segunda-feira, 31 de julho de 2017

Miniperfil

Não devo me queixar. Nasci com quase todos os meus defeitos e pude aprimorá-los no convívio com as pessoas. Também aprendi muito cedo que a tristeza seria meu alimento, e sempre o meu coração tolo arranjou algum jeito de se deixar enganar. Se disser que sou um homem realizado, espero que ninguém considere isso uma pilhéria.

Ode em causa própria

Celebremo-nos
por que não?

Quem há de contar
melhor que nós
nossas mesquinhas vitórias
nossas altissonantes derrotas
nossos pedidos de rendição?

Quem contará melhor
o canto dos desencantados
quem melhor definirá
o pó do que o próprio pó?



Ontem, na revista Rubem

falei de uma porção de coisas, talvez importantes, mas com meu canhestro estilo de sempre. Atingi uma idade em que é mais do que um dever alertar os leitores sobre a inutilidade dos meus textos.

domingo, 30 de julho de 2017

Ataúde

Falta fechar a embalagem.
Estamos prontos
para a última viagem.

Distinção

Se havia algo em que ele se destacasse, era em sua inexcedível mediocridade.

Desempenho

O ator fez tão bem o papel de morto que até a mosca do teatro pensou estar num velório.

Contribuição

No velório, depois de esgotados os elogios ao morto, alguém se lembrou de mais este: como ele falava bem inglês.

Hereditariedade

A família do morto sovina não deu caixinha aos coveiros.

Olho-grande

Se você tiver a ventura de se descobrir morto, não conte a ninguém. Desfrute sem alarde esse maravilhoso estado. Não corra o risco de causar inveja.

Relatividade

Dizer que a questão não está em ver para crer, mas em crer para ver, pode ser um lance altamente filosófico, ou só um jogo de palavras.

Método

Para os defensores da disciplina e da força de vontade, até os erros são uma conquista, desde que sistemáticos.

Descobertas

Depois das recentes descobertas que fiz, como a de ter baço, fígado e outros órgãos insurgentes, posso dizer, com quase total probabilidade de êxito, que não tenho alma. Se tivesse, ela já teria me doído.

Trecho de "Jakob von Gunten", de Robert Walser

"Schacht, meu colega de escola, é uma criatura estranha. Sonha em tornar-se músico. Conta-me que, graças a seu poder de imaginação, toca violino esplendidamente, e, quando contemplo suas mãos, acredito nisso."
(Tradução de Sergio Tellaroli, Companhia das Letras.)

sábado, 29 de julho de 2017

Experiência

Para que se desse bem no céu, ou no inferno, a família do empreiteiro pôs no seu terno de defunto um maço de dólares e um cartão de crédito.

Enrolador

O gramático é aquele tipo que nos deixa em dúvida até em coisas simples, como saber se um inglês é fleumático ou flegmático.

Opinião

Nenhum defunto merece as flores que leva para baixo da terra.

Um pouco de Henri-Frédéric Amiel, para este sábado

"Deus ergue o seu sol sobre justos e injustos. A sua munificência as graças não recusa; não as pesa como um cambista, nem as numera como um caixa.
Acercai-vos, há para todos!"
(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações.)

sexta-feira, 28 de julho de 2017

O que a vida nos dá (e nos tira)

Hoje no Estadão trato disso, num poema.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/sessenta-e-quatro/

Literal

Aos concretistas cabe, melhor que a quaisquer outros poetas, a exortação "mãos à obra".

Brinquinhos

O problema da próclise é andar em más companhias, como a ênclise e a mesóclise.

O número

Todos os ex-lacaios juram não guardar rancor de seus senhores. Perguntem a qualquer um deles se as chibatadas que recebiam era, digamos, cem, e a resposta será: mais, muito mais. E isso será dito entre sorrisos e suspiros.

Autoconhecimento

Quando digo ter vergonha de mim, espero que respeitem minha opinião. Ninguém me conhece melhor do que eu.

"O rei em fuga", de Erik Axel Karlfeldt

"Ainda há pouco eu era rei. Agora estou foragido;
através de meu reino, morrendo à míngua, fujo.
Nos buracos me alojo, fustigado pelos ventos da geada.
Ao meu redor estendem-se os ranúnculos.
Comprimo suas folhas contra a face
e o veneno provoca pústulas e chagas,
e quando me aproximo das aldeias, gritam das portas:
'Lá vai o leproso!' E me atiram bocados de pão
e se afastam do caminho do Rei da Vergonha e da Morte.
(Tradução de Ivo Barroso, Coleção Prêmios Nobel de Literatura, Editora Delta.)

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Estatística

Fazendo hoje uma avaliação de tantas décadas dedicadas à literatura, posso classificar meus leitores em três categorias: os amigos, os educados demais para se queixarem e as vítimas.

O passo seguinte

Depois de corrigir o mundo, talvez você perca a mania de achar defeito em tudo.

Então fiquemos assim

Melhor não saber de vidas passadas. Como eu me perdoaria se me dissessem que fui contemporâneo de Shakespeare, talvez até seu vizinho, e não conversei sequer uma vez com ele, por imaginá-lo tão desprezível quanto eu?

Experiência

O poeta gastou todas as rimas ricas na adolescência. Na maturidade, aconselhado pela cautela, adotou os versos livres e brancos.

Atores

Alguns defuntos descobrem tardiamente seu poder e, quando começam a conquistar o público, são retirados de cena e substituídos. É interminável a lista de defuntos talentosos.

