sexta-feira, 31 de março de 2017

Conforto (para Silvia Galant François)

O melhor do amor é esperar por ele num banco de parque, lendo um livro do Quintana.

Estreia (para Gianluca e Nicole Drewnick)

Era um arco-íris tão tímido e principiante que foi vaiado pelo público.

Uma vantagem

Felizmente eu já estou velho demais para escravizar um passarinho. Se tivesse um, ele precisaria vir todas as manhãs comer em minha mão. Eu não conseguiria abrir uma gaiola e colocar nela alpiste e água.

Miudezas

Escrevo frases tão simples que, assim que  as termino, elas poderiam já entrar em domínio público, se tivessem algum valor.

Hollywood

As estrelas mais fascinantes não são as que ficam ao lado da lua, no céu. São as que se veem pelo buraco da fechadura.

Na teoria

Tão amistoso é o amor, na teoria. Como certos gatos que, quando pequenos, parecem incapazes de arranhar.

Conhecimento

Os poetas oficiais podem não entender de passarinhos, mas sempre sabem quem é o ministro da cultura.

En français (para a Silvia Galant François e o Verissimo)

Ah mon Dieu
ando confundindo Alain Delon
com Gérard Depardieu.

Devagar e sempre

O poeta é um tipo ao qual as pessoas devem ir se acostumando aos poucos.

Palhaços

Hoje no portal do Estadão traço um curto perfil dessas figuras que às vezes tão bem representamos.

Bico calado

O poeta deve abster-se de revelar que tipo de pacto ele e os confrades têm com aquela figura cujo nome não se diz.

Preservacionismo (para Gianluca e Nicole)

À noite, na esquina mais distante, ele abria a sacola e começava a devolver as estrelas ao céu.

Quintal

No varal sem sol
o fantasma assusta-se
com a cara de um lençol.

Meia-noite

Para virem nas horas
em que vêm
os fantasmas devem ter medo
da gente também.

Desempenho

Alguns defuntos
(quanta hipocrisia!)
fingem que são sérios
até no seu último dia.

Autoestima

Se Deus se negar
não faltará diabo
para me carregar.

Ao som das rimas

Ainda hoje
algo em sua pele se insinua
e como uma revivida chama
queima quase arde
quando ele evoca
a antiquíssima tarde
a mulher nua
o sofá bom de cama.

Penumbra

É triste o outono da vida, com seu sol piedoso que evita despertar em nossa pele anseios de verão que nunca mais serão satisfeitos.

Dupla função

Naquele tempo, as nuvens conduziam chuva, como hoje, e davam carona aos poetas românticos.

Decifra-nos

Ou os poetas românticos bebiam nas caveiras ou as caveiras devoravam os poetas românticos.

Início de "John Barleycorn ou memórias alcoólicas", de Jack London

"Tudo isto me aconteceu num dia de votação. Era uma tarde quente da Califórnia, e eu tinha descido a cavalo para o Vale da Lua desde o rancho até a pequena aldeia para votar Sim ou Não a uma data de emendas propostas à Constituição do Estado da Califórnia. Devido ao calor que fazia eu tomara várias bebidas depois de depositar o meu voto, e diversas bebidas depois de depositá-lo. Feito isso, subira a cavalo através das colinas revestidas de vinhedos e ondulantes paisagens do rancho, e cheguei à herdade a tempo para outra bebida, antes do jantar."

(Tradução de Daniel Augusto Gonçalves, Livraria Civilização - Editora, Porto.)


quinta-feira, 30 de março de 2017

Ninharia

Pensando bem, esperar cem anos para se tornar um clássico não é proposta que se faça a um poeta decente.

A mão que afoga

O amor poderia ter nos salvado do naufrágio, se não fosse ele que às ondas tivesse nos atirado.

Quintana na linha (para Silvia Galant François)

Ultimamente, certas frases têm me vindo tão espontâneas e espirituosas que, se não parecesse jactância minha e se não fosse minha idade, eu poderia achar que me tornei o menino de confiança de Mario Quintana, ao menos para os mais simples recados.

Viniciano

O poeta deve ser liberado para amar tantas vezes quantas suportar seu tolo coração.

Plantio (para Gianluca e Nicole Drewnick)

Toda noite era visto cavando o quintal. Aos que lhe perguntavam ele dizia que plantava estrelas. Como a resposta não mudava, acostumaram-se e passaram a acreditar nele.

Priscyllice

Hoje, se nos reencontrássemos, ela não perguntaria se fui sincero quando lhe declarei amor. Perguntaria se eu era honesto quando lhe elogiava a beleza.

Registro (para Gianluca e Nicole Drewnick)

O nome inteiro
do rio eu acho
que é Rio Riacho Ribeiro.

Ornamentos

Passarinhos eram aqueles desenhos que apareciam no céu, na época do romantismo.

Questão de gosto

Os poetas de hoje têm certa má vontade com as estrelas.

Ebriedade

Omar Khayyam foi o poeta que melhor definiu a embriaguez da brisa tocada pelo aroma de tâmaras.

Confiança

Nesse tempo eu cheguei a imaginar que o amor fosse mesmo refratário a truques e a impurezas.

Tabuada

Nada vezes nada é tudo que você hoje pode multiplicar.

Não mais

Vamos falar do quê, agora? O que tem a dizer o vento se num dia de setembro, e nos outros todos, mês após mês, não encontra mais em seu caminho o velho jardim?

Desenho

No fim da vida os lábios, quando dizem palavras como amor, formam o mesmo desenho que neles se forma quando dizem rocha ou pedra.

Cantilena

O último fardo que ele precisa carregar é a esperança. De tanto ser iludido, sabe como fingir-se de surdo nos dias em que ela volta a lhe perguntar se ele não gostaria de ser apresentado a um amigo dela, o amor.

Rancores

Porque ele se tornou um velho irremediavelmente ranzinza e agora se queixa quando ela se descuida e toca com os dedos a janela, a ameixeira resolveu que não lhe dará mais frutos.

Affaire

O mais inquietante caso que eu tive (embora ela não admita) foi com a beleza.

Início de "Fome", de Knut Hansum

"Naquele tempo, com a barriga na miséria, eu vagava pelas ruas de Cristiânia, cidade singular, que deixa marca nas pessoas...
   Em minha água-furtada, estirado e sem dormir, escutei um relógio dar seis horas, lá embaixo. Era dia claro, as pessoas começavam a circular pela escada. Junto à porta, o quarto estava atapetado com velhos números do Morgenbladet. Eu podia ler distintamente o aviso do diretor dos Faróis e, um pouco à esquerda, vasto, rechonchudo, o anúncio de pão fresco, do padeiro Fabian Olsen."

(Tradução de Carlos Drummond de Andrade, Abril Cultural.)

quarta-feira, 29 de março de 2017

171

Se você sai à rua
com o 171 no blusão -
olha lá que capicua!

Insustentável leveza

Um haicai, que no Japão
não pesa nada, no Brasil
pesa uma tonelada.

Danação

Sei que escrevo mal,
que não devo. Mas
escrevo, escrevo.

Do haicai

É inútil buscar um haicai. Da procura resultará sempre uma imitação. O haicai surge quando não se espera, por uma súbita permissão dada à beleza pelo silêncio.

Sempre a mesma (para Rose Marinho Prado)

Você, jovem escritor, quando começar a dar entrevistas, será convidado a responder a esta pergunta: o que é escrever? É a pergunta que se faz todo o tempo a todos os escritores. Os antigos estão habituados a ela, e já lhe deram várias, e variadas, respostas. Eu o aconselho, jovem escritor, a dizer simplesmente que escrever é escrever. No fundo, é o que vêm dizendo há séculos todos os escritores.

Alma polonesa

Interessa-me a tristeza, desde a infância. Na alegria sempre vi algo de grosseiro, de vulgar. Não sei se isso é herança dos meus antepassados poloneses. Se for, sou-lhes grato.

Aprimoramento

Cada vez mais difícil é a vida dos segredos. As paredes, agora, têm olhos ouvidos e internet.

Saudades

Aquele foi um tempo bom.
Inês estava morta, é verdade,
Mas você ainda não.

A dúvida

Ainda não decidiu o que é melhor, agora: sonhar que é jovem e saudável ou que é um enfermo em fase final.

Reforço

Nos dias em que a tristeza o decepciona, ele a estimula fingindo ter uma doença grave ou um gato perdido.

Sempre igual

Há muito,já, nós não somos
O que julgávamos ser
E dói-nos reconhecer
O pouco que sempre fomos.

Severinos

Os camaradas passaram
e deixaram no ar
tão insólito jargão
que eu não lhes serei infiel
e à sua algaravia
se disser que
os camarada passou.

www's

Os blogs salvam nosso amor-próprio e nossa reputação. Com o fim da era do papel, nos descobrimos todos escritores.

Frase de Henri-Frédéric Amiel

"A intimidade feminina, a intimidade platônica e santa que me foi tantas vezes concedida, sempre foi no entanto uma fonte de dores, para uma das duas partes, ou mais exatamente para ambas."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos,publicado pela É Realizações.)

terça-feira, 28 de março de 2017

Meio ingresso (para o Verissimo)

Mas nem de brincadeira
aceite Hamlet se ele
aparecer sem a caveira.

Ansiedade

Venho olhando minha árvore com impaciência, há algum tempo. É a última estação dos frutos e gostaria de vê-los colhidos antes que o crepúsculo final baixe.

Teste

Amor é hoje uma das palavras que pronuncio quando quero me certificar de que meu coração está morto. Há alguns meses, já, que ele não reage.

Mau exemplo

O amor é o pior dos jardineiros. Proclamando-se eterno e murchando tão rapidamente, como costuma fazer, predispõe as rosas a uma fatal melancolia.

Épocas (para Alexandre Brandão)

Revolucionário na juventude, nos últimos dias fazia exortações pelo desânimo geral.

Ocasião (para Henrique Fendrich, Marco Antonio Martire, Mariza C.C. Cezar e Nelson Cunha)

Ou você desanima agora, ou babau! Morto não desanima.

Violino

A nota mais aguda de nossa sensibilidade deve ser reservada para o improvável momento em que a alma, se existir, nos deixe vê-la livrar-se de nosso corpo também finalmente liberto.

Criador e criaturas

Nosso erro e nossa desgraça é concebermos um amor sempre perfeito, ideal para nós e nossa suposta pureza. Que criaturas podemos, francamente, esperar de nós?

B.O.

Se fossem os ideias que se atirassem dos viadutos, e não os homens que julgam encarná-los, se veria quantos deles são vazios. Nada, nem um traço depois da queda.

Presente (para Nicole Drewnick)

No seu décimo aniversário, a menina acordou com a surpresa de ver no quarto dez rosas esparramadas com capricho no assoalho. Não precisou esforçar-se para descobrir a origem do presente. Ao lado das rosas, as marcas não deixavam dúvida. Era o Gato de Botas.

Estratagema

Carente, o poeta deu um jeito de quebrar o pé de um poema, para receber os amigos no hospital.

Postura municipal

Durante os três meses em que construiu sua obra-prima, o poeta concretista, cumprindo a praxe, manteve diante de sua casa a placa: Fulano de Tal, poeta responsável.

Abjeção

As rimas são como um pecado que o poeta nunca se sente à vontade para confessar, mesmo que tenham sido cometidas na sua infância casimiriana.

Rede

Compartilhada, minha tristeza mereceu um comentário ("Como é cruel o amor") e duas curtições representadas por dois corações alegrinhos, tão diferentes do meu...

Revide

O pombo que me trouxe teu bilhete contou-me tais coisas de ti que joguei fora o papel, sem ler. Tu, que tão bem te conheces, hás de concordar que fiz bem.

A doença

Continuo doente, morrerei doente. Se ao menos pudesse dar a isso o nome de literatura...

Cotação do dia

Sente-se como uma árvore velha sobre a qual não pousará jamais a alegria de um pássaro jovem nem a sabedoria discreta de um haicai.

