domingo, 31 de agosto de 2014
Poderes
Uma mulher pode não incitar um homem a ir buscar a lua para ela, mas pode fazê-lo beijar a verruga no dedinho do pé esquerdo.
A causa
Comecei a enlouquecer na noite em que provei o sabor do esmalte nos pés de Palméria Martinova Messiodora.
Cotação da noite
A certeza de que, por piores que sejamos, há sempre alguém para quem somos um gato sonso que engolirá o veneno como se fosse um biscoito molhado no leite.
Aquário
Ninguém nos afoga mais carinhosamente que o amor. Estamos já mortos, e ele ainda nos empurra a cabeça mais para dentro e sugere que observemos a beleza dos peixinhos vermelhos.
Horizonte
Dar-se inteiro não bastou. Foi suficiente apenas para o começo. E o amor é sempre longo, como todos os infortúnios.
O chicote
Pelo prazer do castigo, transgredimos as normas que o amor nos impõe. Se ele tenta ser magnânimo e diz não saber onde está seu chicote, nós o achamos, ainda que ele o tenha escondido na última das gavetas, ali onde guarda também o certificado de propriedade do nosso corpo e da nossa alma.
"Com o tempo a sabedoria", de W.B. Yeats
"Embora muitas sejam as folhas, a raiz é só uma;
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilam ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
Ao longo dos enganadores dias da mocidade,
Oscilam ao sol minhas folhas, minhas flores;
Agora posso murchar no coração da verdade."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
Obsessão
Quem fala sempre de um só assunto é enfadonho ou obcecado. A única exceção admitida é o amor.
Escárnio
"Uma rosa para uma flor", ele disse, enquanto ela reunia todo seu sarcasmo para uma gargalhada retumbantemente definitiva e triunfal.
Recíproca
Se o amor soubesse quanto o amamos, leria com mais atenção nossos sonetos e não deixaria morrer os cisnes que colocamos nas chaves de ouro.
Fernanda Lima
Se Fernanda Lima peca em alguma coisa, é pelo exagero: é bela demais, como só alguns sonhos conseguem ser.
Cores
Solitária, esquecida pelo amor, acolheu um gato cinza. Foi há três meses. Chorou tanto sobre o gato que hoje ele é branco.
Soneto dos fantasmas que me atormentam
Enquanto durmo, não sei
Nem quero saber de Dante,
De Tolstói, Cabrera Infante,
De Scott e nem de Hemingway.
Enquanto durmo, eu espaços
Não abro para Flaubert,
Para Pascal ou Voltaire,
E nem para John dos Passos.
Enquanto durmo, eu me isento
Do inenarrável tormento
Que impõe a literatura.
Mas quando acordo vêm Eça,
Machado, Agustina Bessa,
E recomeça a tortura.
Nem quero saber de Dante,
De Tolstói, Cabrera Infante,
De Scott e nem de Hemingway.
Enquanto durmo, eu espaços
Não abro para Flaubert,
Para Pascal ou Voltaire,
E nem para John dos Passos.
Enquanto durmo, eu me isento
Do inenarrável tormento
Que impõe a literatura.
Mas quando acordo vêm Eça,
Machado, Agustina Bessa,
E recomeça a tortura.
Tweeter
Novos amigos, todos os dias. Falar com eles, mesmo sem vê-los. Dar descanso à nossa loucura, farta já de nossas palavras. Espalhar o vírus do amor e da poesia.
A causa
Entre tantas causas, o amor é aquela que mais me fascina. Por ele rio como um tonto e choro como uma donzela.
Sectarismo
Se Pascoala Marinetti Messenger fosse a sacerdotisa de uma seita, eu seria o mais fanático dos seus seguidores e morreria por ela na fogueira.
www.rubem.wordpress.com
A crônica de hoje fala de meninos que conhecem dinossauros mas nunca viram um porco ou uma vaca.
Identidade
Certas manhãs, ainda sob as névoas do sono, Mario Quintana estranhava, ao se olhar no espelho, não ver o seu bico.
Calendário
Em Porto Alegre, a primavera só começava oficialmente depois do gorjeio de um pássaro e de um verso de Mario Quintana.
Caos
No início era só o verbo, e tudo era fácil. Depois a gramática começou a se enroscar em substantivos, adjetivos e advérbios. Era já o prenúncio da crase.
Um trecho de Rosa Montero
"Por que um escritor perde o rumo? O que leva um romancista maravilhoso a se afundar para sempre no silêncio como quem afunda num pântano? Ou, coisa pior, mais inquietante: que motivo leva um bom narrador a começar de repente a escrever obras horrorosas?
Muitos, sem dúvida, são destruídos pelo fracasso. O ofício literário é extremamente paradoxal: é verdade que você escreve em primeiro lugar para si mesmo, para o leitor que tem dentro de si, ou então porque não pode evitar, porque não consegue suportar a vida sem entretê-la com fantasias; mas, ao mesmo tempo, você precisa peremptoriamente ser lido; e não por um único leitor, por mais refinado e inteligente que ele seja, por mais que você confie em seu critério, e sim por um número maior de pessoas, muito maior, na verdade muitíssimo mais gente, uma horda populosa, porque nossa fome de leitores é uma avidez profunda que nunca se sacia, uma exigência sem limites que beira a loucura e que sempre considerei muito curiosa."
(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)
Muitos, sem dúvida, são destruídos pelo fracasso. O ofício literário é extremamente paradoxal: é verdade que você escreve em primeiro lugar para si mesmo, para o leitor que tem dentro de si, ou então porque não pode evitar, porque não consegue suportar a vida sem entretê-la com fantasias; mas, ao mesmo tempo, você precisa peremptoriamente ser lido; e não por um único leitor, por mais refinado e inteligente que ele seja, por mais que você confie em seu critério, e sim por um número maior de pessoas, muito maior, na verdade muitíssimo mais gente, uma horda populosa, porque nossa fome de leitores é uma avidez profunda que nunca se sacia, uma exigência sem limites que beira a loucura e que sempre considerei muito curiosa."
(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)
sábado, 30 de agosto de 2014
Simbiose
Nunca vi o profano parecer tão sagrado quanto na tarde em que Pathyna Maleva Melkidisian vestiu a camisa do Corinthians.
Pelos três
O amor é aquele blá-blá-blá, sempre. E nós somos os mesmos, sempre: aqueles dispostos a morrer pelo blá, pelo blá e pelo blá.
Equívoco
Engana-se quem pensa que o poeta quer exprimir o amor. Ele quer apenas sofrê-lo, sentir o suplício dos seus dois mil quatrocentos e quarenta e cinco espinhos.
Inquisição
Se Prymula Martucci Martelli for levada a um tribunal por feitiçaria, serei a primeira testemunha de acusação. Deixarão um sapo depor?
Cotação do dia (5)
No início desagradou-lhe ser tolo, ter sido escarnecido e zombado. Acostumou-se com isso, assim como ela, que escarneceu dele e dele zombou, está dia a dia mais feliz com o papel que desempenhou na farsa.
Lírica
Ele a beijaria sob uma árvore, e um violino alcoviteiro convocaria um arco-íris a aparecer no parque.
Cotação do dia (4)
Não há finais felizes para o amor. Ou ele está em construção ou já está destruído. O amor está sempre por se fazer, nunca se perfaz.
Cotação do dia (3)
Compro mais um bloco de rascunho. Não o olho com a esperança com que olhei tantos irmãos seus, outrora. Nele não espero escrever o esboço de uma obra-prima. Só o de sempre: alguns pensamentos sem nexo e os relatos de minhas miúdas desventuras.
Cotação do dia (2)
O amor é aquele tirano cruel que nos faz visitar um dia seu palácio e no dia seguinte nos põe para fora, se houver neve lá fora. Se for um dia bonito, talvez nos deixe ficar, como às vezes deixa um cão sarnento ou um gato estropiado. O amor gosta dessas pequenas exceções que confirmam sua fama. Já o viram dando biscoitos esfarelados a pombas, se bem que alguns digam que havia veneno em cada um deles.
Cotação do dia
O amor nos sopra para um canto do parque, como se fôssemos um papel de bala. Se no caminho uma formiga pressente em nós um resto de açúcar, ele nos sopra para mais longe e atira a formiga para dentro da primeira porção de água onde possa se afogar.
Um trecho de "Junky", de William Burroughs
"Minha primeira experiência com junk foi durante a guerra, em 1944 ou 1945. Eu conhecia um sujeito chamado Norton que trabalhava num estaleiro na época. Norton, cujo verdadeiro nome era Morelli, ou algo assim, tinha siso expulso do Exército por forjar um cheque de pagamento e recebera a classificação 4-F: mau-caratismo. Se parecia com o George Raft, só que mais alto. Tentando melhorar seu inglês, Norton arranjara uns modos delicados, afáveis. Essa afabilidade, porém, não ficava natural nele. Quando distraído, sua expressão era sombria e cruel; a gente sabia que, ao virar as costas, a crueldade estaria cintilando de novo naquele olhar."
(Tradução de Reinaldo Moraes, publicação da Má Companhia.)
(Tradução de Reinaldo Moraes, publicação da Má Companhia.)
Testemunho
Irmãos, aleluia. Vou me livrando dos pecados. Antes, batia nos meus pais e era viciado no amor carnal. Hoje, só bato nos meus pais.
Plano emergencial
Se bem que mais adequadas ao mar, lágrimas de amor bem poderiam, num sábado só, encher o Cantareira.
No asilo
A irmã de caridade:
"Seu Tobias, outra vez esse pijama todo babado..."
"Não é baba. São lágrimas de amor."
"Seu Tobias, outra vez esse pijama todo babado..."
"Não é baba. São lágrimas de amor."
Pontos de vista
Às vezes pensa que ela, ao ler seus poemas, entendia sêmen quando ele falava de seiva e o julgava grosseiro. Às vezes pensa o contrário e que ela o presumia frouxo. Os médicos do manicômio também não se decidiram ainda.
Atitudes
Os escritores jovens, nós sabemos, se julgam todos superiores a Shakespeare - e é essa a atitude que lhes convém. Já os veteranos - se não pela idade ao menos por algum presumível juízo -, toda vez que falarem de Shakespeare devem fazê-lo de joelhos, mais reverentes do que se estivessem diante do próprio Deus em seu assento de nuvens.
Ninharia
Amor, perdoa-me: as vinte e quatro horas do dia já não me bastam para te louvar. No final de cada um deles, te devo ainda loas, e quantas.
Sociedade
Meu erro foi presumir
Que o amor, impulso tão nobre,
Eu pudesse dividir
Com o corpo, sócio tão pobre.
Que o amor, impulso tão nobre,
Eu pudesse dividir
Com o corpo, sócio tão pobre.
Prodigalidade
Na juventude, deixamos migalhas de amor em toda parte. Elas nos fizeram falta depois, quando era preciso que nos déssemos por inteiro.
Soneto da paz em que morreremos
Nós morreremos em casa,
Não sob o calor da chama
Que queima sempre quem ama
E deixa-lhe o peito em brasa.
Nós morreremos dormindo
Com muita normalidade,
Tão sem dramaticidade,
Que morreremos sorrindo.
Bem melhor nós morreríamos
No tempo em que nós morríamos
Por um abraço, um sorriso,
E em que, para um só ganhar,
Nos agradaria dar
Nossa vida, se preciso.
Não sob o calor da chama
Que queima sempre quem ama
E deixa-lhe o peito em brasa.
Nós morreremos dormindo
Com muita normalidade,
Tão sem dramaticidade,
Que morreremos sorrindo.
Bem melhor nós morreríamos
No tempo em que nós morríamos
Por um abraço, um sorriso,
E em que, para um só ganhar,
Nos agradaria dar
Nossa vida, se preciso.
"Descargo", de Tadeusz Rozewicz
"Ele chegou até vocês
e disse
vocês não são responsáveis
nem pelo mundo nem pelo fim do mundo
o fardo foi retirado dos seus ombros
vocês são como os pássaros e as crianças
brinquem
e brincam
esquecem
que a poesia moderna
é uma luta pelo respirar."
(Do livro Quatro poetas poloneses, tradução de Henry Siewierski e José Santiago Naud, publicado pelo Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e pelo Ministério da Cultura da República da Polônia.)
e disse
vocês não são responsáveis
nem pelo mundo nem pelo fim do mundo
o fardo foi retirado dos seus ombros
vocês são como os pássaros e as crianças
brinquem
e brincam
esquecem
que a poesia moderna
é uma luta pelo respirar."
(Do livro Quatro poetas poloneses, tradução de Henry Siewierski e José Santiago Naud, publicado pelo Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e pelo Ministério da Cultura da República da Polônia.)
sexta-feira, 29 de agosto de 2014
Ventania
À noite os gritos de amor, amor, amor sacodem as estrelas, mas não são ouvidos pelas mulheres, que estão sempre um pouco acima.
Meia história
"Quem se deita no capim sabe da história o começo, mas desconhece o fim" (frase de Peppino Picarollo.)
Fernanda Lima
Os matemáticos estudam uma forma de multiplicar Fernanda Lima sem que ela deixe de ser única.
"Alvo", de Peppino Picarollo
"Sua bunda é como uma calçada da fama, tantos foram os pontapés que o amor lhe deu."
(Do livro Aforismos, edição da Autores Reunidos.)
(Do livro Aforismos, edição da Autores Reunidos.)
"Herança", de Peppino Picarollo
"Em quem só a miséria herda
Inútil é toda aposta:
Afunda um dia na merda
E no outro afunda na bosta."
(Do livro Lirismos furunculares, edição do autor.)
Inútil é toda aposta:
Afunda um dia na merda
E no outro afunda na bosta."
(Do livro Lirismos furunculares, edição do autor.)
Travessura
Mario Quintana às vezes era visto, disfarçado de moleque, furtando alpiste dos passarinhos.
Inocência
Ela olhava para mim interessada, como uma gazela olha para tudo em seu primeiro passeio pelo bosque. Eu olhava para ela, tentando esconder o tumulto do meu coração de lobo velho e as ordens do cérebro, ritmadas: devora, devora, devora.
Dupla ação
Estive em Birigui, para falar de literatura e também porque precisavam de um antônimo para o Gianecchini.
Absurdo
Eu gostaria de escrever um livro tão maravilhoso que fosse impossível alguém - até mesmo eu - acreditar ter sido feito por mim.
Desculpa
Os que mais mal nos causam são geralmente aqueles que dizem fazer tudo só para o nosso bem.
Um trecho de Mario Levrero
" - O romance é bom - disse o Gordo, e fez uma pausa significativa. - Mas...
Eu podia ter imaginado, pois sei há uns quantos anos que meus romances pertencem a essa categoria: bons, mas... Os críticos se esforçam para classificar minha literatura como pertencente a esta ou àquela categoria, porém os editores são mais realistas, e unânimes; só existe uma categoria possível para minha literatura: boa, mas..."
