100%

Se é para plagiar,
que seja uma grande cartada:
ou Shakespeare ou nada.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Poema de Joseph Brodsky

"Tudo tem limite, inclusive a mágoa.
O olhar esbarra na vidraça como a folha na grade.
Podes engolir em seco. Agitar tuas chaves.
A solidão é o homem ao quadrado.
O dromedário franze o cenho ao farejar os trilhos.
O vazio se estende como uma perspectiva infinita
E afinal o que é o espaço, senão
a ausência de um corpo a cada ponto dado?
Por isso é que Urânia é mais velha que Clio.
De dia, ou à luz de sebosos candeeiros,
veja: ela nada oculta
e, se olhares fixo para o globo, é a sua nuca que verás.
Ei-los, os bosques carregados de mirtilos,
os rios, onde se pode pescar esturjões com a mão,
e as cidades cujos catálogos telefônicos
já não te incluem. Mais para o sul,
melhor dizendo, para sudeste, erguem-se as escuras montanhas,
éguas selvagens correm entre as bétulas
e os rostos amarelecem. Mais adiante, singram os cruzadores
e a amplidão fica azul clarinho como roupa de baixo rendada."
(Tradução de Lauro Machado Coelho, do livro Poesia soviética, Algol Editora.)

Soneto do cantor sem mérito

Na hora de as contas fechar,
Deus, francamente, não sei
Se Tu me vieste a falhar
Ou se eu Te desapontei.

Para Te louvar roguei
Que me fizesses cantar
Como deve para um rei
Alguém saber e mostrar.

Tão alto te elevei, tanto,
Porém jamais o meu canto
Te causou algum agrado.

Se eu tivesse sido aceito,
Tu terias de mim feito
Este homem triste e aviltado?

Instantes finais

A natureza nas últimas
a humanidade nos estertores:
deus plantou no mundo
uma raça de predadores.

Hem?

Mas se morreres, me diz,
Quem aos meus textos profanos
E aos meus poéticos enganos
Há de torcer o nariz?

Cenários (para Silvana Guimarães)

Poetas de academia
cantarolam para o povo
e gorjeiam para a confraria.

Nova tabela

Para não nos sentirmos lesados
recalculamos o valor até
dos nossos mais antigos pecados.

Bola de cristal

Desde o começo eu sei:
fracassaria sempre -
e fracassei.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Um poema de Antonio Carlos Secchin

"Há um mar no mar que não me nada
e não se entorna em ser espuma ou coisa fria.
Me sinto cheio de palavra e de formato,
murado em mim sob a ciência desse dia.
Na sonância do que vive,
minha fala é resistência,
e dizer é correr o que se esquiva,
reter na terra a cicatriz do som vazio.
Sou apenas quinze avos de loucura,
a dar um nome à ironia do que dura."

Negócio de ocasião

Um poeta de mudança para o Estige
vende sua engenhoca de rimar
a maquininha de contar as sílabas
e uma musa mais bela do que virgem.

Cantiga do bom morredor (para Silvana Guimarães)

Morremos já um bocado,
Mas ainda não o bastante.
Morramos o estipulado,
Eia, arriba, sus, avante.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Atribuições de um gato

A um gato compete
descansar quando quiser
miar sempre que lhe aprouver
ser como lhe agradar ser
e se precisar morrer
morrer tão longe e ignorado
que ninguém que o amou
chegue nunca a saber.

Isenção

Bem-aventurado aquele cuja idade o exime de se penitenciar dos pecados porque a memória não os registra mais.

Ontem, agora

O tempo foi cruel com ele. Alguns poucos anos atrás, palavras como luxúria, mesmo que usadas no mais frio dos contextos, em três segundos o alvoroçavam e em mais três o deixavam em estado de ebulição. Hoje, ele pode ler luxúria uma, duas, cem vezes, e até pronunciá-la com a mais pecaminosa das intenções. É como se o mais santo dos homens estivesse dizendo as primeiras palavras do mais sagrado dos cânticos.

domingo, 19 de agosto de 2018

Orgulho

Quando me perguntam se a condessa é produto de minha imaginação, sinto-me quase como se fosse um poeta.

