sábado, 31 de maio de 2014

Capicua

Sem sentido algum
uma mulher nua
vai repetindo na rua
na frente do teatro
capicua após capicua:
cento e vinte e um,
quatrocentos e quatro,
nenhum, zero, nenhum.

Fatal

O amor é igual a uma doença,
Porém mais séria e mais dura:
Não tem nem convalescença
Nem esperança de cura.

Woody Allen

Woody Allen é como Fernando Pessoa. Tem uma centena de heterônimos, mas, para nossa sorte e encanto, são todos iguais a ele.

A recompensa

Te deste inteiro ao amor. Te imolaste, te lanhaste, te crucificaste. Verteste, como dizem os maus poemas, todo o teu sangue por ele. Por ele choraste como um menino e te lamuriaste como um velho canceroso. Renegaste a tua família e foste por ela renegado. Como um personagem bíblico, foste execrado pelos amigos e escarnecido pelos inimigos. Tudo desafiaste em nome do amor, tudo perdeste por ele, e em cada hora de tua vida pensaste na recompensa. Esperas ainda por ela, embora o amor há muito se tenha ido e, se alguém sabe onde ele está, certamente não és. Tu o chamas, tu o invocas no meio das tempestades: amor, amor, amor. Não sabes, infeliz, mas o amor não te deve nada. Pensas que os prazeres são o alimento da alma? Pensas que à alma apetecem as alegrias corriqueiras? Culpas o amor por tua incompetência? Ah, é teu corpo que se julga credor dele? A culpa é tua, infeliz. Tão superior quiseste mostrar-te que, enquanto pretensiosamente exaltavas o amor, outros se deleitavam com os frutos que imaginavas estarem amadurecendo para ti, e cuspiam os caroços com desdém.

Um poema de Han Shan (séculos V-VI)

"Vive o homem a vida numa tigela de poeira
É como bichinhos dentro de um jarro
Todo o dia andando à volta
Nunca sai lá de dentro.
Não nos calha a ventura
Só temos em sorte desgraças
O tempo parece um rio
Que corre. Um dia, acordamos velhos."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicada pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

Obrigado

Quando nos vimos naquela manhã, eu estava alegre. Não foi falsidade minha. Eu estava alegre, mesmo. Era uma exceção, uma quase inconcebível raridade. Não, eu não estava alegre, só. Eu estava feliz. Hoje, passados tão poucos dias e noites sobre aquela manhã, dias e noites de angústia e de sofrimento, eu lhe agradeço por ter feito daquele instante o único em que senti abalada a minha convicção de que a vida é triste. Abençoada seja por aquela manhã e, principalmente por, logo depois dela, me haver devolvido ao meu destino e à minha vocação, por ter me mostrado que a felicidade é mesmo, como eu sempre pensei, um acontecimento único e fugidio, não uma dessas baboseiras que as revistinhas de trivialidades prometem tornar acessíveis se seguirmos dez regrinhas, todas muito simples.

Mau negócio

Soubemos desde o começo
Que em nada tudo daria.
Por que, por esta agonia,
Pagamos tão alto preço?

Um sorriso

Hoje pensei em mandar-te um sorriso. Mando-o. Ainda que murcho, ele servirá como recordação de um tempo em que eu, tolo, pensando em ti, imaginava que ele estivesse brilhando como o sol brilhava em teus cabelos.

Soneto da morte que o amor almeja

Amor, te deixo matar-me.
Se alguém tiver que fazê-lo,
Quem o fará com mais zelo,
Quem o fará com mais charme?

Se estás me ouvindo queixar-me,
Atende, amor, meu apelo,
Tira-me pelo por pelo,
Podes, amor, esfolar-me.

São doces tuas torturas,
Não as poupes com usuras,
Estou a elas habituado.

Por ti, só, eu quis viver,
E quero agora morrer,
Por ti, só, crucificado.

"Para Camus", de Carl Solomon

Nós líamos você quando éramos mais jovens.
Nós esquecemos você quando ficamos mais velhos.
Gide conheceu você jovem.
Nós conhecemos você já morto.
Quem era você?

Os jovens perturbam os velhos;
Os velhos perturbam os tigres;
Os tigres perturbam os carneiros;
A mente perturba o corpo.
COLOQUE A MAÇÃ NA BOCA E PULE NO FOGO.
Este é o suicídio Existencialista."

