terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Contingência

Morrer é uma daquelas hipóteses que o tempo vai tornando apetecíveis, como certos frutos.

O hábito

Tenho vivido para escrever estas coisinhas. Não precisam agradecer. Só sei fazer isso, ainda que o faça tão mal. Não é algo que mereça reverência. É um hábito que aderiu a mim desde a adolescência e que, tendo parecido tão saudável e promissor, é só isso: um hábito ao qual já não importa anexar adjetivos.

Conversa de escritores

"Então ficamos assim. Se houver eternidade, nós nos encontramos lá. Dê um jeito de não falhar, hem?"

De supetão

Gosto das frases que me saem sem passar pelo filtro do pensamento. Sempre desconfiei dos filósofos.

Substituto (para Silvana Guimarães)

Triste foi a época em que, por garantia de fábrica, toda caixinha de música vinha com um passarinho.

Viagem (para Nicole Drewnick)

Uma formiga pergunta a outra:
"Dallas é muito longe?"
"Acho que é. Por quê?"
"Preciso ir lá visitar minha amiga Nicole."
"Quem? Sua amiga quem?"
"Nicole. Tchau."
"Ei, aonde você vai com tanta pressa?"
"Eu já disse. Você é uma formiga muito surda."

"Estadão" no blog (para Ludenbergue Góes)

Escrevi em 2013, aqui, relatos de situações presenciadas por mim no jornal e que, pela participação de importantes personagens do jornalismo, talvez possam servir, hoje ou no futuro, como fonte de informação. Se alguém se interessar por esses relatos, o procedimento é, no índice do blog (lá em cima, à esquerda), digitar duas palavras: no jornal. São mais de cinquenta pequenas histórias do tempo em que trabalhei tanto na Major Quedinho quanto na Caetano Álvares como se estivesse vendo um jogo no Parque São Jorge. No Parque São Jorge, por sinal, se passa uma das histórias que compartilhei com Ludenbergue Góes, a quem dedico a série. Se não fosse o Góes, eu não teria saído da revisão para a redação e não teria sido - se é que fui - cronista.

As meninas (para Alfredo Aquino)

Mariana Ianelli e a literatura são duas meninas pulando corda. Sorriem uma para a outra, chamam-se pelo nome, às vezes pelo apelido.

Limite (para Ana Farrah Baunilha)

Misericórdia
ninguém aguenta mais
a história de adão  e de eva
e do pomo da discórdia.

Ato final

Não sabe se, na hora de morrer, ele mesmo se encarrega ou deixa tudo nas mãos de Deus. Teme que haja alguma falha no item grandiosidade.

Indícios

Não, ainda não morremos. Parece que respiramos, ainda, e continuamos escrevendo tão mal como sempre.

... saecula saeculorum

Sejamos coerentes até o fim. Morramos ressentidos, como vivemos. Se não nascerem flores em nosso túmulo, que falta nos farão?

Ibope

Há quem não goste de Woody Allen. E há quem diga que isso é normal.

Hoje (para a Glorinha Kalil)

Ninguém mais se diz adeus. Para a etiqueta de hoje, basta um deu, um fui, ou um já era. Até um tchau parece cerimonioso demais.

Ruínas (para Mariana Ianelli)

Também eu pensei ser mais sensível que todos e lastimei faltar-me talento para expressar a grandeza espiritual que havia em minha alma. Sim, também eu pensei ter uma alma, e meu rosto não era este, no espelho.

Parentela (para Aden Leonardo)

No tempo da rima
a prima pobre
rimava com a rica prima.

Ao luar

Na primeira noite do menino, um pássaro improvisou uma cantiga de ninar no cemitério.

Indicações

Mortos de sede
as árvores e o rio indicam
este é o caminho

Sigamos em frente sem duvidar
não há mais como errar
em frente sempre
em frente.

Haicai

Um haicai é uma perfeição instantânea, um milagre da concisão.

Por terem, por não terem (para Alfredo Aquino)

Hoje, há mais tolerância com os poetas, talvez porque alguns já consigam ser remunerados por seu trabalho - se bem que vários sejam criticados exatamente por isso, que os puristas consideram a mais execrável das simonias.

Aprendizado

A literatura faz com que eu me conheça bem. Sou um mau escritor, mas sei que seria pior em qualquer outra coisa a que me dedicasse.

Início de "O falcão maltês", de Dashiel Hammett

"O maxilar de Samuel Spade era longo e ossudo, seu queixo um V proeminente sob o V mais flexível da boca. As narinas curvavam-se para trás, fazendo um outro V menor. Os olhos amarelo-pardos eram horizontais. O motivo V era retomado de novo por espessas sobrancelhas saindo de duas rugas gêmeas sobre o nariz adunco e erguendo-se na parte externa, e o cabelo castanho-claro descia das têmporas altas e achatadas, em ponta sobre a testa. Dava a impressão um tanto divertida de um louro satanás."

(Tradução Cândido Villalva, Abril Cultural.)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Manoel e Mario (para Silvia Galant François)

Manoel de Barros e Mario Quintana têm Ma e Ma no nome. Passarinhos mamíferos, mamaram nos peitos da Poesia.

Adorno

O cisne é um dos bibelôs da poesia.

Post it (para Alfredo Aquino)

Que morrer não chegue a ser uma palavra de ordem, se puder ser só um lembrete.

Biblioteca (para Alfredo Aquino)

Na estante, os imortais da literatura acotovelam-se, lutando por espaço, enquanto as traças cumprem infatigavelmente as ordens do tempo.

Covardia (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Há homens que não se matam porque sua coragem não é suficiente para cometer um deicídio.

Assim sim, assim não

Se optarmos pelo ceticismo, que haja nisso uma demonstração de humildade e não, como habitualmente, a bravata de uma intolerável superioridade.

Papéis

O amor é sempre o rei, ou a rainha. O enamorado é sempre o bobo da corte.

Ambição

Os poetas românticos eram egoístas e gananciosos. Cada um deles queria ser proprietário de toda a tristeza do mundo.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Se Mario Quintana e a poesia tinham um pacto, era desses que se acertam com um olhar e um sorriso.

Lente rosa

O outono da vida não é bem como costuma descrevê-lo a generosa literatura.

Egotização

Pode ser só uma desavergonhada desculpa, mas gosto de pensar que me exprimo na primeira pessoa para me sentir mais honesto e não lançar sobre ombros alheios minha abjeção.

Níveis

Talvez ser Dostoiévski seja um pouco menos difícil que ser Shakespeare.

Natureza

Lembro-me de que me aconselharam a ser paciente e esperar que amadurecessem meus frutos literários. Hoje eles já nascem podres.

O pacto

Uma pergunta que venho me fazendo: tenho mesmo algo a dizer ou ainda estou recebendo ordens daquele menino que queria ser Monteiro Lobato?

Roteiro

Nos enfiarão
numa embalagem cara
nos adornarão com flores
dirão palavras doces
que não ouviremos
e nos levarão
para um lugar do qual
não saberemos voltar.

Presunção

Esperar que nos considerem escritor é supor que possa alguém estar disposto a aceitar aquilo que chamamos de nossas tolices.

Momo (para Silvana Guimarães)

Soberanos no carnaval
imperadores e imperatrizes
açoitam seus escravos
com chicote dourado
e pompa real

Onde estão os exploradores
as meretrizes
os táxis com cheiro de pecado
e os motéis desmoronados
até o último caibro
pelos clamores do sexo ocasional?

Serviço

Chamar um poeta é a solução se a tarefa é melhorar a imagem de um arco-íris.

Marco

Depois da morte, nossas vidas nunca mais serão as mesmas.

Frases de Amiel

"A fé é um engano voluntário e por amor; é a partilha de uma ilusão, de um sonho, de uma esperança, de um ideal."

"O ceticismo é mais sábio, mas paralisa a vida, suprimindo o erro. A maturidade de espírito consiste em entrar no jogo obrigado, dando-se o ar de quem é por ele enganado. Essa complacência afável, corrigida por um sorriso, é ainda o partido mais engenhoso. A gente se presta a uma ilusão de óptica, e essa concessão voluntária assemelha-se à altivez. Uma vez prisioneiro na existência, é preciso tolerar de boa vontade as suas leis. Enfurecer-se contra ela conduz somente a cóleras inúteis."

"Não há religião séria sem trevas, como não há fé ardente sem fanatismo."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações.)

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Ciclo (para Silvana Guimarães)

Foi e será sempre assim.
Tudo vai indo, vai indo,
E o que ainda não está findo
Caminha já para o fim.

Significado (para Arlete Franco)

O rio de Piracicaba
tem peixe
que nunca acaba.

Prestígio (para Alfredo Aquino)

Morrer significa que fizemos parte do espetáculo até a cena final.

Ajuste

Convém teres com as palavras intimidades de noites passadas em cabanas, com a lua espiando fora e o banheiro no mato.

Cautelas

Meu coração
quando te couber enterrá-lo
se fores tocá-lo
será melhor se o tocares
com mãos enluvadas
e narinas tapadas
para não te contaminares.

Perfeição

O arco-íris é um planejado desperdício de cores.

Linhagem

O amor é um filho da puta por gosto e convicção.

Mario Quintana

Não sei sou escritor. Sei que seria, e talvez bom, se tivesse começado a ler Mario Quintana antes.

Desempenho

O arco-íris capricha quando há entre seus espectadores mulheres dadas ao vício da poesia.

Na Rubem, hoje

Falo do amor e de outras incongruências (www.rubem.wordpress.com).