Cotação do dia

Não sou plebeu. Sou o príncipe dos merdas.

Aprendizado

Esmero-me em existir:
cada dia sei bem melhor
respirar, cochilar e dormir.

Perversidade

Nas ocasiões em que mais lastimável era meu desempenho amoroso, a condessa não me perdoava. Olhava-me com toda a censura que conseguisse reunir em seus olhos e escarnecia: parabéns.

Êxtase

Quando, por alguma negligência minha, a condessa me fustigava com o que de pior havia no seu vocabulário, eu me sentia o mais feliz dos filhos da puta do mundo.

Os de sempre

Louvados sejam os tolos que há séculos alimentam com seu sangue o mito do amor.

Nova era

É preciso ir preparando a nova geração de leitores para a literatura que os robôs já começaram a produzir. Talvez ainda haja tempo. Ou continuaremos condenados a ter Shakespeare como símbolo de excelência.

Nada além

Se os teóricos tivessem poder de síntese, diriam que literatura não é senão o ato de escrever.

Virtude

Se um morto tem algo de que se gabar, é certamente de sua sobriedade.

Jurisprudência

Que também no céu
vigore a norma:
in dubio pro reo.

Mesmo que

Morrer pela arte me agradaria -
mesmo que de fome
se ela fosse ganha-pão
mesmo que de desonra
se ela fosse honraria.

sábado, 18 de agosto de 2018

Um poema de Antonio Carlos Secchin

"Não, não era ainda a era da passagem
do nada ao nada, e do nada ao seu restante.
Viver era tanger o instante, era linguagem
de se inventar o visível, e era bastante.
Falar é tatear o nome do que se afasta..
Além da terra, há só o sonho de perdê-la.
Além do céu, o mesmo céu, que se alastra
num arquipélago de escuro e de estrela."

Velinhas

Os tolos que se regeram a vida inteira pelo amor têm sempre algum aniversário a comemorar: um primeiro beijo na orelha ou uma esfregadinha consentida de nariz.

Inépcia

Na boca, ela insistia,
Mas ele, papalvo,
Errava sempre o alvo.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Velório

Do morto alguém disse que era extremamente pudico. Nunca dizia língua, dizia idioma.

Fração

Por mais que se fale, do amor sempre fica algo tolo por dizer.

Do sonho de um bibliófilo

Folhear só te folhear
página por página
página ímpar
página par
molhando o dedo
devagar.

O pecado

Vergonha é beijar
beijar
e não continuar.

Safadinho

Olavo Bilac era doido por perfeiçõezinhas.

Trajetória (para Alfredo Aquino, Gabriel Perissé e Jiro Takahashi)

Aonde podem levar projetos sérios:
obras-primas ao sebo,
gênios aos cemitérios.

Hoje no portal do Estadão

https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/em-fatias/

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Linhagem

Tudo é só para quem pode,
Segundo a categoria.
O rude coça o bigode,
O fino o alisa e cofia.

Teste

É fácil identificar um poeta romântico: é aquele que sabe trinta sinônimos para a palavra ai.

História

Acreditava-se no século XIX que os poetas tivessem alguma ligação ou com Deus ou com o Diabo. Não há nenhum estudo sério a respeito.

Experiência

O homem de terno preto conversou com os parentes do morto, fez críticas ao caixão, às flores, ao cafezinho de garrafa térmica, e deixou um cartão: para o próximo defunto.

Detalhe

O crítico de moda, primo do defunto, deu sua opinião: ele ficaria muito melhor de chapéu.

Réu

Tinha cinco ou. seis sonetos no prontuário, mas nenhum muito sério. Só pecadilhos da juventude.

Marketing

Eu, se fosse fazer uma campanha de reabilitação dos aforismos, começaria mudando seu nome.

Pompa

Olavo Brás Martins
Já não estava bom demais?
Precisava dos Guimarães Bilac?