Alguns versos de Saint-John Perse

"As carnes assam ao vento, os molhos se compõem
e o fumo remonta os caminhos ao vivo e alcança quem andava.
Então o Sonhador de bochechas encardidas
se desprende
de um velho estriado de violências, de astúcias e esplendores,
e ornado de suores, para o cheiro da carne
desce
qual mulher que arrasta: seus panos, toda sua roupa e seus cabelos desfeitos."
(Tradução de Darcy Damasceno.)

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Crueldade

Guardar recato é atitude de mulher sovina.

Intuição

Em uma vida passada
devo ter sido Shakespeare
embora não me lembre de nada.

Acidente

Emergiu dos destroços
tão lastimavelmente
que mais parecia um subvivente
que um sobrevivente.

Cota

Feliz é o agente funerário
que a Deus pede
e a quem Deus concede
um defunto diário.

Falta de ensaio

Alguns defuntos ficam tão mal no papel que mereciam uma nova oportunidade.

Vocação

Não sei se vocês já notaram, mas há defuntos tão bem ajeitados que parecem ter nascido para isso.

Sinônimos (para Aden Leonardo, Arlene Colucci e Tuca Kors)

A beleza tem uma dezena de cartões de visita. O mais bonito deles é aquele em que aparece sob a forma de gato.

Aristocracia

Vindita é uma vingança requintada.

Delicadeza

Velho é eufemismo de macróbio. Macróbio é a puta que pariu.

Início de "Grandes esperanças", de Charles Dickens

"Sendo o apelido da minha família Pirrip e o meu primeiro nome Philip, a minha boca infantil não dava para dizer mais do que Pip. De maneira que comecei a chamar a mim próprio Pip e acabei por ser Pip."
(Tradução de Carmen Gonzalez, Publicações Europa-América.)

domingo, 23 de julho de 2017

Rivais

O hipocondríaco que tem uma apenas
inveja o outro hipocondríaco
que tem duas safenas.

Ti-ti-ti

Um diálogo de dois escritores tem sempre a participação de pelo menos mais um: aquele de quem os dois falam mal.

Estatística

Tenho no facebook
um milhão de amigos menos
do que o Luciano Hulk.

Lição de história

Nas guerras Hitler perdeu tudo, e Napoleão Bonaparte.

Fora do ponto

Era um defunto não muito convincente. Parecia um fruto colhido antes da época. Em favor de seu prestígio e de seu aspecto, mais uma semana de sondas e tubos teria sido o ideal.

Traços

Escritores velhos são aqueles que a cada instante dizem "no meu tempo, na minha época", como se tivessem passado a infância com Shakespeare e a adolescência com Dante.

Direito de imagem

Àqueles que viram ou veem em mim um homem alegre digo, como toda a sinceridade e alguma esperança, que jamais aspirei a isso, que essa não foi jamais nem minha vontade nem minha verdade.

Fé na justiça

Acredito que, se eu fosse julgado por um tribunal de família, conseguiria a absolvição. Conservei nosso traço essencial, a melancolia polonesa, e por obra de Deus, que fez de mim um artista gorado, pude multiplicá-la honestamente, lágrima a lágrima, com eficácia de argentário.

Mensagem (para Inês Pedrosa)

Daquele grupo porreiro
Só o Fernando era Pessoa
E só o Sá-Carneiro.

Possibilidades

Bem mais fácil do que
no meu bolso algum dinheiro
é achar uma agulha num palheiro.

Conta simples

Por mais importantes que sejam, dois monólogos nunca formam um diálogo.

Marco zero

O bêbado paulistano, em vez
de duas catedrais da Sé,
vê sempre pelo menos três.

Guia de viagem

Deve-se ter cautela redobrada
com aqueles caldos de galinha
de beira de estrada.

Esnobismo

O mais-que-perfeito é o mais antipático dos tempos verbais.

Matemática

A velhice começa quando os problemas somáticos resolvem se multiplicar.

Oportunismo

O sol espera anoitecer para cair na gandaia.

Duas caras

O lusco-fusco é a mais grave crise existencial da natureza.

Como sói acontecer

Fui um desses meninos em que todos adivinham um novo Shakespeare, antes que eles aprendam a escrever.

Bate-pronto

Repentista é aquele que não precisa pensar para fazer maus versos.

Início de "Kakob von Gunten", de Robert Walser

"Aqui se aprende muito pouco, faltam professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, vamos dar em nada, ou seja, seremos, todos, coisa muito pequena e secundária em nossa vida futura.

(Tradução de Sergio Tellaroli, Companhia das Letras.)

sábado, 22 de julho de 2017

História

A maior conquista do sistema decimal foi o sanduíche de metro.

Marketing

Os bestialógicos, quando querem se valorizar, dizem que são galimatias.

Integridade

Aquele velho sovina não entra no facebook porque não quer compartilhar mensagens.

Equívoco

Não, dislate não é a linguagem dos cachorros.

Crème de la crème

Como diz aquele escritor autossuficiente: "Eu, se fosse me inspirar em Shakespeare, só pegaria o melhor dele."

Resposta rápida

"Obsceno é a mãe."

Apedeuta

Apedeuta é um ignorante com grife.

Alma pequena

Motivo para vaidade, mesmo, só tenho um: meu complexo de inferioridade.

Hipótese

Se os outros animais é que fossem racionais, o que pensariam de nós?

Futuro

Infinita é a nossa presunção. Supondo que lá estaremos, é sempre com ênfase e entusiasmo que falamos do reino dos mortos.

Aforismo

Aforismo é uma frase de nariz empertigado.

Um bocadinho mais de Millôr Fernandes

"O mal da ONU é que só tem estrangeiro."