(Do livro De repente, acidentes, tradução de José Thomaz Brum, publicado pela L&PM.)

Fernanda Lima

Se alguém de Lua a chamar,
Você deve responder.
Não é falha, pode crer,
É outro modo de a nomear.

Soneto em que se proclama só o lado bom do amor

Há certos dias em que eu
Me lembro tanto de ti
Que parece que esqueci
Que aquilo tudo morreu.

E tudo que então sofri,
Todo o desespero meu,
Todo o menosprezo teu,
Parece que não vivi.

Recordo-me das manhãs
Em que ouvi tantas balelas,
E promessas, todas vãs.

E, esquecendo o lado ruim,
Fico só com as coisas belas
Que houve entre ti e entre mim.

O mapa

Se ela o deixasse vê-la nua, ainda que fosse uma só vez, já bastaria. Colocaria num papel um resumo de sua geografia, os montes, as encostas, as suaves depressões, o vale entre as duas carnudas montanhas, a mata de tenra folhagem, a fonte. Depois, com a mão que houvesse traçado o mapa, e o auxílio da fantasia, abençoando-se por sua boa sorte, ele percorreria tudo.

O travesseiro

Depois dessas noites em que o amor o suplicia, de manhã ele pega o travesseiro, leva-o para o jardim e o espreme sobre o canteiro. Disseram-lhe que lágrimas de amor tornam mais belas as flores. Mas às vezes as lágrimas são tantas que ele receia afogar as rosas.

Logo logo

Um dia nós seremos
o que sempre
desejaram de nós

O pó não polemiza
o pó não ironiza
o pó não satiriza
o pó não tiraniza
o pó não distingue
entre o bem e o mal

O pó é a nossa
face mais cordial.

Convite do mar

À noite, o mar nos recebe melhor. Somos só nós e ele. As ondas dormem e nenhuma gaivota arranha o céu com seu grito. Vamos entrando, devagar. Por alguns instantes ainda temos noção de onde ficou a praia. Depois, tudo é escuridão. Mas um instinto nos indica o rumo, para adiante, para dentro. Reconhecemos a voz que havia muito tempo nos chamava. Somos puxados carinhosamente e vamos. Não sabemos quantos passos nos faltam. Sejam poucos ou muitos, chegaremos. À noite não há salva-vidas na praia.

Milésima representação

Quando o amor insiste em se dizer morto, não engana ninguém. Mas ele continua a usar esse truque, como aqueles atores da Broadway que há dez anos representam, toda noite, a mesma peça.

Planilha

Orgulha-te do bom-senso:
Tudo - até mesmo o fracasso -
Planeja-o de modo intenso,
Ponto a ponto, passo a passo.

Memórias naftalinadas

Como são aborrecidas as confissões de velhos como eu. Ah, aquele café, como era saboroso!... Ah, aquele cinema!... Nunca houve igual!... Ah, aquela atriz!... Ah!... Ah!... Ah!... Todas as nossas frases terminam com exclamações e reticências. Como nos esforçamos para convencer os jovens de que houve um tempo em que, assim como eles, estivemos vivos - ou coisa parecida!...

"Tudo o que há sobre a terra e o mar", de Robert Louis Stevenson

"Tudo o que há sobre a terra e o mar,
Tudo o que veem as brancas estrelas,
Gira à nossa volta.

E onde não estamos,
Faz escuro como breu
E a vida e o amor estão esquecidos.

Mas quando por aí passamos,
A noite abre-se ao dia,
O ano abre-se a maio,

A terra com os seus jardins
Canta e respira e floresce
À volta do nosso amor."

(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Arquivo

Quando pensa de que forma seu amor e ele terão sido catalogados por ela, imagina que estejam na pasta de entretenimento, sob a rubrica "segundas opções".

Pablo e Ortega

Frequentemente ela muda o nome dos dildos. Esta semana um tem sido Pablo; o outro, Ortega. Ela os reveza. Talvez por ser verão e seus hormônios estarem particularmente excitados, ou talvez pelo impetuoso sangue dos dois - Pablo é espanhol, Ortega é mexicano -, as noites têm sido de louco prazer. Ela notou ontem que, enquanto se entregava a Pablo, Ortega demonstrava ciúmes. Hoje, vai fazer o que nunca sequer imaginara: um ménage à trois.

