"... quanto de mim e dos meus negócios Isadora sabia? E como tinha sabido? Do mesmo jeito que eu sabia dos negócios dela, espionando, pensei. A vida inteira, tinha me preparado para esse momento, ninguém vem de tão longe para perder, não gosto de perder. Como a melhor defesa é o ataque - isso eu aprendi no futebol -, eu disse que ela tinha torrado a grana e malbaratado o nome da família. 'Isso também tem um nome', disse eu. Ela fez um gesto de impaciência com a mão: 'E desde quando esse assunto te diz respeito?' Não respondi, apenas perguntei se o assunto incomodava ela. 'De modo algum', disse ela, 'isso parece incomodar você.' E riu - tem um tipo de riso que me deixa desconfortável, não gosto, isso também me faz piscar. Perguntei o motivo do riso. 'Me lembrei de uma imagem', disse. 'Imagem?', perguntei. 'É, uma imagem.' Quis saber se era imagem de algum filme ou imagem de santo. 'Do velório do seu pai', disse ela. Temi que fosse algum detalhe humilhante de nossa situação à época e pisquei mais forte: 'Velório do meu pai?' 'Fica tranquilo, não é ofensa', disse ela. 'Isso foi há quarenta anos!', me defendi. 'Não entendo o motivo da lembrança.' Ela explicou: 'As laranjeiras em flor, não lembra?' Eu disse que não lembrava, que ela só podia estar de gozação comigo. 'Como é que alguém que teve laranjeiras em flor no quintal pôde ficar assim?', disse ela. 'Ficar assim como?', perguntei. Ela fez um gesto vago na minha direção: 'Assim...' De repente, entendi a relação entre 'ficar assim' e as flores de laranjeira do quintal. Aí, foi minha vez de rir. Ri, ri pra valer. Perguntei como é que alguém que teve a grana que ela teve e o sobrenome que ela ainda tinha podia dar importância a flores de laranjeira. Ela, grave: 'Pois é, você continua o mesmo, sempre precisando de explicação' - a lembrança de meus embaraços com as palavras e com as ideias me deixou ainda mais desconcertado. Mas ela não tinha terminado: 'Fica tranquilo, o que deploro em você não são os tropeços com as palavras, mas a aleivosia.' Essa palavra eu conhecia, me encolhi como uma taturana..."
(Do romance Vila Vermelho, publicado pela Record.)
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