Assim ocorreu.
Sem nem saber muito bem
Se certo era o que eu
Fazia, atei-me, embalei-me
E dei-me todo à poesia.
Assim ocorreu.
Sem nem saber muito bem
Se certo era o que eu
Fazia, atei-me, embalei-me
E dei-me todo à poesia.
Os livros de autoajuda finalmente o convenceram de que é um escritor. Agora falta convencer os leitores.
Tantos comerciais exaltando tantos sabonetes, e nenhum dizendo com qual deles é possível fazer as melhores bolhas.
Que nos preparemos.
Embora se vai nossa hora
E logo estaremos
Bem lá, onde tomba o forte
E a morte nos diz olá.
O velho poeta ama as aliterações. Embora os críticos as condenem, definindo-as como recurso pobre e ultrapassado, ele cede sempre à tentação e as acolhe com a mesma juvenil expectativa com a qual, num tempo muito longínquo, recebeu a primeira, uma longilínea e sensual loira que se tornou personagem do seu primeiro poema de sucesso.
Uma das mais recentes e brilhantes contribuições para enfear a língua portuguesa foi o horrendo atacarejo.
Como sobreviverei?
Quem saciará minha fome?
Aos céus clamei, reclamei,
Deus esqueceu o meu nome.
Quando era menino, chamava Deus de você, e Deus não atendia. Agora chama de vós. Está esperando.
Hebreu casa com hebreia,
sandeu casa com sandia,
ateu casa com ateia,
jacó não casa com lia.
a morte que lhe veio
era loira
como ele sempre imaginou
ela o examinou
o apalpou e o descartou
você é feio.
O poeta romântico
e o poeta concreto
não foram autodidatas.
O romântico cursou humanas,
O concreto cursou exatas.
Sabendo agora como é exigente a poesia, como nos suga até a última gota de sangue, hoje eu já não começaria a dedicar-me a ela aos dezoito anos; começaria aos dezesseis.
Imaginem com que prodígios mais Shakespeare poderia nos brindar se em sua época houvesse um desses modernos cursos de escrita criativa e fundamentos de redação.
Em favor dos haicais, de sua modéstia e simplicidade, do seu horror à retumbância, diga-se que em nenhum deles se encontra sequer um ponto de exclamação.
Viver não é passear por um jardim
Nem é colher laranjas num pomar,
Viver não é cantar nem assobiar,
Viver jamais foi nem será assim.
Viver não é gozar. Viver é, sim,
Lutar, e lutar mais, perseverar,
E perder, perder mais, agonizar,
É sofrer desde o início até o fim.
O homem entrou na sala de velório e, sem cumprimentar nem falar com ninguém, andou direto até o defunto. Olhou-o por alguns instantes. Em seguida, balançou a cabeça e, como se prestasse contas, anunciou o que todos ali sabiam: "Não é meu tio Zezinho."
Esses que se declaram escritores, tantos por aí, talvez saibam nos dizer o que era, afinal, que Shakespeare fazia.
Se as vozes que te chamam se calassem,
Se menos fúteis fossem teus ouvidos
Ou fossem de tal forma prevenidos
Que aos clamores do mundo não ligassem.
Se os sons do baile não te procurassem,
Se pudessem passar despercebidos
Os brados das baladas, e os gemidos
Dos boleros langor não te causassem,
Poderias um desses jovens ser
Que podem como exemplos se apontar
De sobriedade e de moderação.
Mas quem o halo de santo há de querer,
Se o mundo não se cansa de o chamar
Para o prazer supremo e a consumpção?
Pois dias virão
Nos quais não teremos mais
Nenhuma ilusão,
Fruamos o que hoje temos,
Gozemos quanto possamos.
Nada tenho a ver com os anúncios de cassinos e de outras bandalheiras que vêm sendo postados aqui no blog. Que isso fique bem claro.
Houve tempo em que as rimas foram, para a poesia, o que o destino era para o romance: impositivas, arbitrárias, fatais.
Ao renegar o lirismo para se tornar um poeta social, sua primeira providência foi encomendar uma centena de elegantes cartões de visita.
Sei que, se hoje não for, nunca será.
Sou um fruto já quase apodrecido
Que há muito deveria ser colhido.
Quem agora, me diz, me colherá?