Iríamos

Não sei por que não aceitaste. Iríamos ao cinema. Sessenta anos depois, meu coração não bateria como naquelas tardes adolescentes - ou talvez batesse até mais, não sei. Nós nos sentaríamos na última fileira, a dos namorados, e eu, com heroísmo, faria deslizar a mão do encosto do assento para o teu ombro. Avançaria devagar com a perna, também, buscando contato com a tua. E tentaria beijar-te, acho que sim, e assim como na adolescência, com as garotas, não conseguiria. Mas seria bom, ah, seria, sair de mãos dadas contigo ao sol, na avenida, e pensar, como naquele tempo, que talvez na próxima vez, quem sabe...

Soneto da bela adormecida e do ogro insone

Enquanto dormes, eu não
Paro aqui de me afligir
E perguntar à razão
Como tu podes dormir.

Enquanto aqui não consigo
Nem os meus olhos fechar,
Tu sonhas, mas não comigo,
E chegas a suspirar.

E, enquanto teu nome grito
E espero, magoado e aflito,
Que possas me responder,

No sonho, em doces vogais,
Amor já juraste e vais
O nome do outro dizer.

Um trecho de Alice Munro

"(Imagine se as pessoas realmente fizessem isso - mandassem seu amor pelo correio para se livrar dele. O que mandariam? Uma caixa de chocolates com recheios da cor da gema de um ovo de peru. Um boneco de barro com buracos no lugar dos olhos. Um amontoado de rosas quase podres. Um pacote embrulhado com jornal ensanguentado que ninguém desejaria abrir.)"

(Do conto "Antes da mudança", do livro O amor de uma boa mulher, tradução de Jorio Dauster, publicado pela Companhia das Letras.)

Primavera

Primavera é uma palavra tão bonita que, ao serem consultados na página em que ela está, os dicionários deveriam abrir-se em flores.

O guia

Soubemos bem quem nós fomos,
Quando era o amor nosso guia.
Foi ontem, foi outro dia.
Hoje me diga: quem somos?

A palavra amor

Dispunhas de todas as palavras, mas usaste uma só, todo o tempo: amor. E foste punido por tua parcimônia. Enquanto teus lábios pronunciavam sem descanso as quatro letras, as camas, cavalgadas pelos teus rivais, relinchavam como potros selvagens.

Fernanda Lima

Hoje quem te desafiou
Foi a petulante lua?
Mais uma que se enganou.
Beleza, mesmo, só a tua.

Providências

Vivi meu tempo, já, bem mal vivido,
Mas meu futuro está já bem traçado.
Já tenho o meu lugar assegurado
E a Morte sabe até meu apelido.

Versos (para Mariana Ianelli)

Continuo fazendo versos
ainda que fracos
mesmo que opacos

mais versos
que anversos
versos de imagem negada
versos campeões de nada
versos vice-campeões
vice-versos.

"Impressão", de Wang Wei (701-761)

Leve na bruma o pavilhão miúda chuva tece
A esta hora fechado ainda o pátio fundo.
Com tempo, sentado, o nítido verde de musgo
Parece querer ganhar as roupas de um homem."

(De Uma antologia de poetas chineses, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Fernanda Lima

Se eu tivesse sido
seu amigo na infância,
como tolo você me acharia.
Eu lhe faria versos,
lhe explicaria
a formação do universo,
de estrelas lhe falaria,
das mais longínquas
e das mais belas,
como se as conhecesse,
e talvez não reconhecesse
que você era uma delas.

Chorando sobre as cinzas

Cometeu um equívoco. Esqueceu-se de que a mulher, além de alma, é corpo. Envolveu numa aura espiritual seios, coxas, nádegas, e, quando descobriu seu engano, tudo já havia sido beijado, acariciado, visitado. Pobre idiota! Chora hoje pelos gozos que perdeu, pelos gemidos que não proporcionou nem ouviu, pelas delícias que não desfrutou.

O mar nas conchas

Ele encostou a orelha na orelha dela e começaram os dois a ouvir o mar que havia em cada concha. A princípio foi um rumorejar de ondas calmas, porém aos poucos ele e ela passaram a ouvir gritos de piratas que clamavam pela abordagem, pelo embate de corpos no convés e pela frenética conquista.