"Eu só não sou o homem mais brilhante do mundo porque ninguém me pergunta as respostas que eu sei."

"A ociosidade é a mãe de todos os vices."

"Em qualquer roda  é fácil reconhecer um jornalista: é o que está falando mal do jornalismo."

"Tenho realmente a mais sincera admiração pelas pessoas que sabem perder. Sobretudo quando estou do outro lado."

(De Millôr definitivo, L&PM Editores.)

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Trâmite (para Ariovaldo Bonas)

Morituro é um candidato a morto prestando o vestibular.

Identidade (para Ana Clara Beauvoir e Ana Farrah Baunilha)

Eu quis ser Dostoiévski, mas acho que sempre estive mais para Bukowski.

Hoje no portal do Estadão

Um poema para as mulheres.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/poderosas-evas/

Legado

Sofrer por amor é um dos hábitos que restaram de minha época romântica. Ainda hoje, se eu fosse me apaixonar, a favorita seria aquela mulher que me parecesse a mais pérfida e cruel.

Revelação

Quando li Fernando Pessoa pela primeira vez, descobri quanto tempo havia perdido com a literatura.

Vocação

Na adolescência, eu dizia que seria Dostoiévski. Meus amigos,mais pretensiosos, sonhavam ser Garrincha, Gilmar, Pelé.

Notinha autobiográfica

Fui um menino promissor, mas cresci.

Descuido

Quem virá nos salvar?
Deus nos deu o endereço
Mas esquecemos de anotar.

Conto de fadas (para o Gianluca e a Nicole)

Finalmente aos cento e quarenta
teve seu sonho realizado:
casou com um vampiro de duzentos e sessenta
vestida de noiva e de papiro passado.

Notinha autobiográfica

Sou um homem que escreveu a vida inteira. Não sou um escritor. Escritor foi o que eu quis ser.

Inimigos íntimos (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

Do alto de minha estante
Borges me desmerece,
Ri de mim Dostoiévski,
Caçoa de mim Dante.

De Millôr Fernandes, sobre os escritores

"Antigamente, para ser um grande escritor, era preciso saber escrever. Hoje, basta ser adotado nas escolas."

"Conheço alguns escritores que morreram aos trinta anos e só conseguiram entrar pra Academia aos sessenta."

"Os escritores mortos são muito melhores do que os vivos porque não escrevem mais."

(De Millôr definitivo, L&PM Editores.)

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Defesa do consumidor

Os poemas concretistas são agora fiscalizados pelo Inmetro.

Antimarketing

Se quem diz é um careca,
orelhudo e de pança,
fica difícil crer
que Deus ao nos fazer
nos fez à Sua semelhança.

Sob encomenda

A intenção de todo prefácio é transformar qualquer livrinho de trovas numa Divina comédia.

Fino sortimento

As matérias-primas que os parnasianos brasileiros usavam - a prata, o ouro, o mármore e até os cisnes - eram importadas.

Nobreza

Se encarcerarmos a poesia e não lhe dermos diariamente mais que um pãozinho, logo ela estará alimentando com as sobras pelo menos uma família de pombos.

Tecnologia

Os concretistas estão desenvolvendo uma nova geração de poemas, de mais fácil manuseio.

Regulamento

A política deveria praticar-se apenas em lugares públicos e ensolarados, como as praias, e aos participantes se permitiria usar só trajes de banho sem bolsos.

Opinião

Sou dos que acreditam que uma musa nórdica pode melhorar muito a obra de qualquer poeta.

Idade

Podem ver: quem diz que juventude é um estado de espírito é ou cinquentão ou sessentão.

Lógica

Com a idade de seis meses, Jesus Cristo era um bebê.

Faces

Há quem crie fama para se deitar na cama. E vice-versa.

Despacito

Todo país acaba dando um jeito de ter seu sertanejo universitário.

Dica

Se você for levar um poema em seu terno de defunto, que seja um soneto. Dizem que Deus é conservador.

Frases de Millôr Fernandes

"O gourmet é o comilão erudito."

"O trabalho de vez em quando tira férias. As despesas nunca."

"Ladrão que rouba pouco não vai longe na carreira."

"Todo economista acha que foi ele quem inventou a economia."

"Woody Allen: o infeliz que deu certo."

(De Millôr definitivo, L&PM Editores.)

quarta-feira, 19 de julho de 2017

CLT

Minha velhice já tem tempo para se aposentar.

Manos

"Foi na última noite lá, com a turma, que eu puxei uns a mais e vi Deus."

"Como ele é?"

"Maneiro."

"Maneiro?"

'É. Que nem nós, assim. Barbudão e de cachimbo."

"Tatuado?"

"Agora você me pegou. Não reparei."

Receio do defunto

"Quem é aquele ali? Deve ser da família da minha mulher. Parece o Drácula! E vem vindo na minha direção!"

Paixão

Tudo que não é poesia me parece laico, prosaico, profano.

Desuso

Cautela, hoje, não é nada além de uma palavra que, quando aparece, vem sempre acompanhada de caldo de galinha, como se estivesse num cardápio.

Misturinha

Não sei como a minha velhice reagiria a um pouquinho de jovialidade. Talvez se desmanchasse como uma múmia indevidamente tocada. Ou quem sabe descambasse para a mais deslavada sem-vergonhice.

In extremis

O velho poeta parnasiano confessou ao padre que seu maior arrependimento era não ter sido um pouco mais perfeccionista.

Propriedade

É um poeta modesto e simpático. Tem só trinta e poucas quadrinhas, mas sorri como um latifundiário.