(Do livro Deixa comigo, tradução de Joca Reiners Terron, publicado pela Rocco.)
Eu podia ter imaginado, pois sei há uns quantos anos que meus romances pertencem a essa categoria: bons, mas... Os críticos se esforçam para classificar minha literatura como pertencente a esta ou àquela categoria, porém os editores são mais realistas, e unânimes; só existe uma categoria possível para minha literatura: boa, mas..."
(Do livro Deixa comigo, tradução de Joca Reiners Terron, publicado pela Rocco.)
Sentinela
Amor é a palavra que mais uso. Quando durmo, suas quatro letras ficam em vigília nos meus lábios, para serem as primeiras que eu pronuncie assim que o sol me despertar.
Mérito
Recordado agora, o amor nos parece ainda mais digno de todas as loucuras que por ele fizemos, e de outras tantas que deveríamos ter feito.
Velhice
Quando penso no amor, acuso-me por não ter enterrado as cartas e os e-mails impressos numa caixa tão bonita quanto aquela em que pus meu primeiro gato morto, o Peter. Minha sensibilidade, como o corpo, vai se atrofiando com o tempo.
Cinza brilhante
Ele gostaria de ser o gato favorito dela, aquele que está sempre no seu colo. Seria viçoso o seu pelo, regado pelas lágrimas de amor que ela verte, embora nenhuma seja vertida para ele.
"Um aviador irlandês prevê a sua morte", de W.B. Yeats
"Eu sei que o meu destino encontrarei
Algures tão alto entre as nuvens;
Não odeio a quem combato,
Não amo a quem defendo;
Eu sou de Kiltartan Cross,
A minha gente são os pobres de Kiltartan,
Nenhum fim havia de arruiná-los
Nem mais felizes os tornaria.
Nenhum dever, lei alguma, me ordenaram que lutasse,
Nenhum estadista, nenhuma clamorosa multidão;
Um solitário impulso, o prazer,
Conduziu-me a este tumulto entre as nuvens:
Tudo pesei, tudo ponderei,
Os futuros anos eram vão alento,
Vão alento os anos passados;
De acordo com esta vida está esta morte."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
Algures tão alto entre as nuvens;
Não odeio a quem combato,
Não amo a quem defendo;
Eu sou de Kiltartan Cross,
A minha gente são os pobres de Kiltartan,
Nenhum fim havia de arruiná-los
Nem mais felizes os tornaria.
Nenhum dever, lei alguma, me ordenaram que lutasse,
Nenhum estadista, nenhuma clamorosa multidão;
Um solitário impulso, o prazer,
Conduziu-me a este tumulto entre as nuvens:
Tudo pesei, tudo ponderei,
Os futuros anos eram vão alento,
Vão alento os anos passados;
De acordo com esta vida está esta morte."
(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
Presente
Ma agradaria que minha morte fosse um gato, ou uma flor, que eu pudesse te oferecer como presente. Gostarias deles, talvez. Mas seria possível, também, achares que eu poderia te dar uma flor mais vistosa e um gato menos raquítico.
Soneto do preço que pagamos por querer demais
Estamos pagando caro
Por desdenhar o singelo
E julgar que só o raro
Podia exprimir o belo.
Sim, não podemos negar,
Nós julgamos que a beleza
Só se pudesse encontrar
Ligada à pompa e à grandeza.
Nós tínhamos uma flor
Perfeita na forma e cor,
Mas não pensamos assim.
Quisemos outras, mais nobres.
E como agora são pobres
As que temos no jardim...
Por desdenhar o singelo
E julgar que só o raro
Podia exprimir o belo.
Sim, não podemos negar,
Nós julgamos que a beleza
Só se pudesse encontrar
Ligada à pompa e à grandeza.
Nós tínhamos uma flor
Perfeita na forma e cor,
Mas não pensamos assim.
Quisemos outras, mais nobres.
E como agora são pobres
As que temos no jardim...
Musa
Paolina Manoela Mellyflora mereceria ter vivido na época de Dante. Pobre Beatriz! Ninguém falaria dela hoje.
Estafa
Sinto-me cansado para começar obras longas. Também venho me confundindo com os conceitos. Não fosse isso, talvez eu pudesse tentar escrever o romance da minha geração. Qual seria a minha geração?
Nhe-nhe-nhem
Às vezes, embora esporadicamente me ache um deles, tenho birra dos escritores, pela mania, que têm, de usar eufemismos. Como aquele de chamarem a morte de última viagem ou repouso eterno.
"Na fumaça", de Eugenio Montale
"Quantas vezes te esperei na estação
no frio, na neblina. Andava de um lado para outro
com minha tossezinha, comprando jornais inomináveis,
fumando Giuba depois suprimido pelo ministro
dos tabacos, o idiota!
Quem sabe um trem errado, um desdobrado ou talvez
suprimido. Examinava os carrinhos
dos carregadores para ver se por acaso não levavam dentro
tua bagagem, e tu seguindo, atrasada.
Por fim aparecias, a última. É apenas uma lembrança
entre tantas outras. No sonho me persegue."
(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)
no frio, na neblina. Andava de um lado para outro
com minha tossezinha, comprando jornais inomináveis,
fumando Giuba depois suprimido pelo ministro
dos tabacos, o idiota!
Quem sabe um trem errado, um desdobrado ou talvez
suprimido. Examinava os carrinhos
dos carregadores para ver se por acaso não levavam dentro
tua bagagem, e tu seguindo, atrasada.
Por fim aparecias, a última. É apenas uma lembrança
entre tantas outras. No sonho me persegue."
(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)
terça-feira, 26 de agosto de 2014
Literatura
A literatura, da qual me alimento sem nada lhe dar em troca, me levará hoje a Birigui (que saudades do trema). Falarei de livros, escritores, pensarei mais uma vez que fiz alguma coisa e que tenho algo a dizer. O blog estará isento de minhas lamúrias até quinta à tarde. Se blogs tivessem pernas e juízo, quando eu voltar ele não estará mais aqui, este lenço no qual deixo diariamente lágrimas do século XIX.
Cotação do dia (2)
Ultimamente, Sylvia Plath me vem ao pensamento logo de manhã, com um manual de instruções.
Plano emergencial
Se bem que fossem mais adequadas ao mar, lágrimas de amor bem poderiam, se bem planejadas, encher o Cantareira.
Pipocas
Na cena em que os humilhados pelo amor baixam a calça e oferecem a bunda magra ao seu chicote, é quando o público mais se diverte. Alguns espectadores engasgam com as pipocas. Os outros, com a garganta livre, gritam: arromba, arromba, arromba.
Na farra
A carne é fraca, e por manha
A alma às vezes enfraquece,
Do seu alto posto desce
E ao prostíbulo a acompanha.
A alma às vezes enfraquece,
Do seu alto posto desce
E ao prostíbulo a acompanha.
De mãe para filha
"Vai por mim, filha. Nenhum homem presta. Todos são depravados. Uns correm atrás de putas, outros colecionam passarinhos."
Patrulhamento
Agora, assim que ele diz a palavra amor, a família lhe dá água com açúcar e desvia o assunto para amenidades.
Alimento
Quando o látego do amor começa a extrair notas agudas do ar, o corpo se resigna e a alma exulta.
Circunstâncias
Quando viver não agrada,
Não satisfaz, não convém,
Quando nada vale nada,
Morrer às vezes faz bem.
Não satisfaz, não convém,
Quando nada vale nada,
Morrer às vezes faz bem.
Obra-prima
Patriszia Maiora Megliorini foi a minha criação mais brilhante. Brilha quase tanto quanto as estrelas. Brilharia tanto quanto elas, se outro fosse seu criador.
"O negativo", de Eugenio Montale
"Gemas de um mesmo ovo os jovens entram
nas arenas da vida. Vênus
os conduz, Mercúrio os divide,
Marte o resto fará. Não brilharão
muito tempo sobre a Acrópole as luzes
desta primavera ainda tímida."
(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)
nas arenas da vida. Vênus
os conduz, Mercúrio os divide,
Marte o resto fará. Não brilharão
muito tempo sobre a Acrópole as luzes
desta primavera ainda tímida."
(Do livro Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
Cotação do dia (10)
A palavra não é bonita, mas a tristeza já se exprimiu em mim no meu primeiro vagido.
Cotação da noite (9)
Quando me pegaram, eu disse: "Sou poeta." Não acreditaram. Mostrei-lhes então a estrela que tinha acabado de colher no céu. "Ladrão", gritaram, e me encheram de pancadas.
Cotação da noite (8)
Caçado a noite inteira, quando se cansou e, parando, esperou pela morte, ouviu: "Olha aí o desgraçado! Ainda provoca!"
Cotação da noite (7)
Sente-se como um cachorro de três gargantas que, doente, geme como se tivesse seis.
Cotação da noite (6)
Um espantalho tão grotesco e horrendo que, por ordem do próprio fazendeiro, não durou três dias na plantação.
Cotação da noite (5)
Aquele saco onde enfiaram um gato morto, e que fedia tanto que o lixeiro não o jogou para dentro do caminhão.
Cotação da noite
Lembra-se do anão do romance Auto de fé, escrito por Elias Canetti. Casado com uma puta, ele se enfiava embaixo da cama quando vinha um dos fregueses dela. Torcia para que não fossem volumosos.
Custo-benefício
No fim, morrer parece ser sempre um bom negócio. Não se sabe de ninguém que tenha reclamado.
Flagrante
Na tarde em que pegou Mario Quintana sobrevoando uma pitangueira, o guarda disse que só lhe faltava gorjear um pouco melhor.
Cotação da tarde (11)
Um gato de rameira, manuseado por ela sempre que acaba de sair um freguês e morrendo de ciúme quando ela, beijando-lhe o focinho, diz: ah, se você visse como aquele bruto me machucou. Quer ver?
Encaixe
O instante que ele mais aprecia é aquele no qual, sempre fingindo inabilidade (como é que ela faz quando está sozinha?), ela pede que ele lhe abra o fecho do sutiã nas costas. Ele aproveita então para beijar-lhe a nuca. Quando ela se retrai, falsa ou verdadeiramente arrepiada, ele se encaixa naquelas saliências duplas que são, dela, o lugar mais aprazível.
Soneto dos que seguem o amor
Eu fui refém dos teus passos.
Um dia por mim passaste,
Olhei para ti, me olhaste,
Advêm daí meus fracassos.
Fiz da tua a minha sorte,
Te acompanhei cegamente,
E chegamos - eu ao poente,
Tu ao teu buscado norte.
O amor é assim. Quando vem,
Não há no mundo ninguém
Que deixe de acompanhá-lo.
Quem o segue há de saber
Que assim como faz viver
Pode o amor também matá-lo.
Um dia por mim passaste,
Olhei para ti, me olhaste,
Advêm daí meus fracassos.
Fiz da tua a minha sorte,
Te acompanhei cegamente,
E chegamos - eu ao poente,
Tu ao teu buscado norte.
O amor é assim. Quando vem,
Não há no mundo ninguém
Que deixe de acompanhá-lo.
Quem o segue há de saber
Que assim como faz viver
Pode o amor também matá-lo.
Crueldade mental (baseada no Verissimo)
Que música é essa?"
"You do something to me."
"Dá pra baixar um pouco?"
"You do something to me."
"Dá pra baixar um pouco?"
Fernanda Lima
Assim como a lua em certas noites, Fernanda Lima às vezes é mais Fernanda Lima que Fernanda Lima.
Cotação do dia (10)
Tocar o barco adiante, embora a única esperança agora seja a de que no caminho haja tubarões.
Cotação do dia (8)
Eu imaginei que o homem tivesse nascido para as aventuras do espírito e para a consagração do belo. Imaginei errado.
Cotação do dia (7)
A imagem que tenho da alegria é a de um homem extremamente gordo, extremamente grosseiro e extremamente tolo.
Cotação do dia (5)
Será sempre assim. Gritaremos, exibiremos nossa miséria e nossas chagas, em vão. Se um dia alguém se aproximar com um sorriso, e talvez uma migalha de afeto, aceitaremos o sorriso, mas jamais a migalha. Sabemos já como é fácil molhar uma migalha com veneno.
Cotação do dia (4)
Há dias não ouço a passagem do caminhão da Cândida. Já imagino se, além dos sonhos mais exaltados da minha imaginação, também os mais prosaicos não foram só uma ilusão, um doce oferecido a um menino antes de o levarem ao hospital para lhe amputarem a perna.
Cotação do dia (3)
Lá se vão os jovens, com os nossos despojos. Buscam o horizonte, seguem o sol glorioso. As flores, à sua passagem, enchem o ar de pétalas e aromas. Fomos assim, também, na juventude. Despojamos os velhos de seu brio, de sua honra e de seu amor, e nossa garganta proclamou nossa grandeza. Vimos depois, sem que nunca tivéssemos chegado ao horizonte, que nosso brio, nossa honra e o amor são só moedas que o tempo gasta entre um sorriso e outro.
Cotação do dia (2)
É confortável perder. Não precisar contar quantos inimigos abatemos, de quantas armas nos apossamos, não medir o tamanho de nossa grandeza. Não ter de entoar canções épicas, não espalhar ao vento nossas façanhas. Perder, simplesmente perder. Ficar com os lábios na terra, sentir-lhe o gosto.
Cotação do dia
Saber que às dez e vinte e três, ao meio-dia e quarenta ou às cinco e meia sua voz não chegará à única rua, nesta cidade tomada pelo tumulto, pela balbúrdia e pela insensibilidade, em que a esperança talvez fosse bem acolhida.
Óbolo
Às vezes, se lhe pedimos
Com todo o empenho e paixão,
Se imploramos e insistimos,
O amor nos dá um tostão.
Com todo o empenho e paixão,
Se imploramos e insistimos,
O amor nos dá um tostão.
Soneto das palavras gastas com o amor
Ninguém nos daria ouvidos,
Mesmo que nos esgoelássemos
E ainda que nós esgotássemos
Nossos gritos e gemidos.
Tentamos em tempos idos,
E ainda que nos esforçássemos
Não houve quem escutasse-nos,
Mesmo com apelos seguidos.
Assim ocorreu. Falhamos,
E nunca mais nós tentamos.
Se um dia preciso for,
Como nós procederemos?
Que palavras usaremos?
Gastamos todas com o amor.
Mesmo que nos esgoelássemos
E ainda que nós esgotássemos
Nossos gritos e gemidos.
Tentamos em tempos idos,
E ainda que nos esforçássemos
Não houve quem escutasse-nos,
Mesmo com apelos seguidos.
Assim ocorreu. Falhamos,
E nunca mais nós tentamos.
Se um dia preciso for,
Como nós procederemos?
Que palavras usaremos?
Gastamos todas com o amor.
Hoje
Para que serve o tumulto,
Os sonhos todos sonhados,
Frustrados ou conquistados,
Ao corpo agora sepulto?