Para os leitores de poesia, principalmente os não muito habituais, a imagem ideal de poeta é ainda a de um homem jovem de cabelos longuíssimos e cacheados. Se virem pela primeira vez uma foto de Drummond, dirão que se trata de um impostor.
Se a Poesia fosse uma mulher, eu certamente já lhe teria aplicado alguns daqueles adjetivos comuns em letras de boleros: pérfida, perversa, pecadora. Mas também, certamente, por justiça, não deixaria de louvar seus magníficos olhos verdes que nunca beijarei.
Se buscas um homem sério,
Um cidadão caridoso
E um político virtuoso,
Procura-o no cemitério.
Talvez possamos ainda desfrutar
Momentos como aqueles que fruíamos
No tempo em que nós ainda não sabíamos
Que aquilo estava prestes a mudar.
Cantávamos, amávamos cantar,
E sorríamos, ríamos, vivíamos
Sem nem imaginar que poderíamos
Ver isso tudo um dia se acabar.
Mas acabou-se e, quando se acabou,
Culpamos Deus, que não nos alertou.
Que nós, se conseguirmos Seu perdão,
Possamos novamente merecer
Momentos como aqueles, e viver
Cada um com sobriedade e gratidão.
(Soneto do amor desmesurado)
Quando a menina, depois de uma hora de leitura, cochilou e deixou o livro de Wislawa escorregar para o colo, o gato enfiou as garras ciumentas na capa, rasgando-a de alto a baixo.
Ao abrir a janela hoje, o poeta foi recebido por uma explosão festiva de aromas, sons e cores que, por força do seu ofício, ele chamou de manhã de antologia.
Fui nobre, tive brasão,
E a rainha foi minha amante.
Para hoje comprar meu pão,
Alugo meu leão rampante.
Fernando foi mais de cem,
E Mário foi três centenas.
Eu sempre fui eu, apenas,
Sou nulo, nada, ninguém.
Não nego a aflição,
Horrores e dissabores,
E a dor também não
Disfarço. Gemo os gemidos
Dos idos mortais de março.
Mistério nenhum
O dia nos propicia.
A vida é só um
Momento falho, gorado,
Fadado ao esquecimento.
No início, os homens, para manter com exclusividade o título de poetas, chamaram as mulheres de musas. Depois, de poetisas. Quando os dois artifícios se mostraram inúteis, passaram a dizer que a poesia era uma arte menor.
Ao contrário das quadrinhas, geralmente obras de amadores ou principiantes, os sonetos costumam ser friamente premeditados. Alguns chegam a ser crimes perfeitos.
Como um navio que, perdendo a rota,
Por um feroz oceano se transviasse
E sobre as pedras se despedaçasse,
Também eu amarguei minha derrota.
Eu, que tão bem, no início, naveguei,
Depois, no fim já, quase, da jornada
Perdi meu rumo e, em trajetória errada,
Inapelavelmente naufraguei.
Quando senti chocando-se meu casco
E abrindo-se penhasco após penhasco,
Eu gritei: capitão, meu capitão!
Ele e os marujos dele se empenharam
E lutaram, mas todos se afogaram
Em mim, do meu convés ao meu porão.
Se a resignação tivesse em mim um bom representante, talvez eu pudesse ver mister Parkinson com outros olhos, como uma espécie de companhia para os últimos anos de vida.
O que hoje tenho a lhes oferecer
Não é nenhuma peça de beleza,
Obra nenhuma de arte, e com certeza
Nada que me honre ou possa envaidecer.
De tudo aquilo que eu queria ser,
Dos ideais e dos sonhos de grandeza
Que mantiveram a minha alma acesa,
O que hoje sobra é o que hoje posso ter.
Não sou o grande artista que eu queria,
Faltam-me brilho, técnica, estesia,
E tudo mais que sempre me faltou.
E faltam-me também - calamidade! -
A fé que eu tinha, e a minha dignidade,
Desde que mister Parkinson chegou,
Morreram muitos. Restou
Somente um que, agonizante,
Disse: esperem um instante,
Que eu já morro e também vou.
Mister Parkinson me perguntou hoje por que ando tão triste. Respondi que me afligia por estar uma semana sem conseguir escrever. Ele sorriu e me fez outra pergunta: "Alguém se queixou?"