Obra

O concretista terminou o poema, contemplou-o e, dando-lhe três comovidas batidinhas, ordenou: fala.

O brasileiro, segundo Millôr Fernandes

"Ser brasileiro me deixa muito subdesenvolvido."

"O brasileiro é o único ser humano que acredita que pode se aperfeiçoar."

(De Millôr definitivo, L&PM Editores.)

terça-feira, 18 de julho de 2017

"Estadão"

Saudade do tempo em que o Eduardo Martins e o Walmir Venturini punham as vírgulas e as crases de castigo no Estadão.

Cotação do dia

Eu estou carente, sim.
Se fosse um poste, olharia
Para os cães e pediria:
"Por favor, mijem em mim."

Arrependimento do defunto

"Brrr! Nunca mais quero morrer no inverno."

Conceito

Frase perfeita é aquela que, mal a escrevemos, parece plágio de Shakespeare.

Oração

Que, pelo bem da literatura, os escritores sejam persistentes, e os leitores também. Amém.

Pensamento do defunto

"Se eu não estivesse morto, torcia o pescoço desse puto."

Aflição

Fico arrepiado quando penso quantas sinédoques já posso haver cometido sem ter a mínima noção do que seja uma.

De Millôr Fernandes

"OCTOGENÁRIO" - O cara que completa oitenta anos está, evidentemente, vivendo acima de seus recursos."

"ÓBVIO - Considere: se você acordou de manhã é evidente que não morreu durante a noite. Fique feliz com o óbvio."

"JUNTA - Reuniu-se a junta de médicos. O doente morreu por unanimidade."

"DINHEIRO - O dinheiro não é tudo. Mas permite à pessoa ser tão desagradável quanto queira."

"BÍBLICO - Sempre que te derem um pontapé, oferece a outra nádega."

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Opinião das velas

"Tantas de nós para só esse defuntinho aí?"

Por aparelhos

Você ainda não morreu.
Hoje, ouvindo a voz do amor,
Você saiu do torpor
E gemeu: aqui estou eu.

Comentário do rapaz do café

"Até aí estava achando que a loira era neta do defunto. Uma menina. Linda, linda. Quando eu descobri que ela era a mulher dele, quase joguei a garrafa térmica na cara do sacana, Nojento."

Plenitude

Que tedioso
um ovo
sempre igual
em seu feitio primoroso
em seu repetir-se vicioso

Nada de novo
da frente para trás
de trás para a frente
ovo invariavelmente ovo
palindrômico ovo

Observação do agente funerário

"Ô família pechincheira. Mais um pouco e quem pagava o enterro era eu."

Observação do preparador de cadáveres

"Os defuntos estão cada vez mais velhos e feios."

Advogando em causa própria

Em tudo que tenho escrito falo cada vez mais em defuntos. Estou preparando o terreno.

De Millôr Fernandes, sobre a pornografia

"Pornografia é tudo aquilo que excita os moralistas."

"Certas decisões do Congresso só deviam ser exibidas na televisão depois da meia-noite. E vendidas em sacos plásticos."

"Um filme pornô é tão igual a outro pornô que é muito difícil descobrir o pedaço em que a gente entrou."


domingo, 16 de julho de 2017

Na revista Rubem

Hoje faço uma mixórdia dos diabos.
https://rubem.wordpress.com/2017/07/16/uma-mixordia-e-tanto-raul-drewnick/#comment-9796


Conclusão do defunto

"Estou morto, só posso estar. Nenhum homem vivo ia aguentar este frio."

Opinião da mosca

"Aquele velho ali deve ser gêmeo do defunto. Parece mais morto do que ele."

Suspeita do padre

"Que defunto acabado! Parece que andou três noites na farra."

Observação do motorista do carro funerário

"Sou capaz de jurar que esse é o mesmo defunto orelhudo que eu transportei no Natal do ano passado."

Observação da funcionária da limpeza

"Hoje vai ser difícil eu ver um morto mais feio."

Comentário da viúva

"Filha, você não acha que a gravata do seu pai está, sei lá, viva demais?"

Um bocadinho de Joyce Carol Oates

"Sempre tive a impressão, e ainda tenho, de que é uma espécie de arrogância, ou de insolência - afirmar ser escritor, ser artista. No universo da classe trabalhadora  subliterária dos meus pais e avós, tal afirmação teria sido encarada com descrença, se não escárnio.

sábado, 15 de julho de 2017

Curriculum vitae

Tudo bem, eu admito:
não consegui nem entrar
no labirinto.

Indignação

No concurso de poesia concreta, o terceiro colocado censurou a comissão julgadora e recusou-se a receber seu prêmio: o Paralelepípedo de Bronze.

País do futebol

Quando um escritor brasileiro receber o Nobel, um ano depois estará sendo censurado por não ganhar o bi.

Início de "Um furto", de Saul Bellow

"Clara Velde, para começar descrevendo o que era mais conspícuo nela, tinha cabelos louros e curtos elegantemente cortados, que brotavam de uma cabeça anormalmente grande. Numa pessoa de caráter indolente uma cabeça desse tamanho talvez parecesse uma deformidade; em Clara, dotada de personalidade tão forte, passava a ideia de uma bela assimetria. Precisava daquela cabeça; uma mente como a dela exigia espaço."
(Tradução de Lia Wyler, Editora Rocco.)

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Amor, uma definição

O amor é oito ou oitenta. Vive só nos extremos. No meio fica a mediocridade. O morno não combina com o amor. É gelo ou fogo.

Honra ao mérito

A alguns defuntos cai tão bem o papel que se tem o impulso de aplaudi-los.