Início de "O senhor das moscas", de William Golding

"O menino louro deixou-se escorregar ao pé da rocha e avançou rumo à lagoa. Havia tirado o suéter da escola e o carregava agora na mão, mas a camisa cinza estava colada no seu corpo e os cabelos aderiam à sua testa. Em torno dele, um banho de calor: a ampla cicatriz aberta na selva. Avançou com dificuldade por entre trepadeiras e troncos quebrados. Foi quando um pássaro, uma visão de vermelho e amarelo, faiscou, subindo, com um grito de bruxo. Grito que foi ecoado por outro.
    - Ei! - dizia -, espere um pouco!"

(Tradução de Geraldo Galvão Ferrraz, Editora Nova Fronteira.)

segunda-feira, 27 de março de 2017

Cotação do dia

Hoje, quando se diz poeta, é menos por convicção do que pelo hábito de mentir. Quando a mentira o incomoda, alega para si mesmo que é uma questão de sobrevivência.

Álibi

Justificar a vida com base em gemidos autodeclaradamente provocados pela arte é um dos mais antigos e cada vez menos válidos artifícios.

Olho gordo

Divertindo-se com a ideia de que talvez Paulo Coelho maldiga a fama, ele dá valor às incógnitas caminhadas que faz pelo bairro.

Pente-fino

Dependendo do censor, a expressão curto e grosso terá dificuldade para passar.

Lirismo desengonçado

Quando fores uma senhora submetida a uma tosse atroz, como um velho marinheiro desde a juventude viciado no cachimbo, tomara que eu me lembre ainda de tua voz.

Para manter a forma

Ainda que só como exercício, o poeta deve chorar ao menos uma vez por dia.

Até cisne

O poeta não pretende ser amado pelo homem que possa ser. Sabe que não teria chance. Por isso é que se mete na poesia e, se for preciso, finge ser cisne, digam o que disserem as más-línguas.

Physique du rôle

Considera-se um escritor clássico. Só começa sua rotina diária depois de tomar banho e pôr a melhor roupa.

Magnificência

Que pretensiosas são as frases curtas com reticências no final...

A época

Chega a época, a última, em que o predomínio é da memória. Até a imaginação se torna retrospectiva e serve só para preencher os hiatos das lembranças. É um período no qual não se pergunta mais o que se há de fazer. Toda a nossa riqueza está no passado. Não mais querer ser. Ter sido.

Delegacia de costumes

Dependendo do censor de plantão, a expressão curto e grosso terá dificuldade para ser liberada.

Compensação

Mesmo quando
a fortuna e o corpo se arruínam
a barba cresce.

Lógica

A esperança é a última que morre porque acredita em provérbios.

Nem sempre

Perder os sentidos no meio de um ato de amor, vá lá. Mas jamais perder o sentido no meio de uma frase.

Tachismo

Alguns dos melhores amigos do homem, julgando-se artistas plásticos, deixam generosamente suas obras nas calçadas.

Colherada

Se o poeta errar na medida, o pássaro do seu haicai pode resultar num animal de quatro patas.

Hiato

Fui um bom menino estragado pelo homem que vim a ser.

Engano crônico

Quantos de nós se iludem ainda hoje quando se olham no espelho e se veem escritores...

Ofício: escritor (para Silvana Guimarães)

Se dizem que somos
dizemos que não
mas como nos amuamos
se dizem que não.

Provérbio atualizado

Melhor uma paixão à mão que duas paixões virtuais.

Futuro

Garanta um pecúlio para os seus descendentes. Talvez sua obra não chegue a passar do primeiro livrinho de contos ou da juvenil plaquete de poesia.

Tergiversação

Por nunca saber se é pasmo que se diz, ou pasmado, sempre digo que estou espantado.

Circunstâncias crepusculares

O amor traz sempre possibilidades, reais ou fantasiosas, de nos envolver em peripécias supostamente capazes de aquecer um pouco nossos invernos finais.

Indesejável maturidade

Como  se tornam tristes as palavras amante e caso, quando já se esgotou o alvoroço inicial.

De Virginia Woolf, sobre as mulheres na literatura

"Numa ilha grega, houve Safo e um pequeno grupo de mulheres, todas escrevendo poesia seiscentos anos antes de Cristo. Mas as mulheres se calaram."

(De O valor do riso, tradução de Leonardo Fróes, Cosacnaify.)

domingo, 26 de março de 2017

Cotação do dia

Santo de casa não faz milagre nem arte.

Negócios & oportunidades (para Woody Allen)

Morrer é um verbo cinco estrelas que promete conforto, paz e quem sabe uma tocata de Bach no bar vizinho à piscina.

Mercado (para Silvana Guimarães)

Depois de míseras cotações
de quedas na bolsa
e das liquidações costumeiras
o amor começa a faltar nas prateleiras

O velho agiota e sua velhota
têm ainda um pouco
hibernando em algum canto
mas se o procurarem
e se o encontrarem já não saberão
se o amor é objeto de se ligar
nem - se ele for -
onde está o botão.

Paraíso (para Henrique Fendrich)

Felizardos são os novelistas. Falam todo o tempo de amor e são pagos para isso.

Catástrofe (para Ana Farrah Baunilha)

As recaídas do amor se dão sempre em escadas com pelo menos vinte degraus.

Instrução d) (para Maria Lígia Pagenotto)

O melhor que podes fazer a um domingo
para não estragá-lo
é não mimá-lo.

Cosmopolitas (para Aden Leonardo e Tuca Kors))

Não chame nenhum gato de seu. Garos são cidadãos do mundo.

Hoje na Rubem

Lanço ao ar pequenas frases, ideias, sentimentos que às vezes teimo em considerar literatura (www.rubem.wordpress.com).

Garantia de fábrica

O romantismo não te manterá jovem até os oitenta. Mas tolo com certeza te conservará.

Dissuasão (para Priscylla Mariuszka Moskevitch)

Hoje você não gostaria de mim. Já esbanjei tantas vezes a palavra amor que não consigo mais dizê-la com naturalidade.

Objetivo (para Silvana Guimarães)

O trabalho do poeta consiste em descobrir a voz adequada para as suas lágrimas e as alheias, de modo que pareçam todas iguais.

Tiragem reduzida

As editoras não costumam simpatizar com escritores de expressão que empacam na primeira impressão.

Em série (para Alfredo Aquino, Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

A literatura é uma ilusão tão tola quanto outras tantas, com a agravante de poder se repetir em segundas e terceiras edições.

Script

A trama de qualquer novela
é contar se ela fica com ele
e se ele fica com ela.

Vítima

Pobre mar, toleirão
sujeito a poetas de segunda
e pintores de terceira mão.

De novo

E repentinamente ele assumiu outra vez aquele ar sonso de cinco anos atrás. A gata é a primeira a perceber: ele está apaixonado. E o arranha sempre que pode, embora ele ainda nem suspeite por quê.

Mudança de rumo (para Ana Farrah Baunilha)

Como o poeta parnasiano nunca terminava a gaiola dourada, a passarinha aceitou o convite do passarinho e foram passar o verão em Acapulco.

Excelência (para Celina Portocarrero)

O melhor poema concretista é aquele trecho de calçada em que sobre o cimento fresco a menina rabisca com um ramo um coração e nele planta dois nomes.

Nove em dez

O lacaio típico é aquele que, tendo pensado um dia, por acaso, poder vir a ocupar o trono e a cama reais, começa a ter sonhos em que a rainha envenena o rei para realizar seus desejos de luxúria e poder.

Frase de John Banville

"Quanto prazer docemente vingativo se oculta por trás das dores do amor."

(De Luz antiga, tradução de Sergio Flaksman, Editora Globo.)

sábado, 25 de março de 2017

Manual (para Herena Barcelos)

A melancolia, para não degenerar, deve ser alimentada só com pão e água.

A lição (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)

A literatura ensinou-me a chorar na terceira pessoa.

Correio (para Silvana Guimarães)

Tantas são hoje as localidades
que de todas elas não dão conta mais
os guias da cidade

Tantas ruas tantos bairros que
até cartas de amor
às vezes não chegam aos destinatários

Um erro qualquer bem comum
um conde rebaixado a visconde
uma viela que passou de B a C
uma entrega falha um extravio
um aqui que devia ser acolá
e está completo o engano
que nunca ou tardiamente
o remetente descobrirá.

A pior estratégia

Quem diz que nunca emite juízos de valor está depreciando os próprios.

Ofício poético

Amanhã saberemos
o que sabemos
desde que começamos:
falhamos.

Bobeira

Quando você mencionou aquela palavra antiquada, eu deveria ter visto que você não estava falando sério. Amor em 2010? Algum resto de razão poderia ter me alertado: abra os olhos, Raul.

Microfone desligado

O melhor de estar morto é que presumivelmente não se tem mais nada para contar.

A origem

Tentar ser poeta é um truque antigo que começa a ficar claro para mim. Sempre quis ser amado não pelo que sou, mas pelo que imagino ser.

De um a trinta e um

Nada como um dia depois do outro para ir formando um calendário.

Comedimento

A honestidade, em um poeta, não deve chegar nunca ao extremo de admitir que a beleza nem sempre é sua principal preocupação.

Renovação

A primeira medida para arejar um pouco a criação poética deveria ser a proibição de metáforas para flores e passarinhos.

Empáfia

Mesmo no último dia, talvez você se mantenha presunçoso. Se soar ao longe um violino, quem pode garantir que você não vá imaginar ser uma homenagem?

Espelho

Minha tendência é desaprovar quem  se dê às lamúrias e à autodepreciação. Acredito que seja o receio de estar diante de um competidor, ou competidora. Ciúme é a palavra, talvez.

Uma frase de Virginia Woolf

"Pois o olho tem esta propriedade estranha: pousa apenas na beleza; como uma borboleta, procura as cores e se compraz no calor."

(Do livro O valor do riso, tradução de Leonardo Fróes, Cosacnaify)

sexta-feira, 24 de março de 2017

Sobre o sol

Falo dele hoje, no portal do Estadão. Audácia suprema!

Decepção

Leu os versos, escritos com um fogo que fazia muito não sentia. Releu. É só um poema, igual aos outros, avaliou. E, feita a avaliação, baixou sobre ele uma intolerável tristeza. Descobriu que estava apaixonado e, como nas vezes anteriores, era indigno desse sentimento.

Cronograma

A desculpa que costumava dar era a de que, se fosse dedicar-se à vida, não lhe sobraria tempo para ser poeta.

Encontros

O poeta não fala com ninguém desde que o crítico demoliu seu poema concretista.

Colinho

Minha melancolia tem me preocupado. Anda apática, arredia, cabisbaixa. Às vezes preciso estimulá-la com boleros da década de 1950.

Setas

Alguns nomes ficam em nossa memória sem que ela nos diga por que os retém, como placas num sonho vertiginoso. Aonde nos conduziriam Selma, Nilza, Telma, Neusa? Ah, coração. O que prometeste a elas, para te cobrarem assim, mesmo quando dormes?

Você

Você tem pena de você. Você se lastima, se lamenta, você se nomeia sofredor emérito. Mas, se alguém disser uma palavra para ajudá-lo, ou fizer um gesto para socorrê-lo, você mostrará os dentes raivosos. Você tem ciúme de você. Que ninguém ponha a mão no seu ombro. Você é você.

Contraste

O sentimento de minha pequenez tornou-se tão intenso que, se há algo que eu possa chamar de grandioso em minha vida é ele. Ele se expande, ele cresce, ele pede que eu o exiba com orgulho.

Chavão

Declarar-nos escritores não provoca mais aqueles sorrisinhos de ironia nem a pergunta sarcástica: "Somos colegas, então?"

Marketing

Matar-se é uma dessas hipóteses que, se você for artista ou assemelhado, podem enriquecer sua biografia e melhorar a opinião dos críticos a seu respeito.

