Vernissage

Se na época da Criação houvesse um crítico, Deus seria considerado um artista promissor.

Homo sapiens

Se fôssemos dotados de asas, não chegaríamos a alcançar a estrela em que Deus vive, mas teríamos certamente muito a ensinar aos passarinhos com nosso engenho e arte.

Fernanda Takai

Por onde
Fernanda anda
por onde
Fernanda vai
um passarinho
indica o caminho
onde se esconde
o ninho de um haicai.

A ma

A maneira mais adequada
de dizer
que não se tem
nada a dizer
é simplesmente
não di.

Zás-trás

Morrer deveria ser
como apertar um botão
ou esquecer de apertar.

Norma

A mim me agradam
menos os trabalhos gratuitos
que os lazeres fortuitos.

Decibéis

Eram quatro torres.
Uma derrubou-a o vento,
Três, os três tenores.

Audiência

Não ter nada a dizer
É a melhor notícia que se pode dar
A quem se cansou de nos escutar.

Compaixão

Soneto é uma palavra pronunciada com tanta repugnância que é estranho não se haver encontrado ainda para ela um misericordioso ou pelo menos simpático eufemismo.

Soneto dos navegantes

Aquele que navega em mar de rosas
Sem nunca ter para isso trabalhado
Não se contenta com o que lhe é dado,
Não dá valor às coisas mais valiosas.

Mas aquele que sabe quão preciosas
São as migalhas que tem conquistado
Não se queixa do vento desatado
Que sopra sobre o mar ondas raivosas.

Um desses navegantes, o primeiro,
Desliza sobre o mar em um veleiro
E boceja de tédio ao velejar.

O outro resiste ao mar que se enfurece
E sempre aos deuses todos agradece
Toda vez que consegue se salvar.

Resumo

Para ser poeta
nada mais me faltaria
se não me faltasse a poesia.

Cotação do dia

Sinto-me tão fraco e tão mal
quanto um furacão
rebaixado a tempestade tropical.

O poeta sob o bonde

No tempo dos bondes, se um homem morresse sob um deles, e seu bolso estivesse cheio de sonetos, se lamentaria a perda de um poeta. Hoje se lastimaria a falta que fazem os bondes.

Vezes dois

Tem dupla identidade:
uma é meio imprecisa,
a outra é só metade.

Se

Teria se contentado com os beijos, cada vez mais líquidos e profundos, se o peixe que parecia ter na braguilha não começasse a se agitar agonicamente, forçando os botões para livrar-se.

Hoje, na revista Rubem

A história de um homem que tem um jeito estranho de sonhar.

https://rubem.wordpress.com/2020/07/26/quando-ate-os-melhores-sonhos-ferem-raul-drewnick/

Estoque

Só tem forças (se tiver)
para um pecado, não mais,
que não envolva mulher,
um daqueles bem veniais.

Covid-19

Quando a praga e a peste vieram,
Usei todo meu engenho:
Medo para que vos tenho,
Pernas para que vos quero.

Gratidão

Escrevo cada vez menos e com mais dificuldade. Pena que isso não signifique escrever melhor. Quando consigo três ou quatro linhas apresentáveis, agradeço de coração. Acredito que os leitores também, por essas linhas não serem dez ou doze.

A razão

A poesia me seduziu não por algum fato extraordinário, de natureza humana ou divina, mas por um bastante corriqueiro: eu era um menino triste.

Jeitão

Anacolutos, anástrofes, elipses e zeugmas
parecem muito menos figuras gramaticais
do que enfermidades fatais.

Projeto

Descobriu que, para ser um poeta social, precisa tornar-se primeiro um poeta.

Fã

O oitentão estava se gabando do número e da intensidade de seus sonhos eróticos quando outro, tão velho quanto ele, lhe pediu que desse, então, um recado a Greta Garbo.

Na língua

Gosta da palavra libidinagem. Sempre que a pronuncia, fica-lhe na língua a mesma sensação líquida de culpa que teve quando a disse pela primeira vez na escuridão do quarto, com pavor de ir arder no inferno.