Tempestade

Havia só mais um
lugar no bote
e entre o amor e a vida
o mar furioso te deu
um minuto para optar

Olhaste para o amor
tão fracote
olhaste para a vida
tão forte
e a escolha foi decidida

Faz muito tempo
muitos anos já
e desde o primeiro momento
sabias que pior escolha
não farias jamais

Hoje vives sem viver
e pesa-te o dissabor
de que deverias ter
deixado morrer a vida
e ter salvado o amor.

Gostosa, foi?

No sonho dele, a mulher, vestida só com um sutiã e uma calcinha de pele de tigre, aprisiona suas mãos em duas argolas suspensas e começa a chicoteá-lo, ao mesmo tempo em que pergunta, mais terna do que zangada: "Quem pichou o meu muro? Foi você? Eu não ouvi. Foi você? E o que você escreveu? Fale alto. Eu não entendi. Gostosa? Foi isso? Gostosa? Foi?"

Ele era tão bonzinho

O amor é como as pessoas. Precisa morrer para que lhe reconheçam o valor e se arrependam de não tê-lo tratado mais carinhosamente.

Infância

Gostaria de dizer certas palavras com a boca pura, como as dizia naquele tempo: pitanga, sol, rio, arco-íris, bunda.

"O soldado mudo", de Robert Louis Stevenson

"Sobre a relva recém-cortada,
Caminhando solitário,
Encontrei entre as ervas um buraco
E no fundo dele escondi um soldado.

A primavera e as margaridas chegaram;
A erva cobriu o meu esconderijo;
A erva cresceu como um mar verde
Até os meus joelhos.

Debaixo da erva ele jaz,
Olhando para cima com os seus olhos de chumbo,
Casaco escarlate e longo fuzil,
Voltado para o sol e para as estrelas.

Quando a erva amadurecer como o cereal,
Quando afiada estiver a foice,
Quando ceifada estiver a relva,
Reaparecerá o meu buraco.

Sem dúvida que o encontrarei,
E encontrarei o meu granadeiro;
Mas acima de tudo
Encontrarei o meu soldado mudo,

Ele viveu, coitado,
Nos verdes bosques da primavera;
Depois, se me pudesse dizer a verdade,
Diria aquilo que eu gostaria de fazer.

Ele viu as horas e todas as suas estrelas
E as flores que floresceram;
E as coisas de fadas que acontecem
Nas verdes florestas.

Em silêncio ouviu
Falarem as abelhas e as joaninhas,
E as borboletas voarem
Sobre ele que sozinho jazia.

Mas não dirá uma palavra,
Uma única palavra de tudo o que sabe.
Terei de o deixar no seu leito,
E inventar eu toda a história."

(Do livro Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)


quinta-feira, 29 de maio de 2014

Tecla

Para ele, o amor não é uma ideia fixa: é a única.

Fernanda Lima

Fernanda, guria, quem
Te deu todo esse poder
Que igual te faz parecer
Ao sol, e à lua também?

Umbigo

Sopra mais uma vez, leve, bem leve, como se não soprasse. A perolazinha do umbigo parece dar uma piscada, como um olho brincalhão, e a penugem ruiva começa a despertar, como o trigal à primeira brisa da manhã.

Marinha (para Frida)

Que concha te guardará, música das ondas e da brisa marinha? Que menino te encontrará, e quando? Talvez ainda não tenha nascido esse menino que, ao te ouvir como soas agora, verá na imaginação o veleiro branco saltando graciosamente o mar azul-claro, como uma menina puxando a saia para cima, para não molhá-la. O menino talvez não venha a imaginar a gaivota, mas será dela, mergulhando ao avistar um peixe, o som agudo que a concha um dia lhe trará.

