domingo, 31 de maio de 2020

Soneto do homem medíocre

Sou um homem comum. Não tenho nada
Que me torne melhor ou diferente
De alguém, de qualquer um, de toda gente,
Um homem, só, sem fama, sem nomeada.

Depois da infância tola e descuidada,
E de uma juventude inconsequente,
Me tornei um adulto incompetente -
Eis minha biografia atualizada.

Ignorando os princípios da verdade,
Tentei o corpo da mediocridade
Ocultar sob o manto da poesia.

Mas em todas as vezes, como nesta,
Se abriu (e se abre sempre) alguma fresta
Por onde a minha farsa se exibia.

Tempos melhores

Já foi pior a vida dos sonetos. Há alguns anos, não muitos, se alguém se encontrasse diante de um poeta que tivesse na mão um soneto, poderia, em legítima defesa, pôr para correr os dois. Hoje, sonetistas e sonetos provocam, quando muito, uma ampla, profunda e inapelável apatia.

Memória

Quem provar um pedaço de brioche e tiver um mínimo de imaginação e de informação histórica há de ouvir um ruído sibilante seguido por uma pancada brusca e instintivamente colocará a mão no pescoço.

Época aúrea

O melhor tempo, para os sonetos, foi aquele em que, estando sob a influência dos poetas franceses, todos eram gorduchos e saudáveis, alimentados com cisnes e vinhos da melhor procedência.

Hoje na revista Rubem

Falo de coisas pretensa ou presunçosamente literárias.

https://rubem.wordpress.com/2020/05/31/o-fenomeno-literario-e-os-outros-raul-drewnick/

sábado, 30 de maio de 2020

Soneto da ressurreição

O que faremos nós quando cessarem
Os gemidos de dor, as agonias,
E os risos novamente se espalharem
Como os pássaros nos antigos dias?

O que faremos quando começarem
A soar mais uma vez as melodias
Que nós receávamos nunca mais soarem,
Tornando novas velhas alegrias?

Cantaremos também, ecoando a voz
Dos que sobreviveram como nós,
Ou fingiremos nada ouvir e ver?

Nós cantaremos forte, com altivez,
Com júbilo e paixão, como talvez
Os mortos gostariam de fazer.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Justiça

Que atire o primeiro soneto quem nunca cometeu um.

Sub-reptícios

Nos amores secretos, só com a luz apagada, sob o cobertor e dentro das mãos enluvadas começam a se mover os dedos da luxúria.

Cautela

De uns tempos para cá, antes mesmo de começar a escrever um soneto, o poeta entra com um pedido de habeas corpus.

Rito

Os provérbios, se fossem pessoas, seriam aqueles velhotes empertigados que podem contar sempre com um pigarro cerimonioso antes de pronunciar qualquer frase, mesmo que ela seja apenas bom dia ou como vai.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Soneto da calamidade

Passado o peso da calamidade,
Chegaremos a nos encorajar
E pelas ruas novamente andar
Com a mesma antiga naturalidade?

Maior que o medo há de ser a saudade,
E um dia, quando a peste se cansar
De nos afligir e de nos matar,
Talvez volte a ser nossa esta cidade.

Ao sol então nos poderemos ver,
E, como antes, nos dar e receber,
Se vivos estivermos nesse dia.

Pelos que foram e não voltarão,
Que consigamos ter moderação
Quando formos gozar essa alegria.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Soneto dos prazeres da juventude

Nós, que perdemos já a juventude,
Proclamemos, àqueles que ainda a têm,
Que não há maior que ela nenhum bem
Nem houve nunca superior virtude.

Vocês puderam ver, e eu também pude,
Sem precisarmos perguntar a alguém,
Como era a vida com ela, e como é sem,
Depois que nos chegou a senectude.

Digamos claro, a quem pode nesta hora
Gozar o que pudemos nós outrora,
Que na vida a maior sabedoria

É os frutos de agora saborear
E não gastarmos tempo em cogitar
Se outros frutos teremos outro dia.

Covid-19

Que fase.
Quem não está morto
Está quase.