Comentário de viúva

"Olha como ele está confortável no caixão. Em casa, reclamava do sofá."

Probabilidade

Quantas vezes você já pensou que a vida é uma longa e monótona inutilidade? Aqui entre nós, acho que você estava certo em todas elas.

No portal do Estadão

Um menino pedindo amor.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/a-tristeza-de-pedir/

Cotação do dia

Já nos demos melhor com os deuses.

Início de "O intruso", de William Faulkner

"Era meio-dia em ponto da manhã de domingo quando o xerife chegou à cadeia com o Lucas Beauchamp, e toda a cidade  (e de resto também todo o condado) já sabia desde a noite anterior que o Lucas tinha matado um branco."
(Tradução de Leonardo Fróes, edição do Círculo do Livro.)

quinta-feira, 13 de julho de 2017

O morto em flor

Que defunto aprumado
que elegância
que garbo
que porte supino

Está com quase oitenta
mas que rosto fresco ostenta
parece um anjo
um menino

Se a mãe o visse
diria eu disse
eu me cansei de dizer
que você seria rei meu filhinho.


O início

Estilo consiste no seguinte: eu escrevo boa alma, você escreve alma boa, e nós dois acreditamos ter ao menos um dos requisitos que tornaram Shakespeare imortal.

O "x" e o "s" da questão

Entre esotérico e exotérico, há mais diferença do que pode sugerir simplesmente a grafia.

Coerência

Os sorrisos dos sovinas são todos meia-boca.

Modernidade

Logo haverá um gps para frases indecisas.

Do prefácio de Moacyr Scliar para "Jovens polacas", de Esther Largman

"Médico recém-formado, trabalhei como clínico num asilo para idosos mantido pela comunidade judaica de Porto Alegre. Entre os residentes, havia uma mulher que me chamava particularmente a atenção; embora apresentasse um grau avançado de demência, era uma pessoa  alegre - passava os dias cantando - e, se assim posso me expressar, sensual: eu sempre a via penteando-se, ou diante do espelho, se arrumando como podia. Mais que isto, acreditava-se sedutora: quando eu ia a seu quarto, examiná-la, não me identificava como médico, e sim como um visitante qualquer. Que moço elegante,  dizia então, senta aqui na cama, vamos conversar um pouco... Inevitavelmente seguia-se uma investida; de modo que, para examiná-la, eu precisava que uma atendente a segurasse."
(Publicado pela Editora Rosa dos Tempos.)

quarta-feira, 12 de julho de 2017

O problema

Em outro tempo devo ter sido um sujeito um pouco menos insignificante. Meu problema, em todas as épocas, sempre foi essa memória que nunca ajuda.

Sociologia

Pobre é um ser portador de várias necessidades especiais.

Vestibular

Para o que me espera, o único preparativo que parece ter alguma sensatez são sonecas cada vez mais longas.

Mérito

Louve-se a tenacidade dos poetas românticos. Eles se esforçavam para merecer a morte.

Perfeição

Alguns defuntos aparentam tanta naturalidade que levantam a suspeita de terem andado treinando às escondidas.

Papéis

Consoantes não são mais
que coadjuvantes trabalhando
para o estrelismo das vogais.

Prudência

Que nosso arrependimento
nunca seja tão cabal
tão integral
tão total
que não possa
ser substituído por outro
que venha a nos parecer
embora possa não ser
um melhor
mais cabal
mais integral
e total
arrependimento.

Proustiana

No baú da infância
em busca do tempo perdido
não achei a ampulheta
nem meu reloginho preferido.

Início de "Eugênia Grandet", de Honoré de Balzac

"Há, em certas cidades de província, casas cuja vista inspira uma melancolia igual à que provocam os claustros mais sombrios, as charnecas mais desoladas ou as ruínas mais tristes. Talvez haja a um tempo nessas casas o silêncio do claustro, a aridez da charneca e as ossadas das ruínas; a vida e o movimento, ali, são tão tranquilos que um forasteiro as julgaria desabitadas, se não topasse de súbito com o olhar mortiço e frio de uma pessoa imóvel, cujo rosto quase monástico surge na janela ao rumor de um passo desconhecido."
(Tradução de Moacyr Werneck de Castro, Editora Abril.)

terça-feira, 11 de julho de 2017

Dúvida crudelíssima

Se perdermos a confiança nos nossos defuntos, quem nos passará os números da megassena?

Nada a ver

Hipocondria parece, sim, mas não é doença de cavalo.

Igualdade

A gramática histórica é prova de que não somos pioneiros no sofrimento.

Physique du rôle

Zeugma é o tipo de palavra que justifica tudo que pensarmos a seu respeito.

Passado

Gostaria de saber como eram, quando não eram o que são, as frases feitas.

Metamorfoses

Não é verdade que os poetas românticos sabiam transformar pedras em flores. Os concretistas, sim, chegaram perto disso. Transformavam flores em pedras.

Perfeição

Um autoelogio nunca fica no meio do caminho, jamais perde o rumo de casa.

Cotação do dia

Sinto-me oco
vazio sem assunto
como o cérebro de um defunto.

Reconhecimento

Assim que viu Victor Frankenstein
o bebê feioso gritou
bom trabalho papai.

Cláusula

O morto perderá os benefícios, sem apelação, se for apanhado rindo ou sorrindo no exercício da função.

Mais Henri-Frédéric Amiel

"A inteligência de assimilação antecipa quase sempre a experiência íntima e pessoal. Assim, falamos de amor muitos anos antes de conhecê-lo, e acreditamos conhecê-lo, porque lhe damos um nome, ou porque repetimos o que dele dizem os outros ou o que dele contam os livros."
(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações.)