Caridade

Peço-te que crispes as mãos, craves as unhas nas palmas, mordas o lábio, revires os olhos. Que recordes a liturgia e finjas revivê-la com a intensidade da primeira vez. Que possas fazer isso não porque te incitem meus versos, ou minhas palavras, tão inúteis, mas por meus olhos, pisados pela ansiedade irrealizada de tantos cios, e pela veracidade deste meu rosto devastado por delírios amorosos. Que faças isso pelo que ainda há de haver de homem em mim - e que nem eu mesmo sei quanto é. Que faças isso, mesmo que ao fazê-lo te assome ao pensamento a incômoda palavra caridade. Venho perdendo tudo, a dignidade, o amor-próprio, a vergonha. Por que me importaria ser objeto de um sentimento cristão - embora de todos eles talvez seja o mais humilhante para um homem que suplica favores do corpo?

Camisa de força

Se enlouquecer, enlouqueça por amor. É tão belo, tão romântico. E tão fácil, também. Enlouqueça por amor e não se cure nunca. Ao diabo com a psicanálise e os psicanalistas. Que o amor nos aperte em sua camisa de força e não nos liberte jamais.

O sal negado à boca

Atormenta-se quando imagina o gosto que sentiram aqueles que provaram o sal negado à sua boca. Se fosse menino, poderia chorar, e talvez fossem aceitas como consolação as lágrimas salgadas. Quando a frustração se torna intolerável, ele morde o lábio com força, com raiva, com toda a sua esperança frustrada, e um sal de gosto amargo chega à sua língua.

"O sabiá", de Eugenio Montale

"O sabiá canta na terra, não sobre as árvores,
assim disse uma vez um poeta sem asas,
e antecipou o fim de toda vida vegetal.
Existe além disso quem não canta nem sobre nem sob
e ignoro se é pássaro ou homem ou outro animal.
Existe, ou existia talvez, hoje está reduzido
a nada ou quase nada. E já é muito pelo que vale."

(De Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)

Fernanda Lima

Que alegria dá
que satisfação é ver
do teu "f" inicial
Fernanda Lima
ao teu "a" final
a beleza se dizer.

Bijuterias literárias

Dos truques que encantam o jovem escritor, talvez o mais fascinante seja a aliteração. O novato entra em êxtase quando consegue fazer uma frágil folha farfalhar ou a lânguida lua lançar seu pálido brilho no lago. O sentido importa menos do que o efeito. A onomatopeia melodiosa faz o aspirante a escritor sorrir como se lhe tivessem atribuído o Nobel. Com o tempo ele irá descobrindo que uma das mais complexas tarefas de quem escreve é fechar os olhos para essas bijuterias. Os bibelôs devem ser varridos das estantes da literatura - e também metáforas ruinzinhas como esta.

A serviço do prazer

Estamos sós de novo, os três, do lado de fora de uma dessas mansões às quais toda noite somos levados. Ainda agora há pouco, como nos olhavam, como nos sorriam, como docemente nos falavam! Jovens estrangeiros importados para o prazer de ávidas mulheres, nós três fizemos o que pudemos, nosso melhor. Bebemos em taças marcadas de batom, exibimos nossos músculos, dançamos, copulamos com quantas mulheres nos quiseram. Elas nos prometeram tesouros, vice-reinados, mas nossos lábios estavam entretidos e não dissemos sim. Acordamos agora e, como toda manhã, estamos do lado de fora da mansão, onde o sol dispensou de brilhar as majestosas luzes da véspera. Desde o início desta excursão, que dura já cinco anos, tem sido assim. Nosso empresário, antes de cada noitada, nos assegura que será a última e que finalmente nos venderá para um grupo de milionárias viciadas em sexo que nos darão sustento e luxo pelo resto da vida. Mas há sempre algum empecilho, que ele nunca explica a nós, e debaixo de impiedoso sol ou chuva inclemente seguimos para outra cidade, onde mostraremos nosso corpo e o alugaremos para prazeres alheios. Não corre mais em nossas veias o sangue que fervia três anos atrás. Temo que logo as mulheres comecem a desdenhar de nossos músculos, e nosso empresário acabe nos vendendo para algum negociante de sexo que nos destine a bordéis nos quais satisfaremos velhas flácidas e - tomara que não - rapazes degenerados.

Zelo

Espera que incumbam um redator experiente de escrever a notícia. Pode até sair errado o sobrenome, com aquela aglomeração absurda de consoantes. O que receia é que um foca venha com aquele chavão de tresloucado gesto.

Emily

Há nos travessões de Emily Dickinson mais poesia que em muitas epopeias de dez cantos.