Hipótese

Se um dia eu fui brilhante
Deve ter sido há muito tempo
Ou talvez bem antes.

domingo, 24 de maio de 2020

Mussum

O que havia de singular em Mussum era seu pluralismo, começando pelos dois esses do nome e continuando com o que ele adicionava ao final das palavras: bonits, linds, Cacildis.

sábado, 23 de maio de 2020

Por assim dizer

Se não tem o que dizer
o escritor diz isso
por escrito
e para não ficar
nada por dizer
no pós-escrito diz
tenho dito.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Peculiaridade

Num romance policial não há espaço para devaneios. Se for mencionado um rio, deverá, antes que o autor tenha tempo de lhe aplicar um adjetivo, ser visto pelo menos um cadáver boiando, mesmo que seja a mais escura das noites.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

As provas

Ainda há quem pergunte o que os poetas fazem de tão especial, não se lembrando de que, antes deles, o vento não gemia, as ondas não cantavam e o mar não se estendia pachorrentamente sobre a areia.

Coerência

O poeta concretista pode ser tudo, menos um sonhador. Não pretende chegar às estrelas, mas, se um dia pretender, subirá pelo elevador.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Soneto da inútil perfeição

Meu jovem, se você fizer um poema,
Não se empenhe em negar sua autoria,
Não se acabe em chorar. Fazer poesia
Por si só jamais foi ou é problema.

Problema haverá, se problema houver,
Se pelo seu talento de criador
E por habilidade sua, for
Perfeito o poema que você fizer.

Se esse poema for um soneto, não
Diga a ninguém, nem mesmo sob coação.
Um soneto, você já ouviu dizer,

É dos poemas o mais desnecessário,
Inútil, fútil e antiliterário,
Por mais perfeito que consiga ser.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Mario Quintana

Se há no céu um departamento encarregado de montar e desmontar arcos-íris, Mario Quintana certamente cuida da primeira dessas tarefas.

Duplo milagre

Se Deus um dia fizer o que o velho poeta espera, precisará, antes de confiar-lhe uma missão, ou ao menos uma tarefa, restituir-lhe o dom da audição.

domingo, 17 de maio de 2020

Bola de cristal

Se um de nós dissesse ontem, quem creria
Que no mundo haveria caos igual
E que hoje a morte se transformaria
Num acontecimento tão trivial?

Sessão corrida

Chega para o poeta a hora de morrer
E tudo lhe parece repetido,
Como se ele tivesse já morrido
E se alguém o obrigasse a remorrer.

Hoje na revista Rubem

Falo de três importantes categorias.

https://rubem.wordpress.com/2020/05/17/poetas-chatos-defuntos-raul-drewnick/

Fases

Um poeta de oitenta anos pode até ser tolerável, se ainda se lembrar de como era e do que fez dos trinta aos oitenta, ou se não se lembrar de absolutamente nada do que foi ou escreveu durante a vida toda.

Analogia

Assim como os crimes, sonetos não se fazem, sonetos se cometem, e a qualquer um deles se aplicam atenuantes e agravantes, com exceção daqueles vinte ou trinta, em toda a história, considerados perfeitos.

Ressalva

A quem me censura porque escrevo sonetos digo que, pela minha idade, eu já poderia estar fazendo coisas muito piores. Há algum tempo, já, que todo ato meu deve ser magnanimamente considerado como se fosse aquele pudim exótico pedido por um sentenciado à cadeira elétrica para fazer parte da sua última refeição.

sábado, 16 de maio de 2020

Saldo

Dos vícios da adolescência, o único que conservou, e mantém cada vez com maior dificuldade, é o dos sonetos.

Soneto da covid-19

Escrever sobre o quê? O que dizer
Sobre a nossa a quem sofre a própria dor
De na história ter sido o perdedor
Assim como tivemos nós de ser?

Ousaremos a lógica inverter?
Teremos tanta falta de pudor
Que neguemos assim o vencedor
Para espaço ao vencido oferecer?

Uma ode magistral dedicaremos
A quem perdeu assim como perdemos?
Melhor é o vitorioso celebrar.