Nomes

O nome da garota era exótico, Natasha, mas talvez ele não se lembrasse dela hoje, se uma noite, depois de uma sessão mais demorada de beijos no cinema, ela não suspirasse um nome que, apesar de desmentido, soou nitidamente a ele como Aline.

No embalo

Saía da casa de certa mulher tão embriagado ainda de amor que uma noite, tropeçando e precisando abraçar um poste para não cair, deu-lhe um beijo e não lhe negaria o segundo, se o gosto não fosse tão ácido.

Danação

O vento bíblico que trouxe a peste
Nos põe de joelhos e nos vergastando
A culpa nos impõe, nos perguntando:
Que crime cometeste? O que fizeste?

Nos is

Um dia você percebe
que tudo aquilo que você dizia
e que tão bem lhe soava
e que tão profundo lhe parecia
sendo alguma coisa era nada
e sendo nada era tudo
tudo menos poesia.

Covid-19

A peste nos logrou completamente
Com sua forma insólita de ser.
Matou-nos tão sagaz e sutilmente
Que estamos mortos antes de morrer.

Resumo

Tive com a poesia um vínculo
Que hoje seria mais fácil
Negar do que provar.

Pretexto

Recorda-se de uma mulher que zombava da pequenez de seu membro só para poder depois, entre gemidos, chamá-lo de meu menino.

Quem sabe

Às vezes pensa que mesmo sexualmente poderia ainda ser útil a alguém. Lendo, por exemplo, com voz alcoviteira, passagens de melada pornografia.

Sequência

Beijou-a na boca, no pescoço, na orelha, na nuca, até que ela, vencida, o deixou beijar-lhe o joelho que acabara de esfolar numa queda.

Frustração

Gostaria de ter vivido numa daquelas épocas românticas em que amor e morte significavam a mesma aguda paixão, o mesmo exacerbado êxtase, a mesma certeira marcha para o mútuo aniquilamento.

Inutilidade

Quando se convenceu de que o amor nunca é pecado, estava já numa idade tardia, e a descoberta não tinha mais nenhum sentido prático.

Arrependimento

Hoje, mais velho do que jamais imaginou chegar a ser, com um sentimento intenso de perda lembra-se do tempo em que poderia ter morrido de amor.

A realidade

Houve tempo em que podíamos escolher do que morreríamos: de amor, de literatura, de desespero, de juventude. Fomos relapsos e hoje nos restam só hipóteses prosaicas.

O brilho

Provérbios parecem certos senhores pernósticos e presumivelmente sábios cujo brilho, no final das contas, se estiver em algum lugar, será no cabelo pintado ou na exuberante fatiota.

Atraso

Aos trinta, queria morrer pela literatura. Morreu aos noventa, pela idade.

Confirmação

Se um chato nos pergunta se nós assim o julgamos, o que ele quer não é nos pedir desculpas; quer que referendemos sua glória.

Paz

Desde que a Justiça encarcerou o chato, os parentes sabem o que é ter sossego. A bonança só é quebrada em abril e em dezembro, nos lastimáveis indultos da Páscoa e do Natal.

Inteireza

Os chatos costumam ser como os artistas que, perfeitos em tudo, são premiados não por uma qualidade específica, mas pelo grandioso conjunto de sua obra.

Plus

Além de tudo, o chato tem aquela mão suada com que aperta a nossa e nos deseja bom dia, como se isso fosse possível para nós, depois de encontrá-lo.

Soneto da ocultação

Não confie ninguém no que eu escrevo.
Não pense, quem me ler, achar em mim
Algo que tenha início, meio e fim
E que em alguém desperte algum enlevo.

Sei que não deveria ser assim,
Que sempre ajo do jeito que não devo,
Que minto no que escrevo, e não reescrevo,
Que digo sempre não em vez de sim.

Se alguém com meus volteios se encantar,
É mais do que eu me atrevo a desejar,
É um prêmio imerecido e inesperado.

O que procuro com essas confissões
É ocultar-me sob tantas negações

Que outro parece ter arquitetado.