Início de "O voo da rainha", de Tomás Eloy Martinez

"Por volta das 11 horas, como todas as noites, Camargo abre as cortinas da sala na rua Reconquista, coloca a poltrona a um metro da janela para que a penumbra o proteja e espera que a mulher entre em seu campo de visão. Às vezes ele a vê passar como uma rajada pela janela em frente e desaparecer no banheiro ou na cozinha. Do que ela mais gosta, porém, é de postar-se diante do espelho do quarto e despir-se com suprema lentidão."

(Editora Objetiva.)

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Dispensa (para Djanira Pio)

Chover no dia do enterro? Para quê? As flores em nosso peito não poderão ser regadas.

Sintonia (para Alfredo Aquino)

A única previsão que deveria nos interessar é a do tempo que nos resta.

Causa

O problema não são os sonetos. São os sonetistas.

Incompatibilidade

Quem vive dizendo palavras como bálsamo, bênção e refrigério para se referir à literatura deveria ser impedido de exercê-la.

Alegações finais

Pediu à Morte que tenha pena
e lhe dê mais um dia
uma semana uma quinzena
ou então até a próxima liquidação
de verão das casas bahia.

Ambiente (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Na cama, podem soar pecaminosamente triságios como amor, amor, amor.

Utilidade

Assim como uma cápsula de cianureto, o amor ocupa pouco espaço num bolso ou numa bolsa e pode a qualquer momento por que é considerado letal.

Forma de tratatamento

Chamar um amor de amorzinho é uma prova de afeto ou uma expressão preconceituosa?

Prevenção (para Liberato Vieira da Cunha)

Um poeta nunca deve se esquecer de verificar os antecedentes quando deixa entrar uma nova musa em seu coração.

Números

Quem, em vez de uma, lança dez garrafas com mensagens ao mar, tem menos ou mais esperança?

Alívio

Quando lido com a poesia, sinto-me melhor ou menos impuro, como um menino que, tendo furtado um objeto, descobre que ele não é tão valioso assim.

Realização

A poesia é uma de nossas tentativas de deixar algum traço nosso em alguma parte. A poesia é um traço na areia.

Rede social

Criticamos alguns por serem célebres e outros por não serem.

Pingos nos is (para Mariana Ianelli)

Há os que não toleram sentidos dúbios, sugeridos, Uma rosa deve ser explicitamente uma rosa, com todas as quatro letras, de preferência maiúsculas. Não gostam de poesia e são por ela entusiasticamente correspondidos.

"Início de "O verão antes da queda", de Doris Lessing

"Uma mulher estava parada na escada dos fundos, os braços cruzados, esperando. Pensando? Ela teria dito que não. Estava tentando apoderar-se de alguma coisa, ou desnudá-la, de forma que pudesse olhá-la e defini-la."

(Tradução de Ana Lúcia Deiró Cardoso, Editora Abril.)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Resposta

Nós negamos o amor, nós o declaramos morto, e ele se ergueu diante de nós, e com as mãos cheias de terra apertou nosso pescoço: "Estou aqui."

A lição

Depois de tantos anos de insana escrita, aprendi pelo menos isto: não deveria ter começado.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

A poesia de Mario Quintana não vem em caixas ou engradados. É como aquelas frutas que um menino colhe num quintal de casa, sob o olhar encantado de um avô.

Registro (para Ana Farrah Baunilha)

Seu grande amor
foi o primeiro
depois do décimo terceiro.

Passadistas

Há quem franza o nariz quando menciono a morte. E, no entanto, estou só falando do futuro.

Segunda opinião (para Marcelo Mirisola)

Às vezes penso que escrever é uma tolice. Às vezes tenho certeza.

Amadorismo

Logo estaremos tão maravilhosamente mortos que nossos cochilos vespertinos parecerão uma brincadeirinha de verão.

Marinha (para Celina Portocarrero)

O peixe no anzol -
um descuido de prata
fisgado pelo sol.

Mau exemplo (para Luís Giffoni)

Quando percebeu que andava imitando Shakespeare, era tarde. Estava já no quarto livro, todos execrados pelos críticos.

Louvre (para Patricia Mesquita)

Senhores visitantes, críticas sobre a Mona Lisa devem ser dirigidas diretamente ao Sr. Da Vinci.

Placa (para Alfredo Aquino)

É proibido jogar  gatos e flores na caçamba.

Aquele (para Mariana Ianelli)

Poeta é aquele sujeito que, embora ninguém lhe pergunte, vive dando opinião sobre flores e passarinhos e refazendo suas avaliações sobre as estrelas.

Paliativo

Dormir é uma provisória e insuficiente solução para a questão de morrer.

A hora

A proximidade da morte vai me tornando triste. Ah, tudo que perderei... Pensar que posso estar reunindo pela última vez os documentos para o IR...

A doce embriaguez da fama

Hoje no portal do Estadão.

Início de "Os machões não dançam", de Norman Mailer

"Quando a maré baixava na praia de madrugada, eu acordava ao som da conversa das gaivotas. Nos piores dias, era como se estivesse morto e os pássaros devorando meu coração. Mais tarde, depois de cochilar por algum tempo, a maré subia, cobrindo a areia docemente como a sombra que desce nas colinas quando o sol se esconde atrás das montanhas, e as primeiras ondas começavam a bater nos suportes do ancoradouro embaixo da janela do meu quarto, o choque subindo, num fragmento de tempo, do quebra-mar para as mais íntimas passagens da minha carne. 'Bum!', batiam as ondas na amurada , e era como estar sozinho num barco, no mar sombrio."

(Tradução de Aulyde Soares Rodrigues, publicação da Editora Nova Fronteira.)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Conflito de jurisdição

Perguntem-me de tudo: da vida, da morte, de passarinhos, de borboletas. Mas, se a pergunta for sobre poesia, dirijam-se diretamente a quem conhece o assunto: Maria Bethania e Adriana Calcanhotto.

Correio

Depois de um sonho em que recebeu finalmente o Nobel, o escritor foi acordado de manhã pelo carteiro. Era um comunicado oficial, não de Estocolmo, mas de sua cidade: estava sendo notificado e multado por um excesso no consumo de água.

Alô, fregueses

Às vezes, minha preocupação diária de oferecer aqui textos novos me leva a comparar-me a um desses vendedores de frutas que percorrem com seus barulhentos veículos as ruas da periferia de São Paulo. Tenho a pretensão de achar que aos leitores farão falta minhas mirradas laranjas, minhas bichadas goiabas e minhas murchas melancias.

Requinte

Num tempo em que o barroco andou mais em moda, lembro-me de que os escritores entusiastas da escola, antes de considerarem concluído um texto, falavam da necessidade de dar-lhe ainda uma penteada.

Enjoo

Em alguns homens, a palavra amor é como um disco antigo de vinte faixas, emperrado justamente em Jingle bells.

Precaução

Crie a reputação de chato para livrar-se da companhia de outros.

Recurso

Quando é tentado pela ideia de ser famoso, imediatamente - ou quase - se sente culpado, por seu ego. Pensa então numa atenuante: tenta convencer-se de que gostaria de conhecer a fama simplesmente para saber como lidar com ela.

Lesa-poesia

Os versos que mutilamos nos levarão ao tribunal, e um juiz parnasiano nos condenará a pagar a indenização máxima, além das custas processuais.

Anticlímax

O caminhão do lixo recolheu
os poemas que os mendigos recusaram
e os que o vento não levou.

Decadência

Seus epigramas foram perdendo a leveza. Alguns, no final, chegavam a pesar meio quilo.

Nojo

Inventar um amor, dar-lhe asas, fazê-lo bicar estrelas como se fossem frutos e depois matá-lo, por uma razão fútil ou nenhuma, é a mais repugnante maneira de invocar e atrair a poesia.

Âmago

Meu maior prazer, hoje, é fingir-me de morto. Que delícia é deitar-me, fechar os olhos e os ouvidos e ir afundando no escuro, camada por camada, até o reino do absoluto silêncio e da paz. Creio ser talentoso nisso e até penso ter certo futuro.

Início do conto "Barato em agosto", de Graham Greene

"Era barato em agosto: o sol essencial, os bancos de coral, o bar de bambu e os calipsos - todos a preços reduzidos, como as combinações levemente manchadas numa liquidação."

(Do livro Empreste-nos seu marido, tradução de José Laurênio de Melo, Civilização Brasileira.)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Happy end

Talvez a Morte venha nos buscar de limusine e seja uma versão inacreditavelmente aperfeiçoada de Sharon Stone no seu apogeu.

Epifania (para Jiro Takahashi)

Todo pássaro tem na vida seu instante de haicai.

Recado

Amor? Já pedi isso a vocês? Sei que sim, mas finjam que não e considerem a proposta.

O de sempre

Quando estivermos mortos, nos atribuirão virtudes que não tínhamos quando estávamos vivos e que, reconhecidas, talvez houvessem melhorado nosso jeito de assobiar uma valsinha.

Soneto dos três que pensavam em amor (versão final)

Se não pensavas em mim
Enquanto eu em ti pensava,
O que é que em mim me levava,
Então, a pensar que sim?

Pensava em ti noite e dia
E se mais tempo tivesse
Que dedicar-te pudesse
Muito mais eu pensaria.

Pensavas eu sei em quem,
Que em ti pensava também
Como eu, amorosamente.

Por que é que eu não vi então
Que pensava em ti em vão,
Que sonhava inutilmente?

Assunção

Os escritores querem ser aceitos. Em seguida, reconhecidos. Depois, admirados. Se passarem satisfatoriamente por essas fases. vem a última: querem ser adorados. Alguns conseguem.