A ceifadora

Meus heróis não morreram
de droga
de sexo
de rock'n'roll

Morreram da mais nobre
forma de loucura -
a literatura.

Questão de ser

Eu gostaria de ser
O que sempre quis ter sido,
Não apenas parecer
O que tenho presumido.

A origem

Somos farelos de um piquenique feito há milênios pelos deuses. No final, eles, como sempre, chamaram as prestativas formigas, mas uma chuva súbita as impediu de fazer a limpeza. Foi essa chuva a origem das desgraças do planeta. Nós nos entranhamos na terra e expandimos nossas raízes funestas.

Ainda

Há em ti
em tua alma
um centímetro
um milímetro
que ainda se lembre de mim?

Um poema de Emily Dickinson

"Muralhas não me impediriam,
Se fosse rocha o universo
E eu ouvisse sua voz de prata
A chamar do outro lado da pedra.

Cavaria até que meu túnel
Ao seu de repente chegasse,
Teria então minha recompensa -
Deter-me no seu olhar.

Mas existe um quase nada,
Um filamento, uma lei,
Teia em diamante urdida,
Ou palha trançada em ameia.

É um limite igual ao véu
Por sobre o rosto da dama -
Mas cada dobra é um fortim
Com dragões por entre a renda"

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Notinha policial

Por obra de um mau destino
E de uma nefasta sina,
Amar foi minha ruína
E o amor foi meu assassino.

Eufemismo

Precisei viver muito tempo para aprender que a maturidade é um nome simpático que se dá ao apodrecimento.

A duquesa e sua filha

Ontem meu amigo Richard e eu fomos a um jantar na casa de uma formosa duquesa viúva, de trinta e seis anos, e sua filha de dezoito, ainda mais formosa.
   Quem nos fizera chegar o convite havia sido explícito quanto ao que lá deveríamos fazer. Tratava-se de entreter as duas nobres mulheres com nossas trovas, cuja fama chegara a esta parte do país, e servi-las também sexualmente, tarefa para a qual, louvado seja Deus, somos também singularmente dotados.
   Às oito em ponto, conforme solicitava  o convite, chegamos ao casarão, que parecia um palácio reformado. Um lacaio abriu-nos o imenso portão e nos introduziu em uma sala muito ampla e luxuosa, decorada com objetos de raro valor, cujo requinte me absterei de descrever.
   Sentados à mesa, à luz de velas, estavam a duquesa, de rosto belíssimo e farta carne, e a filha, uma cópia exata da mãe. Richard e eu naturalmente ficamos encantados com elas, imaginando qual das duas iria no fim da noite caber a cada um de nós ou se, por um dos jogos sexuais que andam em moda, nos daríamos os quatro simultaneamente em uma dessas camas destinadas a múltiplos prazeres.
   Desagradou-nos um pouco ver, sentados também à mesa, dois jovens com típicos rostos de aldeões. A duquesa explicou-nos que se tratava de dois trovadores da região que, sabendo de nossa fama, haviam pedido permissão pára nos conhecer.
   O jantar foi servido com uma riqueza de iguarias que também me absterei de citar. Depois de havermos bebido uma dezena de taças de vinho, a duquesa nos convidou a declamar os poemas que ela e a filha disseram estar esperando ansiosamente.
   Richard e eu nos superamos. Jamais fomos tão bem favorecidos pelas musas. A duquesa e a filha nos olhavam como se fôssemos a encarnação do dom poético. A duquesa perguntou, a Richard e a mim, se concederíamos aos dois bardos da região a oportunidade de mostrar sua arte. Consentimos, e eles deram uma demonstração da pobreza do seu preparo.
   Continuamos a beber alegremente até a meia-noite, quando a duquesa saiu da sala e chamou a filha. Ficaram ausentes por alguns minutos e, ao voltarem, a duquesa comunicou, a Richard e a mim, que já podíamos nos ir, porque era hora de elas dormirem. Agradeceu-nos e nos perguntou - o que muito nos ofendeu - se desejávamos levar alguma iguaria da qual tivéssemos especialmente gostado.
   Saímos tentando esconder nossa decepção. Tínhamos dado não mais de cem passos quando começamos a ouvir os gritos de júbilo amoroso das duas mulheres. Andamos a noite inteira, sem destino, e chegamos esta manhã a uma estalagem onde o proprietário, entreouvindo nossa história, se permitiu rir e dizer-nos que aquilo por que havíamos passado era comum: os dois jovens - aldeões, como supuséramos - eram já fazia algum tempo amantes da duquesa e da filha, que sentiam redobrado prazer quando simulavam ocasiões como a da véspera. Convidavam jovens forasteiros e os incitavam a disputá-las, para depois, logrando-os, melhor aproveitarem os atributos dos dois labregos, pobres de versos mas agraciados com instrumentos sexuais famosos na região, capazes de quebrar cabaças de barro.