Definição

Ubiquidade é o dom que os chatos têm de, estando onde estiverem, estarem onde estamos nós.

Tipos

O chato metódico sempre devolve a nossa Bic sem a tampinha. O chato relapso, nem uma nem a outra.

Sui generis

Um chato é, a seu modo, um tipo inesquecível. E inarredável.

Argumento

Num debate conosco, o chato acaba vencendo pelo cansaço - o nosso, naturalmente.

Na pior

A solidão mais doída é aquela que aceitaria ser preenchida até por um chato.

Etc.

Chato loquaz é o que tem sempre algo mais a nos dizer, depois de nos dizer que nos disse tudo.

Gramática

Chato contumaz é um pleonasmo.

Compromisso

Chatos são como deveriam ser os casamentos: para toda a vida.

Menos um

Chatos estão sempre dispostos a nos prestar qualquer favor, menos o de nunca mais aparecerem no nosso mapa.

Escolha

Sejam quantos forem nossos apelidos, o chato nos chamará invariavelmente pelo pior.

Competição

Os chatos parecem atletas olímpicos. O mais chato de todos está sempre sendo superado por um mais jovem e mais importuno.

Assiduidade

Um chato nunca falta a um compromisso conosco, mesmo que não tenha nenhum.

Legítimo

Uma das vantagens de um fantasma inglês é que nunca ele vai nos chegar bêbedo em casa cantando um sucesso do sertanejo universitário

Ab initio

Investigue-se com cuidado qualquer um desses fantasmas que vivem aporrinhando as pessoas e se encontrará, na origem, um chato.

Empréstimo

Morra de fome, se for preciso, mas jamais tenha um chato como credor.

Memorioso

Leitor chato é o que,  trinta anos depois da publicação do primeiro e malfadado livro do escritor, lhe pergunta, sempre que o encontra, quando vai sair o próximo.

Esmero

Escritor chato foi aquele, autor de um livro de seiscentas páginas sem um bendito parágrafo, e em corpo 6 (conhecido nos meios tipográficos como titica de mosca).

Droga

Tolo perde a vida porque não perde o vício.

Discrição

Chato modesto é quem recusa o elogio quando o chamam de chatíssimo.

Eufemismo

Pessoas educadas chamam filho da puta de bastardo. Os chatos também, mas fazem questão de explicar do que se trata.

Truque

Chato previsível é aquele que sempre começa seus caudalosos discursos avisando que vai dizer só umas poucas e singelas palavras.

Lembrança

O chato amigo nunca se esquece de nós quando precisa de um fiador.

Gentileza

Um chato gentil sempre pergunta como vai a saúde do nosso tio Ladislau, mesmo que ele se chame Nicolau e tenha morrido dez anos atrás.

Exemplo

O chato honesto assoa o nariz no nosso lenço e faz questão de devolvê-lo na hora.

It

Parece que um dia tive um quê
embora nunca tenha chegado a saber
o que era - se é que era - esse quê.

Nadas

Eu nunca tive nada a dizer, nem ontem nem hoje. Não haveria problema nenhum nisso, se eu não tentasse exprimir o nada de ontem e o nada de hoje em poesia.

Detalhe

Se Deus houvesse contado com a colaboração de um chato, talvez tudo tivesse sido criado como foi, mas certamente em muito mais dias.

Incitação

Toda vez que eu ficava aquém de preenchê-la sexualmente, a condessa me xingava de polaco frouxo e, se tivesse uma corneta, acredito que tentaria despertar com ela meu vigor bélico.

Tom

Fala com tanta ênfase de si mesmo que, quando se diz canalha, depravado ou coisa pior, a impressão que dá é a de estar se vangloriando.

Cotação

Sente-se torpe, velhaco, mesquinho. Consola-se, às vezes, com uma pitada de cinismo: pensa que poderia ser bem pior.

Múmia

Quando se deu conta, estava tão velho que nem viver nem morrer faziam mais qualquer diferença.

Veracidade

Se um poeta concretista diz que subiu com sacrifício a escada da fama, deve-se acreditar na existência de cada um dos degraus - sejam eles quatro ou quatro mil quatrocentos e quarenta e quatro.

