sábado, 16 de fevereiro de 2013

No jornal (Major Quedinho) - 19 - Nosso Shakespeare

Durante um bom período, na década de 1960, trabalhei no turno da tarde e fiz dupla com um revisor, Carlos Alberto, cujo sobrenome não lembro (possivelmente Barbosa) mas que bem poderia ser Shakespeare. Pensando bem, ele talvez não aceitasse. Considerava-se superior ao autor de Romeu e Julieta, assim como tinha desdém a Ibsen, Beckett, Molière, Ionesco. Foi o que ele disse uma tarde ao dr. Décio de Almeida Prado, que estava revisando provas do Suplemento Literário. O dr. Décio tinha como um dos seus mais notáveis conhecimentos (que não eram poucos) o teatro. Educadíssimo, ele ouviu a lista de grandes dramaturgos que não eram nada diante daquele modesto revisor. O surreal diálogo se encerrou com a promessa do doutor de ler um dia algum texto do autor, que se despediu com uma frase que revelava sua confiança: "Doutor, o senhor vai ver que coisas eu tenho." Ele tinha pelo menos uma centena de peças. Entre uma revisão de prova e outra, punha febrilmente a caneta a correr pelo papel (laudas do jornal). Seus enredos já antecipavam a globalização. Havia na trama sempre uma mixórdia de personagens: Mister Smith, Monsieur Pierre, Joãozinho, Nicanor, Ivo Fiedorenko, e por aí afora ou adentro. Ele ia me pondo a par do desenvolvimento das histórias, dia a dia. Desatava a gargalhar ou ficava repentinamente triste e me contava que Zé Caveira tinha atirado um tomate na cara de Madame Nanutchka, ou Alfonsina Gutierrez havia morrido com um disparo acidental de Ling-Yan-peng. De uma das peças eu me lembro bem. Era a história de um tigre que, ferido poor um caçador, fazia o soleníssimo juramento de vingar-se. O caçador, temeroso por conhecer a força de vontade e o notável caráter dos tigres, atravessava oceanos, embrenhava-se em montanhas, disfarçava-se de mercador de camelos - e o tigre, perseverante, o seguia. Na cena final, o caçador, no seu último refúgio, uma cabana no mais remoto ponto do planeta, ouve o tigre se aproximando. Ambos sabem que será a batalha decisiva, de vida ou morte, mas falta-lhes o ódio que deveriam estar sentindo. Tanto tempo durou a perseguição que se afeiçoaram um ao outro. Terá o tigre, entre suas virtudes, a capacidade de perdoar?

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