Um poema de Eugenio Montale

"O que de mim soubeste
não foi mais que a aparência,
a túnica que reveste
nossa humana aventura.

E talvez além do pano
o azul tranquilo estivesse;
tapava o claro céu
um simples sigilo.

Ou era de fato a estapafúrdia
mudança de minha vida,
o abrir-se de uma terra
incendiada que jamais verei.

Restou assim esta casca
minha real substância;
o fogo que que não se amortece
para mim chamou-se: ignorância.

Se divisas uma sombra, não é
sombra - mas eu próprio.
Pudesse arrancá-la de mim
e te ofereceria de presente."

(De Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)

Ideais (para o Verissimo)

Os ideais, para viver,
Só necessitam de nós.
Porém na hora de morrer
Eles morrem por si sós.

Anotação

Escrever, continuar escrevendo, para matar a insanidade. Ou para conservá-la.

Farol baixo

Minha força de vontade é suficiente apenas para manter viva minha apatia.

Soneto do caderninho em que está a história do amor

A história toda está no caderninho.
Pus ali o que o amor fez e não fez.
Não foi ele que me tornou mesquinho,
Ele só aflorou minha mesquinhez.

Ele não fez de mim um mentiroso,
Só fez crescer em minha minha mentira,
Não me tornou irado ou rancoroso,
Só usou o meu rancor e a minha ira.

Tão ternamente ele me enfeitiçou,
Tão fortemente me amarrou a ti,
Que quando me deixaste enlouqueci.

Não foi ele, não foi, que me matou.
Ele só os três atos escreveu.
Mas quem cravou a lâmina fui eu.

Fernanda Lima

Fernanda, eu não sabia
que passarinho sorria.
Aquele ali em cima
assim que te viu
te benteviou e sorriu.

Os dois, enlaçados

Agonicamente seguro pela mulher - que o arranha nas costas e com os tornozelos fincados nas suas coxas o impede de fazer qualquer movimento que não seja aquele no qual ela busca o prazer -, ele sabe que não escapará enquanto ela não gemer os cinco minutos de sempre. Só depois é que ela se afrouxa aos poucos e, como se fosse alguém que tivesse recebido a mais especial das graças, murmura obrigada, obrigada, obrigada, até que o sono a imobiliza como se estivesse morta. Toda noite ele se esforça, se esfalfa, mas é cada vez mais difícil levá-la a dizer obrigada, obrigada, obrigada. Quando ele fraqueja, ela o incita, como agora, com palavras que ferem seu orgulho de jovem macho. São essas palavras que, despertando o ódio, lhe devolvem a força e o fazem redobrar as estocadas. Quando, além da mulher, a cama se põe a gemer, ele começa a gritar está bom, está bom, está bom?, e assim, enlaçados como dois lutadores, ele e ela são vencidos por espasmos tão intensos que é como se o quarto e o edifício estivessem no caminho de um terremoto.

Matéria-prima

Em tempos como este, amenos,
Em que me dá trégua o amor,
Sofro pouco, escrevo menos,
Quem agradece é o leitor.

Amor, e o que mais?

Amar já deveria ser suficiente. Querer ser correspondido, pretender fixar uma relação de troca, estabelecer uma retribuição baseada no mérito parecem itens de um manual de gerência. Amar é uma ventura tão grande que exigir algo mais é ser ingrato com a sorte. Quem deseja recompensas para o amor não o merece.