Essa praga fatal e amaldiçoada
Talvez possa, se assim apaziguada,
Apiedar-se de nós e nos poupar.



sexta-feira, 15 de maio de 2020

Missão antologia

Reuniram-se vinte poetas
para fazer uma antologia
levantaram os preços
da gráfica do papel
da capa de tudo
chegaram a uma quantia
dividiram por vinte
e estando isso estabelecido
cada um dos vinte
um após o outro
outro após o seguinte
viram que só havia
uma coisa mais a fazer:
poesia.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Soneto da chama compartilhada

Se eu te disser que lembro, e muito bem,
O que naquele dia aconteceu,
Talvez tu me desmintas, porém eu
Sei que recordas tudo, tu também.

Já de tão longe essa lembrança vem
Que aquela chama que nos acendeu
Bem pode ser que em ti arrefeceu,
Porque nenhuma chama se mantém.

Mas houve um dia, eu sei, ao menos um,
Aquele dia fora do comum,
Em que eu todo, mas tu menos talvez,

Com os braços postos ao redor de ti,
Me ofereci, ma dei, queimei e ardi,
Como talvez nenhum outro homem fez.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Extermínio

Nossa empáfia
nossa presunção
nossa cultura
nossa prosápia
e nossa civilização
nossos invasores
vão afrontando
com eficácia
sem compostura
e sem comiseração.

Júri

Sonha que está num tribunal. Todos olham para ele. É um momento de extrema tensão. Ele não sabe se é o acusador ou o acusado, até que uma voz poderosíssima diz uma palavra: soneto.

Tudo por vinte linhas

Lembrei-me hoje de uma curiosa expressão do meu tempo de estudante, nascida da dificuldade que eu e os outros alunos tínhamos para preencher as vinte linhas exigidas nas provas de redação. Essa dificuldade nos levava a alguns truques, como aumentar descomunalmente o tamanho das letras, abrir parágrafos com motivo ou sem, repetir frases e ideias, astuta ou canhestramente, e usar prodigamente, incondicionalmente, frequentemente os advérbios de modo - naturalmente os terminados em mente. Essas manobras para chegar às abençoadas vinte linhas eram conhecidas por uma deliciosa expressão:encher linguiça.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Os novos bárbaros

Saudade dos bárbaros de antigamente.
Invadiam-nos, impunham-se, submetiam-nos
Conforme a história lhes prescrevia.
Se lhes pedíamos clemência,
Negavam-na com sua algaravia.

Os de hoje nos matam sumariamente
E ao seu mutismo acrescentam a invisibilidade
Como mais uma face de sua impiedade e zombaria.

Superpoder

Temos hoje um poder
que nunca ninguém chegou a ter.
Basta-nos ameaçar
esputar ou esternutar
que não há homem nenhum
que não se ponha a correr.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

A peste

Depois de três meses de aguda solidão
Vi hoje diante de minha casa
meia dezena de homens passar.
Perguntei-lhes: aonde vocês vão?
Convidaram-me a ir com eles
e disseram-me: estamos indo
para o nosso lugar,
para onde os outros mortos estão.

domingo, 10 de maio de 2020

Novo soneto do corona

Vivíamos sem planos, lentamente,
Pensávamos  que assim devia ser.
Por que buscar um modo mais urgente?
Tínhamos ainda muito por viver.

Vivíamos no agora, no presente,
O que mais poderíamos querer?
Vivíamos à toa, tolamente,
Nosso tempo se escoava sem nos doer.

Hoje, vendo que, lento ou devagar,
O tempo acaba sempre por passar
E já do nosso muito pouco temos,

O que nos resta é lastimar cada hora
Que nós vivemos sem viver. Agora,
Morrer é tudo quanto nós fazemos.

sábado, 9 de maio de 2020

Da vida de um blog

Alimentar um blog por muitos anos é como manter um cachorro. No início, o blogueiro e os leitores se encantam com o filhote alegre e com suas travessuras. Depois a repetição vai se tornando monótona e os latidos começam a incomodar. Na penúltima fase, o cão, o blogueiro e os leitores já mal se podem ver. E, no fim, os leitores julgam que já demonstraram suficiente piedade pelo cachorro e pelo blogueiro, os dois agora doentes, e esquecem-se educadamente de ambos, deixando que morram anonimamente, um entregue às pulgas, outro às moscas.