Falso brilhante (para Marcelo Mirisola)

Nas frases curtas, geralmente a única sabedoria consiste em poupar o fôlego de quem escreve e a paciência de quem lê.

Cotação do dia

Não tenho mais prazer com os meus infortúnios.

22 (para Silvana Guimarães)

Com tanto andrade
o modernismo não parecia um movimento -
parecia uma sociedade.

Decepção

Por enquanto, dos gozos prometidos pela poesia ele só desfrutou a loucura.

Fora de tempo (para Ana Farrah Baunilha)

Tem ainda certas volúpias que já não podem ser justificadas pela imaturidade dos dezoito anos. Ontem, assistindo na tevê a um filme de sua época de adolescente, pôs-se a morder o próprio braço quando surgiram, esplêndidos, os da atriz principal.

Resignação

Aceitar que as honrarias caibam sempre aos outros já é, nele, um hábito muito antigo.

Linguagem

Fez cursos, estudou, mudou, sofisticou-se. Sentado no sofá, olha para o teto, como fazia, mas seu olhar não é mais o de um homem que parece acompanhar o voo de uma mosca. Não se queixa mais de cansaço. O que sente agora é tédio, como um filósofo que tenha encontrado a chave para os enigmas da vida. Não se queixa mais de cansaço. O que sente agora é tédio.

Normal

Não faz mal nenhum a um poeta dizer-se íntimo das rosas desde menino. Nem bem, também.

Currículo

Estudei álgebra, filosofia.
Colhi lições de tudo.
O que me faltou aprender
Foi o que eu não conhecia.

Mecanismo

A vida pode ter até algum sentido, mas eu ainda não compreendi seu significado.

Família

Disseram-me que eu sabia escrever, me incentivaram. Foram se afastando, morrendo. Eu continuei escrevendo, aqui.

Início de "A Marquesa d'O", de Heinrich von Kleist

"Em M..., uma importante cidade da alta Itália, a Marquesa d'O..., uma dama de excelente reputação e mãe de crianças muito bem educadas, comunicou pelos jornais que, sem saber como, havia engravidado, que o pai da criança, que estaria para nascer, deveria aparecer e que ela, por motivos familiares, estaria decidida a desposá-lo."

(Tradução de Cláudia Cavalcanti, edição da Imago.)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Maratona (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Ando pensando numa maratona. Um dia virei aqui e ficarei doze horas, direto, escrevendo o que me vier à cabeça. Quero testar aquilo que chamam de fôlego literário e o que chamo de insanidade autoinduzida. Como? Vinte e quatro horas? Há tantos mártires assim entre meus oito leitores?

Parte com (para Luís Giffoni)

Shakespeare incorporou Deus e o Capeta e tirou de cada um deles, sabe-se lá como, o pior e o melhor.

Cotação do dia (para Mariana Ianelli)

É ao menos coerente.
Sente-se hoje
Como quando era menino:
Um cretino.

Menos (para Silvana Guimarães)

Sou só um escrevinhador. Aquilo que alguns chamam de exprimir a alma é façanha de poeta. Eu, no máximo, espremo um limão.

Precocidade

O menino conhece
já a devassidão
como a palma da mão.

Lance

Merecemos nosso fracasso

Sonhamos demais
quisemos demais
e não tínhamos
nada a dar
senão nossa vontade
e nosso cansaço.

Nascidos um para o outro

Enquanto houver um gato, estará justificada a existência de pelo menos um sofá.

Luta de classes

As rimas até hoje não resolveram as divergências que têm desde o tempo no qual eram consideradas indispensáveis à poesia. As ricas continuam abominando as pobres, e vice-versa.

Duelo de titãs (para Liberato Vieira da Cunha)

Uma crase só não é mais presunçosa que um poeta porque não faz sonetos nem pode, por disposições estatutárias, disputar vaga na Academia.

Marulho

O suicida teria dito o nome todo da namorada, se ela não se chamasse Marinalva da Conceição Bellucchi. Chegou a dizer Marinalva, antes de ser engolido pelas ondas.

Índole

Admita-se: nunca houve poetas com a cabeça tão bem assentada quanto os concretistas.

Dedos-duros (para Deonísio da Silva)

Que vocação policialesca têm os pronomes demonstrativos, sempre apontando: este, esse, aquele.

Qual ainda?

Que sentimento pode ainda cultivar quem dá os últimos passos no caminho da morte e do esquecimento?

Se (para Mariana Ianelli)

Não nos custaria ser
O que quer que nós quiséssemos,
Desde que nos afizéssemos
Ao ofício de viver.

Sina (para Silvana Guimarães)

Malfadada flor
condenada a ser
seja como for
sempre o mesmo ser -
interminável repetição
de sua inatingível perfeição.

De Henri-Frédéric Amiel

Sobre a fé - "Os erros sagrados têm vida mais dura que nenhuma verdade; não se deve degolá-los senão com  respeitoso cutelo. O que o padre abençoou está embalsamado por séculos, embora uma obscuridade, embora um crime, É propriedade da fé assegurar asilo ao que ela protege, asilo inviolável mesmo à verdade. Assim defende-se  a fé religiosa mesmo contra o próprio Deus, se Deus não der a senha e não mostrar a patinha branca à porta que deseje ver aberta."

Sobre a fé - "A fé é uma certeza sem provas. Sendo uma certeza, é um enérgico princípio de ação. Sendo sem provas, é o contrário da ciência. Daí, os seus dois aspectos e os seus dois efeitos. É na inteligência que está o seu ponto de partida? Não. O pensamento pode abalar ou afirmar a fé, não engendrá-la. Está na vontade a sua origem? Não. A vontade boa pode favorecê-la, a má impedi-la, mas não se crê por vontade, e a fé não é um dever. A fé é um sentimento, porque é uma esperança; é um instinto, porque precede a todo sentimento exterior. A fé é a herança do indivíduo ao nascer, o que liga ao conjunto do ser, é, por assim dizer, o cordão umbilical da sua alma."

Sobre a filosofia - "A filosofia é a dúvida, primeiro, e depois a consciência da ciência, a consciência da certeza e da ignorância, a consciência dos limites, das nuanças, dos graus, dos possíveis. O homem vulgar de nada duvida e de nada suspeita. O filósofo é mais circunspecto. É, mesmo, impróprio para a ação, porque, vendo menos mal do que outros o fim, mede demasiado bem a sua fraqueza, e não se engana sobre as suas probabilidades."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações.)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Aquele quê (para Ana Farrah Baunilha)

Há sempre na palavra "outras"
um fascínio
que nas outras não há.

A resposta

Se alguém perguntar se somos
Quem confia na verdade,
Em Deus e na eternidade,
Digamos que sim, que fomos.

Desvio de finalidade

Das declarações de amor que fez, envergonha-se daquelas nas quais exaltava olhos azuis e cabelos dourados pensando nem em olhos nem em cabelos.

Herança

Da gaveta do poeta foram exumados alguns poemas de uma década inacreditavelmente antiga, todos execráveis. Só nos de amor, provavelmente por terem sido inspirados por alguém que o poeta chamava de "minha bruxa", havia certa magia, destoante como um assobio noturno num cemitério.

Calçada

Ao lado do poeta, tão mortos quanto ele, havia meia dúzia de sonetos e um gato.

Tradição (para Silvia Galant François)

Os passarinhos gaúchos ainda seguem o método de canto de Mario Quintana.

Ensaio

Um haicai pesa menos que o sonho de um morto.

Idade

Um homem de setenta e oito anos deve ter ao menos a curiosidade, se não a sensatez, de se perguntar por que diabos ainda não morreu. Que exemplos pode dar, exceto os dos seus formidáveis achaques?

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Às vezes, desconfiado e desesperançado, ele vai ver na sua lista se ainda está ali a opção "morrer"

Sindical (para Deonísio da Silva)

E quem defende os interesses das categorias gramaticais?

A exceção

Deve haver em nós algo que possa nos absolver quando nos sentirmos mais sórdidos do que somos, algo que tenha tido ao menos por um instante a atenção ou o toque de algum deus, algo como a música ou a poesia.

Evolução

Mesmo sem conhecer todos, ele se proclama o mais triste dos homens, Sente-se com direito à honra: foi o mais infeliz de todos os meninos.

Parágrafo inicial de "O processo", de Franz Kafka

"Alguém devia ter caluniado a Josef  K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã. A cozinheira da senhora Grubach, sua hospedeira, que todos os dias às oito horas lhe trazia o desjejum, não se apresentou no quarto de K. nessa manhã. Jamais acontecera isso. K. aguardou ainda um poucochinho, olhou, recostado em seu travesseiro, a anciã que morava em frente de sua casa e que o observava com uma curiosidade inteiramente fora do comum; depois, porém, sentindo-se ao mesmo tempo faminto e surpreso, fez soar a campainha. Imediatamente bateram em sua porta, e no dormitório entrou um homem ao qual K. jamais vira antes naquela casa. Era um tipo esbelto, porém de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo, o qual, semelhante a uma roupa de viagem, apresentava diversas pregas, bolsos, abas, botões e um cinto que emprestavam à veste um ar estranhamente prático sem que, porém, pudesse estabelecer-se claramente para que serviriam todas aquelas coisas."

(Tradução de Torrieri Guimarães, Abril Cultural.)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Perfil

A frieza nela não é um defeito,
uma frase de efeito -
é uma convicção.