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Frio

O mendigo entrou no velório e olhou com cobiça o terno do defunto.

De olho

Parecia um defunto da espécie dos rancorosos, aqueles que marcam bem o rosto dos visitantes.

Estilo

O morto parecia ter sido importado de Londres. Só ele, no velório, vestido como um lorde.

Tática

Um morto é como um zagueiro. Precisa impor respeito de cara.

Parágrafo primeiro

Escrever é um direito que, francamente, não deveria valer para os beletristas.

O tipo

Ele é daquela espécie de hipócritas que bebem água mineral e eructam Coca-Cola.

Afeto

Quando não encontravam Millôr em casa, as frases deixavam recado.

Um poema de Antonio Carlos Secchin

"Em certo lugar do país
se reúne a Academia do Poeta Infeliz.

Severos juízes da lira alheia
sabem falar vazio de boca cheia.

Este não serve. A obra não fica.
Faz soneto, e metrifica.

E esse aqui, o que pretende?
Faz poesia, e o leitor entende!

Aquele jamais atingirá o paraíso.
Seu verso contém a blasfêmia e o riso.

Mais de três linhas é grave heresia,
pois há de ser breve a tal poesia.

E o poema, vasto e complexo,
não deve exibir cenas de nexo.

Em coro a turma toda rosna
contra a mistura de poesia e prosa.

Cachaça e chalaça, onde se viu?
Poesia é matéria de fino esmeril.

Poesia é coisa pura.
Com prosa ela emperra e não dura.

É como pimenta em doce de castanha.
Agride a vista e queima a entranha.

E em meio a gritos de gênio e de bis
cai no sono e do trono o Poeta Infeliz."

PM

Para os frasistas que vieram depois de Millôr restou pouco mais que o descaramento do plágio.

Pose

Que enjoados são
aqueles que só não acham tudo ruim
quando decidem abrir uma exceção.

Ontem (para Ana Farrah Baunilha)

Adolescência radiante -
o pecado morava ao lado
ou um pouco adiante.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Um soneto de Antonio Carlos Secchin

"De chumbo eram somente dez soldados,
plantados entre a Pérsia e o sono fundo
e com certeza o espaço dessa mesa
era maior que o diâmetro do mundo.

Aconchego de montanhas matutinas
com degraus desenhados pelo vento:
mas na lisa planície da alegria
corre o feroz rio do esquecimento.

Meninos e manhãs, densas lembranças
que o tempo contamina até o osso,
fazendo da memória um balde cego

vazando no negrume do meu poço.
Pouco a pouco vão sendo derrubadas
as manhãs, os meninos e os soldados."

Argh

Que nefando tipo de escritor é o estilista.

Nos trilhos

Um dos mais poéticos tempos de minha vida foi aquele em que levava minha melancolia para passear de bonde. Ela amava o Ipiranga, Santo Amaro e ainda não sonhava com Estocolmo.

Duas frases de Cesare Pavese

"Fazer poesia é como fazer amor: nunca se saberá se a própria alegria é compartilhada."

"Perdoamos aos outros quando nos convém."

Alerta

Na capa, em letras acintosamente vermelhas: este livro contém gongorismo e retórica.

Haicai urbano (para Jiro Takahashi)

Sobre o edifício concretista
o helicóptero pousa uma
romântica metáfora de pássaro.

Capitão

Se a condessa fosse passageira do meu navio, eu atiraria todos os homens ao mar - e as mulheres também, por precaução.

Memória

As mulheres de unhas pontudas são as que mais nos marcam.

Alerta

A cara que Deus fará quando vier buscar sua alma e souber que você a deu ao Diabo há dez anos, em troca daquele livro de contos que recebeu menção honrosa no concurso de Itapecerica da Serra.

Biografia

Se você andou metido com sonetos, ainda que só na adolescência, jamais admita.

Tomara

Dizem-me que, quando falo de literatura, meu rosto se transforma. Espero que para melhor.