Provérbio

Amores venturosos transformam poetas de futuro em cidadãos barrigudos e musas sonhadoras em resignadas reprodutoras.

Modo de ver

Os melhores poetas talvez sejam os que exprimem a beleza com humildade e reverência, sem a pretensão daqueles que a apresentam como uma criação do seu talento e de sua genialidade.

Contraindicação

Quem vê na perseverança uma virtude não leva certamente em conta como ela pode ser insuportável se posta a serviço de um chato.

Perfeição (para Lucia de Moura Chamma)

A  beleza vai moldando de tal forma  as mãos de quem lida com ela que é como se as de um jovem camponês dos mais broncos pudessem, anos depois, dedilhar uma rosa e extrair-lhe sons que nem o mais exímio vento conseguiria.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Homenageado a caminho

Você tem sonhado que está vestido com um terno antigo, muito antigo e impecável, indo para um grande acontecimento, uma homenagem que lhe prestarão pór alguma coisa que você não lembra o que é. Você tem medo de se atrasar. Está chegando, já vai chegar, mas não chega nunca. Quando você chega, está diante do que parece ser um teatro, do qual as pessoas começam a sair. Um homem cerimonioso o recebe, diz-lhe que você demorou muito, a festa foi cancelada. Foi nisso aí que você veio?, ele pergunta. Que carroça é essa? O quê? O quê? Soneto? Nunca ouvi falar.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Poeminha desenxabido

O amor talvez não tenha a nos dizer
Nada além do que já nos disse outrora,
Mas por que nos negarmos o prazer
De ouvir de novo a sua voz agora?

Que mal nos podem ainda provocar
As juras mentirosas que nos fez?
Conseguirá de novo nos lograr?
Seremos nós tão tolos outra vez?

Se já cedemos a ele antigamente,
Se há tanto tempo existe o precedente,
Por que vamos calá-lo agora, então?

Quem sabe, por que não?, aquela voz
Que tanto encantamento trouxe a nós
Nos aqueça de novo o coração.

Do ramo

Sobre um lendário poeta parnasiano conta-se que uma tarde, ao chegar em casa e fechar o guarda-chuva, notou que na ponta dele se debatia, como uma borboleta, um fiapo de arco-íris.

Arquivos indiscretos

Depois da morte de um homem que se gabara a vida inteira de ser poeta, a abertura do seu micro por um neto revelou que sua produção literária somava quase duzentos sonetos, o que causou pouquíssima impressão, porque ninguém na família sabia muito bem o que era um soneto e também porque, em outro arquivo, se encontrou uma pasta na qual havia mensagens dirigidas a uma misteriosa mulher chamada Laura Beatriz Natércia.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Era uma vez

Houve um tempo em que para ser cronista bastava pegar um ônibus de vez em quando e ouvir as conversas ou dar uma volta a pé pelo bairro para ver as árvores e os passarinhos. Resolvido assim o problema do assunto, o passo seguinte era escrever, o que também não chegava a ser uma dificuldade, como demonstravam em seus textos Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Fenando Sabino.

Lógica

Se um poeta não for estranho, nós estranhamos.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Trajetória

Dezoito anos é a idade ideal para a iniciação de um poeta. Restam-lhe pelo menos quatro décadas para aprender ou se arrepender.

O juramento

Os poetas são seres estranhos. Quando conseguem libertar-se pela poesia, imediatamente lhe juram dedicação e se obrigam a ser seus escravos para sempre.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Horas extras

Exigir que a literatura (e qualquer outra expressão da arte) se preocupe com a verdade é como querer que o sol, depois de brilhar o dia inteiro sobre o palácio de uma rainha, na sua coroação, atenda a um pedido dos fervorosos súditos e, subvertendo a astronomia, dobre a jornada.

Compensação

Se é um ficcionista quem a escreve, uma autobiografia pode não ser muito confiável, mas será certamente muito mais interessante.

domingo, 3 de maio de 2020

Arquétipos

A poesia romântica nem tanto, mas os poetas da escola mantêm a imagem em alta, com suas melenas, suas amadas imaginárias e a tosse prenunciadora de róseas hemoptises.