Os sonhos todos sonhados,
Frustrados ou conquistados,
Ao corpo agora sepulto?
Retrospecto
Vivemos muito. Sentimos
A pretensão da grandeza,
De exprimir toda a beleza.
Tentamos. Não conseguimos.
A pretensão da grandeza,
De exprimir toda a beleza.
Tentamos. Não conseguimos.
Opções
Ser poeta é ter de escolher entre a beleza e a beleza. Não sei se celebro duas maçãs no rosto de Palmyra Mayara Meillère, ou duas rosas.
De Rosa Montero sobre Goethe
"Goethe explica em Poesia e verdade que aceitou a oferta de Weimar porque queria afastar-se de um amor frustrado (um noivado rompido com a bela Lili), e porque o ambiente provinciano de Frankfurt o sufocava e ele aspirava a algo mais cosmopolita e refinado; mas lendo sua autobiografia se vê que Goethe, um burguesinho filho de um jurista aposentado, era também bastante esnobe, o que hoje chamaríamos de garoto mimado, preocupadíssimo com suas roupas, seu aspecto, seu lugar social e seu bom nome. Até os grandes homens (e as grandes mulheres) têm seus pontos de estupidez e miséria."
(De A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicação da Ediouro.)
(De A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicação da Ediouro.)
domingo, 24 de agosto de 2014
Cotação da noite (4)
Este espaço vai se tornando um desbragado e desavergonhado diário de quem não tem nada a relatar senão a miséria de sua alma e a degradação de seus sonhos. Deveria registrar estas minhas impressões num arquivo que apenas meus filhos, se quisessem, poderiam ler quando eu tiver completado meu caminho e tirarem minhas botas sujas para calçar-me um par de sapatos com os quais eu não possa envergonhar mais ninguém. Não se encontrará em nenhuma de minhas calças um vestígio sequer das estrelas que eu imaginei colher um dia, e os meus versos apodrecerão neste blog e exalarão um cheiro igual ao daqueles enormes e temidos recipientes que recolhiam o lixo dos antigos leprosários.
Cotação da noite (3)
Andei em lupanares, bebi em tavernas, corrompi o corpo e enlameei a alma. Só não adotei os vícios aos quais não fui apresentado. Tenho todas as chagas físicas e morais que um proscrito pode ter, mas nenhuma tão profunda, fatal e impiedosa quanto a poesia. Ela me desencaminhou aos treze anos, como nenhuma rameira poderia fazer. Sinto seu hálito a todo instante, dia e noite, e o aspiro como o mais eficiente meio de minha completa dissolução. Houve um momento em que talvez pudesse trocá-lo pela fragrância de flores, mas não quis.
Cotação da noite (2)
Cansaço profundo. Descrença. Já não tenho a esperança de tentar salvar estas minhas confissões com toques de literatura. Elas são cada vez mais o que são - tolices ditas por quem não tem nada mais a dizer além disso: tolices. Este blog é, cada dia mais, uma farsa, outra de tantas vergonhas nas quais tenho me especializado.
Cotação da noite
A sensação de ter dito tudo já, há três anos. Nada mudou. Continuo sonhando com viadutos, mas já sem a mesma constância. É uma inspiração cada vez mais fraca. Se eu fosse escolher a melhor palavra para me definir seria pusilânime. Pomposa demais, eu acho. Covarde seria melhor.
Talião
Um dia, o coelho e a cartola, cansados da escravidão, fizeram sumir o mágico. O número foi vaiado, a cartola dada ao palhaço e o coelho servido no jantar.
Toque mágico
Se Patrícia Marques Melgaço fosse um passarinho, as flores que ela tocasse com o bico se transformariam em seres cantantes.
Banquete
Agrada-lhe, enquanto a beija, dizer para dentro da sua boca palavras apaixonadas. Algumas são inventadas, sílabas entrecortadas, murmúrios de saliva prejudicados pelos espasmos do corpo empenhado em manter o ritmo do amor. Também ela inventa algumas, bem curtas. E são essas que depois, já em casa, recordadas, reacendem neles o fogo e os fazem lamentar que só no dia seguinte se reencontrarão as duas bocas, cheias dessas incitações e de dentes que mordem e sangram os lábios como ferros marcando reses para o deleite baboso do Diabo.
Cotação do dia (18)
Pensar no amor é uma ocupação tão intensa que às vezes ele se esquece por vários dias de colocar o leite na tigelinha de sua alma.
Cotação do dia (17)
Quando ele disser pela quadringentésima quarta vez a palavra amor, o diretor do hospício reconhecerá seu status e lhe arranjará um alojamento especial, aquele em que morreu há cinquenta anos o louco que comia estrelas no café da manhã.
Cotação do dia (16)
O amor se foi e deixou nele uma verborragia que ameaça inundar a cidade como chuva nenhuma jamais fez. Todas as ruas, avenidas e alamedas transbordarão de sonetos. A moça do tempo da Globo ficará quarenta dias e quarenta noites no ar, direto, misturando notícias com passagens bíblicas.
Cotação do dia (14)
Cai sempre no truque da dor. Ela o provoca, e ele se põe a dizer sandices. Amanhã rirão de suas palavras e não acreditarão quando ele disser que foram extraídas do seu coração por meia dúzia de pássaros brancos.
Cotação do dia (13)
E ainda há este resto de manhã, e a tarde, e a noite. Como pode o coração ser assim estúpido e resistir tanto?
Cotação do dia (12)
Quem teria tão pouca coisa a fazer, para pensar em salvá-lo às 10h44 de um domingo?
Cotação do dia (11)
Já não quer ser amado. Gostaria só que soubessem que foi honesto até nos piores momentos de sua poesia.
Cotação do dia (10)
Aprendeu todas as palavras, menos aquela que, dita quando deveria, teria feito dele alguém melhor que este defunto indigno de um domingo.
Cotação do dia (9)
Tem vontade de gritar. Não palavras, que essas já foram gritadas em vão. Tem vontade de gritar um ai que nunca foi gritado, um ai que atravessasse toda esta cidade insensível e chegasse aos ouvidos certos, os únicos.
Cotação do dia (8)
Passou uma van com um locutor promovendo um sacolão na Cursino. Na música de fundo, entre ofertas de cenouras e batatas, um cantor se punha à disposição: "Eu quero enxugar teu pranto." Eu deveria ter gritado da janela. Talvez enxugar meu pranto não custasse mais que R$ 1,99.
Cotação do dia (7)
Introduzir este domingo garganta abaixo, revolver as vísceras, puxá-las para fora e expô-las ao sol.
Cotação do dia (6)
Ser ao menos um mau poeta não é a aspiração de ninguém. E no entanto foi sempre a minha.
Cotação do dia (4)
Se eu fosse um objeto, me calharia bem ser um cinzeiro. Querer ser uma caçamba já seria uma manifestação de orgulho.
Cotação do dia (3)
A poesia me transformou num bufão medíocre. Melhor seria ter estudado artes circenses.
Cotação do dia (2)
Um homem que não merece adjetivos laudatórios - e talvez nem mesmo a designação de homem.
Se tu
Se tu tivesses um décimo de minha loucura, já terias visto as abelhas zumbindo em torno de minha boca quando digo teu nome.
Compromisso
Eu me tornaria monge por ti e beijaria tão ternamente as tuas mãos que acreditarias em minha castidade.
A frase
Morreu com a garganta obstruída por uma frase que, se tivessem conseguido desentalar, diria amoloucamentefulanafelíciadesousa.
Sublimação
Toda vez que, dançando, desliza a mão pelas costas dela até embaixo e chega à encosta que ali se eleva abruptamente, torce para que a sequência de músicas, quando parar, seja num momento em que ele, tendo dado vazão ao desejo no pano grosso com que forra a cueca em noites de baile ou havendo conseguido sublimá-lo com imagens de extensos gramados, possa caminhar pelo salão sem que se abram no rosto dos frequentadores aqueles sorrisos oblíquos e sem que as mãos apontem para a sua virilha os dedos acusadores.
Soneto da prazerosa tortura infligida pelo amor
Talvez ao amor conviesse
Matar-nos rapidamente
E assim mais tempo tivesse
De matar muito mais gente.
Seria assim, se quisesse
Agir mais humanamente,
Porém a ele só apetece
Matar vagarosamente.
Bendito seja ele, o amor,
Por esse modo de agir,
E exaltado sempre por,
Ampliando nossa agonia,
Deixar-nos dela usufruir,
Pois é ela nossa alegria.
Matar-nos rapidamente
E assim mais tempo tivesse
De matar muito mais gente.
Seria assim, se quisesse
Agir mais humanamente,
Porém a ele só apetece
Matar vagarosamente.
Bendito seja ele, o amor,
Por esse modo de agir,
E exaltado sempre por,
Ampliando nossa agonia,
Deixar-nos dela usufruir,
Pois é ela nossa alegria.
Estojo
A vida são essas miudezas
essas quinquilharias
alegrias pequenas
pequenas tristezas
escassos júbilos
escassas penas
sentimentos tolos
sentimentos todos
precedidos pela ressalva
da palavra apenas.
essas quinquilharias
alegrias pequenas
pequenas tristezas
escassos júbilos
escassas penas
sentimentos tolos
sentimentos todos
precedidos pela ressalva
da palavra apenas.
De Rosa Montero, sobre os escritores e a vaidade
"Ah, a vaidade do escritor... Podemos chegar a ser uma verdadeira peste. Talvez por nossa dependência do olhar alheio, ou porque a falta de critérios objetivos na hora de julgar um romance sempre nos deixe um pouco inseguros, sempre um pouco no ar; mas a vaidade, para nós, é de fato uma droga pesada, uma injetada de reconhecimento externo que, como toda droga, nunca sacia a necessidade de aprovação de que padecemos. Ao contrário: quanto mais cedemos à vaidade (quanto mais nos picamos), mais precisamos."
(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)
(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)
sábado, 23 de agosto de 2014
Tudo
Já fez de tudo pelo amor, até se pôs de quatro - e não só no sentido figurado. Andou relinchando também, embora talvez sem o ímpeto e a verossimilhança ideais.
Moleca
Para mim, Cupido apareceu sob a forma de uma garota de calça jeans e blusa xadrez, e sua seta era um pedregulho que me atirou com seu certeiro estilingue.
Causa
Guerras por independência não me interessam. Sou sectário do amor e só morreria para defender seu jugo.
Mapa
Navegar firme, altaneiro,
Sem subterfúgio ou trapaça.
O barco é a nossa carcaça
E a morte o nosso roteiro.
Sem subterfúgio ou trapaça.
O barco é a nossa carcaça
E a morte o nosso roteiro.
Cotação da tarde (2)
Ouvir You do something to me e não morrer na nota final é algo que deve nos fazer pensar se amamos mesmo tanto quanto dizemos.
Cotação da tarde
O amor jamais há de ser compartilhado. O amor há de ser sempre imenso, incomensurável, e doer tanto, e atormentar tanto, e matar-nos tantas vezes, que só seria lógico dividi-lo com inimigos.
Disfarce
Quando o Diabo me cobrou a alma, eu lhe disse que já a entregara a Palma Martorelli Messi alguns anos antes. "Eu sei, bobo", ela riu, tirando o disfarce.
Regime fechado
Nos dez primeiros anos, o Amor o manteve num cárcere diminuto, a pão e água. Nos dez anos seguintes, o Amor o conservou no mesmo cubículo, mas passou a alimentá-lo com água e pão.
Pernas curtas
Nos dez primeiros anos, o Amor o manteve num cárcere diminuto, a pão e água. Nos dez anos seguintes, o Amor o conservou no mesmo cubículo, mas passou a alimentá-lo com água e pão.
Cotação do dia (4)
Mais um dia em que as humilhações renderão aplausos. Elas nos matam, eles nos fazem viver.
Cotação do dia (3)
Às dez e cinquenta, na feira, o velhote apontava o dedo para uma estrela. Era Raul, o Sonso.
Soneto da última vontade
Talvez consiga ainda achar
Aquele jardim que vi
Numa noite em que dormi
E comecei a sonhar.
Era bonito de olhar
E lembro que nele ouvi
O canto de um bem-te-vi
Cantando sem descansar.
De outras coisas não lembro
A não ser que era setembro
E que você me sorria.
Que eu possa, antes do fim,
Rever aquele jardim
Como vi naquele dia.
Aquele jardim que vi
Numa noite em que dormi
E comecei a sonhar.
Era bonito de olhar
E lembro que nele ouvi
O canto de um bem-te-vi
Cantando sem descansar.
De outras coisas não lembro
A não ser que era setembro
E que você me sorria.
Que eu possa, antes do fim,
Rever aquele jardim
Como vi naquele dia.
Feitiço
Depois que pronunciei o nome de Petra Maiora Maglione olhando para a lua cheia naquela noite de sexta-feira, jamais me agradou dizer outros, ainda que de Rosas e Magnólias fossem.
Minha mãe e os russos
Os poloneses não morrem de amor pelos russos, e imagino que a recíproca seja verdadeira. No caso de minha mãe, a desafeição tinha a ver com Dostoievski. Não que ela fosse uma conhecedora da literatura. A birra começou no dia em que eu, entusiasmado com a leitura de Crime e castigo, citei Raskolnikov e sua machadinha. Depois disso, toda vez que eu aparecia com algum livro tomado de empréstimo na biblioteca, ela dava uma espiada na capa. Temia que fosse outro russo, quem sabe com um serrote escondido no paletó.
Joias
Naquela tarde, quando enfiei a mão por baixo da tua saia, furtei alguns dos teus fios de ouro. Eu os guardo para os dias de inverno e miséria amorosa. Não os venderei nunca. Talvez os leve à casa de penhores, no quinto ou no sexto dia de minha mais longa fome.
Filão
Continuo escrevendo mal. Persisto não pelas palavras que junto desastradamente, mas pelo ouro que há em meu único assunto: você.
Anarfa
O amor são essa ternura,
O amor é aquelas estima,
É anarfa, mas verso e rima
É suas duas loucura.
O amor é aquelas estima,
É anarfa, mas verso e rima
É suas duas loucura.
"Agradecimento", de Wislawa Szymborska
"Devo muito
aos que não amo.
O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.
A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.
Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoaria.
Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.
As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.
E quando nos separam
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.
É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.
Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.
'Não lhes devo nada' -
diria o amor
sobre essa questão aberta."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
aos que não amo.
O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.
A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.
Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoaria.
Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.
As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.
E quando nos separam
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.
É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.
Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.
'Não lhes devo nada' -
diria o amor
sobre essa questão aberta."
(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
Cotação da noite (2)
Alimento minha alma com versos de Sylvia Plath, Florbela Espanca e Antero de Quental. Por acaso, três poetas. Por circunstâncias, três suicidas.
Cotação da noite
Tem vergonha de ligar para o CVV e dizer que não está bem certo se o assunto é mesmo de vida ou morte.