Da mesma laia

Não se iludam com a poesia, sua voz doce e suas promessas. Ela foi, é e será sempre uma funcionária da literatura e prescreve as mesmas provações e castigos.

Providência

O melhor que um homem sensato pode fazer com a literatura é livrar-se imediatamente dela.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Defeito de fábrica

Não foi certamente Deus, mas um de seus funcionários mais relapsos, quem falhou no seu controle de qualidade e, no Livro do Destino, determinou que eu seria escritor.

Bruxa

Vive em Estocolmo ainda aquela mais fria das mulheres
que por anos e anos simulou não ver na calçada o chapéu
do cego portenho que lhe pedia a esmola do Nobel.

Glória

Cinquenta anos depois, seus únicos três textos publicados ainda eram os que estavam no livro já de capa dilacerada: Antologia dos poetas municipais, editado pela prefeitura de Morro Jovem, hoje Morro Velho.

Outro hobby

Quase ódio de quem me diz que também tem um passatempo e, antes de revelar qual é, sugere que graças a Deus não se relaciona nem um pouco com a literatura.

Peso inútil

Descobriu tarde demais que seu compromisso com a literatura, assumido na adolescência, não tinha valor nenhum.

Melhor não (para Alfredo Aquino)

O pior que se pode fazer com jovens poetas é chamá-los de promissores. Alguns acreditam nisso por cinco décadas.

Ser Fernando

Hoje, num almoço de família, a mãe lhe falou da época em que ele desejava ser Fernando Pessoa. E, como vem acontecendo recentemente com tudo, ele sentiu vontade de chorar.

Nada a ver

Até ao vento, se um tanto mais frio, o velho escritor pergunta se traz notícias de Estocolmo.

Ausência

O objeto mais triste que uma casa pode ter é um sofá sem seu gato.

Três ou quatro

A idade final há de ser a da parcimônia. Devo poupar as palavras, para que me restem aquelas três ou quatro indispensáveis sempre que chega a hora na qual o corpo liberta enfim a alma.

Patrimônio (para Silvana Guimarães)

É tudo que tenho -
nenhum talento
igual engenho
nada para expressar.

Do diário de um escritor

O velho escritor tem isto como norma: se um dia for a Estocolmo, não será uma viagem de turismo.

Alto-falante

Você querer ser reconhecido como escritor é uma talvez justa aspiração. Não desista. Se os leitores e os críticos insistirem em ignorá-lo, sugiro que você saia pelas ruas com um carro de som e grite: sou um escritor, sou um escritor, sou um escritor. Grite como se fosse um poeta social clamando por pão.

De novo?

Tudo bem. Com doze anos você se apaixonou pela literatura e... Essa história você já contou diversas vezes. Será que isso justifica todos os seus infortúnios?

Ser ou não

Já é bem hora de você parar de se perguntar se é escritor ou não. Escreva e deixe que os leitores decidam - se lhe couber a sorte de ter algum.

Sem palavras

As palavras começam a me faltar, a me falhar. Era inevitável. Por tanto tempo estiveram à minha disposição, amáveis e dóceis, por tanto tempo acreditaram em mim, e o que fiz delas? Prometi que participariam de maravilhosos projetos, e eles não deram em nada. Elas sabem já que não devem esperar nada de mim e quando as chamo se fazem de distraídas: quem?, eu? Logo perderão todo o recato e me mandarão procurá-las na esquina, de preferência a mais distante.

domingo, 12 de agosto de 2018

Magia

O escritor é como o mágico de circo tentando um novo truque com uma cartola ensebada e seus coelhos senis.

Cronos

Talvez a vida não seja afinal tão triste quanto sempre lhe pareceu, mas agora você não tem mais tempo para saber.

Trasantontem

Gonçalves Dias era de um tempo em que a poesia tinha espaço para um sabiá.

Chances

A literatura é aquela arte que permite a alguém morrer em versos ou matar em prosa e, na maioria dos casos, sem deixar de ser o mais insignificante dos viventes.