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Mais do mesmo

Também a poesia falhou.
Ficou triste, condoeu-se,
Mas não nos salvou.

Esperteza gramatical

Para não perder o apoio nem de um nem do outro, o presidente do sindicato das categorias gramaticais usa em suas manifestações de rua tanto o alto-falante quanto o altifalante.

Querela literária

Diziam as más-línguas, na época, que as pombas de Raimundo Correia tinham vindo da França e mal falavam português.

Nota sobre os devotos

Nutrindo sentimentos mofinos - a mesquinhez, a cobiça, a cupidez -, nós os transformamos em monstros e, depois, em monstros sagrados. Tornando-os assim objeto de devoção, fomos por eles extaticamente imolados e devorados com mútua satisfação.

Bênção

Agradeço a Deus pelos cada vez mais longos períodos de sono com que vem me presenteando nesta última etapa de vida. Imerso neles, já não tenho tempo para lastimar os pecados que cometi contra a poesia, nem para entusiasmar-me a cometer outros.

Estratégia

Entre viver e morrer,
Esse "e", essa conjunção,
Fica entre ser e não ser,
Entre esse sim e esse não.

Amém

Uma boa forma de morrer é levar um golpe de vista de uma mulher de olhos fatais.

Ah!!!...

Que pitéu seria Brad Pitt para as mocinhas daqueles romances antigos, que tinham sempre como único possível marido um pároco viúvo sem nenhum sal e pouquíssima pimenta.

Início de "Vernônia", de William Kennedy

"Subindo a estrada tortuosa do Cemitério de Santa Inês na traseira de um velho caminhão barulhento, Francis Phelan percebeu que os mortos, mais ainda que os vivos, instalam-se em bairros. O caminhão viu-se de repente rodeado de um mar de monumentos e cenotáfios de formas semelhantes e tamanho impressionante, guardiães de mortos privilegiados."
(Tradução de Sonia Botelho, Editora Francisco Alves.)

domingo, 9 de julho de 2017

Peculiaridade (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

A gramática perde o acento, mas não perde o pelo.

Tal qual

A gramática é como certos vírus. Modifica-se, altera-se, transforma-se continuamente, para nos atormentar. Haja vacina.

Má fama

De todos, o sindicato mais ranheta é o das categorias gramaticais.

Conselho de mãe

"Meu filho, só mais uma coisa. Você é tão bonzinho, respeitador, educado. Não fique andando por aí em má companhia. Escolha melhor seus substantivos."

Recíproca

Em algum ponto do caminho, muito tempo atrás, por pura bravata dissemos que a beleza não era essencial. A partir daí, a lógica nos fez olhar com desdém a poesia. Elas, a beleza e a poesia, têm-nos retribuído com cisnes que parecem patos de tiro ao alvo em parques de diversões e arcos-íris com duas cores e meia.

De Millôr Fernandes, sobre a política

"Em política nada se perde e nada se transforma - tudo se corrompe."

"Política é a mais antiga das profissões."

(De Millôr definitivo, publicado pela L&PM Editores.)

sábado, 8 de julho de 2017

Essência (para Liberato Vieira da Cunha e Deonísio da Silva)

A um texto vazio
pode faltar tudo
menos a falta de conteúdo.

Prioridade

Todo o dinheiro que havia no edifício em chamas foi resgatado. Não houve tempo para salvar as pessoas.

Modo

O que Rousseau dizia pode ser contestado. Mas como ele dizia bem tudo aquilo.

Missão

Os passarinhos antigos, quando eram chamados a levar mensagens amorosas, julgavam estar salvando a poesia. Tolos!

Início de "Persuasão", de Jane Austen

"Sir Walter Elliot, de Kellynch Hall, Somersetshire, era um homem que, para seu próprio deleite, não se ocupava de nenhum livro senão o do baronato. Aí encontrava ocupação para suas horas de ócio e consolo para os momentos de tristeza; aí sua mente se exaltava em admiração e respeito, ao contemplar os pucos remanescentes dos mais remotos títulos; aí quaisquer desgostos e preocupações domésticas convertiam-se naturalmente em compaixão e desprezo."
(Tradução de Luiza Lobo, Editora Francisco Alves.)

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Emergência

Tentaram salvá-lo, mas a caminho do hospital as três enormes feridas abertas no pescoço pelos dentes da ciumenta amante fizeram sua vida derramar-se inteira na ambulância.

Obviedade

Vocês, se têm um, vão entender: o meu gato, tenha-o eu ou não, será sempre o mais bonito.

A história de sempre (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

A última reforma sumiu com um bocado de hifens. A nova, presumivelmente, irá repô-los.

A dose (para Henrique Fendrich)

A racionalidade é perigosíssima. Na literatura, principalmente na poesia, pode ser fatal.

Confissão (para Rose Marinho Prado)

Eu gostaria de ser um poeta melhor. Na verdade, eu gostaria de ser um poeta.

Compromisso

A fidelidade ao Corinthians há de ser canina: latir, se preciso; morder, se inevitável.

Hoje no portal do Estadão

Falo de um Mário e de um Fernando que somavam quase quinhentos.
http://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/marios-e-fernandos/

De Millôr Fernandes sobre o crime

"O crime não compensa: o cara pode roubar, corromper e se locupletar. Mas acaba a vida cercado de lindas mulheres puxa-sacos, morando em horrendos palácios com mil criados ambiciosos e naufragando num iate superluxuoso, cheio de quadros e obras de arte."


quinta-feira, 6 de julho de 2017

Jeito de fazer

Poemas são feitos
de ninharias que o poeta
pega aqui
recolhe ali
e junta
ou de ninharias
que não havendo poeta
se juntam por si.