Aparente contradição
Dizia o Millôr que até no infinitamente delicioso ato do sexo o mais gostoso é o fim.
Estranha
A mão esquerda, a sinistra, a do Diabo, tem sido terceirizada em lances sexuais, como se pertencesse a outrem.
Escoteiros
"Não digam palavrões nem emitam flatos, porque há um casal copulando embaixo da nespereira."
Negociando
A mão esquerda fez um ultimato à direita: ou se estabelece um rodízio ou ela não segura mais a revista.
Cotação do dia (3)
Devagar, quase parando, querendo parar. O que me move ainda? Por certo há alguma humilhação ainda na minha agenda.
Média
Depois de cada dez ou quinze palavras que ele diz, a boca já está adestrada para dizer amor. Às vezes é solicitada antes.
Particularidades
Tem algum jeito para a poesia. Nenhum para coisas práticas. Se morrer fosse uma tarefa que dependesse de engenho, ele jamais obteria essa graça.
Opção
Algumas mariposas se desviam das lâmpadas e vão morrer prazerosamente nos cabelos de fogo de Pierangela Marízia Melken.
Na real
Uns passam o ponto, outros passam o pinto - e nisso consiste a vida, apesar do desejo dos idealistas.
Tendência
Em Paola Martínez Mena há uma inclinação para o amuo. Talvez porque lhe fique tão graciosa a boca franzida, urdindo a palavra não.
A tempo
Quando ela chegou, ele, com a vida já lhe escapando, teve tempo só de murmurar Petrônia Múrcia Melgar. Era o nome dela.
Perfume
Quando Pétula Myrna Moura ergue o braço para ajeitar os cabelos, sempre alguma abelha embriagada esvoaça em volta de sua axila.
Falta em excesso
Que pena que o amor esteja
Em falta assim tão profunda.
Num dia a falta sobeja,
No outro dia a falta abunda.
Em falta assim tão profunda.
Num dia a falta sobeja,
No outro dia a falta abunda.
Mão
O amor antigo ainda, de vez em quando, faz a mão visitar gavetas, álbuns, arquivos no micro. E, também de vez em quando, faz essa mão, com certa culpa e falta de jeito, abrir botões que teimam em se fazer de difíceis.
Soneto da mulher viciada em beijos
Beijar é quase um suplício
Quando se acha uma mulher
Que sempre mais beijos quer,
Pois beijar é, nela, um vício.
Tudo é muito bom, no início,
Quando se aceita o que vier
E nem se pensa sequer
Que vai virar sacrifício.
Mas quando depois de cem
A mulher nos diz meu bem,
Eu quero duzentos mais,
Sensato é nos desculparmos,
Dos seus braços nos safarmos
E não voltarmos jamais.
Quando se acha uma mulher
Que sempre mais beijos quer,
Pois beijar é, nela, um vício.
Tudo é muito bom, no início,
Quando se aceita o que vier
E nem se pensa sequer
Que vai virar sacrifício.
Mas quando depois de cem
A mulher nos diz meu bem,
Eu quero duzentos mais,
Sensato é nos desculparmos,
Dos seus braços nos safarmos
E não voltarmos jamais.
Parcimônia
Mente quem diz que deu tudo pelo amor. Pelo amor é sempre possível dar mais, e quem deixou o amor morrer foi por ter querido sempre poupar um pouco dele, por orgulho ou mesquinhez.
Cento e quatro
"Ano de fundação?"
"2008."
"Quantos sócios?"
"Cento e quatro, todos fundadores."
"Todos vivos?"
"A morte só vem com o progresso."
"2008."
"Quantos sócios?"
"Cento e quatro, todos fundadores."
"Todos vivos?"
"A morte só vem com o progresso."
Contagem
No primeiro dia em que Piera Massantonio Medici não o beijou, ele pressentiu que aquilo poderia tornar-se um hábito.
O palavrão de quatro letras
Quando o público já bocejava escancaradamente, o humorista recorreu ao seu mais velho truque. Pigarreou, olhou para todos os lados da plateia e disse: "Agora vamos falar de um assunto sério." Tomou fôlego e anunciou: "O amor." Os bocejos foram instantaneamente substituídos por gargalhadas. O humorista perguntou, cínico: "O que foi? Eu disse algum palavrão?" Mais gargalhadas. "Então foi o primeiro."
Um trecho de Rosa Montero
"Todos os romancistas que conheço são pessoas que têm uma facilidade inata para escrever; e todos os romancistas que me interessam lutaram a vida inteira contra essa facilidade. A construção da própria obra é um esforço constante para escrever na fronteira do que você não sabe. Deve-se fugir do que se domina, dos lugares-comuns pessoais, do que é conhecido."
(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)
(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)
Cotação da noite (10)
Não li todos os livros, mas desde o primeiro eu soube que a carne é triste e a alma é uma criação do medo e da poesia.
Cotação da noite (9)
Gritar, gritar, e saber que em nossa voz qualquer aflição e qualquer apelo soam como cacarejos de uma velha bruxa.
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
Cotação da noite (8)
Os outros encontram alívio e paz nas palavras. Nós, que as vilipendiamos tanto, que as tratamos como marafonas, que enfiamos as mãos entre suas pernas, podemos esperar agora que nos salvem?
Cotação da noite (6)
Dormir é o que nos resta. Dormir como os outros, roncar, babar. Nada de poético nesse dormir, nada de espiritual. Dormir, como uma carcaça dorme. Reconhecer que sempre fomos isso, uma carcaça, só. Alma? Ora, ainda queremos enganar, e a quem?
Cotação da noite (5)
Desistir é uma palavra melhor que renunciar. Renunciar dá a ideia de que se está alto e se tem um gesto de magnanimidade. Nunca tivemos coroa nenhuma e, se demos a impressão de tê-la, foi mais uma de nossas falsidades. Desistir, essa é a palavra. Talvez mesmo essa seja grandiosa demais.
Cotação da noite (4)
Pedir perdão se alguém acreditou que pudéssemos fazer fosse lá o que fosse. Nunca pudemos. Deveríamos ter desistido antes, enquanto havia sol ainda. É triste a noite e nossas palavras nos abandonaram. Talvez a única que possamos pronunciar honestamente seja desistir. Desistir. Desistir.
Cotação da noite (3)
O cansaço de implorar. Será que as folhas precisam também suplicar ao vento que as leve para o esquecimento, para onde nenhuma pá irá querer recolhê-las?
Cotação da noite
Frustração, desalento. Vida sem projeto, literatura gorada. Vontade de ir até o mar e desafiá-lo: me engole ou eu te engulo. Desejo de perder, como sempre, desta vez definitiva e irrecorrivelmente.
Ala D
São todos velhos apavorados. Alguns temem fantasmas, outros receiam enfermeiros de má índole. Os mais assustados contam histórias antigas em que a Morte se vestia de amor, tinha um sorriso gentil e promissor e só no instante final exibia os olhos glaciais e a faca pontuda.
Como?
Como eu te diria que a melhor flor que poderia te oferecer seria uma triste, desesperançada, de caule murcho? Não te disse.
Cotação da tarde (2)
Querer sentir-se mais vil ainda, assim como os outros nos veem, e reconhecer que eles nos conhecem melhor do que nós.
Cotação da tarde
A idade madura caracteriza-se não mais por aqueles sonhos em que na última fileira do cinema fazemos o Mentex ora estar na nossa, ora estar na boca da garota de saia curta, mas por aqueles em que estamos esperando há meia hora para atravessar a rua e finalmente alguém empurra nossa cadeira de rodas.
Poderes
Disseram-me que Penélope Mayer Mestrini é quem, na hora aprazada, faz um aceno e apaga o sol na Brigadeiro. É verdade. Já a vi fazer isso. Não a vi fazer o aceno para reacendê-lo, de manhã.
Soneto da chama fortuitamente reacesa
De uma lembrança borrada,
Dos versos de uma canção,
Se derem a ele ocasião,
O amor ressurge do nada.
A chama há muito apagada
Renega sua extinção
E, acesa como um vulcão,
Recusa-se a ser domada.
Quer o que teve, reclama,
E, achando-se hoje mais chama,
Ousa pedir até mais.
Que bom se ela, desta vez,
Ao contrário do que fez,
Não se apagasse jamais.
Dos versos de uma canção,
Se derem a ele ocasião,
O amor ressurge do nada.
A chama há muito apagada
Renega sua extinção
E, acesa como um vulcão,
Recusa-se a ser domada.
Quer o que teve, reclama,
E, achando-se hoje mais chama,
Ousa pedir até mais.
Que bom se ela, desta vez,
Ao contrário do que fez,
Não se apagasse jamais.
Cotação do dia (9)
O amor extemporâneo acrescentou um adjetivo à sua vida. Antes o chamavam de velho. Agora é o velho pirado.
Cotação do dia (8)
O amor o faz ver arcos-íris em todas as calçadas. Ele os recolhe e empilha. Ocupam já toda a sua casa, mas ele está negociando sua doação ao instituto de astronomia.
Cotação do dia (7)
Depois que enlouqueceu de amor, ele notou alterações na mão direita e também na esquerda. A terceira ele não sabe mais onde está.
Cotação do dia (6)
Se ele soubesse que enlouquecer por amor dava uma ala especial no hospício, não teria perdido tanto tempo.
Cotação do dia (5)
Minha loucura está toda aqui, ele disse a Pétula Maierovitch Miller. Não tenho caixa dois.
Cotação do amor (4)
Tocaram o amor com paus e pedras, embora ele abanasse a cauda amorosamente e latisse algo parecido com La vie en rose.
Cotação do dia (2)
O amor há de ser embargado, interditado, proibido, amaldiçoado. Assim rebentam ao sol suas melhores flores, num dia em que a primavera improvável brilha como um milagre.
Toque final
Para que Paula Mireille Merveilleuse fosse única, ele acrescentou aos seus noventa e oito por cento de perfeição os dois por cento que todo artista, até o mais bisonho, guarda para uma obra-prima.
Melhor assim
Agora, sim, sente-se feliz. Morto, o amor não o levará jamais a lugar nenhum além deste, onde seu masoquismo se contorce de dor e gozo.
Mão
O amor antigo ainda, de vez em quando, faz a mão abrir gavetas, arquivos, álbuns. E, também de vez em quando, torna-se tão corpo e tão carne que a mão, com espessa culpa e inabilidade, se põe a abrir botões.
Soneto do velo de ouro
Eu sei que nunca irei vê-lo,
Aquele monte gracioso
De pelo espesso e sedoso,
De macio terciopelo.
Sei que jamais irei tê-lo,
Por mais que o busque ansioso,
Aquele monte alteroso,
Coberto por suave velo.
Hoje sei que morrerei
E jamais na mão terei
Aquele ponto onde estão
Aqueles teus fios de ouro
Que velam o teu tesouro
Como se eu fosse um ladrão.
Aquele monte gracioso
De pelo espesso e sedoso,
De macio terciopelo.
Sei que jamais irei tê-lo,
Por mais que o busque ansioso,
Aquele monte alteroso,
Coberto por suave velo.
Hoje sei que morrerei
E jamais na mão terei
Aquele ponto onde estão
Aqueles teus fios de ouro
Que velam o teu tesouro
Como se eu fosse um ladrão.
No asilo
Vivia chamando Aderbal, Aderbal. Nunca o encontrou. Aderbal era ele. Os outros velhos passaram a chamá-lo de aquele amigo do Aderbal.
Algemas
Eu não queria mais viver
bebia nuvens
e comia poemas
Eu queria morrer
e o amor me disse
não gemas
E para que
eu livre morresse
abriu-me as algemas
Então lhe disse eu
com todo o respeito
você não me entendeu
Para que eu viva
e não almeje a morte
me algeme mais forte.
bebia nuvens
e comia poemas
Eu queria morrer
e o amor me disse
não gemas
E para que
eu livre morresse
abriu-me as algemas
Então lhe disse eu
com todo o respeito
você não me entendeu
Para que eu viva
e não almeje a morte
me algeme mais forte.
Um trecho de Friedrich Hölderlin
"Mas nós caminhávamos juntos pela terra, num mútuo contentamento,
Como os cisnes amantes, ao repousarem no lago,
Ou embalados pelas ondas,olhando as águas,
Espelho de nuvens de prata e esteira de azul etéreo
Rasgada pelos barcos de passagem. E quando o vento norte ameaçava,
Inimigo dos amantes espalhando lamentos, e as folhas
Caíam dos ramos e a chuva caía ao sabor do vento,
Sorríamos serenos, experimentando Deus em nós
Em diálogo confiante, num uníssono canto interior,
Num âmbito de paz, em solidão alegre de meninos.
Mas na minha casa está agora o vazio, levaram-me
Os meus olhos e a mim, tal como a ela, me perdi.
Por isso ando errante e é forçoso que viva como
As sombras e tudo o mais há muito perdeu o sentido."
(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Como os cisnes amantes, ao repousarem no lago,
Ou embalados pelas ondas,olhando as águas,
Espelho de nuvens de prata e esteira de azul etéreo
Rasgada pelos barcos de passagem. E quando o vento norte ameaçava,
Inimigo dos amantes espalhando lamentos, e as folhas
Caíam dos ramos e a chuva caía ao sabor do vento,
Sorríamos serenos, experimentando Deus em nós
Em diálogo confiante, num uníssono canto interior,
Num âmbito de paz, em solidão alegre de meninos.
Mas na minha casa está agora o vazio, levaram-me
Os meus olhos e a mim, tal como a ela, me perdi.
Por isso ando errante e é forçoso que viva como
As sombras e tudo o mais há muito perdeu o sentido."
(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
Cotação da noite (3)
Minha alma sente-se suburbana quando admite que sofre por algo tão corriqueiro quanto o amor.
Cotação da noite (2)
Não é uma palavra que ele escolheria para se referir a um dos personagens de suas crônicas, mas é a correta para ele: está definhando.
Cotação da noite
Deveria ter morrido em certo fim de tarde, quando lhe faltou uma palavra para mudar seu destino. Tinha cinco segundos para dizê-la. Não a disse.
Doce veneno
A crueldade deveria ser uma arma privativa das mulheres. Como elas sabem triturá-la amorosamente com os dentes, testá-la na língua, nos lábios, antes de instilá-la em nós com seus beijos, que sempre achamos poucos.
Vírus
Na tarde em que contrariou as recomendações médicas e depois de três meses pronunciou a palavra amor, seu quarto no hospital foi invadido por duzentas borboletas falantes que repetiram: amor.
Russinha
Rejeitado pela amada, desenhou nela um bigode, numa de suas fotos, para enfeá-la. Acabou achando-a bela como um cossaco.
O quarto
Pensa que nos braços gorduchos da amada se sentiria bem como um gato. Ela já tem três. Ele não se importaria de ser o quarto e menos querido.