Síntese

Quando o editor resolveu publicar a obra de um famoso poeta satírico, até então dispersa em jornais e revistas, descobriu que ela inteira não pesava mais que trezentos epigramas.

Progresso

Os românticos e os parnasianos tratavam o sol como mero item poético. Os concretistas foram os primeiros a fazer poemas movidos por energia solar.

Ontem/hoje

Quando jovem, eu podia achar-me poeta. Hoje, fazer isso seria cometer a indelicadeza de chamar um velhote de impostor.

O mártir

Diz ter dedicado a vida à poesia, como se fosse um herói e seu peito murcho de velho merecesse estar inflado de medalhas e condecorações. Seu rosto aflito é o de um mártir que receasse nunca chegar a ver seu martírio reconhecido.

Campanha

Na contramão do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que andou exterminando os hifens que encontrava, setores ligados ao parnasianismo reativam a campanha pela hifenização da preciosa expressão chave de ouro.

Peso

Cada dia o velho poeta anda mais curvado. É como se estivesse procurando chaves de ouro no chão. Dizem que finalmente começa a sentir o peso dos sonetos que vem carregando desde a juventude.

Épocas

Penso que minha relação com a poesia foi melhor há sessenta anos. Nessa época, assim como hoje, eu não dispunha de talento, mas tinha muito mais tempo.

Opinião

Aqueles que odeiam a gramática costumam dizer que a literatura não se faz com ela, mas apesar dela.

Precaução

Um desses puristas gramaticais que não se cansam de estar de plantão sugere que palavras como cogitabundo, meditabundo e pudibundo não se usem nunca no feminino.

Conversão

Ao decidir engajar-se na literatura social, o primeiro ato do poeta parnasiano foi pegar o cisne dos seus sonetos, importado da França, e levá-lo a uma família pobre, para o almoço de domingo.

Contratempo

Quando a garota disse chamar-se Wanderleya (e orgulhosamente explicou que se escrevia com "w" e com "y"), o poeta soube que, se quisesse conquistá-la com alguma artimanha poética, não seria certamente com um acróstico.

Datação

O velho poeta ofendeu-se hoje. Quando disse que faz sonetos, perguntaram-lhe se os escreve em papiros.

O suficiente

Alguns, que se dizem poetas no cartão de visita, se dispensam de dar qualquer outra prova.

Hoje na revista Rubem

Conto a história de duas mulheres enfeitiçadas pelo amor.

https://rubem.wordpress.com/2020/07/12/duas-mulheres-enfeiticadas-pelo-amor-raul-drewnick/

O lado bom

Reconheça-se: ninguém será capaz de num poema concretista apontar o defeito da verborragia.

Casal

Tu és egoísta, daninha,
Eu sou perverso, velhaco.
A tua alma é igual à minha,
Farinha do mesmo saco.

Teoria

Um poema
é a questão
não a resolução.
Um poema
não é a solução
é o problema.

Concisão

O poeta concretista entrou, ajeitou o microfone, abriu o livro e anunciou: "Vou ler para vocês meu poema intitulado Pedra." Reuniu fôlego, então, assumiu um ar cerimonioso e disse: "Pedra." Imaginando que ele tivesse repetido o título, os espectadores ficaram esperando o poema. Passaram-se dez segundos, quinze, vinte. Quando o silêncio chegou a trinta segundos, alguém finalmente compreendeu que era um poema de uma só palavra, igual à do título, e aplaudiu, sendo imediatamente seguido pelo restante da plateia. O poeta fechou o livro. Não disse nada, mas a todos pareceu que agradecia.

História

Quando foi promulgada
a poesia social
os novos poetas
em passeata triunfal
foram à rua
gritando abaixo o sol
despenquem as estrelas
desmorone a lua.

Surpresa

Então a mulher escandalosamente mais jovem que ele pegou-lhe a mão e, com uma voz aveludada que até então não tinha usado na conversa, perguntou-lhe como estava sua vida sexual. Atônito, sem conseguir lembrar exatamente o que era vida sexual, para ganhar tempo respondeu com outra pergunta: "Em que contexto?"