Devassidão

Que vício pode ser o da beleza. Que volúpia, que depravação, ainda que como metáfora, é ver o lento gozo do sol crepuscular entregando-se todo à tarde, até desaparecerem os dois no ponto do horizonte em que a noite parece recusar-se a chegar.

Como antes

Sente saudade da visão que tinha das coisas quando menino. Era fascinante ir descobrindo o nome delas: estrela, sol, lua, flor, passarinho. Aos poucos, as palavras se sobrepuseram às coisas, e ele gostaria de, como naquele dia mais que distante, ser possuído pelo intraduzível alvoroço da beleza antes de alguém dizer: borboleta.

Cotejo

Um poeta seria igual a uma pessoa comum, se uma pessoa comum tivesse a mania de ser poeta.

Desuso

Já não tem asco de si mesmo, nem compaixão. Certos sentimentos, úteis na época em que ele imaginava ser poeta, estão hoje esquecidos como os dois diplomas de segundo lugar que ganhou em concursos regionais de literatura.

Tempos difíceis

Tempo houve em que um poeta, para almejar a eternidade, devia conhecer artes complementares como escrever bilhetes suicidas sempre passíveis de alteração e dar a entender que saltar de um viaduto poderia ser seu próximo objetivo, talvez mais desejável que a conquista do Nobel.

Causas

Um maço de sonetos foi atirado pelo autor ao riozinho do bairro. Desse dia em diante, ninguém mais viu um peixe sequer e, embora já não se vissem peixes ali havia muitos anos, a fama ficou para os sonetos.

Em sociedade (para Silvana Guimarães)

Quando, respondendo à pergunta feita aos convidados, ele disse que, se pudesse escolher, morreria pela arte, houve um silêncio de dois ou três segundos. Depois, das cinquenta ou sessenta gargantas explodiu uma dessas gargalhadas que libertam catarros ancestrais, enquanto a anfitrioa exibia no sorriso a frase: eu não disse que ele era uma graça?

Sanção

Morrerem de sede seria o castigo apropriado para aqueles poetas retóricos que proclamam ter bebido da fonte da poesia.

Entojo

Se fossem vencer só pelo nome
a concupiscência e a libido
jamais teriam conseguido.

Ciclos (para Ana Farrah Baunilha)

Ele mal deixou
suas sementes na cama
e já o tempo
antecipando estações
e ultrapassando-as
esparrama seu vitorioso amarelo
sobre o colchão.

Três trechos de Henri-Frédéric Amiel

"Não é que eu negue o direito da democracia; mas não tenho ilusão sobre o emprego que ela fará do seu direito enquanto rara for a sabedoria e abundante o orgulho. O número faz a lei, mas o bem nada tem que ver com a cifra. Toda ficção se expia, e a democracia repousa nesta ficção legal, de que a maioria tem não somente a força, mas a razão, que ela possui a sabedoria ao mesmo tempo que o direito. Ficção perigosa porque é lisonjeira. Os demagogos sempre afagaram o sentido íntimo das massas, como se amima um gato a que se quer agradar. As massas serão sempre inferiores à média."

"Atrás da beleza superficial, alegre, radiante, palpável, a estética descobre toda uma ordem de beleza oculta, velada, secreta, misteriosa, parente da beleza moral. Essa beleza não se revela senão aos iniciados, e por isso, precisamente, é mais suave. É algo assim como o gozo refinado do sacrifício, como a loucura da fé, como a volúpia das lágrimas; não está ao alcance de todo o mundo."

"O mundo humano só interessa pelas minúcias; pelo conjunto é desolador e fatigante. Quanto mais o conhecemos, mais nos gela o entusiasmo.Somente as almas de escol, os nobres caracteres, nos reconciliam com esta desagradável turba e esta lamentável história."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, edição da É Realizações.)

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Retoque

Como você fica bem
quando eu e minha imaginação
damos ao seu rosto a compaixão
que ele não tem.

Nova história

Se houvesse nova chance, eu escolheria ler, simplesmente ler, sem aquela paixão que fascina o leitor principiante e o induz a escrever.

Marketing

Quando você já tiver escrito três ou quatro livros, dê um jeito de ser morto pelo marido de uma voluptuosa cantora de boleros cujo apelido seja Fogueira do Prazer ou Aranha Assassina.

Como é (para Alfredo Aquino)

Tecnicamente estamos mortos desde a primeira respiração e vivos até a última

Último dia

Quem quiser me ver
vá à vila alpina
e siga a fumacinha.

A pergunta

Falando francamente: essa história de viver só de literatura não é séria, é?

Irmão de letras

Você também pensou ter nascido para escrever.

Continha de somar

Para Vinicius de Moraes
um amor era só
um casamento a mais.

Bem o tipo (para Silvana Guimarães)

Com ar blasé
o parnasiano observa a lua
de pincenê.

Obviedade

Pela linha e pelo traço
você pode não saber que pintor é
mas sabe que não é Picasso.

A maior

Que felicidade se vê no rosto de quem nos olha, abre o sorriso dos vencedores e diz: "Eu não avisei?"

"Onde as apólices perdem o valor", de Lourença Lou

"ele me amava
e me olhava com aqueles olhos trágicos

eu o deixava me amar
e colhia nas mãos o suor do seu prazer
como se este gesto o fizesse renascer

ele não sabia se eu o amava
eu não sabia se ele viveria sem mim
e continuávamos nos olhando depois do sexo
naquele imenso reflexo com manchas do tempo

nosso amor
foi virando um canteiro de ervas daninhas
arrancando o que ainda nos sorria

assustei-me
joguei álcool na nossa história
queimei-nos numa pira medieval

e nunca mais eu soube de nós dois"

(Do livro Equilibrista, Editora Penalux.)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Isonomia

Em Brasília
por arte da arquitetura
fede o vento da direita
fede o vento da esquerda
e conforme a conjuntura
e as condições do momento
fede o vento do centro.

Decreto (para Luís Giffoni)

Deveria ser proibida a melancolia. O primeiro efeito seria a extinção da abominável raça dos poetas.

Arte (para Marcelo Mirisola)

As lágrimas, como tudo, são uma questão de treinamento e assiduidade.

Habilidades (para Silvana Guimarães)

O que os poetas românticos
melhor sabiam fazer
era chorar e morrer.

Capital

Ninguém aguenta:
Brasília fede
Desde 1960.

Chorinho

Ninguém me ama
ninguém me lê
ninguém me chama
de Mallarmé.

Soneto da total indiferença

Se ela pedir que lhe digas
Quanto ela representou,
Quanto valeu, quanto pesou
Quando lembras as amigas,

Tu deves lhe prometer
Que nada irás ocultar
E tudo irás relatar,
Sem um detalhe esquecer.

Farás tudo do teu jeito,
Num soneto desenxabido
Como todos que tens feito

E no fecho lhe dirás
Que por ela tens vivido,
Ou morrido, tanto faz.

Soneto que apela à memória (versão final)

Talvez te lembres de mim
Quando outros forem os dias
E as dores e as alegrias
Tiverem chegado ao fim.

Talvez te lembres de que eu
Te confessei com ardor
Que sempre foi teu amor
A força que me moveu.

Talvez te lembres (não sei
Se por amor ou bondade)
De tudo que disse a ti

E sintas que te falei
Somente e sempre a verdade
E que jamais te menti.

Para Priscylla

A minha parte eu fiz.
Seria melhor Dante
Se você fosse Beatriz.

Assembleia

Sejamos severos conosco, não nos poupemos. Canalhas, sórdidos e sacanas só os outros podem ser? O que há de especial em nós? A alma? Foi isso que eu ouvi? A alma? Foi você quem disse? Ah, sim, você. O das minhocas escorrendo pelos lábios.

DNA

Lembro-me cada vez com maior frequência do pavor que tinha minha mãe de ser atropelada e morrer num improvável dia em que estivesse com as meias furadas.

Cotação do dia

Sente-se como alguém que, atirando-se honesta e esperançosamente ao mar, é devolvido com repugnância pelas ondas, como se fosse o cadáver de um mercador de escravos.

ISO 9000

A poesia jamais deve ser considerada senão o que é: uma ocupação de poetas. Se for preciso catalogá-la, o ideal é dar-lhe um lugar na categoria do entretenimento, se bem que ela quase sempre mereça essa designação só por seus efeitos em quem a faz e dificilmente em quem a lê.

Modo repouso

Morrer deveria ser como estar com muito sono e ter tempo só de pedir a alguém que apague a luz.

Pesos

Alguns atingem a imortalidade. Aos outros cabe a menção honrosa de um necrológio de dez linhas no diário local.

Memória

Ela se lembra do nome dos treze gatos de sua vida. Também do nome dos maridos - Agenor, Claudionor, Alaor e Claudiomiro -, se bem que às vezes troque o nome de um dos quatro por um vago, inquietante e freudiano Venceslau.

Poema dos últimos marujos

Depois do clamor das espadas
das gargantas cortadas
das maldições dos marujos
e dos nomes sujos
arremessados contra Deus
por sua impiedade
morreram todos menos três
que a uma só voz
agonizando amaldiçoam ainda Deus
por sua falsa caridade.

Parágrafos finais de "O grande Gatsby", de Scott Fitzgerald

"Gatsby acreditou na luz verde, no orgiástico futuro que, ano após ano, se afastava de nós. Esse futuro nos iludira, mas não importava: amanhã correremos mais depressa, estenderemos mais os braços... E uma bela manhã...
   E assim prosseguimos, botes conta a corrente, impelidos incessantemente para o passado."