Como convém

Os eufemismos deveriam ser trazidos como lenços perfumados no bolso e puxados lentamente, como se pedissem desculpa por se mostrarem.

Linha reta

Desde que sou o que sou,
Só tive um modo de ser.
Fiz o que pude fazer.
Fazendo o que fiz estou.

Visita

Os mortos perguntarão
Se fomos para ficar.
Depois de tanto tardar,
Podemos dizer que não?

Paixão

Um verbo indiscreto
beija um substantivo, rebeija,
e o chama de objeto dileto.

Como uma luva

Aos gramáticos calha bem serem chamados de déspotas esclarecidos.

Exatidão

O gramático é aquele único, entre centenas, que olha o relógio da praça e pode dizer categoricamente se é meio-dia e meio ou meio-dia e meia.

Adolescência

Havia sol naquele tempo, imagino que sim. Mas eu andava encerrado na masmorra que me impus, lendo poetas mortos.

Conhecimento tardio

Hoje sei que a vida é uma atividade para jovens. Pena não ter sabido disso na minha juventude.

Início de "A história de uma viúva", de Joyce Carol Oates

"Voltando para o nosso carro, estacionado de qualquer jeito - por mim - em uma rua estreita perto do Princeton Medical Center - eu vejo, enfiado no limpador de para-brisa, o que parece ser uma folha de papel duro. Na mesma hora meu coração é tomado de desalento, de apreensão acompanhada de culpa - uma multa? Uma multa de estacionamento? Numa hora dessas?"
(Tradução de Débora Landsberg, Editora Alfaguara.)

quarta-feira, 5 de julho de 2017

En français

O papagaio de Flaubert papagueava
bonjour mon chéri
bonsoir ma chère
bonne nuit
madame bovary.

Autoestima

O travessão é um hífen com mania de grandeza.

Como fazer

Devemos manter a paciência. Ciente de sua beleza, a poesia tem os passos curtos. Talvez chegue a nós, se alguém melhor não a chamar.

Os pecados

Ela vem ouvindo falarem tanto do Juízo Final que anda atenta aos pecados que comete. O de hoje: na farmácia, furou a fila com a desculpa de ter deixado em casa, sozinho, o marido com Alzheimer. O marido está morto há dois anos, aquele velho chato.

O pior

O pior que pode nos acontecer
É estarmos outra vez desprevenidos,
Darmos à vida novamente ouvidos
E ao seu falso discurso de viver.

Precaução

No dia em que o poeta saiu com o chapéu, ao voltar para casa notou que nele havia se aninhado uma flor mirrada. Na manhã seguinte, embora tão fria quanto a anterior, saiu sem o chapéu. Deixou-o na sala, com a flor. Pensou: se num dia me vem uma flor, quem sabe se no outro não me virá um passarinho estropiado? Achou que estava velho demais para assumir certas responsabilidades.

De Henri-Frédéric Amiel

Sobre a morte - "Estou calmo diante da destruição, mas trago a morte na alma porque sinto esta vida falhada, e nada espero em compensação. Nada, nada, nada! Nada."

Sobre a escola parnasiana - "Ela desgosta o leitor dos seus deuses e do seu culto, porque sob essas grandes palavras aparece a perfeita frivolidade. Este pseudopaganismo é apenas uma atitude. Não empolga o homem atual. Não é mais do uma poeira de ouro lançada sobre um cadáver."

terça-feira, 4 de julho de 2017

Despotismo (para Deonísio Da Silva)

O Volp vive mudando de opinião:
põe o hífen na quinta
e tira na sexta edição.

Estatística

Há os poemas de amor e os outros, que de vez em quando são apresentados para desmentir a teoria do tema único.

Geração espontânea

Às vezes as palavras, por conta própria, se embaralham e formam uma metáfora que os poetas costumam assumir sem nenhum constrangimento ou modéstia.

Frutos

Sacudir a árvore da Poesia pode ser um risco. São pesadas certas odes e pontiagudos alguns sonetos. Os haicais, não. Se passa uma brisa, eles se misturam a ela para celebrar silenciosamente a leveza.

Mau gosto

Por que maus poemas atraem tantas flores e passarinhos?

Equidistância

O equilíbrio da beleza
com toda a certeza está
num gato numa ponta e outro gato
na outra ponta do sofá.

Castigo

Quando o neto de onze anos se pôs a falar da paixão que tem por Dostoiévski, a avó lhe perguntou se era aquele escritor da machadinha e, recebendo a resposta que temia, persignou-se, ao mesmo tempo em que se culpava por seus pecados da juventude.

Questão de gênero

Ele disse "sou um merda" e começou a rir. Notando que não tinham entendido, zangou-se: "Vocês não perceberam? Eu troquei o sexo da merda."

O conselho

Um escritor tão velho e obscuro quanto eu me aconselhou, como se adivinhasse minha intenção, a não negociar a alma com qualquer diabo, por mais verdadeiro que pareça. Quando lhe pedi que me esclarecesse a razão do conselho, ele deu um suspiro longo e dolorido e, com as rugas do rosto ainda mais evidentes, disse: "É uma história muito antiga e muito boba. Não vou contá-la."

Modo de ver

Habituei-me de tal forma aos infortúnios romantizados que os reais me parecem indignos, e até repulsivos.