Boa vontade

Tomara que, apesar de tudo, você deixe a impressão de ter sido um bom homem. E que os seus amigos não precisem mentir muito para chegar a essa conclusão.

Entrevista

Você amou a poesia. Se souberem disso, talvez não façam mais nenhuma pergunta. Mas, se insistirem em saber se você foi correspondido, diga que sim, tanto quanto se pode ser amado sem que o amor se torne aquele pudim domingueiro servido na família desde a época em que o preparou pela primeira vez a bisavó.

Início de "Luz antiga", de John Banville

"Billy Gray era o meu melhor amigo, e eu me apaixonei pela mãe dele. Talvez dizer que me apaixonei seja forte demais, mas não conheço palavra mais fraca que se aplique."

(Tradução de Sergio Flaksman, Editora Globo.)

quinta-feira, 23 de março de 2017

A amante

Às vezes, adulo-me como talvez me adulasse uma mulher querendo me conquistar. Não elogio meus olhos, minha voz, nem nada corporal. Digo-me que admiro o que escrevo, e logo nos vemos apaixonados.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Se pedissem a Mario Quintana que fosse ainda mais simples, mesmo que só um pouco, ele precisaria esforçar-se.

Sujeito objeto (para Ana Farrah Baunilha)

Se eu não me fustigar, eu não sou eu. Se eu não for fustigado, eu não sou eu.

São Paulo (para Celina Portocarrero)

Um corre-corre, um susto:
o arco-íris imprudentemente
debruçado sobre o viaduto.

Teoria (para Jiro Takahashi e Marisa Lajolo)

Os modernismos são novas maneiras de mexer em velhas gavetas,

Etiqueta

Podemos até não ter lido os clássicos, mas não podemos desconhecer seus nomes, especialmente se participarmos daquilo que se chama de vida social. Se formos frequentadores da Vila Madalena, saberemos pronunciar cada um deles com o tom certo de quem entende do assunto.

Tabela

No dia em que o despediu, o chefe comentou que a empresa faliria se todos os funcionários resolvessem cobrar só meia tarifa para as rimas em "inho" e em "ão"

Antiguidades

Urnas gregas e ânforas romanas foram o que por muito tempo a poesia ofereceu aos seus leitores. Para os atormentados pelo amor e outros males, só cabia bradar: oh, Júpiter, oh, Zeus!

Libertação

Por quantos séculos certos temas considerados prosaicos - como a morte de um leiteiro ou as rancorosas reflexões de um gato deixado sozinho em casa - precisaram esperar a chegada da poesia moderna.

Campainha (para Mariana Ianelli)

A poesia esteve sempre ali
onde você a procurou

Você tocou a campainha
bateu palmas chamou

Oculta pela cortina
ela viu que era você
sempre você
e esperou que você ousasse
ser mais que você

Mas você se satisfez
com a metáfora continuada
do pombo na cortina semicerrada
sempre igual
tantas vezes
tantas mil vezes depois
da primeira vez.

Imagem (para Silvana Guimarães)

Um poeta bem nutrido
como um garoto-propaganda
de flocos de cereais
pode parecer convincente
quando se descabela
escancara  a janela
e chora nunca mais?

Meio-termo

A poesia não é nem religião nem baboseira. Trabalho ou ofício parecem palavras mais apropriadas.

Fake

O olhar místico dos poetas não convence mais ninguém. Já há um século se sabe que a matéria-prima deles é o cotidiano.

Itens de segurança

À brisa só conte seus segredos um momento antes de morrer. Aos poetas, não conte nunca, principalmente segredos de amor. Poetas são mestres do fuxico e transformam um beijo, às vezes nem sequer dado, em rechonchuda gravidez.

Utilidade pública

Musas, hoje, podem ser encontradas na rua, em parques e em supermercados. Basicamente, em todos os lugares frequentados pelos poetas.

Dica

Se querem mesmo me agradar, chamem-me de piegas. E mandem-me mensagens que me façam chorar.

"Nosso pendor", de W.H. Auden

"A ampulheta sussurra ao rugido do leão.
Diz o relógio da torre ao jardim lá perto,
Que, sendo o Tempo paciente com os erros, quão
Errados eles estão de estarem sempre certos.

O Tempo, no entanto, quer badale grave ou alto,
Por veloz que se despenque em torrente raivosa,
Nunca de leão algum logrou deter o salto
Nem abalar jamais a firmeza de uma rosa.

Para ambos, só o sucesso importa, pelo jeito:
Enquanto escolhemos as palavras pelo som
E julgamos um problema por seu desajeito.

O Tempo sempre nos traz divertimento, e bom:
Quem não prefere dar umas voltas, fazer hora,
Em vez de vir direto para onde está agora?"

(Tradução de José Paulo Paes, extraído de Poemas, Companhia das Letras.)



quarta-feira, 22 de março de 2017

Regulamento

Presume-se que os poetas tenham o direito, e até certa obrigação, de chorar.

Ombro

Se sua mãe estivesse viva, ele contaria a ela tudo que vem sofrendo nas mãos de mulheres. E ela diria:"Eu bem que avisei, não avisei?" E talvez lhe desse, como antigamente, um bombom da Kopenhagen.

Acidente de percurso

No caminho, o rapaz da floricultura deixou cair um dos cravos, que não fez nenhuma falta ao defunto.

Modelo

Gostaria de chorar tão convictamente quanto chora nos seus poemas.

Proposta

Pede novamente a Deus que lhe conceda o dom da poesia e usa hoje um novo ardil: promete dedicar-se a louvar não tanto as maravilhas da natureza, mas seu Criador.

Regulamento

Presume-se que os poetas tenham o direito, e até certa obrigação, de chorar.

Dalton, agora (para Marcelo Mirisola)

Onde estiver Dalton Trevisan agora, ali estará um escritor capaz de tornar especiais qualquer hora e qualquer lugar, mesmo que sejam nove e vinte e cinco em Curitiba.

O defeito

"Que horror", exclamou o jovem estudante ao ler um soneto de Camões. "Ele rimava!"

Iniciação

Há muito tempo, quando imaginou que poderia ser um poeta, recomendaram-lhe que procurasse saber tudo sobre flores e passarinhos.

Norma (para Aden Leonardo e Tuca Kors)

Intolerância com aqueles que nas narrativas juvenis chamam gatos infelizes de pobres bichanos.

Hipótese (para Silvana Guimarães)

Se as chagas da alma fossem visíveis, eu ficaria rico se as mostrasse na praça da Sé, com um chapéu entre as pernas e talvez um sanfoneiro contratado para tocar Asa branca.

Rapidinho

A honra se conquista com o trabalho de muitos anos. A desonra está ao alcance de qualquer principiante.

Triste e mais triste

Triste é quando morre um amor com nome e endereço. Mais triste quando morre um amor criado todo na imaginação e ao qual ainda não se deu nome, ou deram-se vários, e não pode ser mais procurado em endereço nenhum.

A coleção (para Ana Farrah Baunilha)

Os amigos estranharam quando ele lhes disse que estava colecionado lagartixas. Um mês depois, no hospital psiquiátrico, pediu se podiam ir à sua casa para alimentá-las. Chamava-as de estrelas, agora, e recomendava que não dessem senão leite a elas.

De Joseph Brodsky, sobre os poetas

"Se os poetas têm alguma obrigação em relação à sociedade, é a de escrever bem. Estando em minoria, não têm outra escolha. Se não cumprirem com essa obrigação, submergem no esquecimento."

(Extraído de Menos que um, tradução de Sérgio Flaksman, Companhia das Letras.)

terça-feira, 21 de março de 2017

Problema

O que mais dificulta a perenidade dos poemas concretistas é a fadiga dos materiais.

Detalhes técnicos

A revisão de um poema concretista chama-se reforma e exige a assinatura de um engenheiro e licença da prefeitura.

Todas

O amor tem duas faces
e uma terceira
pior que a segunda
e a primeira.

Diálogo final

Na noite em que foi buscá-lo, a Morte admirou-se: "Você é a cara do Drummond. São parentes? Nem por parte da Poesia?"

Reconhecimento tardio

Só veio a saber que era um poeta romântico quando, no último dia, ao sentir que a Morte havia entrado no quarto, notou que ela era um gracioso e alvíssimo cisne.

Estratagema

Se sentir a aproximação de um haicai, finja estar dormindo. Os haicais são os mais ariscos de todos os seres. Gostam de apresentar-se como sonhos.

Predestinação (para Silvana Guimarães)

Já na primeira aula de português, o professor, ao ler seu nome, disse-lhe que alguém chamado Afonso Dias Duque de Piracicaba devia ter a poesia como ofício e engajar-se no parnasianismo.

Incapacidade

Parece-lhe inadequada a expressão esticar as canelas como metáfora da morte. Preocupa-se, quase se aflige. Se fosse hoje, não conseguiria.

Encargo

Quando o velho poeta começa a mimá-la, a poesia sempre convence o gato a substituí-la no sofá. Ele também já não suporta aqueles dedos atrofiados que perderam o toque da ternura, mas acaba aceitando a tarefa. São quinze anos de casa e ração.

O poeta aos dezoito

Tudo em que punha a mão
era poesia -
ou assim lhe parecia.

Ideia fixa

Acusarás o amor
e os jurados rirão:
mais um sem imaginação.

No fim

No fim, a arte já não tem tanta importância. O homem sofre e quer exprimir isso. Receia que, se deixar o poeta falar por ele, como sempre, haja uma sofisticação que ele já não quer. Sente-se como um menino que sofre e que não se envergonha de simplesmente gemer entre soluços.

Sem eufemismos

Pedindo perdão pela áspera palavra, a poesia já deve estar aporrinhada comigo. Quem, além dela, toleraria ouvir por tantas décadas esse lero-lero?

Ditado

Por mais cansados que estejam de mim, aturem-me um pouco mais. Como é a frase mesmo? Não há mal que sempre dure? Essa.

Só a verdade

Se é tristeza o que você sente, diga. Se é desesperança o que você tem a escrever, escreva. O que você teme? Você tem vergonha de causar compaixão?

Jeito

Considerar-se morto pode ser uma solução. Mortos não precisam mais escrever, e com alguns ocorre o fenômeno de os leitores julgarem que seu estilo até melhorou.

Falsidade

Você diz que tocou meu rosto e o acariciou. Mentira! Palhaço não tem rosto, tem cara.

Autenticidade

Uma das características dos tolos é proclamarem sua tolice como se exaltassem uma riqueza heroica e nobremente obtida por gerações de antepassados.

Justiça

Em alguns homens, a ingenuidade parece tão inverossímil que ninguém há de chamá-los senão de mentirosos.

Início de "Tia Júlia e o escrevinhador", de Vargas Llosa

"Nesse remoto tempo, era eu muito jovem e vivia com meus avós numa quinta de paredes brancas da rua Ocharán, em Miraflores. Estudava em São Marcos, direito, acredito, resignado a ganhar a vida mais tarde com uma profissão liberal, embora, no fundo, teria preferido chegar a escritor."

(Tradução de Remy Gorga, filho, Editora Nova Fronteira.)

segunda-feira, 20 de março de 2017

Caminho

"A morte, senhor? É só seguir sempre em frente. Isso. Não precisa ter pressa. É logo ali."

Você

Já percebeu? Seus apelos começam a ficar patéticos, no pior sentido. Logo você será um Romeu de circo estrebuchando sob gargalhadas. Você insiste neles, são o único sinal de vida que você ainda pode dar. Você não sabe mais por que apela. Você apela, você apela.

Cotação do dia

Sente-se como um bezerro triturado por uma sucuri num documentário. A sua sucuri, a que o enlaça, parece encantada com a atenção que recebe da equipe de filmagem e demora-se, alonga-se, faz pose para triturá-lo.

Ofício (para Oswaldo Mendes e Regina Helena Paiva Ramos)

Ator que sabe atuar
faz o papel de judas
o papel de jesus
e se o diretor mandar
também o papel da cruz.