Um trecho de Katherine Mansfield
"Eu me pergunto por que seria tão difícil ser humilde. Eu não me considero uma boa escritora; reconheço meus erros mais do que qualquer outra pessoa poderia fazê-lo. Sei exatamente onde falho. Ainda assim, quando termino um conto e antes de começar outro, vejo-me limpando as penas. É desalentador. Parece haver algum antigo orgulho ruim dentro de meu coração - uma raiz que reage forte à menor provocação..."
(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicação da Editora Revan.)
(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicação da Editora Revan.)
Cotação do dia (9)
Quem disser amor, amor, amor, três vezes seguidas, e não começar a flutuar numa nuvem, deverá dizer novamente amor, três vezes.
Cotação do dia (8)
Até o defeito inicial que vimos no amor se mostrou uma qualidade: aqueles dentes que reluzem ao sol um momento antes de nos beijar, no parque.
Cotação do dia (7)
Que felicidade há em certas loucuras. A do amor, por exemplo, que nos faz saltar como lebres.
Cotação do dia (6)
Talvez sejamos loucos, como acham. Passamos o dia inteiro diante do espelho, dizendo um nome que não é o nosso, para ver se o dizemos cada vez melhor.
Cotação do dia (5)
Há um nome, um só, que contrabandearemos em nossa última viagem, escondido no céu da boca, já que estrela ele é.
Cotação do dia (4)
Assim como o gato não revela seu melhor pulo, nós jamais mostramos a mais querida das cicatrizes que o amor traçou em nosso corpo. Só nós e a nossa vela consagrada podemos vê-la, enquanto o mundo dorme.
Cotação do dia (3)
Quem louva nossa voz suave e tímida há de louvar o amor que a tornou assim, nas noites em que nos impôs seu jugo.
Cotação do dia (2)
Falem mal do amor em nossa presença, e espetaremos bonequinhos de vodu e amaldiçoaremos as suas plantações com a praga de um milhão de gafanhotos.
Cotação do dia
Como um papel de bala, o amor nos sopra. Se no caminho uma formiga pressente em nós um resto de açúcar, ele nos sopra para mais longe e a atira para dentro da grande poça formada pela chuva.
Soneto do amor estouvado
O amor é aquele garçom
Que sempre nos traz à mesa
No começo a sobremesa
E, em vez de vodca, burbom.
E, como numa sitcom,
O amor é aquela freguesa
Que nunca paga a despesa
Mas a assina com batom.
O amor é assim, estouvado,
Maluco, disparatado,
E tudo de uma só vez.
Capaz de a conta beijar
E de a sopa derramar
No paletó do freguês.
Que sempre nos traz à mesa
No começo a sobremesa
E, em vez de vodca, burbom.
E, como numa sitcom,
O amor é aquela freguesa
Que nunca paga a despesa
Mas a assina com batom.
O amor é assim, estouvado,
Maluco, disparatado,
E tudo de uma só vez.
Capaz de a conta beijar
E de a sopa derramar
No paletó do freguês.
Injustiça
Que vergonha deve ser para ti, amor, teres o nome pronunciado por uma voz tão indigna, velha e deprimente quanto a minha. Quem me dera ter ainda aquelas vogais que cantavam em meus lábios na juventude.
Palavras no tapete da porta
Que o amor não faça cerimônia, que entre de madrugada em nosso sonho e o atormente à vontade. Dormiremos de braços abertos para recebê-lo e, de manhã, não nos doerão as feridas infligidas, mas nos lembraremos de cada beijo.
Até a última gota
Enquanto nossos inimigos não nos pisam, enquanto não fazem nossa boca sentir o gosto da terra, não aceitamos nos render. Desfrutamos até o fim o gozo da nossa derrota e, se um líquido jorra em nossas costas, sempre esperamos que seja não uma chuva de verão, mas um jato de quente e vitoriosa urina.
Tribunal
Absolveremos o amor com todas as forças que nos restarem depois de ele nos haver supliciado até seu rebenque parecer um espanador de pó.
Meia-verdade
Não é verdade que Priscylla Mariuszka Moskevitch fica mais bela quando se zanga. Ela fica muito mais bela, e ser aniquilado pela dureza dos seus olhos, nessas ocasiões, é como ser chicoteado por uma estátua de Michelangelo.
Um trecho de Katherine Mansfield
"Como Dostoievski conhecia aquele extraordinário sentimento de vingança, aquele prazer de uma pequena risada - que vem de uma mulher em sofrimento? É uma coisa muito secreta, mas profunda. As mulheres não desejam poupar aqueles a quem amam. Se eles as amam com o tipo de devoção cega com que Shatov amava Maria, elas gostam de atormentá-los, e esse tormento lhes traz um alívio positivo."
(De Diários & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicação da Editora Revan.)
(De Diários & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicação da Editora Revan.)
terça-feira, 19 de agosto de 2014
Cotação da noite (3)
Nunca será nada que faça escorrer sangue. Tem ojeriza a sangue, à sua cor, ao seu cheiro. Precisaria ser alguma coisa delicada, sem estrebuchamentos e sem gorgolejos, que não sujasse toalhas nem deixasse marcas. Alguma coisa que alguém, ao narrá-la, não precisasse alterar o rosto, como se falasse da morte de uma borboleta, um leve estremecimento amarelo na relva.
Cotação da noite (2)
No escuro os viadutos são mais convidativos, quase acolhedores. Parece mais fácil saltar e, se a noite estiver nublada, quase não se enxerga o lugar em que tudo acabará depois da queda.
Cotação da noite
Teve tantas cordas nas mãos. Não usou nenhuma, e no entanto era tão óbvia a sugestão que elas lhe faziam, quase se oferecendo para lhe servirem como a última e cerimoniosa gravata.
Dificuldade
Quando ele a imagina nuamente deitada no quarto, dela ou dele, precisa criar uma trama que se desenvolva no máximo até as cinco horas. O corpo dela é tão esplendidamente solar em seu conceito que, se um dia a fantasia se realizasse, ele temeria que ela, ao se deitar, propagasse fogo no colchão, na cama, nas cortinas, e ele sufocasse gritando romanticamente amor, com a fumaça desenhando arabescos no quarto.
Pudicícia
As únicas partes pudendas são hoje o céu da boca e o lugar, nas orelhas, onde se acumula cera. Mas a civilização avança.
Cotação do dia (4)
Onde estão os tubarões? Por eles foi que afundei meu barco aqui. Apareceu o amor, solícito, mas, se não me matou em tantas tentativas, certamente falhará também na última.
Selfies
Selfies irritavam Fernando Pessoa. Só mostravam o rosto de Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
Cativeiro
Obrigado, mas não precisam mais procurar Priscylla Mariuszka Moskevitch. Eu a mantenho encarcerada numa nuvem que só se abre com a chave de ouro de um soneto.
Cotação do dia (3)
Sabe que é vil. Não lhe abrem a porta e, quem os tem, atiça contra ele os cachorros. Eles o atacam, o expulsam, o humilham, mas evitam mordê-lo. Ele exala peste por todos os poros.
Uma frase de Martin Amis
"A escrita vem dos bastidores do artista."
(Extraído de A louca da casa, de Rosa Montero, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicação da Ediouro.)
(Extraído de A louca da casa, de Rosa Montero, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicação da Ediouro.)
Cotação do dia (2)
Correram todos para o lago, onde um menino se afogava. Correríamos também, se não estivéssemos ocupados com as picuinhas do amor.
Truque
Se Priscylla Mariuszka Moskevitch fosse o título de todos os textos que escrevo, eles certamente seriam melhores, já desde as três primeiras palavras.
Soneto do adeus
Por ti, amor, eu sofri:
Comi a tua comida,
Bebi a tua bebida,
De urina e fezes vivi.
Verti meu sangue por ti,
Te dei em total medida
Minha alma, meu corpo, a vida,
E o que não dei te devi.
Todos os meus pensamentos,
Todos os meus sentimentos
Tornaram-se teus, só teus.
Mortos os tempos felizes,
Já que adeus tu não me dizes
Por nós dois eu digo adeus.
Comi a tua comida,
Bebi a tua bebida,
De urina e fezes vivi.
Verti meu sangue por ti,
Te dei em total medida
Minha alma, meu corpo, a vida,
E o que não dei te devi.
Todos os meus pensamentos,
Todos os meus sentimentos
Tornaram-se teus, só teus.
Mortos os tempos felizes,
Já que adeus tu não me dizes
Por nós dois eu digo adeus.
Mãos ao alto
O amor é aquele assaltante que nos toma o celular, a bolsa, o dinheiro. Nunca nos exige a vida. Sabe que já a tem desde que nascemos.
Passeata
Ergueu a tabuleta - amor - e começou a passeata. Depois de andar cinco horas, viu que era seguido só pelo sol e por meia dúzia de urubus.
Última cartada
Flagelou-se, prendeu-se no mastro e pôs-se a gritar: covarde, covarde. Mas o amor não desceu para devorá-lo.
Sina
Nos meus lábios já murcharam tantas vogais, tantas consoantes. Por que não murcharia a palavra amor?
Chuveiro
Pedir licença a ela, entrar no banheiro, desligar o chuveiro e, com a toalha antecipadamente beijada, enxugar-lhe cada centímetro de corpo. Ali onde os crespos pelos se enroscam delicadamente, apreciar por um instante o fulvo contraste deles com a alva toalha e, subindo, secar com carinho os seios, que além da água podem, por um malicioso roçar da esponja, ter nos bicos duas gotas de leite.
Sucesso
O que um humorista precisa é reunir pelo menos cinquenta cretinos no teatro e ser o único que não pagou ingresso.
"A bela de Yu", de Jiang Jie
"Quando era novo, ouvia a chuva
Acompanhado por bailarinas,
As velas tremulando, no vermelho
Das cortinas de cama.
Depois, ouvi-a nos barcos errantes,
Nos imensos rios, sob nuvens baixas,
No vento do Oeste - lá onde
Grita o ganso selvagem.
Ouço-a agora junto à cabana dos monges
Com prata nos cabelos.
Tristeza, alegria, ausência, encontro -
Passam, indiferentes.
Que ela tombe - a chuva, sobre os degraus,
Gota a gota, a noite inteira, até ser dia."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
Acompanhado por bailarinas,
As velas tremulando, no vermelho
Das cortinas de cama.
Depois, ouvi-a nos barcos errantes,
Nos imensos rios, sob nuvens baixas,
No vento do Oeste - lá onde
Grita o ganso selvagem.
Ouço-a agora junto à cabana dos monges
Com prata nos cabelos.
Tristeza, alegria, ausência, encontro -
Passam, indiferentes.
Que ela tombe - a chuva, sobre os degraus,
Gota a gota, a noite inteira, até ser dia."
(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)
segunda-feira, 18 de agosto de 2014
Idolatrias
Podem me chamar de esquisito. Amo a poesia e sou adepto daquele deus, maior que o mundo e todas as coisas, que por concisão e temor denominamos apenas de amor.
Oferta especial
Priscylla Mariuszka Moskevitch é uma das inesperadas belezas que só em certas manhãs o sol de São Paulo revela.
Previdência
Cultivar o dom da avareza. Guardar algumas lágrimas para amanhã. O amor não morreu, e quem está vivo sempre aparece.
Noviço
Sabe que ainda se acha no estágio inicial do sofrimento amoroso, mas já está preparado para a devastação do corpo - e da alma, se a tiver.
Quando
Quando o peso do amor não mais o oprime, o corpo de um homem desaba e se espatifa como uma catedral atingida por um terremoto um minuto depois de ser abandonada pelos passarinhos.
Retorno
Deve ter ajudado a matar Joana d'Arc ou mil andorinhas na encarnação anterior, para sofrer tanto.
Lembranças
Quando se lembra dela, seu corpo é instantaneamente tomado por uma febre que o faz tremer. Ele se agasalha com dois, três cobertores e, com a mão gelada no ventre, ensaiando a descida, murmura palavras de paixão que o frio entrecorta. Logo a cama treme do seu frio, da sua febre e de suas lembranças sincopadas.
Boca desenhada com batom
É o seu sonho preferido. Desenhou com batom uma boca perfeita no ventre de uma mulher. Era como se o ventre fosse o rosto. Começou a beijar os lábios desenhados, e o ventre, subindo e descendo em palpitações cada vez mais intensas, atraía seus beijos e os retribuía. Toda vez que ele, já com a boca doendo, pensava em parar, o umbigo prendia-lhe a língua.
Soneto da praga de Doroti
Disse que se chamava Doroti.
Depois de bolinar-me numa esquina
E de autoproclamar-se ainda menina,
Me pediu que a comesse em pé, ali.
Era feia como uma triste sina,
Mais feia que ela nunca conheci,
E me mandava põe aqui, aqui!,
Com sua voz absurdamente fina.
Me dizia vem, vem, meu marinheiro,
Eu te dou por amor, não por dinheiro,
Vem com tudo, meu bem, não sejas mau.
Não a querendo grátis e nem paga,
Fugi dela, e ela, então, rogou-me a praga
Que mantém o meu mastro a meio pau.
Depois de bolinar-me numa esquina
E de autoproclamar-se ainda menina,
Me pediu que a comesse em pé, ali.
Era feia como uma triste sina,
Mais feia que ela nunca conheci,
E me mandava põe aqui, aqui!,
Com sua voz absurdamente fina.
Me dizia vem, vem, meu marinheiro,
Eu te dou por amor, não por dinheiro,
Vem com tudo, meu bem, não sejas mau.
Não a querendo grátis e nem paga,
Fugi dela, e ela, então, rogou-me a praga
Que mantém o meu mastro a meio pau.
Cotação do dia (10)
Quando conseguir finalmente sufocar a memória com o pano de chão, há de rir como os outros e derrubar bem-te-vis com suas gargalhadas.
Cotação do dia (8)
Um dia ela pousou a cabeça no seu ombro - este onde agora pesa toda a tristeza da vida.
Cotação do dia (7)
Quisera ter sido tão íntimo dela que pudesse mostrar no corpo a marca de suas dentadas.
Cotação do dia (6)
A última chibatada é a que dói, porque anuncia à triste carne que nunca mais o chicote fará o ar assobiar.
Cotação do dia (4)
Um homem deveria ter vergonha de chorar, mas antes deveria chorar todas as suas lágrimas, até a última - aquela que vem com um pouco do sangue da alma.
Cotação do dia (3)
A alma deveria ser aquela última fonte da qual pudéssemos extrair lágrimas quando as do coração tivessem secado.
Cotação do dia (2)
Tristes são os dias em que já nem as feridas atormentam e é preciso evocá-las cravando as unhas onde elas estavam.
Cotação do dia
O amor voltou estropiado como um gato namorador. Tinha só metade de uma das orelhas, haviam lhe arrancado o bigode e o nariz estava fora de lugar. Assim que chegou, enfiou-se embaixo das cadeiras, procurou no sofá, foi à cozinha. A dona, que o acompanhava triste e curiosa, sorriu aliviada quando, num canto da sala, ele encontrou a sétima vida.