(Tradução de Brenno Silveira, Editora Record.)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Contra o mundo

Os objetos já se adaptaram à nova mania do velho: a de julgar que tudo no mundo existe para provocá-lo e perturbá-lo. As canetas se recusam a escrever, as luzes a acender, as torneiras a abrir ou a fechar. Até o gato, embora não pertença à categoria dos objetos, resolveu, depois de dez anos, ignorar o caixote de areia e substituí-lo por qualquer canto, entre a sala e a cozinha, que lhe aprouver utilizar.

Assim ou assim (para Ana Farrah Baunilha)

Com poesia ou sem
você vive

Com poesia ou sem
você morre também

Escolha o que lhe convém
a vida ou a morte

E boa sorte
amém.

Oito ou...

Ser escritor é para quem tem ou alguma esperança ou esperança demais.

Um e outros

Um escritor pode considerar a literatura uma religião. Os leitores, dificilmente.

Hagiologia

Embora os escritores discordem, os maiores mártires da literatura são os leitores.

Cofre

O crítico literário
se gasta meio elogio com um livro
se sente perdulário.

Agradinhos (para Silvana Guimarães)

Os parnasianos estragaram a poesia dando-lhe brinquinhos, colares, pulseiras, e prometendo-lhes a perenidade do mármore

Decreto (para Aden Leonardo)

As rimas determinaram
e os poetas não refutaram
que viver é sofrer.

Analogias

Pelas comparações que venho fazendo entre a morte e a vida, o único inconveniente de morrer talvez seja não se poder dar aquela viradinha de lado de tanto em tanto tempo, de madrugada,  nem coçar o umbigo.

Il miglior fabbro

Burilar é o verbo que melhor representa os parnasianos. Alguns deles fizeram não mais que um soneto em toda a vida, e empenharam-se até o último dia - por eles chamado de derradeiro - em aperfeiçoá-lo.

Bem o caso

Em que idade é mais leviano fazer promessas? Aos dezoito ou aos setenta e oito?

Parceria

Deus criou os homens e Shakespeare deu-lhes forma.

Scott Fitzgerald, um parágrafo

"A guerra terminara e fora ganha, e na grande cidade dos vencedores, toda garrida com flores brancas, vermelhas e cor-de-rosa atiradas das janelas, arcos triunfais cruzavam as ruas. Ao longo de toda a primavera, soldados recém-chegados marchavam pela rua principal seguindo o rufar dos tambores e o som alegre e vibrante dos instrumentos de sopro, enquanto comerciantes e caixeiros deixavam os seus problemas e as suas contas para assomarem em magotes às janelas, voltando os rostos graves e pálidos para os batalhões que passavam."

(Início do conto "O 1º de maio", do livro A década perdida, tradução de M.F. Gonçalves de Azevedo, Editorial Estampa.)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Dados biográficos

Os provérbios
foram o primeiro teto
do politicamente correto.

Identidade

Shakespeare e o Diabo certamente se conheceram, se não foram a mesma pessoa.

Ramerrão (para Silvana Guimarães)

Aos insistentes poetas
que ainda nos abordam
com seus rouxinóis e cotovias
deveríamos perguntar
por que depois de tantos séculos
não conseguiram encontrar
algo menos gorjeante
e mais interessante
do que a poesia.

Proverbiais

Disseram Pero Vaz
e o marquês de Maricá
que no generoso solo dos provérbios
mesmo que nunca se plante nada
tudo sempre dá.

Deixar assim

Digam de que serviria
Para nós, homens banais,
Se nós tivéssemos mais
Do que a vã filosofia?

Compromisso

Um poeta deve estar pronto ao menos para tentar traduzir sua voz interior, mesmo que ela soe sempre como a mais inabordável e grosseira algaravia.

Lição

Didática torre de Pisa
exemplarmente torta -
o que Deus entortou
homem nenhum desentorta.

SCCP

O futebol passou a ser um esporte popular em 1910.

Cotação do dia (3)

Decente era
uma palavra que tinha
sentido antigamente.

Cotação do dia (2)

Vem vindo
de onde nem se pressentia
um cheiro azedo de democracia.

Cotação do dia

São letra morta já
além dos meus poemas de ouro
minhas letras do tesouro.

Haicai (para Rodolfo Guttilla)

Haicai é um páss
          que ia pass
                e já pas

Paradoxo

Amor é o nome que dás
A quem assim te submete
E jugo maior promete
Após prometer a paz?

Um parágrafo de Pitigrilli

"Helena Nicótera frequentava o primeiro ano de matemática pura, quando ele estava no último ano de física. No café, diante de dois copos de ponche de tangerina, ele ajudava-a no estudo, brincando em reversos de envelopes com integrais que se espichavam interminavelmente no mármore da mesa. Nascera para ensinar: faculdade comunicativa imediata, aptidão para explicar, necessidade de plasmar inteligências."

(De A casta Susana, tradução de Marina Guaspari, Casa Editora Vecchi Ltda.)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Versão atual

"14 de fevereiro. Meu querido blog, hoje conheci alguém que só não mudará minha vida se não quiser. Depois conto mais."

Por vias tortas

Ele gostaria de ser famoso, ainda que sua fama adviesse de encarar com desdém a celebridade.

Celebridade

Ainda que mal lhe pergunte
você não é aquela moça
da propaganda de iogurte?

Horror

O velho Gepetto sonhou que havia engolido uma baleia e que dentro dela estava Pinóquio.

Requinte

Depois que a viúva se mudou, o fantasma do dr. Seixas só aparece rondando a rua em noites de aguaceiro, dizem que para exibir seu guarda-chuva, imenso como o de um recepcionista de hotel, com o qual ninguém se lembra de tê-lo visto no seu tempo de vivo.

Negócios & oportunidades

Um gramático é o tipo de homem que de olhos fechados podemos trocar por uma bailarina. E de olhos abertos também.

Completude

Um haicai tem o tempo exato de ser, sem a tentação dos retoques.

Sindicalizadas

As rimas em ão
só se mantêm
pelo espírito de corporação.

?

Uma linha
é uma linha
ou um cacófato?

Bom seria

Bom seria vivermos para consumar uma metáfora tão verossímil de rosa que, enunciada num poema, impregnasse a folha do caderno de um aroma em torno do qual se ouvisse um jubiloso zumbido de abelhas.

Nariz empinado

São Paulo é uma cidade tensa, neurótica, obstinadamente ciosa de sua reputação. Os momentos passam por ela, acenam-lhe, sorriem, dão cambalhotas. Ela os olha sem interesse. Parece que vai perguntar: digam-me, vocês são momentos históricos?

Pensamento de Amiel

"Para o homem, morrer é tornar-se Deus. Ilusão emocionante. Iniciação no grande mistério."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações.)

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Literatura

Doído é saber que tudo que pretendemos dizer já se disse melhor.

Recipiente

Recolhia as estrelas em uma peneira, para que, escorrido o leite delas, fosse menos penoso transportá-las.

Coceirinha

Às vezes, nas fases de escassa poesia, ele gostaria de ter a fama de viciado em sexo e de honrar a fama.

1950

Os barquinhos eram de papel porque eram gentis as enxurradas.

Ensaio

O beija-flor faz
pose de bonitão
na antena de televisão.

Haicai

A chuva respinga o joão-de-barro.

Foto

A garça lava um lenço no lago azul.

Reserva

Luas de prata e crepúsculos de ouro só  se encontram nas antigas antologias.

Aparência

Numa frase curta há sempre uma presunção de sabedoria.

Circunstância

Para ela, o amor era como um objeto que, dependendo do dia ou da noite, podia ou não estar em sua bolsa.

Nível

O ócio é uma preguiça com pretensões intelectuais.

Ornamentos

A pieguice é o barroco da alma.

Nem tanto

A vida não se limita à literatura. Há sempre mais alguma coisa, ainda que pequena.

Desempenho

Estava tão bem no seu papel de morto que só um morto legítimo seria capaz de desmascará-lo.

Brasília

Brasília é uma cidade conhecida pela sua arquitetura e pelo seu cheiro.

Figura

Um gramático é aquele sujeito capaz de, no meio de uma guerra mundial, discutir por uma vírgula.

Problema

Se o leitor não conhece o teu nome, é um problema. Se ele não conhece Dostoiévski, é - e sério

Estante

Aquela sensação diária de que estamos sendo examinados pela comissão que decidirá sobre o nosso fuzilamento.

Apropriação devida

Encontrou num sebo um livro que ele próprio escrevera. Sem recear as câmeras, enfiou-o no bolso, resmungando: "Ladrões."

Alergia

Certos poetas, se lhes fosse permitido tocar o corpo de uma estrela, usariam luvas.

Certeza

A melhor forma de sobreviver com a literatura ainda não está definida. A pior é ser escritor.

Um soneto de Pablo Neruda

"Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo todavia.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos a chave da fortuna
e um incerto destino desditoso.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo."

(De Cem sonetos de amor, tradução de Carlos Nejar, L&PM Editora.)

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Memória do trigal

Quase sempre demorava o dedo um pouco mais ali, ansiando para que ele fosse mordido, ainda que levemente, pela boca cujos lábios, protegidos por fios de ouro, tocava.

Pior melhor

É tanta, e tão escancarada a hipocrisia, que a melhor justificativa para alguém se meter a escrever talvez seja o dinheiro.

O lado oculto

Admita-se ou não, quem escreve e publica quer sempre ao menos um agradinho.

Derrotas

Escritores de fim de semana, escribas de bairro e de associações, quem vos compensará pelos sonhos gorados?

Lição nº 1

Os escritores logo percebem que os únicos interessados em publicar seus livros são eles mesmos.