Clichê

Os críticos usam sempre aquele carimbo quando analisam o livro de um estreante: trata-se de um escritor extremamente promissor, ou um tantinho menos.

12 de agosto de 2018

Há pelo menos cinquenta anos você é um escritor de futuro. E o futuro começa sempre amanhã, sem falta.

Síndrome

Quando sentiu que chegavam seus últimos dias, o escritor passou uma ordem: só atenderia ligações de Estocolmo.

Figurino

Ainda que só para cumprir uma convenção literária, as mulheres fatais deveriam ser sempre loiras.

A verdade

Devo reconhecer: tenho mais caspa que carisma.

Conhecimentos

Deus nos livre de conhecer uma mulher fatal. E Deus nos livre de, tendo conhecido uma, não podermos conhecê-la na plenitude de sua fatalidade.

Hoje, na revista Rubem,

mais uma coletânea de frases sem norte e sem graça.

https://rubem.wordpress.com/2018/08/12/frases-sem-graca-e-sem-norte-raul-drewnick/

Etapas

Parabéns. Hoje estás
tão morto quanto
um dia estarás.

Supremacia

Sua poesia? Há trinta anos você conhece minha opinião sobre ela. Quer saber? Nem suas doenças são melhores que as minhas.

Descarte

Deixaram a caixa na esquina e afastaram-se rapidamente, procurando manter-se alheios aos ruídos da noite, embora gatos mortos não saibam miar.

sábado, 11 de agosto de 2018

"Sombras dos dias que virão", de Alejandra Pizarnik

"Amanhã
me vestirão com cinzas na aurora,
me encherão a boca de flores.
Aprenderei a dormir
na memória de um muro,
na respiração
de um animal que sonha."
(Tradução de Carlos Machado.)

"A verdade que os mortos conhecem", de Anne Sexton

"Acabou-se, digo e me distancio da igreja,
Recusando a rígida procissão até a sepultura,
Deixando os mortos viajarem sós no carro fúnebre.
É junho. Estou cansada se ser valente.

Dirigimos até o cabo. Eu me desenvolvo
Onde o sol goteja no céu,
Onde o mar se agita como um portão de ferro
E nos comovemos. Em outro país, pessoas morrem.

Querido, o vento desaba como pedras
Das águas calmas e quando nos tocamos,
Penetramo-nos inteiramente. Ninguém está sozinho.
Os homens matam por isso ou por algo mais.

E o que acontece com os mortos? Jazem sem sapatos
Em seus barcos de pedra. Eles são mais parecidos com pedras
Do que o mar seria se fosse suspenso. Eles recusam
Ser abençoados, garganta, olho e nó dos dedos."
(Tradução de Dalcin Lima.)

Excelência

Porque o têm como ignorante, começou a estudar gramática. Faz um mês. Hoje deu mostra de algum progresso (se for relevada a confusão entre formas de tratamento). Quando os de sempre lhe disseram que de estudar morreu um burro, mandou: vão todos se foder-vos.

O sadismo na condessa

Para ser sádica, bastaria à condessa exibir por um instante a língua. Mas ela quase sempre a deixava ficar um pouco mais fora, enquanto fechava os olhos com satânica lentidão.


Inclinação

Nada mais rápido que as rimas
para passar da proximidade
à promiscuidade.

Nada a acrescentar

Tantas décadas de leitura, tantos poemas, tantas metáforas, para descobrir que meu estoque de menino poeta não era tão pobre quanto eu imaginava quando tinha meia dúzia de adjetivos para atrelar à dúzia e meia de substantivos que compunham meu conhecimento do mundo.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Últimas palavras de Jane Austen

"Não quero nada mais que a morte."

Futuro

Deus sabe como tenho trabalhado
para quando meu dia chegar
ser um morto conceituado.

Persona

Se for para ser deus
não aceito nenhum menos
do que Júpiter ou Zeus.

O caminho

Não fui eu que escolhi o caminho da poesia. Foi a tristeza que me levou a ela, quando eu era ainda um menino.