Um poema (para Priscylla)
Talvez eu possa
antes de morrer
um poema escrever
que seja aquele
que sempre mereceste
Eu o devo a ti
desde o dia
em que nasci
desde o dia
em que nasceste
estrela querida
estrela-guia
dos meus infortúnios
e da minha alegria.
antes de morrer
um poema escrever
que seja aquele
que sempre mereceste
Eu o devo a ti
desde o dia
em que nasci
desde o dia
em que nasceste
estrela querida
estrela-guia
dos meus infortúnios
e da minha alegria.
Soneto de como o amor deve se expressar
Que tudo esteja a contento:
Os vivos em comunhão
Na santa devassidão
E os mortos no esquecimento.
Que saiba, em cada momento,
Ocupar-se cada mão
Em sua satisfação
E que se olvide o tormento.
Que cada colchão estale
E que cada casal fale
De gozos e putarias.
E o amor fique, se ficar,
Limitado a se expressar
Em vozes débeis e frias.
Os vivos em comunhão
Na santa devassidão
E os mortos no esquecimento.
Que saiba, em cada momento,
Ocupar-se cada mão
Em sua satisfação
E que se olvide o tormento.
Que cada colchão estale
E que cada casal fale
De gozos e putarias.
E o amor fique, se ficar,
Limitado a se expressar
Em vozes débeis e frias.
Cilício
Porque de dores gostamos
E amamos as agonias,
A vida não desfrutamos,
Morremos todos os dias
E amamos as agonias,
A vida não desfrutamos,
Morremos todos os dias
Carnes
Carnes sempre frágeis são,
Todas elas viram pós,
Não mudam nunca, só não
São mais fracas do que nós.
Todas elas viram pós,
Não mudam nunca, só não
São mais fracas do que nós.
"Minha poesia", de Tadeusz Rozewicz
"não justifica nada
não explica nada
não renuncia a nada
não abarca o todo
não realiza a esperança
não cria novas regras de jogo
não participa da festa
tem lugar circunscrito
que precisa preencher
se não é fala esotérica
nem fala original
se não espanta
está claro que assim é preciso
é obediente à própria fatalidade
suas próprias possibilidades
e limitações
perde para si mesma
não entra em lugar de outra
nem por outra pode substituir-se
aberta para todos
privada do mistério
tem muitas tarefas
que nunca poderá cumprir."
(Da coletânea Quatro poetas poloneses, publicada pelo Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e do Ministério da Cultura da República da Polônia.)
não explica nada
não renuncia a nada
não abarca o todo
não realiza a esperança
não cria novas regras de jogo
não participa da festa
tem lugar circunscrito
que precisa preencher
se não é fala esotérica
nem fala original
se não espanta
está claro que assim é preciso
é obediente à própria fatalidade
suas próprias possibilidades
e limitações
perde para si mesma
não entra em lugar de outra
nem por outra pode substituir-se
aberta para todos
privada do mistério
tem muitas tarefas
que nunca poderá cumprir."
(Da coletânea Quatro poetas poloneses, publicada pelo Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e do Ministério da Cultura da República da Polônia.)
domingo, 17 de agosto de 2014
À margem
Nós não sentiremos frio
E nem calor sentiremos.
Deram o apito, o perdemos,
E já se foi o navio.
Nem no inverno nem no estio
Jamais nós navegaremos.
Sempre à margem ficaremos,
Só vendo passar o rio.
E nem calor sentiremos.
Deram o apito, o perdemos,
E já se foi o navio.
Nem no inverno nem no estio
Jamais nós navegaremos.
Sempre à margem ficaremos,
Só vendo passar o rio.
Cotação do dia (10)
Um dia escreverei o decálogo dos infortúnios do amor. Será difícil a seleção. São tantos, tantas centenas, tão pontiagudos.
Cotação do dia (9)
Um cachorro late na rua, desconsoladamente. Talvez seja por amor. Gostaria de latir como ele, alto e sem pudor.
Cotação do dia (7)
Quando começar a babar - e já lhe falta pouco para isso -, a palavra amor lhe escorrerá pelo peito.
Cotação do dia (6)
Se tivesse aprendido uma palavra só, e fosse amor, ela lhe bastaria: tudo que acontece em sua vida se explica por ela.
Cotação do dia (5)
A grande questão filosófica que ele tem a resolver é se vale a pena trocar para sempre a paz pelos tormentos do amor. Deveria ter pensado nisso antes: já fez a troca.
Cotação do dia (4)
Um bebê chorando de fome. O pai foi embora com uma rameira, a mãe fugiu com o rapaz da padaria, e a tia encarregada de cuidar dele está no sofá, arfando nos braços do entregador de gás.
Cotação do dia (3)
Precisamos aprender a subornar os domingos para que comecem a nos ver com melhores olhos.
Cotação do dia
Um passarinho que, arrastado pela enxurrada, olha ainda uma vez para as árvores e para o céu.
www.rubem.wordpress.com
Falo hoje, na "Rubem", da feminilidade - nem sempre notada - que têm as alfaces e as couves-flores.
Monomania
No último dos meus dias, se eu tiver fôlego ainda e direito a uma palavra, ela será a mais bela de todos: amor.
Pigmalião
Idealizamos tanto o amor e tanto o enaltecemos que ele se tornou grande e belo demais para que o merecêssemos. Criamos uma religião que exigia adeptos melhores que nós.
Fernanda Lima
Um dos mil duzentos e quarenta e quatro dons de Fernanda Lima é o de aprimorar nossa percepção de beleza.
Rumo norte
Não temos muito a fazer.
Gostemos ou não da vida,
Não temos outra saída
A não ser a de viver.
Uma frase de Scott Fitzgerald
"Quando ele compra suas gravatas, tem de perguntar se o gim irá desbotá-las."
(Do livro Pileques, drinques e outras bebedeiras, traduzido por Donaldson M. Garschagen e publicado pela Má Companhia.)
(Do livro Pileques, drinques e outras bebedeiras, traduzido por Donaldson M. Garschagen e publicado pela Má Companhia.)
sábado, 16 de agosto de 2014
Cotação do dia (11)
Para que acreditem no nosso sofrimento é preciso fingir. Não aumentá-lo - diminuí-lo, aviltá-lo. As dores de amor são ridicularizadas há duzentos anos.
Discrição
Quando estamos sós, nós o amaldiçoamos. Mas não permitimos que estranhos digam uma palavra sobre o amor.
Moleque
Estava brincalhão o vento, esta manhã. Chamou uma garota de diabinha e um cachorro de porcalhão. A mim me chamou, com justiça, de velhote de merda.
Amuo
Quando minhas palavras não estão a serviço do amor, elas mesmas se sentem traídas e quase se recusam a sair dos lábios.
Um poema de Li Qingzhao
"Parou o vento. Até a poeira é perfumada.
Já é tarde. Não me apetece pentear-me.
As coisas estão aqui mas ele o homem não - tudo acabou.
Quero falar - mas correm-me as lágrimas.
Ouvi dizer que no Regato Duplo é ainda primavera.
Gostaria de ir até lá andar numa barca leve
Mas tenho receio que barca tão frágil
Não suporte o peso de tanto sofrimento."
(De Uma antologia de poetas chineses, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Já é tarde. Não me apetece pentear-me.
As coisas estão aqui mas ele o homem não - tudo acabou.
Quero falar - mas correm-me as lágrimas.
Ouvi dizer que no Regato Duplo é ainda primavera.
Gostaria de ir até lá andar numa barca leve
Mas tenho receio que barca tão frágil
Não suporte o peso de tanto sofrimento."
(De Uma antologia de poetas chineses, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)
Cotação do dia (11)
O amor poderia ser um pouco mais generoso em suas chicotadas. Menos assobios e mais contundência.
Cotação do dia (10)
Jamais deixaremos que o amor se arrependa e queira aliviar a dor das feridas que tão afetuosamente desenha em nossa alma.
Cotação do dia (9)
Seriam melhores nossos sábados, se o amor nos concedesse cotas extras de sofrimento.
Cotação do dia (8)
Fomos idiotas. Podíamos ter, entre tantas mortes que o amor nos deu, pedido algumas mais.
Cotação do dia (7)
Aqui, aqui, aqui, ele ia apontando partes do corpo. O amor, carrasco de fino trato, ia recusando todas: "Não, não, não." Até dizer, finalmente, com os dentes cintilando: "Só quero o teu coração."
Cotação do dia (6)
O amor nos torna perdulários. Por mais que dissipemos, temos sempre mais tristezas para gastar.
Cotação do dia (5)
Se é para o amor, o coração entrega-se antes mesmo de ser intimado e implora o pior de todos os castigos. É um viciado e necessita de doses cada vez maiores.
Cotação do dia (4)
As recordações do amor abrigam-se em nosso coração e, se nos alheamos delas por um instante que seja, nos cutucam com seu punhal de prata e nos incitam a berrar como bezerros.
Cotação do dia (3)
Quando chegar o inevitável dia de nos enfiarem em um asilo, precisaremos saber esconder bem o fiozinho que conseguimos furtar do sol naquela manhã preciosa.
Cotação do dia (2)
Houve um tempo em que o amor brilhava tanto em nosso rosto que nos chamavam para ajudar nas buscas noturnas de desaparecidos na serra da Mantiqueira.
Limite
Ter a compreensão de que os grandes afetos, se ultrapassassem o limite, como desejaríamos, estourariam como um balão de ar na mão de um menino desapontado.
Cotação do dia
Minha vida encalhou nos rochedos, certa manhã. Meu receio é que as ondas, no seu vaivém, me libertem. Não aceitarei dialogar com equipes de resgate. Só negociarei diretamente com o amor, se um dia ele vier.
O risco
Continuar vivendo tem, entre seus muitos inconvenientes, o risco de deturparmos nossas melhores lembranças e até de deletá-las.
No vermelho
Desde cedo meu cérebro não podia ser levado em alta conta. Agora ele vem mudando. Piorou muito.
Joguinho
As crianças logo aprendem a manejar os adultos e descobrem que eles não são objetos tão importantes.
Interinidade
Nós nos proclamamos semelhantes a Deus, e acabamos acreditando. Deus tirou férias e o mundo pesa em nossos ombros.
Soneto das boas notícias
Quem sabe um dia as notícias,
Pelo prazer de variar,
Se empenhem em nos poupar
E possam ser mais propícias.
E em vez das diárias desgraças,
Das bombas, dos atentados,
Dos caixas dinamitados,
Dos golpes e das ameaças,
Queiram nos satisfazer
E enfim nos oferecer
Enredos maravilhosos
Em que os baluartes do bem,
E os heróis do amor também,
Saiam no fim vitoriosos.
Pelo prazer de variar,
Se empenhem em nos poupar
E possam ser mais propícias.
E em vez das diárias desgraças,
Das bombas, dos atentados,
Dos caixas dinamitados,
Dos golpes e das ameaças,
Queiram nos satisfazer
E enfim nos oferecer
Enredos maravilhosos
Em que os baluartes do bem,
E os heróis do amor também,
Saiam no fim vitoriosos.
Soneto daquele que não tem brilho
De todo brilho sou falto.
Se corro, é devagarinho,
Se subo, subo um pouquinho,
Se caio, não caio do alto.
Sou pouco mais que um idiota
E pouco mais que um calhorda.
Não sou nem hábil na corda
E nem sei dar cambalhota.
E também para a ribalta
Todo talento me falta,
Jamais serei bom ator.
Nunca sei ser o que quero.
Não consigo ser sincero
E tampouco um fingidor.
Se corro, é devagarinho,
Se subo, subo um pouquinho,
Se caio, não caio do alto.
Sou pouco mais que um idiota
E pouco mais que um calhorda.
Não sou nem hábil na corda
E nem sei dar cambalhota.
E também para a ribalta
Todo talento me falta,
Jamais serei bom ator.
Nunca sei ser o que quero.
Não consigo ser sincero
E tampouco um fingidor.
Frase de Scott Fitzgerald
"Só havia as faculdades e os country clubs. Os parques eram desanimados, sem cerveja, e a maioria sem música. Terminavam na casa dos macacos ou em uma falsa vista francesa. Eram para crianças. Para adultos não havia nada."
(Do livro Pileques, drinques e outras bebedeiras, tradução de Donaldson M. Garschagen, publicado pela Má Companhia.)
(Do livro Pileques, drinques e outras bebedeiras, tradução de Donaldson M. Garschagen, publicado pela Má Companhia.)
sexta-feira, 15 de agosto de 2014
Soneto da imundície do mundo
Há momentos em que o mundo,
Como se já não bastasse,
Resolve enfear a face
E faz-se ainda mais imundo.
Capricha nisso, vai fundo,
Não há o que não trespasse,
Não quebre, não despedace,
Com seu rancor mais profundo.
Nós, homens, temos decerto
Um papel mais do que certo
Nessa tragédia encenada.
Nós somos sócios dessa obra.
Porém de Deus ninguém cobra
Nem jamais cobrará nada?
Como se já não bastasse,
Resolve enfear a face
E faz-se ainda mais imundo.
Capricha nisso, vai fundo,
Não há o que não trespasse,
Não quebre, não despedace,
Com seu rancor mais profundo.
Nós, homens, temos decerto
Um papel mais do que certo
Nessa tragédia encenada.
Nós somos sócios dessa obra.
Porém de Deus ninguém cobra
Nem jamais cobrará nada?
Fealdade
Se Deus me fosse piedoso,
Bem poderia trocar
Este meu rosto horroroso
Por um que eu possa encarar.
Bem poderia trocar
Este meu rosto horroroso
Por um que eu possa encarar.
Nefelibata é...
Na dúvida sobre o significado, se alguém o chamar de nefelibata reaja com palavras do pior calão, acompanhadas de certeiras descargas salivares. Se, porém, souber o que é nefelibata, complete os palavrões e as cusparadas com meia dúzia de tapas, uma centena de socos e uma grosa de pontapés.
Engano
Não, não era eu o velhote que Priscylla Mariuszka Moskevitch ajudava a atravessar a Paulista na altura do 2.073, hoje às oito da noite. Coisas boas há muito tempo não acontecem comigo. Enterraram um sapo na minha alma.
Flagelo
Quantos milhares de tolos precisarão morrer ainda para a OMS começar uma campanha de vacinação contra o amor?
Teleconhecimento
Conheço Priscylla Mariuszka Moskevitch da melhor forma possível: como um poeta, por olhá-la toda noite, julga conhecer uma estrela.