Pechisbeque

Pobres estrelas, tão mediocremente ofertadas por tantos rabiscadores de poemas a tantas musas de tão deplorável categoria.

Camadas

O pior, para uma metáfora, é a suspeita de não ser nada além de uma falsificação.

%

Um dia talvez a pessoa certa te leia, e a centésima garrafa atirada às ondas justificará as noventa e nove anteriores.

A mão e a luva

Se flores forem seu assunto, fale sobre elas. A poesia social já está muito bem servida pela prosa.

Pesadelo

Uma de suas cinco mil frases fez finalmente sucesso, ou quase: foi atribuída a outrem.

Gaveta

Definir o melhor sexo dependerá sempre de uma boa memória.

Detalhe

Na casa de uma mulher apaixonada por gatos e cachorros, dificilmente sobra espaço para um homem.

Medida

Sempre que sinto a tentação de julgar-me injustiçado, abro o Borges no Aleph e me resigno imediatamente.

Prerrogativa

Já não te importa saber se os outros ao menos pressentem e beleza que com tanto empenho quiseste transmitir. O cansaço é o pré-gozo dos morituros.

Cilada

Se for necessário, você fingirá estar morto, para que a beleza enfim se aproxime.

Escrivão

A beleza passou a procurá-lo com tanta obstinação e descaramento que ele já não dormia, para estar todo o tempo apto a transcrevê-la.

Escola

Se o tempo continuar
turvando minha vista
já sei o que faço:
torno-me impressionista.

Epopeia

É um vegetariano desses de comício e passeata, barulhentos, heroicos. Acaba de se mudar para Porto Alegre.

Revista Rubem

Hoje falo de coisas que dão gosto e desgosto (www.rubem.wordpress.com)

Uma pitada de "Ubu-Rei", de Alfred Jarry

"Eu, no teu lugar, ia querer é instalar essa bunda num trono. Você podia aumentar infinitamente as tuas riquezas, comer chouriço todo dia e rodar de carruagem pelas ruas."

(Tradução de José Rubens Siqueira, Editora Max Limonad.)

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Assim

Gostaria de ser um arco-íris - desde que tivesse duas cores apenas e só aparecesse na Zona Leste.

Sentença

Se estamos vivos é por generosidade do amor, que julga não termos sofrido ainda o bastante por ele.

Sublimidade (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Tem o dom da voluptuosidade. Se apalpa um tomate, sua expressão é a de um melômano ouvindo Bach.

Linha torta

É quando nada mais parece fazer sentido que começamos a compreender tudo.

Churrascaria

Somos condescendentes, ao menos conosco. Estamos sempre dispostos a nos perdoar. Enchemos o bucho, nos entupimos, e dizemos que estamos nos alimentando.Depois, empanzinados, discorremos sobre a nossa alma imortal.

Conhecimento

Se tivéssemos noção do que somos, deveríamos vomitar sempre que estivéssemos em nossa presença.

Direito (para Silvia Galant François)

Alma deveria ser algo que só os passarinhos e poetas como Mario Quintana merecessem ter.

Símiles

Quando se põem a falar de êxtases carnais, certos poetas se assemelham a açougueiros explicando a diferença entre coxão mole e coxão duro.

Gaveta de baixo

Se o deixarem escolher, o poeta sempre há de preferir o papel de vítima, para poder exibir seu estoque de ais e de ohs.

Última página

Não fui o artista que sonhei ser. Hoje sei que o que me estava atribuído era isto: relatar o sofrimento de um homem que fracassa na luta por um ideal.

Elo

A banda do Chico não existiria sem o bolero de Ravel.

Credo

Creio que a arte seja a melhor justificativa para a existência. Não me perguntem por quê. É uma questão de fé.

Condescendência

Talvez não sejamos tão indignos quanto pensamos. Não furtamos nem matamos nossos irmãos, se bem que provavelmente o fizéssemos, se isso nos garantisse a glória pela qual nos furtamos e matamos.

Face a face

Tenhamos a coragem de pedir os aplausos que desde o início procuramos, apesar de em nosso rosto sempre havermos ostentado essa hipócrita modéstia.

Automerecimento

Tenhamos pena de nós. Nós a merecemos. Quem com mais justiça pode reivindicá-la senão nós, depois da ruína de todas as nossas ilusões e do espetaculoso desmoronamento de todos os nossos ideais?

Exemplo (para Alfredo Aquino e Silvana Guimarães)

Anoiteçamos com a amável resignação das árvores. Não perturbemos a quietude nem com a queixa de nossas folhas nem com o alvoroço de nossos frutos.

Preparativos

Falemos baixo, acostumemo-nos. No lugar para onde amanhã ou depois iremos, tudo que nos será exigido será o silêncio.

Uma colherada de Schopenhauer

"A verdade é belíssima, e a impressão que causa é tanto mais profunda quanto mais simples é sua expressão."

(De Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, edição da Martins Fontes.)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A pintora (para PMM)

Ela é uma dessas pessoas que, temendo expor-se, aparentam ser indiferentes a tudo. A única vez em que, como se diz, tive um vislumbre de sua alma foi o assombroso instante em que ela, inacreditavelmente desprevenida, confessou que lhe importavam, sim, as opiniões sobre as telas nas quais diariamente se empenhava. Foram quinze segundos, talvez meio minuto, de pungente humanidade.

Função e cargo

Que a poesia, em você, não seja só essa vontade de parecer poeta.

Dúvida

Na entrevista, quando quiseram saber o que ele achava das rosas e das estrelas, o poeta concretista perguntou: "Rosas? Estrelas? Em que sentido?"

A única

Se um dia eu precisar de camisa de força, que ela seja do Corinthians.

Nada mais que a verdade

Algumas almas têm mania de grandeza. A minha pensa ser a de um poeta.

Exato (para Celina Portocarrero)

Um haicai dura o tempo exato para o passarinho surgir e passar sem ser atingido pela retórica.

Sotaque

No meio da peça, encenada em Londres, Hamlet entregou sua mineirice ao perguntar: "Why?"

Experiência

É doce o sangue das feridas abertas na alma pelo amor.

Inspeção

Um poeta deve dar a impressão de que, se insistirem, poderá mostrar a escada pela qual uma vez por semana sobe ao céu para reajustar a posição das estrelas.

Teste

Se queres saber o asco que sente quem é tocado por ti, não precisas fazer nada além de tocar tua própria pele.

Pena

Se os poetas tivessem pudor
se matariam depois
de estropiar a primeira flor
em sua máquina de parir versos.

Ontem

Estava tudo claro
e o que não estava
estava subentendido

O amor esteve à mão
e do seu gosto nos recordaríamos
se o tivéssemos colhido.

Dois versos de Neruda

"La carne pasa, tu vida queda
toda en mi verso de sangre o de seda."

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Roteiro (para Ana Farrah Baunilha)

Eu sou só um cara, como tantos, que imaginou poder ser diferente de todos.

Termo de abandono

Fazer hoje um soneto (bom ou mau) é fazer todos. Custa-me mas cumpre-me acreditar nisso, justamente eu, que escrevi tantos sonetos pensando, ao terminar cada um deles, na inexplicável e reiterada generosidade do destino.

50%

Estava atravessando a rua, à noite, quando ouviu: "Ô morto filho da puta!" Olhou para todos os lados, com o revide já pronto na língua, quando lhe ocorreu que não deveriam estar se dirigindo a ele. Pelo menos uma das afirmações era falsa.

Vana verba

Não deve ter se explicado bem, porque, meses depois de haver desertado da poesia, ainda os pássaros da manhã vêm chamá-lo pelo nome, pelo sobrenome e pelo apelido. Pelo menos foi o que ele disse hoje aos amigos, com cara de mártir.

Modelo

Se eu tiver alma, que ela seja uma daquelas que não desagradariam a Mario Quintana.

Custo/benefício

Se você parasse de escrever, pouparia muita Bic, embora talvez não economizasse muito cérebro.

De Borges, sobre a literatura

"A literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que já terá emudecido, e encarniçar-se com a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim."

(Tradução de Josely Vianna Baptista, Obra completa, Editora Globo.)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Tarefas

Não tenho encontrado tempo para me preocupar com a morte. Estou todo concentrado em escapar da vida.

A falha

Acabaram descobrindo o que havia de errado no poeta: a beleza inalterável, reiterada e obsessiva dos seus versos, como se um arco-íris quisesse estender seu reinado para dentro dos domínios da noite.

Jargão

Que grosseira foi a época em que as amantes eram chamadas de amásias.

Eu hoje

Sei cada vez menos de tudo. Sou intolerável, irremediável e convictamente ignorante. Mantenho só um impulso artístico - já nem sequer parecido com a antiga paixão - e movo-me espasmodicamente, a esmo, como se na arte pudesse haver alguma esperança de salvação.

O efeito Salinger

Os escritores se mostram, se revelam, se desnudam. Nada querem ocultar aos leitores. Temem ser abandonados. No entanto, os escritores que maior interesse causam são os que se entocam. Esses já nem precisam cumprir o requisito mínimo de escrever. Estão sob o venturoso signo de Salinger e fingem não ver os paparazzi despencando das árvores como frutos, quando abrem ou simulam abrir uma janela em sua propriedade rural.

Nós

Enquanto cada burro puxa para o seu lado, o Brasil continua atolado.

OMS (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Escrever não tem remédio.

Intimidade

Os cachorros conhecem os postes do bairro pelo apelido, pelo cheiro e pela maneira com que cada um se esmera para parecer um obelisco.

Modelos

Um poeta tem sempre o que aprender com um passarinho. A recíproca quase nunca é verdadeira.