Parceria (para Carlos Brandão e Marcos Gomes)

Não há tristeza que prospere sem o empurrãozinho de um amor desafortunado.

Agradecimentos

Devo reconhecer que muitos contribuíram para que eu desfrutasse plenamente minha tristeza. Sem eles, eu não seria senão mais um entre tantos bobos alegres.

Mentira

A alma já aprontou as malas, mas a esperança, empenhada ainda na tarefa que os tolos lhe atribuíram, teima em dizer ao corpo que o cheiro ruim no quarto vem do lado de fora e que é o médico, e não o padre, que está tocando a campainha.

Escolha de elenco

Saibam os leitores que não preciso fazer nenhum esforço para soar triste. Quem me deu este papel sabia o que estava fazendo.

Valor

Se eu despachasse minha alma por um pombo, ele voltaria sem ela e com uma nota de dez reais rabiscada de indecências.

O gajo

Na sessão, um espírito chamou-o de tu, e ele viu logo estar falando com Fernando Pessoa.

A pergunta

Se valesses alguma coisa, não achas que alguém já teria dito?

Joguinho

Sentado no sofá, brincas de imaginar. Imaginas que és de novo criança, e ficas triste; imaginas que ainda és adolescente, e te faz mal imaginar; imaginas que estás morto, e é como melhor te sentes.

Magister (para Silvana Guimarães)

O que indispõe Deus com os poetas dos quais recebe perguntas e invocações é a desleixada métrica, além da vulgaridade das rimas. Deus continua fiel ao parnasianismo, que fundou com Alberto de Oliveira e Olavo Bilac.

A piada

Nos bares
nos puteiros
não precisamos de dinheiro

Bebemos tudo
comemos tudo
não pagamos nada

Como não ser hospitaleiro
quando surge no picadeiro
o palhaço de cara lambrecada?

Mandona

A gramática parece aquele menino dono da bola que, quando contrariado, ameaça ir para casa e acabar com o jogo.

Fase áurea

Declamadores antigos eram capazes, em noites inspiradas, de fazer ruir um teatro num recital de poesia.

Projetos

1) Dispor-se a morrer por um ideal.
2) Escolher um ideal.

Início de "Cem anos de solidão", de García Márquez

"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo."

(Tradução de Eliane Zagury, Editora Record.)

domingo, 19 de março de 2017

Dever de ofício (para Edilaine Lopes)

Um domingo deve sempre sorrir, ainda que precise fingir um pouquinho.

"Facebook"

Vocês têm me amado tanto nestes dois anos. E no entanto eu me queixo, ainda...

Jugo (para Silvana Guimarães)

O poeta queria seguir rio abaixo
mas chegou a rima
e ordenou: rio acima.

Cotação do dia

Só sentirão falta de mim aqueles que necessitam da presença de um bobo para se sentirem participantes da corte.

Nem (para Aden Leonardo e Tuca Kors)

Não deixarei sequer um gato que, adotado pelo vizinho, possa dizer-lhe que nunca fui tão mau quanto sempre disseram.

Onde? Onde?

Onde estão os ciganos que temias? Eras criança e eram crianças que eles queriam, que eles levavam e que eles vendiam. Crianças que iam trabalhar em navios que o mar engolia ou em circos nos quais de pão e água viviam. Onde estão os ciganos que em pesadelos te perseguiam? Por que não te espreitam, por que não te assediam? Irias com eles hoje, ah, irias.

Cotação do dia

Vê-se no espelho e, com os olhos já exprimindo compaixão, reconhece: é um merda.

Zero

Você agarra um provérbio, sacode-o, vira-o de ponta-cabeça, e não cai dos bolsos dele um centavo de sabedoria.

Miopia

Os que mais sofrem são aqueles que, apaixonados pelo amor,  pensam estar apaixonados por suas criaturas. Sofrem pela Raquel, atormentam-se pela Sara, martirizam-se pela Lia e, se nenhuma delas os matar, estarão esperando pela Mabel, pela Mara e pela Bia.

... que o soneto

Nas segundas edições de livros, os erros cometidos pelo autor nas primeiras são, quando corrigidos, chamados pelos sagazes editores de aprimoramentos.

Versão ampliada

Não é sempre que o amor é o demônio pintado pelos românticos, aquele vampiro ansioso para beber, até a última gota, o sangue dos tolos que o veneram. Às vezes é pior.

Traços

O amor nem sempre é um vilão. Na maior parte dos casos, ele usa saia, batom e às vezes tem o gracioso  nome de Dária Vassilieva Petrovna.

Instância

À poesia só faça perguntas simples. Com as outras questões proceda assim: anote-as direitinho num papel e encaminhe-as ao departamento de filosofia. As respostas naturalmente tardarão um pouco mais e você não terá o prazer de recebê-las pelo serviço de pombos-correio.

Esdrúxulo

Veio-lhe, do nada, a ideia de escrever a história de um pássaro jovem aprisionado no coração de um velho poeta. Parecia fácil. Tinha já à mão pelo menos um dos ingredientes: o velho, que, embora lhe faltasse a poesia, tinha um coração capaz de aprisionar um desses passarinhos tolos que voam por aí.

Níveis

Escrever bem não é uma expressão que se deva tomar como elogio. Mas pior é escrever direitinho.

Sigilo

Reconhecer um amor é insanidade que só se deve fazer em poesia, e sempre sem citar nomes.

Prudência

A tristeza é um bem que o poeta deve proteger da inveja e registrar em cartório assim que puder.

"Quem é quem", de W.H. Auden

"Qualquer biografia de tostão dar-te-á todos fatos:
Como o Pai surrou-o, como ele bateu em retirada,
Quais as pelejas da sua mocidade, quais os atos
Que o tornaram em seu tempo figura tão afamada;
Como lutou, pescou, caçou, trabalhou noites seguidas,
Como, tonto, escalou novos picos, deu seu nome a um mar:
Escrevem mesmo alguns dos estudiosos da sua vida
Que, como eu e tu, amor fazia-o em prantos desatar.

Com todas as suas honrarias, ansiava por uma
Que em casa se encontra, dizia a crítica boquiaberta;
Fazia pequenos consertos domésticos com jeito
E só; sabia assobiar;ficava sentado satisfeito
Ou zanzando à toa pelo jardim; respondia a certas
Longas, esplêndidas cartas, mas não guardava nenhuma."

(Tradução de José Paulo Paes, do livro Poemas, Companhia das Letras.)

sábado, 18 de março de 2017

Melhor não (para Djanira Pio)

Não devemos nos conhecer muito, nem andar em nossa companhia.

Escala (para Celina Portocarrero e Silvana Guimarães)

Se estiver cantando,
melhor é um do que dois
passarinhos voando.

Chance

Se me mandarem para o inferno
talvez eu consiga,
se não ficar à deriva.

Dramalhões

Gosta das histórias tempestuosas, em que não só os corpos, mas também as almas, são atirados à sarjeta sob exclamações de júbilo.

Utilidade

Estarmos vivos indica que os deuses ainda nos mantêm entre seus objetos de entretenimento.

Anotação

Ter lidado com a poesia é um orgulho que tenho. Mesmo no caso de um homem medíocre, a época final da vida sugere um balanço. Perdoem-me se me gabo de um mérito seguramente superestimado.

Tudo certo

Aspirar a alguma espécie de glória literária não é pecado. O que mais será considerado indigno para um escritor, se ganhar dinheiro é quase uma desonra?

Registro

Hoje, quando vai dizer a palavra sexo, sente-se hesitação nos seus lábios, como se estivessem esperando uma informação mais precisa da memória.

Prerrogativas

Ser velho, ou idoso (tanto faz a nomenclatura), dá direito a certas possibilidades, como a de, sem causar suspeitas, marcar encontro com um médico numa clínica geriátrica.

Encanto externo

Você é aquele sujeito que sempre conta para os amigos as melhores piadas, aquelas das quais você, em casa, não recorda senão personagens esparsos, como um papagaio, um sabonete ou um sofá.

Autoconhecimento

Segui o conselho de Sócrates. Hoje me conheço muito melhor que ontem. Ontem eu era mais feliz.

Teu nome

Teu nome não precisas me dizer.
Conheço tantos nomes de rainha,
Deixa que o teu seja uma escolha minha
E pune-me se errado eu escolher.

"Palavras" de W.H. Auden

"Nasce um mundo da frase pronunciada
Onde tudo acontece tal e qual;
Na palavra a palavra está empenhada;
À fala, não ao falante, dá-se o aval.

Clara seja a sintaxe, e mais: que nada
Mude ao tema seu fluxo natural
Nem troque os tempos por amor à toada
Pois há tristes versões de pastoral.

Para que um blá-blá-blá interminável
Se os fatos são nossa melhor ficção?
Antes o verbo facilmente achável

Do que da rima a falsa encantação,
Qual dança de zagais mima o insondável
Cavaleiro a vagar na solidão."

(Tradução de João Moura Jr., extraído de Poemas, Companhia das Letras.)

sexta-feira, 17 de março de 2017

Troianos

Então eu te lamberia
Como se fôssemos gregos
E só nós dois entendêssemos
O sentido de ambrosia.

O nome

Deita-se sobre o próprio corpo e esforça-se para dar ao sofá um nome de mulher que possa ser pronunciado mesmo sob a mais descompassada respiração.

Aprendizado

O primeiro conselho que o jovem poeta recebeu do velho foi: musas podem até dar comida, mas dificilmente dão casa a alguém.

Glória

Depois de ver publicado seu primeiro poema no jornal de Cujudice da Serra, ele passou a andar pela rua empertigado como um poste adolescente.

Aquele

Estaremos tão mortos que não saberão mais nosso nome e em suas ocasionais memórias nos mencionarão como aquele: aquele sonso, aquele tolo, aquele idiota.

Escala

Nos versos de um poeta jovem, os bem-te-vis sentem a oportunidade de soar como cotovias.

Autópsia

Quando lhe pediram que analisasse o livro de estreia de um poeta, o crítico muniu-se de uma lupa e de um par de luvas.

Hoje no portal do Estadão

O tema é saudade.

Figurinhas

A maioria dos poetas tem manias estranhas, a começar por essa de se acharem poetas.

Forma de tratamento

Os tempos antigos, quando lembrados com doçura, costumam ser chamados de outrora.

No mesmo barco

Se eu me considero medíocre como homem e como poeta, não faço nada além de aceitar a opinião geral.

Gozo

Deixar-se morrer é melhor que simplesmente morrer. Fechar lentamente os olhos, sentindo o prazer de fechá-los. e de mantê-los assim.

Planilha

Qualquer planejamento sério
deve prever um hospital
e um cemitério.

Assincronia (para Ana Farrah Baunilha)

É um traidor da própria idade. Ainda sente um arrepio, às vezes, ao ler palavras como penugem. E fica inquieto, e nervoso, e anda pela sala, e suspira, e geme até, se estiver sozinho.

Início do conto "Miss Algrave", de Clarice Lispector

"Ela era sujeita a julgamento. Por isso não contou nada a ninguém. Se contasse, não acreditariam porque não acreditavam na realidade. Mas ela, que morava em Londres, onde os fantasmas existem nos becos escuros, sabia da verdade."

(Do livro A via crucis do corpo, Artenova.)

quinta-feira, 16 de março de 2017

Insônia

O erotismo o mantém aceso como uma solitária vela espetada na escuridão.

Passaporte

Receia que estes seus últimos anos só sirvam para encaminhá-lo ao inferno: de um mês para cá, vem sonhando com umbigos.

Hipótese (para Ana Farrah Baunilha)

Tudo seria preferível a esse marasmo: até estar sendo processado pelo exercício imoderado (ou então moderado demais) da luxúria.

