domingo, 17 de fevereiro de 2013
Trecho final de uma mensagem
"Se eu dissesse a uma estátua tudo que disse a você, se eu confessasse a ela não trezentas e oitenta e oito vezes, como confessei a você, mas talvez uma só, como a considero bela, aquela figura de pedra, se não me respondesse falando, decerto piscaria ou sorriria para mim. Quem diz trezentas e oitenta e oito vezes a mesma verdade, e não a vê aceita, começa também a duvidar dela. No entanto, como são facilmente deturpadas até coisas que não se disseram nunca. Presumir o lado ruim de tudo não exige esforço. Mas acreditar no que se jura ser verdade, mesmo que se jure isso trezentas e oitenta e oito vezes, é difícil. Trezentas e oitenta e oito? Só num triste e célebre domingo, devo ter dito isso bem mais vezes. E nada queria em troca, só a gentileza de ver reconhecida a minha sinceridade. Quem não quer nada jamais poderá ser levado a sério. Bem, estatísticas nada valem quando tudo desmoronou irremediavelmente. É triste, para qualquer um de nós, sentir que, no nosso mais honesto momento de vida, nos tomaram como alguém disposto a ludibriar, a iludir e a enganar. Dói muito isso tudo, e dói mais quando nos comportamos no século XXI como se estivéssemos no XIX. Como é bonito o jogo quando os dois jogadores sabem jogá-lo. Quando um deles é um pateta, ignorá-lo é quase uma obrigação. E mostrar-lhe como ele é pateta, se ele ainda tiver uma esperança mínima de compreender alguma coisa, é uma lição que ele deveria agradecer. Mas há patetas ressentidos. Este é o pior tipo deles. Com esses, o mais prudente é passar ao largo, bem ao largo."
Boa noite
Que segurança me dá não poder mais ouvir tua voz. Só de imaginar-te dizendo-me boa noite agora, eu sinto todo o peso de minha covardia e tenho o ímpeto de fechar os ouvidos, afastar-me do micro e atar-me a qualquer coisa - à minha força de vontade, se eu a tivesse -, para não cair outra vez na tentação de me atirar em teus braços e pedir-te: leva-me para onde quiseres, leva-me agora, leva-me. Jamais acreditaste - porque era eu quem dizia -, mas tua voz, com sua doçura, pode matar e pode ressuscitar. Já me mataste, já me ressuscitaste, não lembras? Ainda que eu me amarre com a mais resistente das cordas, imploro-te que, pelo menos mais uma vez, me mates. Se não foi para isso, para que me ressuscitaste?
Velhinhos alegres
Quando olho para vocês
e vejo o sol
luzir em suas dentaduras
eu me pergunto
o que vocês
veem no mundo
velhas criaturas
Estão reservadas
há muito tempo já
suas sepulturas
mas vocês riem
ridículas criaturas
como se a morte
fosse uma impostura
Como crianças
vocês escarnecem
vocês zombam dela
vocês desmerecem
aquela que hoje é
minha única esperança
e minha aposta mais segura.
e vejo o sol
luzir em suas dentaduras
eu me pergunto
o que vocês
veem no mundo
velhas criaturas
Estão reservadas
há muito tempo já
suas sepulturas
mas vocês riem
ridículas criaturas
como se a morte
fosse uma impostura
Como crianças
vocês escarnecem
vocês zombam dela
vocês desmerecem
aquela que hoje é
minha única esperança
e minha aposta mais segura.
sábado, 16 de fevereiro de 2013
No jornal (Major Quedinho) - 19 - Nosso Shakespeare
Durante um bom período, na década de 1960, trabalhei no turno da tarde e fiz dupla com um revisor, Carlos Alberto, cujo sobrenome não lembro (possivelmente Barbosa) mas que bem poderia ser Shakespeare. Pensando bem, ele talvez não aceitasse. Considerava-se superior ao autor de Romeu e Julieta, assim como tinha desdém a Ibsen, Beckett, Molière, Ionesco. Foi o que ele disse uma tarde ao dr. Décio de Almeida Prado, que estava revisando provas do Suplemento Literário. O dr. Décio tinha como um dos seus mais notáveis conhecimentos (que não eram poucos) o teatro. Educadíssimo, ele ouviu a lista de grandes dramaturgos que não eram nada diante daquele modesto revisor. O surreal diálogo se encerrou com a promessa do doutor de ler um dia algum texto do autor, que se despediu com uma frase que revelava sua confiança: "Doutor, o senhor vai ver que coisas eu tenho." Ele tinha pelo menos uma centena de peças. Entre uma revisão de prova e outra, punha febrilmente a caneta a correr pelo papel (laudas do jornal). Seus enredos já antecipavam a globalização. Havia na trama sempre uma mixórdia de personagens: Mister Smith, Monsieur Pierre, Joãozinho, Nicanor, Ivo Fiedorenko, e por aí afora ou adentro. Ele ia me pondo a par do desenvolvimento das histórias, dia a dia. Desatava a gargalhar ou ficava repentinamente triste e me contava que Zé Caveira tinha atirado um tomate na cara de Madame Nanutchka, ou Alfonsina Gutierrez havia morrido com um disparo acidental de Ling-Yan-peng. De uma das peças eu me lembro bem. Era a história de um tigre que, ferido poor um caçador, fazia o soleníssimo juramento de vingar-se. O caçador, temeroso por conhecer a força de vontade e o notável caráter dos tigres, atravessava oceanos, embrenhava-se em montanhas, disfarçava-se de mercador de camelos - e o tigre, perseverante, o seguia. Na cena final, o caçador, no seu último refúgio, uma cabana no mais remoto ponto do planeta, ouve o tigre se aproximando. Ambos sabem que será a batalha decisiva, de vida ou morte, mas falta-lhes o ódio que deveriam estar sentindo. Tanto tempo durou a perseguição que se afeiçoaram um ao outro. Terá o tigre, entre suas virtudes, a capacidade de perdoar?