Decadência

Já tive melhores safras de tristeza. As atuais são mofinas. Venho precisando mentir cada vez mais ignobilmente e é com crescente desconfiança que eu as rego com minhas lágrimas, bem menos autênticas que as antigas.

Carbono 14

Concluí agora há pouco um poema
tão maravilhosamente prescrito
tão totalmente perempto
que parece ter sido escrito
em 1800 ou mais verossimilmente
em meados de 1700 -
ou até anteriormente.

Um bocadinho de T.S. Eliot

"E acima das árvores que se agitam
Movemo-nos na luz sobre a folha simbólica
Ouvindo no solo úmido
Embaixo, o sabujo e o javali
Fiéis a sua forma como outrora
Reconciliados entre os astros.
(...)"
(Tradução de Idelma Ribeiro de Faria.)

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Segurança

Um gramático ostenta sempre aquele sorriso de quem pode, a qualquer provocação, tirar do bolso algo mais terrível que uma crase.

Alterinferioridade

Ter tido um alter ego
Não me favoreceu.
Ele era simpático, não nego,
Mas escrevia pior que eu.

Receita certa

O poeta romântico finalmente acertou. Escreveu tão doce poema que, mal pôs nele o ponto final, a caneta, a mão e a folha de papel se encheram de formigas.

Franqueza

Ao repórter o concretista revelou que tinha decidido ser poeta não por qualquer incitação mística ou misteriosa inspiração. Simplesmente lhe dera na telha.

Crase

Quem imaginaria que juntar um artigo com uma preposição poderia causar tanto desagrado e tão furiosos protestos?

Hábito

Quando a mãe lhe disse que não adiantava mais regar a rosa, porque ela estava morta, a menina foi buscar uma caixa de sapatos para enterrá-la, como havia feito, ali mesmo no quintal, com a gatinha cinza.

Rancor

Lavaram e desinfetaram a caçamba, mas uma semana depois o vingativo cheiro do gato persistia.

Honra ao mérito

Certos defuntos parecem entender melhor que outros seu novo estado e, pela compostura que imediatamente passam a ostentar, influem na qualidade das piadas contadas no velório, quando não conseguem inibi-las.

Início de "O planeta do Sr. Sammler", de Saul Bellow

"Pouco após o alvorecer, ou pelo menos o que poderia ter sido o alvorecer num céu normal, o Sr. Artur Sammler passou uma vista de olhos nos seus livros e papéis espalhados pelo quarto que ocupava na zona oeste da cidade, com um sentimento íntimo de que eramos livros errados, os papéis errados. De certa forma, não tinha realmente muita importância para um homem de seus setenta e tantos anos, dispondo de inúmeras horas de lazer."
(Tradução de Denis Vreuls, Editora Abril.)

domingo, 2 de julho de 2017

Pormenor

O que impressionou a menina não foram as lágrimas do palhaço. Foi elas serem coloridas.

Nesses termos

Final de carta anônima recebida por um gramático insubornável: ide à puta que vos pariu.

Arte

A menina desenhou mais uma estrela, perto da lua. Era a quinta. Achou que bastavam. Estava um belo céu. Quando ia assinar, um dos cisnes queixou-se de frio. Ela pegou então o lápis amarelo e desenhou um sol.

Razão de ser

Certos domingos não livrariam a cara se não houvesse Corinthians.

Cotação do dia

Sinto-me como alguém que ouve gritarem "homem ao mar" mas que, tendo-se afeiçoado subitamente às ondas, finge não ouvir e deixa-se levar.

Providências

Hoje esvaziei o paletó que usarei no último dia. Foi rápido. Eram só algumas folhas com frases leves, que lancei ao vento. Já não importa que cheguem, ou não, à destinatária. Melhor será se elas se perderem. Ninguém lhes criticará o estilo ou a ingenuidade.

Na revista Rubem eu...

... exibo hoje mais uma vez minha única unidade: a dispersão.
https://rubem.wordpress.com/2017/07/02/palavras-frases-nao-muito-mais-raul-drewnick/

Sorte

Benevolentes são os leitores de poesia. Enquanto eu gozo as delícias da impunidade, penso em quantos homens morreram acusados de transgressões menores, como a adulteração de rum ou o furto no peso do pão.

Início de "Labirinto negro", de Lawrence Durrell

"Nos primeiros dias de junho de 1947 um pequeno grupo de excursionistas ficou aprisionado no então recentemente descoberto labirinto de Cefalu, na ilha de Creta. O grupo havia penetrado na teia de cavernas e corredores conduzido por um guia fornecido por uma agência de turismo, com a intenção de examinar a chamada Cidade da Montanha, cuja descoberta, nos primeiros dias do ano anterior, marcara data na carreira arqueológica de Sir Juan Axelos. Devido a um súbito e imprevisto acidente, o guia encarregado de cuidar do grupo morreu. O desmoronamento separou diversos elementos do grupo do seu núcleo principal e foi por mero acaso que um deles, Lorde Graecen, encontrou uma saída."
(Tradução de Daniel Gonçalves, Editora Record.)

sábado, 1 de julho de 2017

A escolha

Ismália não era esperta.
Das duas, jamais soube
Qual era a lua certa.

Soberba

Começamos a perder os leitores quando dizemos a palavra literatura como se ela se referisse a um milagre ao qual apenas nós tivéssemos inteiro acesso e do qual oferecêssemos de vez em quando um pedacinho a eles, para terem noção da grandeza que devem reconhecer em nós.

Início de "Macunaíma", de Mário de Andrade

"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tupanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
   Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
   - Ai! que preguiça!...
   e não dizia mais nada."

(Livraria Martins Editora.)