O poema

Se a ele mesmo a ideia não parecesse inspirada por um meloso romantismo, gostaria de escrever um poema em que, no funeral de uma jovem, vítima de um infortúnio amoroso, dois alvíssimos pombos pusessem a se bicar selvagemente, disputando um melhor lugar para ver o sepultamento.

Conforme a escola

Os lenços, quando queriam arreliar os poetas românticos, saíam do bolso sem licença e imitavam pombos. Os lenços dos surrealistas transformavam-se em ratinhos, para morder-lhes o nariz.

Eros

Ela incitava à poesia naquela manhã. Não lhe faltava um item sequer para preencher o papel de musa.Mas ele, mesmo sentindo-se culpado, se recordou e deu sequência a uma cena acompanhada na infância: um cavalo que, sublinhando sua argumentação, mordia didaticamente a nuca de uma égua.

Recuerdo

Ainda hoje, quando se lembra do que pensou ao vê-la surgir na esquina, quase maravilhosamente dentro do horário, sente na língua uma ansiedade promíscua de mel e de sal.

Futuro

Só os mortos otimistas acreditam em segunda época.

Negócios

Quando se viu enredado no terceiro mês de bloqueio, não pôs a alma à venda, mas a emprestaria ao Diabo, se ele a quisesse, por uma boa quadrinha.

Cotação

O que a vida merece mesmo de nós é ou o sarcasmo ou a chacota. E, no entanto, nós lhe oferecemos poesia.

Exemplo

Não era um poeta cabeça de vento como os outros. Tinha emprego na bolsa e terras no Parnaso.

Coincidências

Sua fortuna crítica se resumia a um artigo sobre seu livro Poemas de ouro, publicado num jornal de Águas da Prata.

Estatística

Querias fama, e os teus poemas são hoje conhecidos em só mais um país, fora o teu. Deverias ter cuidado não só dos versos, mas de providenciar uma família mais nômade e mais numerosa.

Vergonha

Uma borboleta é uma presa tão fácil para os maus poetas. Deveríamos envergonhar-nos.

Início de "A insustentável leveza do ser", de Milan Kundera

"O eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, colocou muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?"

(Tradução de Teresa B. Carvalho da Fonseca, Rio Gráfica.)

quarta-feira, 15 de março de 2017

Terça-feira gorda

Detesta-se no espelho:
narciso de cara cheia
e olhos vermelhos.

Poderosa

A palavra diagnóstico, por si só, já assusta um bocado, venha ou não acompanhada por um adjetivo.

Memória do sol paulistano

Temia que, não tendo lido o que ele há tanto tempo escrevera, ela nunca viesse a saber como era bela quando ele a imaginava andando sob um sol que não deixava de acompanhá-la mesmo quando os passos dela a levavam para dentro de uma das galerias da Paulista.

Talvez diário

Se quiserem dar um nome a este conjunto de disparatadas notas que publico aqui, talvez o melhor seja chamá-lo de diário. Soa antiquado esse termo, bem sei, mas também antiquado é quem o escreve. Quem - depois ver a palavra antiquado duas vezes na mesma frase - há de manter algum interesse na leitura?  Do diário de um jovem, ou de uma jovem, é comum esperar situações ao menos picantes. O que um velho que há muito só pensa em arte e literatura pode oferecer a essa legítima expectativa? Que excitante confissão escreverei? Direi que nunca vi melhores pernas que as da poesia? Ou que, se me envolver passionalmente com alguém do meu gênero, darei preferência a um soneto de olhos verdes?

Perfeição (para Ana Farrah Baunilha)

Era uma musa perfeita em tudo. Cabelos, olhos, lábios. Só os dedos, um tanto gordinhos, não eram bem os de uma estranguladora, mas por algum tempo esperei que eles atendessem o pedido de minha garganta ansiosa.

Passos

Morrer cada dia um pouco
é o exercício conveniente
antes de morrer definitivamente.

Interpol

Esse que diz ser Satanás
chamava-se Lúcifer
alguns milênios atrás.

Dica

Se o que tu queres são vestais,
não as procures nem nos templos
nem nas redes sociais.

Haicai para petizes (para o Gianluca, a Nicole e a Bia)

Se na mão o homem
uma garrafa traz, o saci
fica logo com um pé atrás.

Inadequação

Gastou sua poesia com musas que teriam preferido um solo de gaita ou uma serenata de sanfona.

Como desfrutar

Devemos desfrutar a poesia aos pouquinhos, aos golinhos, às lambidelas. Se alguém se queixar do ritmo, que seja ela.

Provocação

Se quer ver um ditado perder a compostura, chame-o de rifão ou anexim.

Moderato

Conquistei minha antiguidade com passos cada vez mais lentos e morosa tenacidade.

De Virginia Woolf, sobre a poesia

"Pois é claro que a poesia sempre tomou maciçamente o partido da beleza. Sempre ela insistiu em certos direitos, como a rima, a métrica, a dicção poética, e nunca foi usada para os objetivos comuns da vida. Coube à prosa tomar sobre seus ombros todo o trabalho sujo; coube-lhe responder cartas, escrever artigos, atender às necessidades de homens de negócios, lojistas, advogados, soldados, camponeses."

(De O valor do sorriso, tradução de Leonardo Fróes, Cosac Naify.)

terça-feira, 14 de março de 2017

Menu (para Alice Sueli Dantas)

A letra Z no dicionário, com sua reduzida lista de palavras, é para a traça a mais adequada sobremesa. Depois, o café e o cigarro, se é que traças têm esses hábitos.

Corréu

Hoje chamarei em voz alta a alma minha, só para incorrer no mesmo cacófato que dizem ter sido cometido pelo meu caro Luís Vaz.

Espontaneidade

Se é o que fazes melhor, não te envergonhes de chorar.

Único

Qualquer artista, seja de que área for, será sempre aquele que, vencedor num concurso de lágrimas, fizer o segundo colocado parecer um bufão.

Esquina

Acho que, se eu fosse pintor, trabalharia interminavelmente um tema: um menino chorando tanto numa esquina que seus olhos nunca poderiam ver nada nem ninguém que por acaso fosse oferecer-lhe a salvação.

Leitmotiv

Para mim, o belo sempre se confundiu com o triste. Sempre amei as lágrimas e quem fosse capaz de provocá-las.

Morrer

Morrer é uma palavra tão morna, tão macia. Tão doce é murmurá-la com esperança, depois de tantos reveses na vida.

Tempo

Temos ainda algum tempo, não mais para mudar, mas para continuar tocando aquele tecla de sempre: o amor. Talvez consigamos tocá-la melhor, agora que o tempo impôs a lentidão aos nossos dedos.

Autêntico

Era um daqueles poetas que apanhavam no próprio jardim as flores que punham na lapela.

Cotação do dia (2)

Hoje ele sente o que sentia em 14 de março de 2016: que talvez devesse ter morrido em 14 de março de 2015.

Cotação do dia (1)

Gostaria de estar morto, desde que não precisasse ter sofrido muito para  estar.

Um trecho de Virginia Woolf

"Para ser capaz de rir de alguém você tem, antes de tudo, de ser capaz de o ver como ele é. Toda a capa de riqueza e posição e saber que uma pessoa possui, na medida em que é uma acumulação superficial, não deve embotar a lâmina afiada do espírito cômico, que opera ao vivo."

(De O valor do riso, tradução de Leonardo Fróes, Cosac Naify.)

segunda-feira, 13 de março de 2017

O encontro

Num início de tarde de límpido céu azul, um clarão cegou o poeta. Quando a visão lhe voltou, ele percebeu que estava diante de Deus. O prodigioso encontro durou um instante e foi silencioso. Aconteceu há cinco anos. Nada mudou nem na vida nem na obra do poeta. Quanto a Deus, não se sabe.

Nostalgia (para Marcelo Mirisola)

Minha alma já teve melhor corpo. Lá por 1950...

Negócios

A empresa sou eu sozinho.
Deus há muito tirou
seu patrocínio.

Maturidade

Desde menino sabe que expressões como bom dia, boa tarde, bom domingo e boa vida são todas contradições em termos.

Teoria

Um cronista deve escrever na primeira pessoa, mas de forma a parecer que o que de errado lhe acontece só acontece com ele, e que o melhor os leitores conhecem muito bem e acham que poderiam exprimir também melhor.

Verbos

Que independência, que altivez têm os verbos intransitivos. Que beleza há em chover, por exemplo. Chover, simplesmente. Nada que indique a presunçosa intromissão do homem.

Infância do poeta

Assim que ele aprendeu os números de um a dez, começou a exercitar seus dedos não na prestidigitação erótica, como os outros meninos, mas na meticulosa contagem dos decassílabos.

Futuro (para Deonísio da Silva)

Pelo sim, pelo não, continuarei acreditando que tenho alma. Pode ser útil, no futuro.

História literária

As virgens, no tempo dos românticos, não se deixavam ver durante o dia. Só à noite, nos cemitérios, quando exortavam os poetas: "Devorem-nos, antes que comecem a chegar os realistas."

Dicionário

Na estante, no escuro, com a fome apaziguada, a traça dorme na letra T.

Afinidade

Alguns defuntos são tão convincentes, tão clássicos que, mal colocadas no seu peito, as flores parecem flores de vários defuntos atrás.

Início do conto "Josefina, a cantora", de Kafka

"Nossa cantora se chama Josefina. Quem não a ouviu não conhece o poder do canto. Não existe ninguém a quem seu canto não arrebate, o que deve ser mais valorizado ainda, uma vez que nossa raça em geral não é amante da música. Para nós a música mais amada é a paz do silêncio."

(Do livro Um artista da fome, tradução de Modesto Carone, Editora Brasiliense.)

domingo, 12 de março de 2017

Leandro Karnal, Ruth Manus

Que bom ver que a crônica continua tão maravilhosamente viva. Obrigado.

Ele (s)

Fernando Pessoa foi único em cada um dos seus disfarces.

Ah

Ah, aquela época da adolescência em que, já nos julgando do ramo, começamos a tratar nossos deuses com intimidade: o Machado, a Emily, o Pessoa, a Virginia.

Se e se

Se temos a ambição da literatura, o melhor modelo que podemos escolher é Shakespeare. Se temos autocompaixão, Shakespeare é o pior.

Do baú

Usei, num texto recente, a palavra tampouco. Depois de escrevê-la, tive dúvida. Tampouco? Não ficariam os eventualíssimos leitores me achando pernóstico? Fui tentado uma, duas vezes, a cortar a palavra. Depois, ela foi se impondo a mim, pela justeza, e eu a deixei ali. Pode ser que outras palavras e expressões, consideradas antigas e ultrapassadas, mereçam esse direito de uma nova oportunidade. Talvez venhamos a descobrir que ainda há espaço para elas. Oxalá. Oxalá? Caramba, em que velhas águas venho me banhando.

Nada a ver

Não, ornitólogo não é um bom termo para estar relacionado a passarinhos. Ornitologista? Tampouco. Tenho a impressão de que Mario Quintana não apreciaria nenhum deles. Os passarinhos também não, acho.

Narizes ao alto

Se os poetas, a maioria, valessem quanto imaginam, como seria irrisória, para eles, a imortalidade.

Uma vez poesia

Quando a neta disse a palavra poesia, o poeta sorriu. A família viu esperança nisso, depois de um mês de uma doença que levara o homem à apatia. Mas, desse dia até o último da vida do avô, nunca mais a neta conseguiu repetir o prodígio. Tinha oito anos e meio na primeira vez, e um pouco mais de nove na derradeira tentativa.

Usurpação

Tantos poetas concretistas, e quem melhor usou uma pedra foi o Drummond.

Peso

Desafortunada alma, por quanto tempo, depois de te livrares, continuarás impregnada do cheiro deste corpo?

Um, outro, nenhum

Alguém disse que o gênio faz o que pode e o talento faz o que quer. Que consolador é isso, para quem, não pertencendo a nenhuma das espécies, pode imaginar pertencer às duas.