Razão de escrever

Falando francamente, escrevo - e desde o início foi assim - por um sentimento que pode chamar-se de vaidade, orgulho ou honra. Escrevo por meus irmãos, meu pai, minha mãe, pela família de imigrantes poloneses ansiosos por demonstrar gratidão. Escrevo como quem, não sabendo fazer senão pães, procura dia a dia preparar os melhores, para retribuir aos que acolheram os do seu sangue e os convidaram a entrar.

Hoje no portal do Estadão

Perco-me com Joyce por aí.

https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/alo-molly/

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Requisito

Seu Jarbas sonha que chegou ao céu e lhe pedem o certificado de reservista.

Impecabilidade

Alguns mortos ficam tão bem arrumadinhos que é como se estivessem fazendo proselitismo e ganhassem bônus por adesão.

Velório

Parece que ele foi poeta, alguém dirá,
E só você, morto ali e esticado,
Não rirá.

A condessa suspirosa

Toda vez que a condessa suspirava, mesmo que fosse enquanto mordia uma de suas adoradas maçãs, algo em mim ficava à espreita, ansiando por algum desvio que levasse pelo menos a um indício de luxúria.

Gosto

Ainda hoje, se penso em dizer o nome da condessa, em minha língua fervilha uma impressão de sal.

Aleluia

Se você não tem sobre o que escrever hoje, dê graças a Deus. Que boa notícia para você, para os seus leitores e para a reputação da literatura.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Poema de Joseph Brodsky

"Eu era apenas quanto
a tua mão tocasse
ou sobre o que inclinavas,
no breu da noite, a face.

Eu era, embaixo, quanto
Notavas turvo, apenas:
traços, no início, vagos;
feições, mais tarde, plenas.

Foste quem logo, ardente,
Criou-me a sussurrar,
seja à direita, às esquerda,
a concha auricular.

Foste, a agitar cortinas,
quem, na umidade cava
da boca, introduziu-me
a voz que te chamava.

Eu era cego e, vindo,
sumindo-te de mim,
doaste-me a visão.
Fica um vestígio, assim.

E, assim, criam-se mundo
que são postos de lado,
girando,quando prontos,
presente abandonado.

Em meio, pois, de treva
e luz, calor e frio,
prossegue o nosso globo
seu giro no vazio."

(Do livro Quase uma elegia, tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher, publicado pela Sette Letras.)

terça-feira, 7 de agosto de 2018

"História de detetive"

"Quem jamais deixou de ter a sua paisagem,
A rua torta da aldeia, a casa em meio às árvores,
Tudo perto da igreja? Ou então a taciturna casa de cidade,
A de colunas coríntias, ou então
O pequeno apartamento proletário, mesmo assim
Um centro, um bar, em que aquelas duas ou três coisas
Que a um homem podem ocorrer, vão ocorrer de fato.
Quem não pode traçar o mapa de sua própria vida, sombrear
A pequena estação onde se encontra com a amada
E diz-lhe adeus continuamente, assinala o ponto
Onde foi primeiramente encontrado o cadáver da felicidade?

Uma vagabunda ignota? Uma ricaça?
Com um passado bem sepulto: e quando a verdade,
Na verdade a respeito da felicidade nossa vem à luz,
O quanto não devia ela à chantagem e aos namoricos.

O que vem depois é o de costume.
De acordo com o plano:
O conflito entre o bom-senso distrital
E a intuição, esse amador exasperante
Que sempre chega ao local por acaso antes de nós.
Tudo conforme ao plano, quer as mentiras, quer a confissão,
Até a emocionante caçada final, e a morte.

Todavia, na derradeira página, uma dúvida insistente:
E o veredicto, foi justo? os nervos do juiz,
Aquela pista, os protestos da assistência,
E o nosso próprio sorriso... ora, pois sim...

Mas o tempo é o culpado sempre. Alguém tem de pagar
Pela morte da felicidade, a nossa própria felicidade."

(Tradução de José Paulo Paes e João Moura Jr.)