Ou ele ou ele mesmo

É um poeta monotemático. Quando não está exaltando o amor, está falando mal dele.

A razão

Começou a desgostar e Priscylla Mariuszka Moskevitch quando notou que ela recebia melhor seus bombons e flores do que seus sonetos apaixonados.

A mesma tecla

Não importa que o poeta tenha um único tema, desde que esse tema seja o amor.

Questão de segurança

Aos oitenta e um anos, se alguém que nunca foi poeta diz que vai ser um, convém que se providencie sua internação, antes que a ameaça comece a ser concretizada.

Ideal

Ocorreu-me hoje uma metáfora talvez adequada ao que é ou deveria ser, em essência, um haicai: uma pétala levada no bico de um passarinho ou (se isto trouxesse ainda mais leveza) soprada por uma dessas brisas que não têm força senão para soprar uma pétala.

Jeito

Ninguém mais ri quando digo que sou poeta. Agora só digo isso em voz baixa.

Precocidade

Quando se decidiu pelo concretismo, ele era já um homem maduro, mas já aos cinco anos se podia adivinhar sua vocação. Diante do seu primeiro arco-íris, sua opinião não se exprimiu em palavras, mas com um longuíssimo bocejo.

Diagnóstico

Eu confiei na medicina.
Médicos me examinaram
E em mim só traças acharam,
Apesar da naftalina.

Confissão

Não temam, eu serei breve.
Sou um tipo ultrapassado,
Sou uma voz do passado,
Sou um defunto que escreve.

Primeiro passo

O que primeiro os modernistas precisam fazer, antes de atearem fogo ao salão da literatura decadente, é convencer os mortos, empenhados em dançar sua interminável valsa, de que defuntos não devem dançar, por mais irresistível que seja a música de Strauss.

Soneto da (im)perfeição

Um soneto não deve ser bem-feito.
Que possa, aquele que quiser fazê-lo,
Fazê-lo com tal brilho, com tal zelo,
Que ele seja, no mínimo, perfeito.

Que seja feito de tal forma e jeito
Que, se tentar alguém escarnecê-lo,
Só consiga, ao querer desmerecê-lo,
Dizer que peca por não ter defeito.

Que sejam sólidos os seus quartetos,
Que firmes saibam ser os seus tercetos
E majestoso e belo o seu final.

Que nele haja rigor, primor e classe,
Como se nele o poeta retratasse
A mulher mais formosa e o amor ideal.

Reflexão

Ainda hoje, apesar de tudo, muitos dariam a vida à literatura, morreriam por ela. Mais, talvez, do que pudéssemos imaginar. São jovens, quase todos. Eu fui um desses, no meu tempo, e ainda agora me uniria a eles, se essa inclinação para o heroísmo, por si só, me fizesse tornar-me um escritor que merecesse ser assim chamado.

Dies irae

Aos modernismos convém ser moleques. Devem chegar no meio da festa para a qual não foram convidados, encher de tapas quem estiver à sua frente, invadir o salão saudando os putos e as putas presentes e, sacando a pistola da braguilha, regar tudo e todos com a santa ira dos ressentidos.

Versões

Mais frio que um poema concreto só um poema concreto gelado.

Norma da casa

Que padeça reprimendas
Não aquele que provar
Mas aquele que ignorar
O sal das partes pudendas.

Aplausos póstumos

Tão bem vestido estava o morto no velório que um dos amigos lançou uma exclamação pela qual imediatamente se desculpou com os parentes: "Dá gosto ver um defunto assim."

Desperdício

Se nascemos para morrer,
Por que todo o nosso tempo
Nós o gastamos em viver?

Pródigo

Era um poeta luxento.
Tinha sempre pelo menos duas musas
Na folha de pagamento.

Paradoxo

Se já foram embora
Tantos que estavam vivos,
Quem disse que morrer
É um verbo intransitivo?

Incompatibilidade

Pior solidão não há
Nem maior castigo
Do que eu me descuidar
E ficar a sós comigo.