No jornal (Major Quedinho) - 18 - Amantes do copo
De 1960, quando entrei no jornal, até 1968, quando me tornei abstêmio, minhas vírgulas e crases foram todas movidas a álcool. Era uma característica de significativa parte dos revisores. O português Antônio Ventura e Mário de Melo eram, além de grandes conhecedores da gramática, bons copos. Ventura, certa ocasião, decidiu parar com aquilo. Ele trabalhava durante o dia numa editora e manteve-se sem uma gota de álcool até a noite. Já a caminho do jornal, passou pelo Mutamba, famoso bar na Major Quedinho, e, quase entrando no prédio do Estadão, parou e fez um autoelogio: "Ventura, tu és um machão, um homem de palavra. Mereces uma pinga." E foi para o bar. Mário de Melo, o Melinho, que também gostava de emborcar copos, uma noite foi traído (ou ajudado?) pelo cérebro e por um enrolamento de língua. Falava-se de sinceridade, de gente que mentia a propósito de tudo e a propósito de nada. Ele imediatamente declarou a que lado pertencia: "Eu sou sincero. Minha vida é um litro aberto."
A gostosa topada
O amor é aquela cilada na qual nós todos caímos ao menos uma vez na vida, aquela burrada pela qual nos lamentamos mas estamos sempre ansiosos para repetir.
De Marcel Proust, sobre o amor
"Marcel descreve o amor como um atributo do sujeito (a libido separada de um objeto preciso). Ele acredita que o amor é pura ansiedade e que, tornando-se intolerável, transforma-se em amor por alguém que o acaso coloca ao alcance do sujeito."
(Do artigo "Páginas de memória - e do inconsciente", de Eliana Cardoso, publicado no "Sabático" do Estadão, em 16 de fevereiro de 2013.)
(Do artigo "Páginas de memória - e do inconsciente", de Eliana Cardoso, publicado no "Sabático" do Estadão, em 16 de fevereiro de 2013.)
No jornal (Major Quedinho) - 17 - Suplemento Agrícola
Uma página do Suplemento Agrícola, lá pela década de 1970, ficou famosa - com total justiça. Era uma reportagem sobre um porco campeão de várias exposições. Na foto, enorme, apareciam o porco célebre e o proprietário, com a legenda: "À esquerda, o Fazendeiro Tal, à direita o Porco Tal." A clareza levada ao extremo.
No jornal (Major Quedinho) - 16 - Edição de Esportes
A Edição de Esportes preencheu um vazio causado pela circunstância de que por muitos anos o jornal não foi publicado às segundas-feiras. Na terça, os jogos e as competições do domingo já eram notícias frias. Da Edição de Esportes, lançada para ser vendida em banca, objetivo que cumpriu com muito sucesso por vários anos, e das experiências proporcionadas por ela na diagramação, nos textos, nas fotos e em tantas outras áreas, surgiria o suporte para a criação do Jornal da Tarde. Na dúvida entre dizer que a Edição de Esportes era o xodó ou a menina dos olhos de Luiz Carlos Mesquita, uso as duas expressões, embora sejam descarados lugares-comuns. Melhor dizendo, era a paixão dele. Mas cabe fazer uma correção, aqui: Luiz Carlos Mesquita não era Luiz Carlos Mesquita. Era, para todos, o Carlão. Em todo meu tempo de jornal, ele foi certamente o Mesquita mais querido. Imagino a decepção dele no domingo em que a Edição de Esportes noticiou a morte de Gualicho, o mais famoso cavalo de corrida do Brasil. Salvo engano meu, era um texto enorme, de página inteira. Na parte principal se falava das suas vitórias em Grandes Prêmios. E havia textos auxiliares. Num deles se dizia que, como reprodutor, ele não tinha sido bem-sucedido. Resumindo, seus filhos eram maus filhos, nenhum deles havia chegado a ser campeão. O texto era assinado pelo redator especializado em turfe, Antero de Castro. Saiu assim o título, com a troca de uma vogal:
MORRE GUALICHO, PAI DE MEUS FILHOS
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Antero de Castro
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Curioso que naquele domingo - porque vinham saindo manchetes com incorreção, tinha sido escalado um revisor especialmente para fazer sua leitura. A partir desse dia, esse revisor passou, naturalmente, a ser chamado de Gualicho.
MORRE GUALICHO, PAI DE MEUS FILHOS
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Antero de Castro
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Curioso que naquele domingo - porque vinham saindo manchetes com incorreção, tinha sido escalado um revisor especialmente para fazer sua leitura. A partir desse dia, esse revisor passou, naturalmente, a ser chamado de Gualicho.
Bom dia
Um bom dia, para os que ainda acreditam em quimeras. Quimeras, no caso, é um eufemismo. Vamos dar-lhe o nome certo: baboseiras.
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