Características

Se, além de confortável, um poema concreto for  útil, tanto melhor.

A condessa e as maçãs

Os dentes da condessa, depois do almoço, se entretinham em triturar maçãs. Eu sempre imaginava, nessas ocasiões, que delicioso estrago eles poderiam fazer em meu pescoço e em meus ombros agradecidos.

Confissão

Sou grato aos advérbios de modo desde o tempo em que, no colégio, era preciso completar aquelas vinte linhas de redação nas provas; a eles e à habilidade de minha mão ao encompridar cada uma das palavras que me ajudavam a chegar astutamente, triunfalmente, folgadamente a vinte e uma e meia ou a vinte e duas linhas, no exercício chamado, na época, de enchimento de linguiça. Se tenho algo parecido com uma carreira literária, foi graças a esse e a outros truques aos quais, quando têm êxito, se dá o nome de estilo.

Mártires

Malfadadas musas antigas, pálidas como a morte e trancadas com chave de ouro em catorze frígidos versos.

"Seja assim o poema", de Philip Larkin

"Fodem-te a vida, o papá e a mamã,
Mesmo que não seja essa a intenção,
Deixam-te todos os vícios que tenham
E mais dois ou três por especial atenção.

Mas no tempo deles também foram fodidos
Por tolos trajando jaquetão e coco,
Que quando não estavam piegas ou hirtos
Saltaram,  raivosos, à veia, ao pescoço.

E assim é legada a felicidade,
Vai mais e mais fundo, como o fundo do mar.
Foge mal tenhas oportunidade
E quanto a teres filhos- isso nem pensar."

(Tradução Rui Carvalho Homem.)

O aroma

Uma tarde, a condessa me desafiou a persegui-la, numa corrida. Levamos nisto uns minutos. Quando a alcancei, tínhamos chegado ao jardim e, misturado ao das flores, senti um adocicado aroma de axilas raspadas.

Cotação do dia

Se o Diabo vier me procurar hoje, só poderei negociar com ele esta alma em péssimo estado de conservação.

Riscos

Mesmo com todas as lutas preservacionistas, cada vez mais espécies estão ameaçadas de extinção. Os cisnes praticamente só se encontram em sonetos parnasianos. E já há dificuldades até para achar sonetos.

A escolha

Se você começa a descobrir traços shakespearianos no seu estilo, ou você finge que não os vê ou banca o louco e os assume. Se resolver assumi-los, que Deus - ou o Diabo - o ajude.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Proposta

Se você me amar, poderá fazer parte de um seletíssimo grupo, um trio ao qual eu daria minha vida, se ela valesse algo. Aceita? Posso colocá-la como número um, se você me der um tempo. As outras duas há meses não me telefonam.

Zelo

Que o poeta zele para que suas rimas, principalmente aquelas em "ú", não andem em má companhia.

Fake

Se cultura fosse mesmo luxo, como se diz, teria muito melhor tratamento.

Ainda ontem

Ainda ontem o morto, quem diria, pois é, o morto, quem diria.

Cota

De um morto não convém esperar mais do que ele presumivelmente já deu.

Cotação do dia

Se eu estivesse um pouquinho mais morto, já poderia receber o atestado.

Missão

O décimo terceiro trabalho de Hércules é ensinar um passarinho a cantar.

Recíprocas verdadeiras

As frases curtas e eu nos damos cada vez melhor. Sei que não posso esperar muito delas e elas sabem que não devem esperar nada de mim.

domingo, 5 de agosto de 2018

Bem a calhar

Seus textos são cheios de vistosas ocorrências gramaticais. Não precisam de crachá para entrar numa apostila.

Dever

Você não tem o direito de dizer aos jovens que a literatura é uma ilusão; você tem a obrigação.

Lei

Se não fosse tão prazeroso, falar de gatos deveria tornar-se obrigatório por lei.

Inveja

No cemitério estão enterrados alguns bem menos mortos que eu.