Sebo

Que tristeza ver, dez anos depois de publicada, uma dessas antologias de poetas novíssimos. Com uma exceção, talvez duas, os generosamente citados no prefácio como muito promissores e os mais promissores ainda continuam tão desconhecidos que é como se houvessem usado pseudônimos.

Soneto da falha lembrança

Que fizemos dos dias que passaram
(E foram tantos, minha velha amiga),
Que fizemos de todos eles, diga,
Que tão pouco de si em nós deixaram?

As lembranças que deles nos ficaram
Perdem-se como os sons de uma cantiga
Muito bela, mas também tão já antiga
Que até seus versos todos se apagaram.

Passaram todos, e a incapacidade
Que tivemos de inteiros conservá-los
Nos faz, com a alma de pejo e culpa cheia,

Juntá-los em um termo só, saudade,
E assim, sem brilho e sem calor, lembrá-los
Como se fossem de memória alheia.

Sobre um eufemismo

O mais antigo eufemismo de que me lembro é gracioso, quase poético. Em vez de mandarmos alguém à santa mãe que o produziu, recomendávamos que fosse a Portugal de navio.

Hoje na revista Rubem

Espalho os cacos de minha dispersão.

https://rubem.wordpress.com/2020/05/03/loira-de-vestido-grena-raul-drewnick/

Números

Não fui muitos como Fernando Pessoa
Nem tantos quantos Mário de Andrade.
Mal consegui me preencher,
Foi só o que alcancei,
Fui o que pude ser:
Um homem comum
Inteiro mas nada além de um.

sábado, 2 de maio de 2020

Glória instantânea

Com os conselhos de um livro de autoajuda construiu em poucos minutos sua glória. Primeiro, presumiu-se poeta. Depois, foi acrescentando adjetivos: bom, ótimo, excelente. Para não parecer leviano e ter algo para fazer no dia seguinte, não se chamou de único e genial.

Manobra contábil

Com receio de atiçar o faro da fiscalização, o poeta parnasiano não declarou à Receita uma dezena de suas mais ricas rimas.

O ruim

O ruim de estar morto, pensa o artista megalomaníaco, é não poder ler os necrológios e ligar para as redações de jornais e tevês para queixar-se do reduzido destaque.

Raça maldita

Muitos acham interessante a ideia de que tudo poderia estar melhor se dessem a cada poeta do mundo uma enxada e fizessem todos plantar batatas. Julgam tão desprezível a arte poética que, se no fim de certo período nascessem, nas áreas onde tivessem trabalhado os poetas, rosas além das batatas, eles os amaldiçoariam da mesma forma.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

A mulher no casarão

Esta madrugada sonhou que, atraído por uma mulher majestosa, a seguiu por uma infinidade de ruas, espicaçado por um desejo agudo e crescente, até que, diante de um casarão esplendidamente iluminado, ela entrou e o convidou a entrar também, o que ele teria feito se não o impedisse um porteiro musculoso que lhe exigiu a senha. Senha?, ele estranhou, enquanto a mulher sumia para dentro do casarão. A senha, insistiu o porteiro, acrescentando: sinônimo de prostíbulo, com sete letras. Ele arriscou: puteiro. Então o porteiro o empurrou, gargalhando: lupanar.  Derrotado, ele recolheu o desejo e começou a se afastar. De longe viu a mulher majestosa debruçada numa janela do primeiro andar da imensa casa de palavras cruzadas.

Soneto do poeta antigo (p/ Luciana Nobre)

Se a beleza é o que o move, por que não
Dizer isso total e cabalmente,
Sem subterfúgio, insofismavelmente,
Com a força de quem diz com convicção?

Se zombarem de sua inspiração,
E o chamarem de artista decadente
Por você não falar nem do presente
Nem de povo nem de revolução,

Não hesite. Será esse o momento
De você afirmar seu argumento,
De confirmá-lo e de fortalecê-lo.

Diga-lhes, sem rancor e sem cinismo,
Que você ergue o estandarte do lirismo
E que não se envergonha por erguê-lo.