O que mais?

Quando apontamos a literatura como causa de nossas frustrações, estamos de alguma forma acusando os leitores. Será tão difícil verem quanto há de Shakespeare em nós? Precisaremos cultivar um cavanhaque?

"Açougue", de Jorge Luis Borges

"Mais vil que um lupanar
o açougue rubrica como uma afronta a rua.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside a algazarra
de carne charra e mármores finais
com a remota majestade de um ídolo."

(Tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schawartz, Obras completas, Editora Globo.)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Pesquisa

Tive certa celebridade -
em outro tempo
em outra cidade.

Na mesma

Chamar os parentes de familiares não lhes melhora a reputação.

Rima e solução (para Silvana Guimarães)

Que calamidade
tropeçar numa pedra
e não ser a pedra
de carlos drummond de andrade.

O ponto (para Deonísio da Silva, Liberato Vieira da Cunha e Silvia Galant François)

No meu caso, a autoajuda deveria concentrar-se em convencer-me de que escrever não é tão mau assim, nem tão bom.

Lembrete

Se você quer dizer sofrimento, amor é a palavra.

Na porta

Mil perdões:
a celebridade que temos hoje
é um compartilhamento
e quatro visualizações.

Tecla

Mantenho minha rotina de leitura e escrita, como se tantas décadas depois, miraculosamente, o método pudesse vir a funcionar.

Causa mortis

Um mês depois de colocarem o busto de Camões na praça, o poeta municipal morreu consumido por uma moléstia rara, que o fazia, nos espasmos de tosse, expelir catarros verdes misturados com decassílabos.

Esferográfica

Gostaria se ter sido um daqueles poetas que só escreveram para álbuns de adolescentes.

A Voz

Não, não é Outro que escreve por mim. Ainda não cheguei ao luxo de subcontratar.

Incompatibilidade

Em sã consciência ninguém é poeta - e esse é o maior elogio que se pode fazer à poesia.

Ciclo

O novo em arte é quase sempre uma habilidosa forma de repetição.

Prática

Quem fala tanto e tão bem do amor merecia conhecê-lo melhor.

Periferia

Nada mais prosaico do que morrer numa segunda-feira de manhã, com os parentes chamando Raul, Raul, e a kombi gritando na rua Cândida, Cândida.

"Bairro reconquistado", de Jorge Luis Borges

"Ninguém viu a formosura das ruas
até que em pavoroso clamor
o céu esverdeado desabou
em abatimento de água e de sombra.
O temporal foi unânime
e aborrecível aos olhares foi o mundo,
mas quando um arco bendisse
com as cores do perdão a tarde,
e um odor de terra molhada
alentou os jardins,
nos pusemos a andar pelas ruas
como por uma recuperada herdade,
e nas vidraças houve generosidades de sol
e nas folhas luzentes
gravou sua trêmula imortalidade o estio."

(Tradução de Glauco Mattoso e Jorge Schwartz, Obras completas, Editora Globo.)

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Afeto

Lembrar-nos todos os dias da Morte é um agrado que merece quem desde o primeiro dia nos escolheu e até o último não se esquecerá de nós.

Verossimilhança

Como somos heroicos quando nos narramos.

Substituição

Quando o amor-próprio se vai, a autopiedade bate à porta. Assim que a abrimos, ela nos diz a palavra que nos conquistará: pobrezinho.

Nós

Somos nosso filho predileto: nos protegemos, nos mimamos, nos enaltecemos, somos o sumo e o suprassumo. Pena que no dia da nossa morte não possamos nós mesmos fazer nosso elogio.

A tempo

Talvez esteja para ser escrito aquele texto que será para mim o que diz o lugar-comum: um divisor de águas. Que eu o escreva logo, enquanto há águas para dividir.

Dúvida

De uns tempos para cá, quando fecho os olhos, imagino se já não é hora de ousar mais que o sono.

Presunção

Julgamos poder falar alto, e até achamos ser um direito nosso. Tolos que somos! Algum de nós já esteve em Londres? E, se esteve, ouvir Shakespeare berrar?

Protótipo

Falo de mim porque não conheço pior modelo de homem.

Máscara

Que ninguém se engane: o bom humor é, em mim, a mais asquerosa das falsidades.

Autoconhecimento

Chamar-me de idiota é algo que ninguém que não seja eu pode fazer com tanta propriedade.

Habilitação

Quando a Morte chegar
me encontrará pronto:
um falso rosto de carola
na antiga cara de tonto.

Eficácia

Já que decidiste ser um observador da vida, convém agires com o zelo de um detetive. Quando tua adorada vai à dentista, não custa nada segui-la para ver se na placa do consultório não está escrito, em vez de dra. Mara, dr. Manuel.

Beicinho

Não mimem os poetas, não acreditem em tudo que eles dizem. Vocês acham mesmo que foram eles que inventaram o arco-íris?

Uma colheradinha mais de Amiel

"Nisto como em tudo mais, estou bem certo de morrer sem ter visto realizar-se meu sonho. Renunciei por assim dizer em bloco à esperança de satisfazer-me um dia, fosse no que fosse; e isso me dá, senão contentamento, ao menos calma. Os suspiros debulhados não impedem a resignação fundamental. É mais fácil estrangular os desejos do que saciá-los: é o partido que tomei frequentemente, mesmo para as coisas que estivessem ao meu alcance."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações.)

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Esperança

Espera pelo dia em que a morte deixará de ser uma metáfora em seu estoque de poeta.

Linguagem

Acabamos aprendendo,
ainda que tardiamente:
nossos ideais não são mais
que palavras grandiloquentes.

SAC

Para que não lhe imputem
uma falsa imagem
a Morte avisa na embalagem:
não contém glúten.

Álibi

Quem diz não ter palavras para exprimir certos sentimentos talvez não tenha nenhum para exprimir.

Valor de mercado (para Alfredo Aquino)

Minha vontade anda apática,
minha volúpia raquítica,
minha situação dramática
e minha fortuna crítica.

O que vale

O que interessa à poesia é a impressão. Quando a primeira coceirinha o instiga a fazer reflexões, o poeta deve interromper o poema, esteja ele como estiver, pôr o ponto-final e escapar antes que o apanhe a filosofia.

Agenda

No primeiro e no último domingos de cada mês, o poeta municipal deverá ser homenageado, com direito à participação da principal banda da cidade. No segundo e no terceiro, a homenagem será facultativa.

O mínimo

Não sei escrever, mas também não posso dizer que sei fazer melhor qualquer outra coisa.

Tanto quanto

Vivemos nos queixando do tempo que perdemos com as pequenas coisas. E nunca pensamos no tempo que perdemos com essas queixas.

Soluções

Se fosse simples viver, não haveria tantas filosofias.

Nada além

O que dá a impressão de ser um brilhante pensamento é, muitas vezes, nada além de um feliz arranjo de palavras.

Requisitos

Para morrer não há de se mostrar
nem prática nem habilidade:
basta deixar de respirar
por dez minutos e vinte segundos
ou então pela metade.

Edital

Pede-se evitar o envio de flores, coroas ou mensagens que façam a família desconfiar da idoneidade do defunto.

Hospitalidade (para Tuca Kors)

A melhor mensagem de boas-vindas que pode haver em uma casa é o gato gostosamente escarrapachado no sofá.

Vestibular

Que bem-estar
que mornidão
há em assim se espreguiçar

Perto do sono definitivo
cada bocejo
cada cochilo
é um ritual
de iniciação.

Glória (para Adelaide do Julinho)

Que um poeta seja lembrado,
Se for, não pelo castelo que construiu
Nem pela torre sobranceira,
Mas pela ameixeira que plantou,
Em cujos galhos maturam pássaros.

Amiel, mais um pouquinho

"O erro dos cérebros estreitos é não fazerem justiça à ilusão, isto é, à verdade relativa, puramente psicológica e subjetiva. Falta delicadeza crítica a todas as inteligências vulgares, que formam a ideia mais ingênua da verdade religiosa ou mesmo da verdade, porque não compreendem a natureza e as leis do espírito humano. A fenomenologia é carta cifrada para esses paquidermes, que vivem na superfície da sua própria alma."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações.)

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Circunstância (para Priscylla Mariuszka Moskevitch)

Morrer num sábado não deve ser tão ruim quanto parece. Principalmente se morrermos à tarde e à noite houver um festival de sertanejo universitário.

Desprovérbio

Tantas vezes vai
o cântaro à fonte
que um dia não há mais
quem o encontre.

Talento

Nos poetas antigos
até os acessos de tosse
são milimetricamente escandidos.

Versão

Não se iludam: em questões amorosas, o poeta sempre engana mais do que é enganado.

História

Um descuido
uma tropeçadinha e pronto:
você está tão morto
quanto Pero Vaz de Caminha.

Inveja

Denunciaram o poeta concretista por usar material de terceira.

Como

Certa pessoa terá coragem de ir ver-te morto? Como imaginas que ela irá? De cara nova ou de óculos escuros?

Pênalti

O saci levou dentro da área um pontapé no seu pé de apoio.

Infância

O homem do saco vinha buscar todas as crianças que desobedeciam aos pais e não acreditavam nas histórias que eles contavam.

Modo de dizer

Disseram-lhe que câncer era só uma entre tantas palavras, e ele, que amava todas, se recusou a ser morto por ela.

Da arte de narrar

Cada um que conta a história aumenta o número de filhotes que tinha a gata na barriga quando a esmagou o caminhão do gás.