Castigo

Será punido quem, como eu, passa a vida ostentando a tristeza como patrimônio.

Importância

O vento, quando assobia teu nome, finge ser flauta.

Tintura

Por arte do maquiador, o bigode do defunto ficou atrevidamente juvenil.

Nota

Diz chamar-se só Lúcio Glande.
Esclarece que Belo Pinto
É um título honorífico.

Tema

Os mortos são sempre assunto -
não há quem resista
a um belo defunto.

Nota dez

Foi um morto exemplar:
aceitou todos os elogios
sem ruborizar.

Em tempo

Nunca ser apressado:
morrer sempre após as dez
depois do café tomado.

Presente

Frustração das frustrações:
deram-lhe a bengala
sem o manual de instruções.

Velha história (para Rose Marinho Marinho Prado)

Os que depois cometerão os maiores crimes contra a poesia costumam começar com uma inofensiva quadrinha.

sábado, 4 de agosto de 2018

Modo de ver

Não conseguirmos mais escrever talvez seja uma ótima notícia: a de que os deuses se cansaram de divertir-se conosco.

Um haicai de Paulo Leminski

"Esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem."

Ocasião

Talvez eu encontre ainda a poesia, agora que não tenho mais forças para procurá-la.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

De Mario Quintana

"O segredo é não correr atrás de borboletas... É cuidar do jardim para que elas venham até você."

A cançoneta de T.S. (para Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)

Sim, Tom, eu sei bem como é a canção:
as mulheres falavam de Michelangelo,
e de quem mais falariam, meu caro Tom?

Talvez você as pudesse entreter
com aquela insolúvel indagação
sobre o ser e o não ser.

Mas aceitariam elas ouvi-la
não dos lábios de um príncipe
mas da boca de um bufão?

Quase luxúria

A palavra Estocolmo acende nele uma inquietação igual à que sentia quando, adolescente, suas narinas eram recompensadas pelo odor salino das ruas para onde o chamavam as putas de baixo preço.

Um haicai (para Jiro Takahashi)

Um haicai, se fosse um gato, seria um desses bem pequenos, que aparecem só em sonhos, não sabem ainda miar e deslizam sobre tapetes de morno veludo.

Pompa

Todo modernismo logo acaba mostrando que também lhe agrada sentar-se à mesa, ter quem lhe sirva cerimoniosamente a água e o apresente à plateia como costumavam ser apresentados os clássicos.

Futuro (para Rose Marinho Prado)

Talvez a poesia venha a ser só uma das especialidades dos robôs. Teremos então saudade dos líricos tempos do concretismo.

Hipótese

Se a gramática tivesse mãe, como nós gostaríamos de reverenciar a queridíssima senhora, chamando-a hipocoristicamente de putinha.

Segurança

Em algumas editoras, já há muitos anos os sonetistas não conseguem passar pela portaria, mesmo em casos nos quais engenhosamente tentam entrar disfarçados de autores de livros de autoajuda.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Tapume

Ainda não tenho a obra.
Por enquanto,
só a matéria-prima.

Até isso

Você não sabe como eu amo aplausos. Para ganhar mais um ou dois, sou capaz de escrever que passei fome na infância e vendi baldes de estrume a damas endinheiradas, para que suas rosas parecessem  mais belas que as do jardim de minha mãe.

Grandeza

Tudo que eu via na condessa me incitava ao pleonasmo.

Byron traduzido por Augusto de Campos

"Meu cabelo é grisalho aos trinta anos.
(Como estarei quando tiver quarenta?
Já tive uma peruca entre meus planos)
Meu coração secou, já não aguenta.
Perdi todo o verão em desenganos
E já coisa nenhuma me contenta.
Gastei a vida, o principal e o juro,
Já não me sinto dono do futuro."

Certeza

Hoje sei que a melhor poesia que me passou pelas mãos foram os ombros mornos da condessa.

Tu quoque?

Andam tão execrados os sonetos que é melhor não lembrar que Shakespeare os fazia. O comentário pode ser: eu bem que desconfiava.