Hoje na Rubem

Lanço frases à chuva e ao vento, como quem arremessa garrafas ao mar (www.rubem.wordpress.com)

Início de "O labirinto negro", de Lawrence Durrell

"Nos primeiros dias de junho de 1947 um pequeno grupo de excursionistas ficou aprisionado no então recentemente descoberto labirinto de Cefalu, na ilha de Creta. O grupo havia penetrado na teia de cavernas e corredores conduzido por um guia fornecido por uma agência de turismo, com a intenção de examinar a chamada Cidade da Montanha, cuja descoberta, nos primeiros dias do ano anterior, marcara data na carreira arqueológica de Sir Juan Axelos. Devido a um súbito e imprevisto acidente, o guia encarregado de cuidar do grupo morreu. O desmoronamento separou diversos elementos do grupo do seu núcleo principal e foi por mero acaso que um deles, Lorde Graecen, encontrou uma saída."

(Tradução de Daniel Gonçalves, Editora Record.)

sábado, 11 de março de 2017

Ressalva (para Aden Leonardo)

Quando dizemos ser um traço na areia, há alguma presunção em nós. Somos areia.

Outros tempos (para Alfredo Aquino)

Os poetas morriam de tédio
um dia sim e outro dia sim
quando o tédio era inglês
e era chamado de spleen.

Paulificância (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Que desinteressantes as histórias dos poetas modernos. Nenhum mais morre de amor ou de fome. Suas biografias deveriam ser escritas por ficcionistas.

Currículo (para DonJuan de Byron)

Ele rapidamente sentiu que não era tão simples ser um poeta romântico. Receava tanto as virgens quanto os cemitérios e, para beber vinho ou veneno, preferia um copo ou um cálice a um crânio, ainda que este fosse o de lorde Byron.

... é

Escritor é quem, tendo resolvido aos quinze anos ser o que é, aos sessenta e cinco ou setenta ainda não sabe dizer os motivos de sua decisão.

Versões (para Silvana Gumarães)

O olhar daqueles que fazem um esforço para localizar um arquivo na memória e nos dizem:
"Poesia? Eu..."
Ou:
"Você disse poesia? Eu..."

Modo de ser

Sou persistente só no sofrimento que gosto de me infligir. No mais, sou o retrato da apatia. Sonso, incuravelmente sonso.

Marketing (para Ana Farrah Baunilha)

Fatos são fatos.
Se sofrer, sofra por amor.
Sempre dá mais status.

Leoa

Ela se lembra dele, tolinho, tremendo como um animalzinho que receia e quer ser devorado pela leoa. Ela se lembra dele suplicando com os olhos o beijo. Ela se lembra de haver pensado como seria fácil arrastá-lo depois do beijo pela cidade até a sua toca. Ela se lembra de haver sentido algo que era ao mesmo tempo desejo e repulsa. Ele era mais um ser desprezível, reles, imaginando-se digno de ser devorado por uma leoa. Ela se lembra dele, em pé na escadaria do metrô, vendo-a afastar-se, levando para longe o instante em que sentiu como nunca a excitação de ser uma presa.

Início de "Morte em Veneza", de Thomas Mann

"Numa tarde de primavera do ano de 19..., que meses a fio vinha mostrando ao nosso continente um semblante tão ameaçador, Gustav Aschenbach, ou von Aschenbach, como passara a chamar-se oficialmente desde seu quinquagésimo aniversário, saíra de sua residência na rua do Príncipe Regente, em Munique, para um longo passeio solitário. Muito agitado por uma manhã de trabalho árduo e arriscado, a exigir justamente agora uma extrema cautela, circunspecção, rigor e força de vontade, o escritor não conseguira, nem mesmo após o almoço, sofrear a vibração do mecanismo criador em seu íntimo - aquele motus animi continuus que, segundo Cícero, constitui a essência da eloquência - e não pudera dispor do cochilo reparador que lhe era tão necessário durante o dia, ante o crescente desgaste de suas forças. Assim, logo depois do chá, ele procurara o céu aberto, na esperança de que um pouco de ar livre e movimento o restabelecessem, propiciando-lhe uma noite proveitosa."

(Tradução de Eloísa Ferreira Araújo Silva, Biblioteca Folha.)

sexta-feira, 10 de março de 2017

Arrepio (para Celina Portocarrero)

Que audaz aventureiro me senti quando o gerente disse: "Pronto, localizei. O senhor migrou de outra agência, não foi?" Havia cheiro de mar na sala.

Utilidade

Poetas velhos só servem para falar mal de poetas jovens e para censurá-los por não terem o que, mesmo? Ah, estro. Isso, estro!

VIPs

"Ela lidou com Sartre e a mulher dele, a Simone, com gente mais antiga, como aquele russo,  Dostoiévski, e até aquele grego cego, o Homero", comentou o sobrinho no jantar, falando da tia bibliotecária. "Ela sabia direitinho o lugar de cada um na estante."

Tudo

Quando exigimos exclusividade do amor, certamente não estamos omitindo nada do que ele possa nos proporcionar. Nada, nem o sábio manejo do chicote.

Sobre a bunda

Hoje no portal do Estadão discorro sobre essa graciosa palavra.

Sob medida

Escreve textos cada vez mais curtos. Sabe como é reduzida sua probabilidade de seduzir. Cinco minutos são uma eternidade. Talvez o amem por três.

Lacuna

Se houvesse sido ainda mais tolo, teria avançado no caminho do amor e poderia hoje lamentar prazerosamente tantos outros passos, tantas outras dessas derrotas que fazem sua alma sentir-se tão lancinantemente viva.

Flash

Nos dedos ainda, certas noites, por piedade ou escárnio da memória, um formigamento de luxúria.

No alvo

Se você quer se tornar célebre por uma frase, escreva só uma, só essa. Um homem que esbanja diariamente frases notáveis é visto com desconfiança. Ou você pensa que a Inquisição acabou?

Literatura nas redes

Anteontem: "Paulo Coelho!!!"
Ontem: "Paulo Coelho???"
Hoje: "Paulo Coelho..."

Início de "O poder e a glória", de Graham Greene

"O sr. Tench saiu para ir buscar o seu tubo de éter, sob o ardente sol mexicano e a poeira alvacenta. Do alto do telhado, alguns urubus olharam para ele com sórdida indiferença: ainda não era carniça."

quinta-feira, 9 de março de 2017

SCCP

Minha terra tem Corinthians, que em outras terras não há.

Sobre coisas e objetos (para Rose Marinho Prado)

Há nos pintores uma liberdade que os escritores usam com relutância: a de se ocuparem de coisas e objetos. Os escritores são obcecados com a ideia de grandeza, querem retratá-la de preferência a qualquer outro valor. Os pintores, mais generosos, têm sempre olhos para tudo aquilo que, catalogado sob o item ninharias, faz mais parte da vida humana do que as fugidias manifestações do espírito.

Trocadalho (para Wagner Kotsura)

"Está certo, então. Concordo. Dostoiévski foi maior que Tolstói. E vice-versa."
"Vice-versta?"

Prova

Se alguém ousava duvidar de sua autenticidade, os poetas românticos davam imediatamente cinco ou seis convincentes tossidas, desenhando rosas vermelhas no lenço.

Engodo

Os poetas obesos choram de barriga cheia.

Testes (para Silvia Galant François)

Por não serem hábeis no tato como os concretistas, os poetas românticos avaliavam as flores pelo aroma.

Retorno

Com as palavras que escrevemos, almejamos justificar-nos antes de merecer a graça de mais ninguém, nem nós mesmos, nos perguntar nada mais e podermos voltar ao silêncio do qual nos tiraram sob a suposição de que pudéssemos dar algum testemunho sobre o silêncio inicial.

Princípio

O escritor naturalista não utiliza pesticidas na sua produção.

Credencial

Para constar nos anais da literatura, aceitaria ter sido o cachorro de Homero ou de Borges.

Fetiche

Que excitação sentiam os parnasianos ao beijar lábios de puro mármore.

Afinidade

O poeta concretista escolhe suas musas entre mulheres que têm coração de pedra.

Esquina (para Silvana Guimarães)

Diante da poesia sou ainda o menino bisonho a dois passos de seu primeiro pecado carnal.

Reflexões irrefletidas

Tudo que escrevo pode ser considerado ficção, até aqueles textos nos quais eu possa dar a impressão de estar fazendo ensaios literários. Depois de meia dúzia de palavras, um trecho, um parágrafo, sou tentado a me deixar conduzir sem me apoiar deliberadamente no pensamento. Agrada-me a ideia de ser instrumento. Não preciso de nada mais. Talvez seja modéstia, talvez comodismo, talvez irresponsabilidade.

Inversão

Era um poeta tão pobre que os pombos dividiam as migalhas com ele.

Tabu

Maravilhosa palavra é naufrágio. Que dignidade tem. Nunca a usemos para exprimir a morte de um amor, a não ser que possamos jurar, falando diretamente à alma, que ele foi para nós a metáfora ideal e única da vida.

Que às vezes (para Alfredo Aquino, Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Ao menos pela audácia, os poetas mereceriam maior estima. Arriscarem-se a dizer que de certa forma fazem o mesmo que Shakespeare explica por que todos são considerados dementes.

Ajustes

Ela só ia se dando depois que eu pedia três vezes cada coisa. Sempre valeu a pena.

Mais Amiel, essencialíssimo

"A dor nos localiza, o amor nos particulariza, mas o pensamento livre nos despersonaliza, e nos faz viver no grande Todo, mais vasto ainda do que Deus, pois que Deus, como espírito, é oposto à matéria e, como eterno, é oposto ao mundo. Ser um homem, isso é mesquinho; ser homem, está bem; ser o homem, só isso atrai."

"Torna-se a dar assim ao pormenor, ao passageiro, ao temporário, ao insignificante, a beleza e a nobreza. Dignifica-se, santifica-se e mais mesquinha das ocupações. Tem-se assim o sentimento de pagar o seu tributo à obra universal, à vontade eterna. Reconciliamo-nos com a vida e cessamos de temer a morte. Estamos na ordem e na paz."

"Por que seria o indivíduo indestrutível, quando a espécie humana é perecível, quando a sua aparição não é mais do que um episódio da história de um planeta de forma alguma eterno? A existência fora do espaço, a existência fora do tempo são-nos conhecidas apenas por intuições do espírito."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações.)

quarta-feira, 8 de março de 2017

Talvez memórias

Fui adepto do sublime. Eu era adolescente, então, e acreditava também no amor, salvo engano.

Nessa hora

Quando ela dizia agora eu quero vir por cima, eu já estava sempre pronto. Se ela me chamasse de Dalila ou de Dalva nessa hora, ou de qualquer outro nome de mulher, eu não ia achar ruim. E você sabe como eu sou homem.

Delícia

Sentir-se morto é um privilégio que só os vivos desfrutam.

Cinco estrelas (e meia)

Não nos superestimemos. Sempre haverá alguém um ponto acima de nós, se o item for perversidade.

Praga

Enchemos o ar de lamentos. Poluímos o céu com nosso rancor. Quem, senão nós, responderá pela morte dos passarinhos?

Orgulho e delicadeza

É dessas pessoas que, se forem matar um, escolhem o próprio cão, para não terem de pedir perdão a ninguém.

Por assim dizer

Dizes que não escreves por honrarias. Quantas já ganhaste? A quantas renunciaste? Aprendeste palavras doces, como um charlatão aprende novos embustes.

Ampulheta

Cada vez mais escasso é o teu tempo, até para essas coisinhas às quais teimas em dar tanta importância, esses berloques que acreditaste um dia poderem levar-te a Estocolmo. Maldito Bob Dylan, tu dizes e repetes, com a canetinha escrevendo o início de um poema no bloquinho.

Lista (para Alfredo Aquino)

Um bom poema pode se fazer com duas ou três coisas, dessas bem simples, e às vezes até sem poeta.