Ver sem ver
Como é bonito o mundo se não olhas para ele, se fechas os olhos e se o imaginas como o vias de cima de tua bicicleta, com as pernas descobertas, porque não sabias ainda que as pernas viriam a se transformar, assim como os lábios (fonte dos assobios que davas para economizar a campainha) e as mãos (ocupadas no guidom), em objetos sexuais. O vento morno começou a te perturbar, como perturba todos os homens, e logo estavas nas ruas sombrias buscando aqueles quartos soturnos, aqueles lençóis pingados de leite coalhado, aqueles travesseiros que guardavam marcas de batom e a saliva de mil quatrocentos e quarenta e quatro homens.
Chance perdida
Minha austera e disciplinadora mãe polonesa teria me dado uma surra se soubesse que eu viria a ser, depois de velho, não só um blogueiro, mas um tuiteiro (!).
Fantasia
Deu, claro, no que devia.
Pensamos, tolos que fomos,
Que sendo assim como somos
O amor nos redimiria.
Pensamos, tolos que fomos,
Que sendo assim como somos
O amor nos redimiria.
De corpo presente
O amor é um tipo sem par,
Tão patife e tão finório
Que a cara irá nos gozar
Até no nosso velório.
Tão patife e tão finório
Que a cara irá nos gozar
Até no nosso velório.
Sodoma
Aos que estivessem por vir
Tinham um modo seguro
De os genes não transmitir -
Mas talvez não o mais puro.
Tinham um modo seguro
De os genes não transmitir -
Mas talvez não o mais puro.
Miuçalha
Por preguiça ou convicção, falemos das coisas miúdas. Entre elas é que nós nos movemos e vivemos, queira ou não queira o emproado nariz da filosofia.
Meada
O amor às vezes disfarça
Tão bem aquilo que esconde
Que nem ele já sabe onde
O fato é fato ou é farsa.
Tão bem aquilo que esconde
Que nem ele já sabe onde
O fato é fato ou é farsa.
Abençoada
A mulher que se recusa a dar-se é a mais valiosa de todas. Ela nos exime de repetirmos cenas, de plagiarmos roteiros, de lamentarmos a obviedade dos desfechos. A mulher que se recusa a dar-se será sempre aquela que manteremos mais na imaginação do que na memória e amaremos como uma flor que nunca nos deixará remorsos na consciência, porque a outros coube a ventura de havê-la despetalado. A mulher que se recusa a dar-se vive em nós como um regato que, se dedos o tocaram, não foram os nossos. A mulher que se recusa a dar-se tem as águas limpas e nelas nadam pequenos peixes que as crianças apontam com surpresa e entusiasmo.
"Quando há luar", de Czeslaw Milosz
"Quando há luar e as mulheres passeiam em seus vestidos floridos
Espantam-me os seus olhos, as pestanas, e toda a organização do mundo.
Parece que de uma inclinação recíproca tão grande
Poderia afinal surgir a verdade definitiva."
(Do livro Quatro poetas poloneses, publicado pelo Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e do Ministério da Cultura da República da Polônia.)
Espantam-me os seus olhos, as pestanas, e toda a organização do mundo.
Parece que de uma inclinação recíproca tão grande
Poderia afinal surgir a verdade definitiva."
(Do livro Quatro poetas poloneses, publicado pelo Governo do Paraná, com apoio do Consulado Geral da República da Polônia e do Ministério da Cultura da República da Polônia.)
quinta-feira, 14 de agosto de 2014
Só dizer
Quem diz amor não deve esperar nenhum milagre. Dizer amor é, em si, um feito que qualquer taumaturgo assumiria.
Soneto das três mortes
Já tantas vezes morri,
Em julho, agosto, setembro,
Três vezes, se bem me lembro,
Por que continuo aqui?
Quem haverá de explicar-me?
Estamos quase em outubro,
E tento, mas não descubro
Quando é que irão enterrar-me.
Quando chegar o momento,
Não quero ter monumento,
Apenas uma inscrição:
"Viveu sempre pelo amor,
Foi o amor, só, seu senhor,
Sua bênção e danação."
Em julho, agosto, setembro,
Três vezes, se bem me lembro,
Por que continuo aqui?
Quem haverá de explicar-me?
Estamos quase em outubro,
E tento, mas não descubro
Quando é que irão enterrar-me.
Quando chegar o momento,
Não quero ter monumento,
Apenas uma inscrição:
"Viveu sempre pelo amor,
Foi o amor, só, seu senhor,
Sua bênção e danação."
Fernanda Lima
Os passos de Fernanda Lima têm certa presciência em matéria de arcos-íris. Minutos antes de eles aparecerem, ela já está caminhando em sua direção.
Notícias
Se Priscylla Mariuszka Moskevitch perguntar por mim, digam por favor que perdi a vontade de viver, mas que de resto vou indo muito bem.
Pecado
Reclamar de quê? Desde cedo adquiri o vício da poesia. Já naquele tempo eu sabia que Deus castiga os pecadores.
Terceirização
Se tivesses um gato, eu o instruiria a dar-te as amorosas unhadas que mereces e a mordiscar os botões de tua blusa.
Coautoria
O amor não deixa impressões digitais em nós. E, se as deixasse, nosso último gesto seria o de apagá-las, para absolvê-lo. O amor é o mais venerado de todos os assassinos.
Fernanda Lima
Em Fernanda Lima os adjetivos caem com naturalidade, como pingos mornos de chuva num lago.
Inveja
Alguém me disse ter visto Priscylla Mariuszka Moskevitch na Consolação, e eu invejei doentiamente seus olhos.
Lembrança
Na última vez em que a vi, Priscylla Mariuszka Moskevitch pisava num fiozinho de sol na Augusta. Em vez de recuar, o fiozinho a acompanhou.
Cotação do dia (12)
O amor rejeitado deveria manifestar-se aos borbotões, jorrar com intensidades de cachoeira, inundar tudo à sua passagem. Contenta-se em fluir modesto, como um pingo de chuva, e molhar tão levemente um lenço que melhor seria se as duas lágrimas tivessem sido enxugadas com um dedo discreto.
Cotação do dia (11)
Que estranho ver um homem tolo chorando por amor. Que bela essa estranheza, tão bela que talvez seja o único caso em que seja cabível chamar algo de sublime.
Cotação do dia (10)
No amor, são as perdas que contam e ficam, no resumo que acabamos fazendo. Quem ama jamais terá instintos de comerciante, mas a resignação de quem sabe que as coisas que realmente importam, como as flores e as estrelas, jamais estão ao alcance de um homem, num cofre ou numa caixinha.
Cotação do dia (9)
Melhor poder encarar o amor morto com a face pura. Que bom foi não o termos tocado, não procurado frestas que acolhessem nossas mãos. Fomos tolos, é o que dizem, e nós mesmos dizemos, quando a carne tenta se imiscuir em um assunto que é só da alma. Seja por que motivo for, podemos hoje nos lembrar dele, do amor, como o vimos no primeiro dia, tão luminoso e impalpável.
Cotação do dia (8)
A beleza da poesia está em que sempre há lugar, nela, para aqueles gritos da alma que, se dados em viva voz, fariam cair do céu chuvas de gargalhadas.
Cotação do dia (7)
Os outros certamente eram melhores do que nós. Quem não seria? Quando demos por nós, estávamos já no caminho de volta, com nosso caderno de versos não lidos no bolso, murchando como flores.
Cotação do dia (6)
Tão frágil é o amor. Aninha-se quieto em nosso coração, como um pássaro receoso. E, no entanto, nos dias em que o espinho da tristeza o toca, ele cresce em nosso peito e ameaça berrar como um bezerro destinado ao almoço da mulher faminta de carne.
Cotação do dia (5)
Se chorar sobre o amor morto fizesse algum efeito, as lágrimas já o teriam ressuscitado. Ou precisaremos chorar mais?
Cotação do dia (4)
O amor é uma ovelha tão branquinha, tão simpática, tão delicada, tão suscetível de mortes súbitas.
Cotação do dia (3)
Condenaram-me no tribunal do amor. Absolveram-me das acusações de concupiscência, de luxúria e depravação. O que pesou na minha sentença foram a pureza e a tolice.
Cotação do dia (2)
Permiti que o amor me devorasse em praça pública. Eram mil e quinhentos os espectadores, pelo menos. Felizmente deixaram que o amor me mastigasse lentamente, com aquela maldade e aquela perícia de que só o amor é capaz.
Cotação do dia
Meus sonhos têm sido tão tristes que, quando acordo, sorrio para a minha vida miserável.
Lucidez
Hei de manter alguma lucidez, ao menos a suficiente para conservar em bom nível minha loucura.
Má sorte
Teria uma estátua hoje na cidadezinha, se a sorte lhe fosse auspiciosa. Foi um dos primeiros brasileiros a trabalhar em Hollywood, em mil novecentos e nada. Começou como coadjuvante no cinema mudo, sem poder fazer ouvir sua bela voz de macho, e certamente chegaria a astro se já no seu terceiro filme não tivesse sido devorado por um crocodilo mal treinado pela produção.
Maricas
Sempre me calhou bem o papel de vítima. Ninguém como eu para se lastimar, reclamar de golpes sujos, sem nunca ter tido, embora vontade não faltasse, a coragem de aplicá-los também. Sempre fiquei só, como um maricas, afastado do campo de combate, espetando bonequinhos que representavam meus rivais e implorando, ora a Deus, ora ao Diabo, que os matasse, depois de fazê-los apodrecer longamente.
Restaurante
"Você está estranho hoje. O que aconteceu? Toda esta calma. Você sempre reclama de tudo..."
"Eu não reclamo de nada. Eu só reclamo da vida."
"Eu não reclamo de nada. Eu só reclamo da vida."
Um poema de Marina Tsvetáieva
"Negra como pupila, como pupila sugando
Luz - amo-te, noite aguçada.
Dá-me voz para cantar-te, ó promadre
Das canções, em cuja palma há a brida dos quatro ventos.
Clamando-te, glorificando-te, sou apenas
A concha, onde ainda não calou o oceano.
Noite! Já gastei meus olhos nas pupilas do homem!
Incinera-me, negro sol - noite!"
(De Indícios flutuantes, tradução Aurora F. Bernardini, publicação da Martins Fontes.)
Luz - amo-te, noite aguçada.
Dá-me voz para cantar-te, ó promadre
Das canções, em cuja palma há a brida dos quatro ventos.
Clamando-te, glorificando-te, sou apenas
A concha, onde ainda não calou o oceano.
Noite! Já gastei meus olhos nas pupilas do homem!
Incinera-me, negro sol - noite!"
(De Indícios flutuantes, tradução Aurora F. Bernardini, publicação da Martins Fontes.)
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
Kelly
No ombro dela, a tatuagem: Kelly. É bonita, eu a sigo. Quem sabe? Oi, Kelly, eu digo. Kelly, ela me diz, é a minha garota.
A abelhinha
Ela grita ai, e ergue o saiote pregueado do colégio. Coloca o dedo na coxa:
"Ai, já inchou, ai, ai."
A colega se abaixa para olhar. Diz que não está vendo nada.
"Como não está vendo nada? Ficou cega? Põe o dedo. Ai, como dói. Isso. É bem aí."
A outra aproxima o rosto da coxa:
"Ainda não estou vendo nada. O que tem aqui parece uma verruguinha, só. Vou dar uma sopradinha. Quer? Espera."
"Ai, só de você soprar, doeu de novo."
A outra dá um beijinho na coxa, em cima de verruga:
"Agora sara, você vai ver."
"Já melhorou. Ufa! Foi uma abelhinha, acho que aquela ali."
"Pode ser, sim. Ai. Ela me picou, também. Ai, Bem aqui no joelho. Ai, como está doendo. Ai, põe o dedo. Aí, isso, aí. Dá uma sopradinha."
"Ai, já inchou, ai, ai."
A colega se abaixa para olhar. Diz que não está vendo nada.
"Como não está vendo nada? Ficou cega? Põe o dedo. Ai, como dói. Isso. É bem aí."
A outra aproxima o rosto da coxa:
"Ainda não estou vendo nada. O que tem aqui parece uma verruguinha, só. Vou dar uma sopradinha. Quer? Espera."
"Ai, só de você soprar, doeu de novo."
A outra dá um beijinho na coxa, em cima de verruga:
"Agora sara, você vai ver."
"Já melhorou. Ufa! Foi uma abelhinha, acho que aquela ali."
"Pode ser, sim. Ai. Ela me picou, também. Ai, Bem aqui no joelho. Ai, como está doendo. Ai, põe o dedo. Aí, isso, aí. Dá uma sopradinha."
Recuo
Pensava em fazer aquilo ao ar livre, num dia ensolarado. Desistiu, por temer que os passarinhos o tomassem por um espantalho pendurado na cerca.
Planejamento
Porque seria necessariamente único e irrepetível, precisaria ser perfeito. A corda deveria, nas fotos do legista, cair-lhe bem como uma gravata.
Dupla escolha
Quem comete o desatino
De ao amor se submeter
Escolhe, ao assim fazer,
Sua morte e seu assassino.
De ao amor se submeter
Escolhe, ao assim fazer,
Sua morte e seu assassino.
Soneto da imperfeição da arte
Nós, seres mais que imperfeitos,
Mantemos a pretensão
De erguer com os nossos defeitos
A torre da perfeição.
Confiamos em nossa mão,
Nos nossos dedos perfeitos
E também na exatidão
E em todos os seus preceitos.
Erguemos o monumento
E não há nenhum momento
Em que deixemos de crer
Na sua notável grandeza,
Na sua soberba beleza
E em que eterno possa ser.
Mantemos a pretensão
De erguer com os nossos defeitos
A torre da perfeição.
Confiamos em nossa mão,
Nos nossos dedos perfeitos
E também na exatidão
E em todos os seus preceitos.
Erguemos o monumento
E não há nenhum momento
Em que deixemos de crer
Na sua notável grandeza,
Na sua soberba beleza
E em que eterno possa ser.
"Dentro de mim", poema de Carlos Nejar
"Dentro de mim há pássaros que cantam.
E eu me sinto cansado de partir.
Sou homem - mas não sei para onde ir.
Sou pássaro - não sei por que me espantam."
(De Melhores poemas de Carlos Nejar, publicado pela Global Editora.)
E eu me sinto cansado de partir.
Sou homem - mas não sei para onde ir.
Sou pássaro - não sei por que me espantam."
(De Melhores poemas de Carlos Nejar, publicado pela Global Editora.)
Recompensa
Louvamos o amor veementemente, demoradamente, e ele não nos concedeu o tempo nem de uma ejaculação precoce. Seu sorriso poderia ser considerado uma retribuição ao nosso, se na hora seus dentes não corressem para se ocultar no fundo da boca.
Patente
Quando começou a se mostrar insano, os outros o trataram ainda por algum tempo como primo, mas já de segundo grau.
Cotação do dia
Primeiro, a impressão de que todos sempre desistiram muito cedo de mim. Depois, a certeza.
Futuro
Você não será mais você, eu não serei mais eu. O amor, sabiamente, irá para a outra calçada, onde um jovem casal de estudantes estará trocando mochiladas.