Permanência

O gato nunca mais dormiu no sofá depois que viu o dono deitado na sala pela última vez. Jogaram fora as flores, mas persiste seu cheiro, como se tivesse sido ontem.

Defunto

Habituada a percorrê-la, a mosca achou muito fria a mão do homem naquela manhã e estranhou que ela não se movimentasse nem com a reiteração das cócegas.

Sensação

Em alguns dias o amor ainda lhe dói retrospectivamente, como dói anos depois a um soldado o toco que restou de um braço amputado.

"A noite de São João", de Jorge Luis Borges

"O poente implacável em esplendores
quebrou a fio de espada as distâncias.
Suave como um salgueiral está a noite.
Vermelhos faíscam
os redemoinhos das bruscas fogueiras
lenha sacrificada
que se dessangra em altas labaredas,
bandeira viva e cega travessura.
A sombra é aprazível como uma lonjura;
hoje as ruas lembram
que foram campo um dia.
Toda a santa noite a solidão rezando
seu rosário de estrelas esparramadas."

(Tradução de Glauco Mattoso e Jorge Scharwtz, Obras completas, Editora Globo.)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Perfil (para Marisa Lajolo e Celina Portocarrero)

Vinícius de Moraes era um poeta conservado em tonéis de carvalho.

Patentes (para Deonísio da Silva)

Agora não mais,
porém no início a república
era doida por marechais.

Impasse (para Antonio Prata)

Queremos sempre cronistas novos e crônicas antigas.

Astúcia (para Aden Leonardo)

O amor é uma virtude que inventamos em nós, para melhor nos cotarmos.

Efeito estufa (para Liberato Vieira da Cunha)

Quando cinco anos depois reabriram a casa do poeta morto, seus sonetos escaparam para a rua, dando cantadinhas nas mulheres e chamando-as de vós.

Peculiaridade (para Ana Farrah Baunilha)

Há sempre pelo menos uma vantagem no amor platônico: ele nunca terá coragem de se tornar sórdido.

Destino

Ele nos faz ou nós o fazemos? Tento descobrir na crônica de hoje no portal do Estadão.

Nossos verbos

Desistir, resignar-se, aceitar. Como é doce embarcar na sugestão desses verbos e deixar-se ir, cada vez para mais longe das vozes que nos instigam a lutar, a combater, a vencer, a matar.

Como ser

Se você pega a caneta e escreve "o dia amanheceu tranquilamente", é bem provável que você não seja um escritor. Se você escreve "o dia amanheceu tranquilamente", rabisca e escreve em cima "amanheceu tranquilamente o dia", e risca a frase e recomeça a escrever, é bem provável que você seja um.

Viagens

Deveríamos ter sido mais sérios
em nossas excursões -
ter visitado
menos montanhas
menos litorais
menos monumentos
menos exposições
mais hospitais
mais cemitérios

De que nos valeu viajar?
A quem iremos contar
histórias alpinas e de mar
aqui onde cumprimos estágio
antes de seguir viagem
para onde as palavras não têm uso
e os vivos não têm lugar?

"Poeta do campo", de Mariana Ianelli

"Cada coisa que tocava era tocada com minúcia,
Toda a sua alma a escuta de uma carícia

Era agora um cego lendo o livro de sua vida -
Para trás ficava a roseira-brava com seus espinhos,
Já muito longe iam os atalhos, os artifícios -

Era agora onde o vento desimpedido vibra
E vibrava por dentro o arco do seu destino."

(De O amor e depois, Iluminuras.)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Função (para Deonísio da Silva)

A gramática é incansável na sua tarefa de nos mostrar que não sabemos e provavelmente nunca saberemos falar português.

Linhagem

Os provérbios - arre! - são os pais da autoajuda.

Prêmio

Depois que reúno as coisinhas diárias para o blog e o face, sinto-me pronto para desfrutar meu prêmio: reacomodar-me no sofá e dormir. É o que mais tenho feito. Durmo com o merecimento de quem tivesse escrito não meia dúzia de tolices, mas como Shakespeare depois de Hamlet. A vida sabe como são mutáveis e negociáveis nossos horizontes.

Saldo

Vivo ainda para quantas frases mais? Uma dezena, uma centena talvez - e certamente nenhuma que possa justificar uma vida. Saio do jogo como entrei - um tanto mais leve, sem o fardo da esperança.

Imaturidade

Sou um homem que jamais desenvolveu o artista que pensei existir em mim. Sempre me comovi mais do que consegui comover.

Flash

Houve um momento em que as últimas gotas de chuva se deixaram fotografar ainda pelo sol da tarde, antes de serem bebidas pela escuridão.

Lacuna

Se falta algo às borboletas, é a alegria do canto.

Ele

Cinquenta metros antes de o poeta chegar, já se sente sua presença no parque: o aroma festivo das flores é substituído pela opressão azeda e parnasiana dos sonetos que mofam no bolso do seu paletó.

Melhor não

O senso comum é o que há de menos apropriado a um poeta.

"Mapa", de Wislawa Szymborska

"Plano como a mesa
na qual está colocado.
Por baixo dele nada se move
nem busca vazão.
Sobre ele - meu hálito humano
não cria vórtices de ar
e toda a sua superfície
deixa em silêncio.

Suas planícies, vales são sempre verdes,
os planaltos, montanhas amarelos e marrons
e os mares, oceanos são de um azul amistoso
nas margens rasgadas.

Tudo aqui é pequeno, próximo e acessível.
Posso tocar os vulcões com a ponta da unha,
acariciar os polos sem luvas grossas.
Com um olhar posso
abarcar cada deserto
junto com um rio situado logo ao lado.

As selvas são assinaladas com algumas árvores
entre as quais seria difícil se perder.

No oriente e ocidente,
acima e abaixo do equador -
como poeira assentou o silêncio
e em cada partícula pessoas vivem lá suas vidas.
Valas comuns e súbitas ruínas
não cabem messe quadro.

Gosto dos mapas porque mentem.
Porque não dão acesso à verdade crua.
Porque magnânimos e bem-humorados
abrem-me na mesa um mundo
que não é deste mundo."

(De Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras.)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Andradiana

Corinthians, comoção de minha vida!
Anglicismo a berrar nos desertos da América!

Assim

Viver é sempre um motivo
Que traz algum desconforto
Àquele que ainda está vivo
Ou que ainda não está morto.

Aviso na entrada

Estou sob o signo da preguiça. Quando não durmo, cochilo. Venho gastando nisso dezesseis horas de cada um dos meus dias. Para aliviar minha consciência, nas oito horas em que me mantenho com os olhos abertos me esforço para escrever alguma coisa. Tenho exigido pouco de mim. Depois de cinco ou seis textos, cada vez mais curtos, volto a dormir. Ou a cochilar.

Como gotas

Há uma época em que as palavras de amor começam a murchar em nossos lábios mas eles sorriem ainda, porque retêm a lembrança do tempo em que elas se moviam entre eles como gotas de orvalho deslizando nas pétalas de uma flor.

Natureza-morta

O relógio na cozinha, acima da mesa em que as frutas se distribuem sobre a travessa, marca duas horas - presumivelmente da tarde, porque um filete de sol lambe amareladamente uma das ameixas.

Reconhecimento

Deves louvar tua tristeza, reconhecer a persistência com que ela sempre te buscou e o empenho com que, chorando contigo, tentou consolar-te quando a alegria, desdenhando-te, te deixava sozinho, como se fosses um homem acusado de encoxar estátuas de santos na igreja.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Quando era Mario Quintana quem as chamava, as estrelas apareciam e comentavam: ah, que bom, estávamos já cansadas do Bilac.

Modo de ser

As metáforas hão de ser particularmente modestas e sensatas quando estiverem a serviço de incomparabilidades como o sol, a lua e as estrelas.

Suburbana

A pieguice é a tristeza que escolhe para si as metáforas mais cafonas.

Intérprete (para Mariana Ianelli)

Uma flor faz mais sentido quando interpretada pelo vento.

Desconfiança (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Estamos tão escaldados com as falsificações que, se uma estrela nos cair no quintal, a primeira coisa que faremos será cheirá-la.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Não sei quando o menino Mario Quintana viu seu primeiro arco-íris. Gostaria de ter presenciado o agradecido encanto com que os dois se olharam.

Equilíbrio

As maneiras de enaltecer o amor são tantas quanto os modos de maldizê-lo.

"A natureza do gótico", de Margaret Atwood

"Mostro-lhe uma garota correndo à noite
entre árvores que não a amam
e as sombras de muitos pais

sem caminhos, sem sequer
migalhas de pão ou pedras brancas
sob uma uma lua que nada lhe diz.
Isto é: Nada, lhe diz.

Há um homem por perto
que alega ser um amante
mas cheira a pilhagem.
Quantas vezes teremos que dizer a ela
que se mate antes de ceder?

Não adianta dizer
a essa garota: Você é bem cuidada.
Eis aqui um quarto seguro, eis
comida e tudo de que precisa.

Ela não consegue ver o que você vê.
As trevas correm em sua direção
como uma avalanche. Como cair.
Ela teria gostado de avançar para o seu interior
como se fosse não um espaço vazio
mas um destino,
retirando seu corpo e deixando-o
amarrotado atrás dela feito a manga de uma roupa.

Sou a velha
que sempre há em histórias como esta,
que diz, Volte, meu bem.

Volte para o porão
onde o pior está,
onde os outros estão,
onde você pode ver
como ficaria se estivesse morta.

Então estará livre
para escolher. Para seguir
seu caminho."

(Do livro A porta, tradução de Adriana Lisboa, Editora Rocco.)