O básico (para Silvana Guimarães)

A uma narrativa, qualquer uma, bastam alguns substantivos e meia dúzia de verbos. Todo o resto são adornos da literatura.

Empurrãozinho

"Morre logo, vai", incentivou o leitor, ao notar que, depois de meia hora, o poeta parnasiano ainda estrebuchava em alexandrinos no lago, sob o decoroso espanto dos cisnes.

Esperteza

A literatura nos proporciona mil duzentas e cinquenta e oito máscaras. Como ela nos conhece bem.

Verso, reverso

Se digo que escrevo para mim, sinto-me um egoísta. Se digo que escrevo para os leitores, sinto-me como um bufão pedindo aplausos depois de cair do topo de uma escada e deslizar sobre um balde de tinta derramado.

Adequação (para Ana Farrah Baunilha)

Amor hoje é uma atividade voltada quase exclusivamente a fins recreativos.

Primeira tragada

A poesia costuma apossar-se dos jovens e, impondo-se à sua fraqueza e à sua ingenuidade, os empurra para calamidades cada vez mais agudas, como o amor.

Declaração de princípios

Se morrer não for morrer de verdade, mesmo, desculpem a expressão, mas eu estou fora.

O tipo

Sempre fui engraçadinho. O tipo de cara que mijaria na própria sepultura, se estivesse vivo.

Saudade

Eu gostava muito mais de mim quando era menino. Meus pais compravam tudo que eu queria. Por que não lhes pedi o segredo da poesia?

Divagação em torno de Mia Couto

Nunca disse ser poeta. Hoje, acha que pode ter sido seu erro. Vendo uma foto de trinta anos antes, concordou com o que diziam na época: quem resistiria àqueles olhos?

Início de "O homem duplicado", de José Saramago

"O homem que entrou na loja para alugar uma cassete vídeo tem no seu bilhete de identidade um nome nada comum, de um sabor clássico que o tempo veio a tornar rançoso, nada menos que Tertuliano Máximo Afonso."

(Companhia das Letras.)

terça-feira, 7 de março de 2017

Marinheiro (para Ana Farrah Baunilha)

"Era uma mulher estranha, eu lhe digo. Parecia um marinheiro. Tinha tatuagens em todo o corpo. Sua voz era de capitão bêbado. Na boca, cheiro de rum e palavras de marujo. Nunca dormi com ela, tive medo. Mas quem dormiu disse que, na cama, parecia um peixinho de plástico, dócil entre as mãos de um menino, fácil de tirar do balde e de repor."

Absorção

É curto o tempo dos revolucionários na literatura. Às vezes ainda nem se extinguiu o clamor de suas palavras de ordem e já o sistema os assimilou, e tão descaradamente que a situação se assemelha à da mãe que acolhe de volta seu filho pródigo depois de lhe dar um pito e um beijo.

Oportunidade

Seja rebelde e transgressor na época certa, a tempo de ter sua rebeldia e transgressões reconhecidas como clássicas.

Inocência

Se os que esperam salvar-se com a literatura tivessem noção de quantos ela destruiu, não estariam agora apertando teclas e enviando originais a esses concursos com quinze mil oitocentos e quarenta e cinco candidatos e três jurados.

Razões

Interessa-me escrever. Por quê? Para quê? Não sei, não tenho tempo para pensar, nem quero. Receio não encontrar respostas adequadas e ser tentado a parar. Sou daqueles tolos que ainda comparam o ato de escrever com o de viver.

a.C. (para Adriane Garcia e Líria Porto)

Os poetas tinham coração; alguns, até alma. Os relatos sobre esse período são poucos, mas unânimes.

A palavra

No bazar, pedi dois bloquinhos de rascunho. A atendente disse que havia quatro no estoque. "Quer levar todos? Só o senhor mesmo compra. É para anotações, não é?" Eu disse que sim. Ela havia encontrado a palavra exata para essas coisas que escrevo, eximindo-me da presunção de lhes dar o nome de poesia.

Autossuficiência

Poeta é um desses tipos que, não tendo um centavo nem como obtê-lo, prometem dar o mundo à amada e, se ela duvidar, acrescentam: todinho.

O prêmio

Para um poeta humilde, sem esperanças de estocolmos e nobéis, a aspiração maior é deixar nos parentes e amigos a fama de ter sido aquele homem que escrevia bem.

Quase bom

Venho escrevendo com tanta facilidade que imagino estar possuído por um espírito. Pena que não seja um pouco melhor seu estilo. No tempo em que Mario Quintana me soprava frases, eu me sentia mais escritor.

Início de "A montanha mágica", de Thomas Mann

"Queremos narrar a vida de Hans Castorp - não por ele, a quem o leitor em breve conhecerá como um jovem singelo, ainda que simpático, mas por amor a esta narrativa, que nos parece em alto grau digna de ser relatada. A favor de Hans Castorp convém, entretanto, mencionar que esta é a sua história, e que há histórias que não acontecem a qualquer um. Os fatos aqui referidos passaram-se há muitos anos já. Estão, por assim dizer, recobertos pela pátina do tempo, e em absoluto não podem ser narrados senão na forma de um remoto passado."

(Tradução de Herbert Caro, Círculo do Livro.)

segunda-feira, 6 de março de 2017

Empáfia

Provérbios presumem ser tão necessários que se isentam de apresentar seu registro no departamento da verdade.

Sinopse

Posso dizer que, se me empenhei verdadeiramente em algo, foi em ser poeta. Não se aflijam. Há muito tempo assinei a confissão de derrota.

Pão pão queijo queijo

O poeta deve eximir-se de dar testemunhos, a menos que o convidem a prestar depoimento em casos com personagens simples e objetos corriqueiros. Quem até hoje melhor empregou esse conceito foi Wislawa Szymborska.

Agenda social

Por mais que ame a literatura, o escritor deve imaginar que nem todos se achem dispostos a tê-la como assunto principal. Não há quem aguente o Padre Vieira todo santo dia.

Dever

Devo abominar os nomes
dos que me feriram
dos que riram de mim
dos que me supliciaram
dos que se saciaram
de mim no cativeiro

Devo execrar os nomes de todos
na lista em que o meu é o primeiro.

Alegação final (para Adalberto de Oliveira Souza)

Quando a Morte nos chamar para as homenagens do dia derradeiro, não poderemos alegar modéstia.

Procedimento (para Silvia Galant François)

A licença poética só deveria ser concedida aos que apresentassem toda a documentação e dessem um sabiá como garantia.

Meta

O que um poeta quer, mesmo, é ser amado - se possível, apaixonadamente.

Faces

A quem se importa demais com o próprio, o sucesso alheio incomoda.

Idade de ouro (para Silvana Guimarães)

Naquele tempo, era fácil: conhecia-se um poeta pelo monóculo ou pelo cavanhaque.

Jeitinho

A alma, desde o início, foi uma ideia que se teve porque o corpo nunca deixou de ser o que é: estúpido e lamentável.

Rumo

Se você seguir o voo de uma borboleta, não descobrirá nada, a não ser que você seja um poeta. Se for, bem, aí você poderá inventar alguma coisa que talvez iluda seus leitores.

Até a última gota

Como são chatos os escritores que se dispõem a esgotar um assunto. Os que fazem isso tendo como tema o amor são os piores.Ao diabo com todos eles, depois da exemplar empalação.

Trompe l'oeil

Pietro Aretino talvez seja o representante supremo da poesia grosseira que tenta passar por erótica, como uma rameira usando saiote de bailarina.

Prestação de contas

Se escrever não é tudo para você, como explicar todos os seus dias, um a um, desde a década de 1950? Diga-me: não foi você que fez aquele juramento diante do livro de William Saroyan?

Chuveiro (para Ana Farrah Baunilha)

Sábado à noite, nos motéis, gastam-se em camas redondas e redondos enganos os amores que não chegarão a conhecer a poesia.

Motel

O último suspiro agradecido de amor quer se fazer ouvir, mas a boca já foi ocupada pelo cigarro.

Restinho (para Aden Leonardo e Tuca Kors)

Foram-se todas as ilusões, mas ele apalpa ainda o coração para sentir o calor da derradeira, como um homem com a mão no sofá onde dormiu pela última vez seu gato.

Encenação

Cumpramos nosso papel de tolos e só desistamos depois de dar à última esperança a oportunidade de se mostrar tão mentirosa quanto a primeira.

Vício de origem

Julgar que têm sempre alguma coisa a dizer, mesmo que às vezes falem apenas da sua falta de assunto, é uma das presunções mais antigas dos escritores.

Gentileza

Se os outros fizessem um esforço, ainda que mínimo e fingido, para acreditar em quem diz ter na arte o principal motivo para viver...

Início de "O deserto dos tártaros", de Dino Buzzati

"Nomeado oficial, Giovanni Drogo deixou a cidade numa manhã de setembro para alcançar o forte Bastiani, seu primeiro destino.
   Pediu que o acordassem de noite ainda e vestiu pela primeira vez o uniforme de tenente. Quando terminou, olhou-se no espelho, à luz de um lampião de querosene, mas sem sentir a alegria que imaginava. Na casa reinava um grande silêncio, ouviam-se apenas vagos rumores vindos do quarto vizinho; sua mãe estava se levantando para despedir-se dele.
   Era aquele o dia esperado há anos, o começo de sua verdadeira vida. Pensava nos míseros dias na academia militar, lembrou-se das amargas tardes de estudo quando ouvia lá fora, na rua, passarem pessoas livres e presumivelmente felizes; dos serões de inverno nos dormitórios gelados, onde pairava estagnado o pesadelo das punições. Lembrou-se do sofrimento de contar os dias um por um, que pareciam não acabar nunca."

(Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, Editora Nova Fronteira.)

domingo, 5 de março de 2017

Perfil (para Rose Marinho Prado e Liberato Vieira da Cunha)

Tomara que a Morte seja, como se diz, uma sueca longilínea, não um gaúcho de poncho.

Voz (para Silvana Guimarães)

Proibir que os poetas gemam é como impedir que os cachorros latam. Uns e outros se tornam menos maçantes, mas também muito menos autênticos.

Mascate (para Silvia Galant François)

Se pedimos a um poeta que nos diga o que tem a oferecer, ele puxa logo seu catálogo de sol, lua e estrelas.

Intransitivo (para Rose Marinho Prado)

Morrer é um verbo que não tolera terceirização. É como uma honra irrecusável.

Intransitivo (para Rose Marinho Prado)

Morrer é um verbo que não admite terceirização. É como uma honra irrecusável.

E se (para Alfredo Aquino)

Uma dúvida, todas as noites, adia exasperantemente o sono e, quando ele chega, o perturba como um pesadelo: e se a literatura não for senão um hábito como a numismática e a filatelia?

Ambição (para Mariana Ianelli)

Escrever num dia tudo que eu ainda pudesse e, depois, descansar, descansar, descansar muito, integralmente, completamente, como um homem que houvesse cumprido tudo, sofrido tudo e tudo esquecido.

Função

Escrever não nos leva à compreensão do mundo, mas nos faz exprimir melhor nosso espanto diante dele.

Megalomania

Por que, pelos mil demônios,
Sabendo o que nós sabíamos,
Sabendo que não devíamos,
Fomos sonhar tantos sonhos?

Longevidade

Frases curtas podem não agradar aos leitores, mas poupam o escritor e dão-lhe vida longa, se bem que não a eternidade.

Precisão

Para sabermos da eternidade, tenhamos sempre à mão um relógio suíço. Se não pudermos, tenhamos ao menos um chocolate suíço, como Fernando recomendou àquela garota.

Sob medida

Seu cérebro não difere muito de sua cabeça. Um chapéu ali colocado não prejudicaria um neurônio sequer, dos dez.

Ditado (para Rose Marinho Prado)

Morramos aos poucos. A pressa é inimiga da perfeição.

Senhores

Calma, nada de excitação: meditabunda é só um adjetivo.

Como ela é

O difícil, na gramática, não é exceção; é a regra.