Soneto das mãos prestimosas

Com a mão no púbis, a outra ela, gemendo,
Põe sobre a própria boca e a vai beijando
E entre um beijo e outro beijo vai dizendo
Amor, enquanto o púbis vai tocando.

Com o corpo inteiro já se contorcendo,
Seus movimentos vão se acelerando,
Os beijos já os dedos vão mordendo
E o gozo delicioso está chegando.

Com medo de perdê-lo, ela se agita
E agora amor não diz, amor já grita,
Com o grito rouco e louco do prazer.

Depois, apaziguada e agradecida,
Premia cada mão com uma lambida
Antes de se virar e adormecer.

Castas

Cada qual com sua barriga.
Na do poeta nobre um rei,
Na do poeta pobre uma lombriga..

Coerência

No brasão do poeta concretista: "Sempre tive os pés no chão."

Bis

Os chatos caudalosos são os que, depois de nos aporrinharem dizendo os nomes dos afluentes do Amazonas, nos perguntam se esqueceram de algum e, sem esperar a resposta, começam a repetir todos.

Memória canina e canora

Teve uma infância boa, ou pelo menos afirmava isso, até o dia em que, numa reunião com amigos, todos lhe contaram casos tão tristes do tempo em que eram meninos que ele, para não parecer ali o único afortunado, disse que seu maior trauma infantil havia sido a trágica morte do seu cachorro Frank. Era uma mentira, porque ele jamais tivera cachorro, mas os amigos lastimaram educadamente sua perda e um deles perguntou como o cachorro tinha morrido. "Atropelado", ele respondeu, e, como os amigos não acharam isso nada anormal para um cachorro, reforçou: "Foi um caminhão enorme, todo carregado de Coca-Cola, aquelas de dois litros" Porque também esse detalhe não impressionou, ele tentou a última cartada. "Falei que o nome do cachorro era Frank Sinatra?" Quando responderam que ele tinha dito só Frank, ele completou: "Era Frank Sinatra. E morreu cantando All the way."

Clair de lune

De um dos apartamentos começaram a vir os versos límpidos, soltos como plumas ou bolhas de sabão. Ele foi à sacada e olhou ao redor. Só havia uma luz acesa no edifício e ele deixou o olhar ali, dois andares abaixo, grato por estar vivo apesar de tudo e por ter havido Débussy.

A fúria do criador

O poeta anda ranzinza. Cisma com tudo e com todos. Se um verso lhe sai mal, a culpa é do gato; se um verso não lhe sai bem, a culpa é do cachorro. Hoje cedo, queixou-se do frio: cadê esse sol, que não chega nunca? Quando saiu para a caminhada matinal, logo no quarto ou quinto passo ergueu o punho rancorosamente: para de me seguir, velho. (O velho era o sol, que tinha resolvido aparecer.)

A pergunta

O que se pode esperar de um homem muito velho, mas tolo ainda o bastante para continuar tentando ser um escritor para cumprir uma promessa feita a um menino décadas atrás? Honestidade? Tanto tempo para alcançar uma virtude tão corriqueira?

O velhote estudioso

Era já sessentão quando rompeu com os amigos e trancou-se em casa para  aprofundar-se numa matéria que ninguém sabia qual pudesse ser. Imaginou-se que ele iria participar de algum concurso, apesar da idade. Outras hipóteses surgiram e, como nenhuma fosse plausível, optou-se por definir esse empenho como uma maluquice de velho e logo se esqueceram dele por alguns meses. Quando voltou a ser visto, parecia ter oitenta anos. A versão de que estaria se preparando para um concurso foi retomada então, mas com uma conotação jocosa: por sua palidez doentia, ele teria tudo para ser aprovado num vestibular para defunto.

Uns e outros

Crimes e sonetos tanto se fazem quanto se cometem. Têm um objetivo comum: buscam a perfeição, que num caso garantirá ao autor o desejado anonimato e, no outro, alguns tapinhas nos ombros - meia dúzia ou uma inteira, de acordo com o menor ou o maior tamanho da confraria.