Circunstância
Às vezes o amor é tão desmesurado que o amante não sabe expressá-lo em toda sua grandeza.
"Triste catástrofe", de Scott Fitzgerald
"Não queremos visitas, dissemos:
Elas vêm e não mexem o traseiro;
Vêm quando já nos recolhemos
E ficam presas por um aguaceiro;
Elas vêm quando tristes e amoladas
E bebem da garrafa do nosso coração.
Quando se esvazia, as hordas, alegradas,
Cantando o Rubayat embora se vão.
Resisto. Estava trabalhando, expliquei;
O criado morreu, eu estava sem gim.
Apareci barbado ou nem as caras eu dei
E houve várias outras histórias assim.
Chatos e amigos, tratei com descaso igual,
Olhar distante, impaciência e desdém.
Já os que tinham bom-senso por capital
Viram: queríamos a casa sem ninguém.
Porém, os tolos, os enjoados e o charlatão,
O tagarela, a alma solitária, o rico de araque,
Que não ousavam nos incomodar até então,
Vendo-nos sozinhos, armaram o ataque.
Tomando por atenção o silêncio; e a fúria, até,
Por eco de suas próprias batalhas campais,
Exultaram por não termos o 'nariz em pé'.
Mas os agradáveis não voltaram, nunca mais."
(De Pileques, drinques e outras bebedeiras, tradução de Donaldson M. Garschagen, publicado pela Má Companhia.)
Elas vêm e não mexem o traseiro;
Vêm quando já nos recolhemos
E ficam presas por um aguaceiro;
Elas vêm quando tristes e amoladas
E bebem da garrafa do nosso coração.
Quando se esvazia, as hordas, alegradas,
Cantando o Rubayat embora se vão.
Resisto. Estava trabalhando, expliquei;
O criado morreu, eu estava sem gim.
Apareci barbado ou nem as caras eu dei
E houve várias outras histórias assim.
Chatos e amigos, tratei com descaso igual,
Olhar distante, impaciência e desdém.
Já os que tinham bom-senso por capital
Viram: queríamos a casa sem ninguém.
Porém, os tolos, os enjoados e o charlatão,
O tagarela, a alma solitária, o rico de araque,
Que não ousavam nos incomodar até então,
Vendo-nos sozinhos, armaram o ataque.
Tomando por atenção o silêncio; e a fúria, até,
Por eco de suas próprias batalhas campais,
Exultaram por não termos o 'nariz em pé'.
Mas os agradáveis não voltaram, nunca mais."
(De Pileques, drinques e outras bebedeiras, tradução de Donaldson M. Garschagen, publicado pela Má Companhia.)
terça-feira, 12 de agosto de 2014
Segunda opinião (para o Verissimo)
Já fui melhor. Já tossia,
Mas não me sentia mal,
Era uma tosse teatral,
Agora é que é pneumonia.
Mas não me sentia mal,
Era uma tosse teatral,
Agora é que é pneumonia.
Soneto da possível ressurreição
Talvez ainda tempo seja
De ir ressuscitar o amor,
De procurá-lo onde for
Que ele sepultado esteja.
Talvez se lembre de nós,
De nosso afeto profundo
E se safe lá do fundo
Quando ouvir a nossa voz.
E nesse dia talvez
Nos explique finalmente,
O que até hoje não fez,
Por que decidiu morrer
Quando mais intensamente
O queríamos viver.
De ir ressuscitar o amor,
De procurá-lo onde for
Que ele sepultado esteja.
Talvez se lembre de nós,
De nosso afeto profundo
E se safe lá do fundo
Quando ouvir a nossa voz.
E nesse dia talvez
Nos explique finalmente,
O que até hoje não fez,
Por que decidiu morrer
Quando mais intensamente
O queríamos viver.
Sabrina Sato
Os filósofos nunca foram categóricos como Sabrina Sato. Ela jamais vacila antes de sentenciar: é verdade.
Marketing
Os novos tempos chegaram.
Iguais aos antigos eram,
Porém novos se disseram
E os homens acreditaram.
Iguais aos antigos eram,
Porém novos se disseram
E os homens acreditaram.
"Cântico", de Carlos Nejar
"Limarás tua esperança
até que a mó se desgaste;
mesmo sem mó, limarás
contra a sorte e o desespero.
Até que tudo te seja
mais doloroso e profundo.
Limarás sem mãos ou braços,
com o coração resoluto.
Conhecerás a esperança,
após a morte de tudo."
(De Melhores poemas de Carlos Nejar, publicado pela Global Editora.)
até que a mó se desgaste;
mesmo sem mó, limarás
contra a sorte e o desespero.
Até que tudo te seja
mais doloroso e profundo.
Limarás sem mãos ou braços,
com o coração resoluto.
Conhecerás a esperança,
após a morte de tudo."
(De Melhores poemas de Carlos Nejar, publicado pela Global Editora.)
Milton Neves
Enquanto um texto tu escreves
Com sacrifício incomum,
Lá na rádio Milton Neves
Leu já bem mais de mil e um.
Com sacrifício incomum,
Lá na rádio Milton Neves
Leu já bem mais de mil e um.
Caneladas do Vitão
De calcanhar ou canela,
Na arte sutil ou na sola,
Vitão ou estoura a bola
Ou então sai liso com ela.
Na arte sutil ou na sola,
Vitão ou estoura a bola
Ou então sai liso com ela.
Cotação do dia (8)
Suportar todos os dias esse sol que, tendo iludido Van Gogh, Sylvia Plath e Florbela Espanca, não deveria preocupar-se em engambelar gente insignificante como eu.
Cotação do dia (7)
Se o expulsassem do convívio social, gostaria que o chamassem pelo nome certo, não pelo eufemismo de hanseniano.
Cotação do dia (6)
Torcer para que, no Inferno, não seja uma diabinha que o faça tostar uniformemente na chama. Certamente se apaixonaria por ela, ainda que fosse vesga e fedorenta.
Cotação do dia (5)
Ir a qualquer lugar bem distante, onde a paisagem o estranhasse tanto que ele mesmo acabasse por perder a identidade. Ir não ao Havaí nem a Cancún, porque pareceria turismo. Ir ao Inferno, à merda ou à puta que o pariu, como uma vez lhe sugeriram.
Cotação do dia (4)
Em vez de se lastimar como um bezerrinho de história infantil, deveria ter ido a Amsterdã, escolhido meia dúzia daquelas mulheres de vitrine e mandado embrulhar todas para viagem.
Cotação do dia (3)
Conhece bem o assunto. Quando menino, a menina que ele amava e julgava digna de ser beijada só por anjos, numa tarde, na quermesse, vendeu beijos a todos os garotos do bairro, enquanto ele rabiscava poemas num papel em que todos os "is" vertiam lágrimas.
Cotação do dia (2)
Disseram-lhe que deveria cultuar a poesia e o amor. Tinha dezesseis anos e uma persistência que nem sequer imaginava. Cultua hoje, ainda, seus deuses. Pouco mudou nele. Tem o mesmo ar de idiota, que considera produto do misticismo.
Cotação do dia
Vai ainda ao Centro Cultural, em busca de livros. Prefere os mais tóxicos, os letais, os de poesia. Não tem mais nada a perder. Sente, quando anda, os passos da morte logo atrás. Cada dia tem mais vontade de parar, para que ela o alcance.
Fernanda Lima
Aos trinta e três alunos que apontaram Fernanda Lima como sinônimo de realeza o professor censurou levemente, pela obviedade da resposta. Aos outros quatro disse, com jeito, que poderiam ter apresentado exemplos melhores, como o dos colegas.
A tarefa
Quando o destino lhe atribuiu a tarefa de morrer por amor, confirmou-se a previsão feita por uma das avós, quando ele era menino, de que seria alguém muito especial.
Afinco
Já deve estar em tua estante a traça que, no livro que te dei, o de poesia, exterminará toda palavra amor onde ela estiver - até aquela que, com a caneta trêmula, escrevi na dedicatória que te fiz.
Três fases
De manhã, minha alma vocifera. À tarde, murmura. E à noite é tão dócil que ronrona como uma gata velha satisfeita e dorminhoca.
Soneto do amor simplesinho
Palavras tolas de amor,
Quem não as disse uma vez?
Eu fiz isso, você fez,
Isso não é um horror.
Se o amor verdadeiro for,
Jamais terá sensatez
E comete estupidez
Quem quiser a isso se opor.
O amor teorias não ama
E de discursos reclama.
Mas a uma amável cartinha
Não costuma resistir,
E nem se o fazem ouvir
Os versos de uma quadrinha.
Quem não as disse uma vez?
Eu fiz isso, você fez,
Isso não é um horror.
Se o amor verdadeiro for,
Jamais terá sensatez
E comete estupidez
Quem quiser a isso se opor.
O amor teorias não ama
E de discursos reclama.
Mas a uma amável cartinha
Não costuma resistir,
E nem se o fazem ouvir
Os versos de uma quadrinha.
"Poema", de Augusto Frederico Schmidt
"Era um grande pássaro. As asas estavam em cruz, abertas para os céus.
A morte, súbita, o teria precipitado nas areias molhadas.
Estaria de viagem, em demanda de outros céus mais frios!
Era um grande pássaro, que a morte asperamente dominara.
Era um grande e escuro pássaro, que o gelado e repentino vento sufocara.
Chovia na hora em que o contemplei.
Era alguma coisa de trágico,
Tão escuro, e tão misterioso, naquele ermo.
Era alguma coisa de trágico. As asas, que os azuis queimaram,
Parecia uma cruz aberta no úmido areal.
O grande bico aberto guardava um grito perdido e terrível."
(De Poesia completa, publicação da Topbooks.)
A morte, súbita, o teria precipitado nas areias molhadas.
Estaria de viagem, em demanda de outros céus mais frios!
Era um grande pássaro, que a morte asperamente dominara.
Era um grande e escuro pássaro, que o gelado e repentino vento sufocara.
Chovia na hora em que o contemplei.
Era alguma coisa de trágico,
Tão escuro, e tão misterioso, naquele ermo.
Era alguma coisa de trágico. As asas, que os azuis queimaram,
Parecia uma cruz aberta no úmido areal.
O grande bico aberto guardava um grito perdido e terrível."
(De Poesia completa, publicação da Topbooks.)
segunda-feira, 11 de agosto de 2014
Medidas
Ler um livro de Haruki Murakami pode ser um impulso de curiosidade. Ler dois livros de Haruki Murakami é um ato de estoicismo.
Soneto do tolo que concedeu perdão
Podia ter se matado,
Porém ficou versejando,
Buscando rimas em ando,
Gozando ser mal amado.
Podia ser apanhado
Por uma blitz, um comando,
Nu, numa praia, queimando
As costas e um bom baseado.
Podia ter engolido
Um pó de vidro moído
Ou se espetado um facão,
Mas, tolo como nasceu,
Açucarou o ódio e deu
A quem o matou perdão.
Porém ficou versejando,
Buscando rimas em ando,
Gozando ser mal amado.
Podia ser apanhado
Por uma blitz, um comando,
Nu, numa praia, queimando
As costas e um bom baseado.
Podia ter engolido
Um pó de vidro moído
Ou se espetado um facão,
Mas, tolo como nasceu,
Açucarou o ódio e deu
A quem o matou perdão.
Fadiga dos materiais
Até os cânceres andam incompetentes e nem sempre são capazes de concluir seu trabalho.
Calidez
Sonha com coxas grandes e macias. Mesmo nas manhãs de inverno, pode acordar todo gelado, mas as mãos parecem sempre duas brasas.
Soneto em que se narra a rapidez do amor
Falar do amor ternamente,
O seu encanto cantar
E sua história contar
Como ela ocorreu realmente.
Dizer como de repente,
Logo depois de chegar,
Ele soube se apossar
De mim tão completamente
E como eu, tendo me dado,
Me dei com o maior agrado
E a servidão abençoei.
E, como tal qual surgiu,
Rapidamente sumiu,
Por que razão eu não sei.
O seu encanto cantar
E sua história contar
Como ela ocorreu realmente.
Dizer como de repente,
Logo depois de chegar,
Ele soube se apossar
De mim tão completamente
E como eu, tendo me dado,
Me dei com o maior agrado
E a servidão abençoei.
E, como tal qual surgiu,
Rapidamente sumiu,
Por que razão eu não sei.
Um poema de Omar Khayyam
"Eu jurei muitas vezes Arrependimento.
Acaso estava ébrio à hora do juramento?
Eis que agora desponta a flórea Primavera
E minha gasta Penitência dilacera."
(De Rubaiyat, tradução de Jamil Almansur Haddad, publicado pela Biblioteca Universal Popular.)
Acaso estava ébrio à hora do juramento?
Eis que agora desponta a flórea Primavera
E minha gasta Penitência dilacera."
(De Rubaiyat, tradução de Jamil Almansur Haddad, publicado pela Biblioteca Universal Popular.)
Simone
Quando penso em Simone de Beauvoir,
Penso na Torre Eiffel, penso em Montmartre,
Em como gostaria de ver Sartre
E nele um par de chifres colocar.
Penso na Torre Eiffel, penso em Montmartre,
Em como gostaria de ver Sartre
E nele um par de chifres colocar.
Morosidade
Meu filho Raul, que às vezes lê minhas sandices, diz que eu devo ser o suicida mais longevo da face da Terra.
Cotação do dia (8)
No dia em que o recusaram, deveria ter seguido em linha reta, sempre, sempre. Talvez houvesse para ele a compensação de um daqueles abismos que existiam na Terra quando ela não era redonda.
Cotação do dia (7)
Que doces eram aquelas recusas, que ternas aquelas rejeições, que felizes aquelas infelicidades, que falta fazem todas elas ao coração tão habituado a, como um cão, lamber o chicote do dono.
Cotação do dia (6)
Gostaria de caminhar, olhar para as árvores, respirar - qualquer coisa que se parecesse com viver, ainda que com o amor tenham morrido todas as melhores possibilidades.
Cotação do dia (5)
Dizer lentamente Rua Barão de Paranapiacaba ou Avenida Brigadeiro Luís Antônio - e imaginar em cada sílaba dita um passo dado por ela na Barão ou na Brigadeiro, no dia, ou dias, em que cada um desses nobres logradouros paulistanos recebeu a mais luminosa visita de sua história e o sol se fixou nos cabelos loiros dela, esperando que o acolhessem, que o aceitassem, que o conduzissem sempre para onde quer que ela os levasse fulgentes como o espírito das manhãs. Dizer lentamente, como um mantra, Alameda da Mulher Que Rivaliza Com As Fadas e dar à imaginação a mais grata de todas as tarefas que já teve.
Cotação do dia (4)
Raios, relâmpagos, carros desgovernados, moléstias raivosas - nenhum certeiro, nenhuma fatal. E os dias fluindo, fluindo, como um rio sem foz.