Aparência (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Metaplasmo soa como doença grave, mas é só uma anomalia gramatical.

Defesa

Abominam-me por quê? Falo da morte agora porque não sei se poderei falar quando estiver morto.

Audiência

Como todos nos ouvem bem quando estamos dispostos a falar de nossas desgraças. Para as nossas alegrias, ouvidos poucos e moucos.

Agravante

Quando pensei em ser um poeta, eu era um menino. Hoje, não tenho mais desculpa.

História

Ele aceitaria ser menosprezado como homem, mas jamais como escritor.

Início de "A confissão de um filho do século", de Alfred Musset

"Para escrever-se a história da própria vida, é preciso que se tenha vivido. Não é, pois, a minha a que escrevo. Atingido, em minha mocidade, por uma abominável enfermidade moral, narro o que me aconteceu durante três anos. Se eu fosse o único doente, nada diria. Há, porém, muitos outros que sofrem do mesmo mal, e é para eles que escrevo, sem estar bem certo de que prestarão atenção. Mas, caso ninguém se acautele, servirão minhas palavras, ao menos, como constatação de que eu próprio me curei e, como a raposa apanhada no laço, roí meu pé prisioneiro."

(Tradução de Paulo M. de Oliveira e Adelaide Pinheiro Guimarães, Ediouro.)

sábado, 4 de março de 2017

Para o Iano, parceiro querido, vibrando lá em cima.

Sintoma (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Acho que não sou um escritor de bons sentimentos. Em casa ninguém me lê.

Batendo perna (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Vasculhou a cidade e não encontrou onde tirar xérox de uma cornucópia.

Objetivo (para a Pris)

O amor foi feito para doer.

Pureza

Eu, homem de boa índole e vontade, no início imaginei que oitiva fosse nome de um passarinho brasiliense.

Falso desdém (para Luciana Nobre)

Quando execro os sonetos, sinto-me como a raposa falando das uvas.

Lenga-lenga (para Deonísio da Siva e Liberato Vieira da Cunha)

Ontem querias ser poeta. Hoje dizes que ainda queres. Amanhã, acredito que continuarás dizendo. Tantas décadas, meu caro! Já devias ser um poeta morto e com estátua.

Onze letras (para Marcos Micheletti e Paulinho Unzelte)

Paixão maior que o Corinthians? Por favor, não coloquemos a mãe no assunto, por mais elevado que ele seja.

Futuro (para Alexandre Brandão)

Nas mãos do jardineiro as rosas leem seu destino.

Algaravia

Para a maioria, quando Sócrates, Platão e Aristóteles falam, é como se falassem grego.

Estatística (para Deonísio da Silva)

Outra interjeição, quase tão utilizada quanto caralho, e dele derivada, é porra.

Sobre a utilidade (para Ana Farrah Baunilha)

Preservemos nossas mãos. Podem vir a ser úteis, se um dia resolvermos usar luvas.

Contraste

Às vezes é preciso ouvir certos poetas para aprender a valorizar o silêncio.

Tema (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Quando se encontram, dois escritores começam imediatamente a falar mal de outro. Este seria Paulo Coelho, se os dois o considerassem escritor.

Fama (para Ana Farrah Baunilha)

Os poetas românticos ficaram conhecidos por sua castidade. Não enfiavam o dedo nem no nariz.

Polos

Epopeia e poesia são palavras cada vez mais incompatíveis.

Intransferibilidade

Fazer poesia pode dar, a quem a faz, certa sensação de importância, embora ninguém mais note.

Pintura

O amor, se fosse pintado hoje por um artista de vanguarda, não teria pés nem cabeça, e seu coração seria um ponto na tela, parecido com um formigueiro na grama ou talvez com um montículo de esterco.

Costumes

Que práticas nos parecem hoje aquelas mulheres que guardavam as cartas de todos os amantes na mesma gaveta. Aí está a origem da logística.

Interseção

Enojar-se da vida e aceitar o flerte da morte costumam ser acontecimentos quase simultâneos.

Provas

Sente engulhos não quando pensa no amor, mas sempre que se lembra das declarações que fez para celebrá-lo.

Do ramo

Emoldurou a licença poética e a pendurou na sala.

Coerência

Diz que não tolera a gramática por não querer andar mau acompanhado.

Regra

A gramática só é mencionada como vilã. Não se conhece exceção.

Fração

Quando se lembra de como ela enriqueceu sua loucura, ele tende a se sentir completamente grato, e assim ficaria, se ela não lhe tivesse negado a felicidade da loucura total.

Mario e Manoel

Até a palavra ambos parece menos feia quando se refere a Mario Quintana e Manoel de Barros.

Descaracterização

A interjeição mais utilizada hoje no português brasileiro é um substantivo: caralho.

Início de "Judas, o obscuro", de Thomas Hardy

"O professor deixava a aldeia, e todos pareciam sentir aquela partida. O marceneiro de Cresscombe lhe emprestou um cavalo e um pequeno carrinho de capota branca para que levasse a bagagem até a cidade para onde ia. Este veículo dava perfeitamente para as coisas do viajante, pois a escola havia sido mobiliada, em parte, pelos administradores. O único objeto atravancador que o professor possuía, fora seus caixotes de livros, era um piano rústico, comprado num leilão, anos antes, quando lhe acometera a ideia de aprender música instrumental. Mas, tendo esfriado seu entusiasmo, jamais adquirira a menor eficiência, e, desde então, sempre que tivera de se mudar, a sua compra só lhe ocasionava aborrecimentos."

(Tradução de Octavio de Faria, Abril Cultural.)

sexta-feira, 3 de março de 2017

Sucesso (para Ronaldo Dias, Oswaldo Mendes, Regina Helena Paiva Ramos e Luiz Carlos Cardoso)

Se deixarmos Deus escrever nossa peça, o que faremos quando o público exigir "o autor, o autor"?

Falha (para Jarbas Santos)

Deixar que Deus cuide da nossa biografia, da cena inicial à final, não nos recomenda como dramaturgos.

Semana de 22 (para Rose Marinho Prado)

Todo modernismo que se preze acaba completando pelo menos cem anos.

Comme il faut

Poetas oficiais vão todos para o céu, onde são recebidos por anjos viciados em oratória.

Escala

Poetas menores não chegam a ser apresentados a rouxinóis e cotovias. Só os conhecem - quando conhecem - pela obra de Shakespeare, na qual anunciam a noite e o dia. Tudo para esses rabiscadores de quadrinhas, a vida toda, costumam ser pardais.

Slogan (para Silvia Galant François)

Se você quer investir na poesia,
Quintana & Barros
é a melhor companhia.

Tecnologia

As interjeições precisam ser tão instantâneas e convincentes que a nova geração já deveria ser acionada por molas.

Resultado

A prova dos nove não é tão cabal quanto a dos dez.

Instinto (para Rose Marinho Prado)

As crases são vingativas à beça.

Cláusula

Um bom poema dá tanto trabalho quanto os outros, isso sem falar na questão de arregimentar pássaros, depois que começaram a ser representados por sindicatos.

Serviço público (para Luciana Nobre e Mariana Ianelli)

Foi fácil localizar os sonetos e exterminá-los. Eram muito velhos e muito tolos. Gemiam repugnantemente quando viam chegar as equipes de saneamento.

... se lhe parece

Na bienal de poesia concreta, num objeto de quase um metro de altura, parecendo uma torre, o título: "Soneto".

Materiais (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)

Tolices como flores, estrelas e passarinhos só entram no projeto dos poetas concretistas se forem de vidro, madeira ou plástico.

Identidade (para Deonísio da Silva)

Às vezes, quando dizia ser o Conde de Montecristo, perguntavam-lhe se ele era o que tinha morrido na cruz.

Outro departamento (para Alfredo Aquino)

Quando resolveu escrever um romance, o poeta descobriu que não tinha no estoque algarismos romanos suficientes para numerar os capítulos.

Devidas proporções (para Liberato Vieira da Cunha)

Escrevamos coisas pequenas, ninharias. Que se canse o artista e maldiga seu ofício, enquanto assobiamos e vamos fazendo nossas bijuterias.

A inquietante boca da escuridão

O que há no âmago da treva - hoje, no portal do Estadão (www.estadao.com.br)

Início de "A lua na sarjeta", de David Goodis

"Na beira de uma viela que dá para a Rua Vernon, um gato cinzento esperava uma grande ratazana sair de sua toca. O rato tinha corrido para uma fenda na parede do barraco de madeira, e o gato inspecionava todos os orifícios, imaginando como o rato tinha conseguido enfiar-se ali. Na escuridão quente e úmida daquela meia-noite de julho, o gato esperou mais de meia hora. Quando foi embora, deixou suas pegadas no sangue seco de uma garota que tinha morrido ali no beco uns sete meses antes."

(Tradução de Aldo Bocchini Neto, Editora Brasiliense.)

quinta-feira, 2 de março de 2017

Pensar e pensar

Penso, às vezes, como é estranho alguém dizer que vive para escrever ou para dedicar-se a alguma forma de arte. E às vezes penso como é estranho haver quem não viva para isso.

Pompa

O traço mais comovente dos mortos é a resignação com que se submetem ao terno e à gravata.

Primeira vista (para Alfredo Aquino e Deonísio da Silva)

Seja lá o que for, e apresente quantos atestados de idoneidade gramatical apresentar, a primeira impressão que um anacoluto dá não é nada animadora. Se fosse levado à tela, seria protagonizado por Anthony Hopkins.

Pausa (para Silvana Guimarães)

O passarinho pousa no galho da ameixeira. O poeta parnasiano interrompe o soneto no segundo verso e vai à janela. O passarinho canta, Uma vez, duas. O poeta fecha a janela. Não é de mármore, pensa com desgosto, e volta para o soneto.

Rameiras (para Mariana Ianelli)

À meia-noite, a prosa poética e a poesia prosaica se esmeram na maquilagem, acolchoam os peitos flácidos e vão seduzir jovens tolos nos bares. As duas palavras mágicas que usam são mescla e equilíbrio.

In illo tempore (para Liberato Vieira da Cunha)

A poesia dava status aos que a faziam, no tempo em que a faziam.

2/12/2009

Quando lançou seu livro Cento e doze sonetos escolhidos, foi tomado por um cansaço tão grande que decidiu não escrever nada mais. Foi em 2 de dezembro de 2009, e desde esse dia ele espera o anúncio de Estocolmo. Dizem que é uma cidade muito longínqua e que a neve às vezes atrapalha o serviço de correio.

Obra-prima

O poeta concretista pôs o passarinho na gaiola e logo viu: era um haicai.

Beliscão

Terminado o poema, o concretista o apalpa: lindo.

Numa boa

Escarrapachado no caixão
o morto não diz mas está
na sua zona de conforto.

Altivez

Se o girassol soubesse o que os poetas dizem dele, olharia com maior pouco-caso ainda para o céu.

Peculiaridade

Nem todo passarinho que pousa num galho é prenúncio de um haicai.

Brilho

Não há melhor polidor de metais que um poeta parnasiano.

Defensoria

Em matéria de teoria literária, os poetas concretistas são os mais bem preparados. Sabem como é difícil defender sua causa.

Arquétipo

A tendência dos leitores, ainda hoje, é verem nos românticos a figura ideal dos poetas. Aquele ar místico, aquela imagem de sofrimento, aquelas virgens intocadas e aquela definição que predispõe à simpatia: os poetas têm um parafuso a menos.

Início de "Trópico de capricórnio", de Henry Miller

"Depois que nos livramos do fantasma, tudo segue com infalível certeza, mesmo no meio do caos. Desde o começo nunca houve senão caos: era um fluido que me envolvia, que eu aspirava através das guelras. No substrato, onde a lua brilhava firme e opaca, tudo era fluente e fecundante; acima dele, era confusão e discórdia."

(Tradução de Aydano Arruda, Círculo do Livro.)