O azul absoluto (para Frida)

Era um desses azuis aguados, que quase se desculpam por estar no fundo de telas em que, no primeiro plano, aparecem anjinhos travessos. Era um azul de céu matinal sobre o mar, um azul infantil de aquarela, um azul de mansa azuleza. Era assim. Depois, cansou-se talvez de ser coadjuvante, e foi se carregando de um tom mais áspero. Assomou à frente das telas, tornou carrancudas as manhãs, transformou-se num azul adulto. Para que não duvidassem do seu novo estado, passou em certas tardes a abrigar relâmpagos que faiscavam antes do estrondo dos trovões. Mas era um azul ainda azul, se bem que sombrio. Ninguém, apontando o dedo para ele, lhe daria outro nome, embora um esnobe tenha chegado a chamá-lo de azul-ferrete. Então ele se carregou ainda mais, no limite. Sente-se gloriosamente azul agora, mas, quando surge no céu, os passarinhos voam aflitos para se ocultar nas árvores e as mulheres correm para fechar portas e janelas, enquanto os gatos se põem a miar lancinantemente, como se estivessem possuídos por Belzebu.

Desproporção

Eu, que tantos anos tive para ser ridículo - e fui -, não disponho de quase mais nenhum tempo para livrar-me da vergonha acumulada. Só para limpar este palco, varrer todos os ovos, todos os tomates e sair pelo fundo, eu precisaria de uma eternidade.

"A vida é um pesadelo", de Carl Solomon

"Se você não acredita que a vida é um pesadelo,
Comece a viver e veja você mesmo.
A vida só não é um pesadelo
Quando você é jovem demais para saber ou se
preocupar com a morte, sexo e negócios."

(Do livro De repente, acidentes, tradução José Thomaz Brum, publicado pela L&PM.)

terça-feira, 27 de maio de 2014

Futuro

Não, nós não riremos disto, deste amor depenado como uma galinha de domingo na bacia de água quente. Somos insanos, mas não somos cínicos.

Um seio, e o outro

Depois de lhe recusar por mais de uma semana os seios, ela hoje colocou o relógio de pulso no banco da praça, entre os dois, e agora diz: tá bom, mas só um minuto. Olha para os lados, para se assegurar de que não há ninguém por perto, puxa de dentro da blusa um seio, olha de novo para os lados, e puxa o outro. Pela facilidade com que os tira, ele sabe que ela está sem o sutiã que uma semana antes ele havia apalpado, arranhado, mordido, para tentar acender nela alguma luxúria. Ela os segura por baixo e os oferece, como se ele fosse um bebê para quem conseguiram uma ama de leite. Ele se debruça sobre um, sobre o outro, sobre os dois, como um enjeitado de asilo que não sabe quando mamará outra vez. O relógio já deve ter marcado dez minutos, quinze, mas permanece esquecido no banco, enquanto ele se farta, engasga, geme de satisfação, e ela, sem se importar agora em se mostrar vencida, acaricia os cabelos dele, mais, mais, para que ele nem pense em tirar os lábios de onde estão.

Prêmio de consolação

Mantêm uma amizade resignada e triste, como todas aquelas que nascem de um amor frustrado.

Oitavo andar

O restaurante lá embaixo é antigo: trinta e dois anos, o proprietário disse. Mas, e se o toldo for novo e abafar tua queda? Precisas voltar lá e perguntar. Um bom plano às vezes falha por uma dessas minúcias bobas.

Sonho (para Frida)

Uma das mulheres de tuas pinturas enterrou o salto alto e agudo em meu coração e começou a girar como uma bailarina ou uma patinadora. Era graciosa ela, assim, quando me fitava depois de cada giro, embora o sorriso não ocultasse a centelha de ódio que havia nos olhos. Eu soube, então, que não era o primeiro que ela matava.

Nossa boa educação

Até aquilo que não
valeu valeu

Que bom poder
dizer isso
com boa educação
agora que
a paixão está sepultada
e o amor
parece uma piada
malcontada de salão

Que bom
poder agradecer
e dizer que até
o que não valeu nada
valeu tanto
que bom ah que bom

E que bom esquecer
aquelas palavras iradas
aquelas pragas
reciprocamente lançadas
aquela maldade
aquela impiedade
aqueles xingamentos
que tanto doíam
que tanto machucavam
e no entanto exprimiam
apenas a verdade
naquele tempo
em que entre nós
ainda não havia falsidade.

Paisagem

Até o belo vai dando sinais de que me abandonará. Meu caminho é uma alameda de árvores mortas.

Como um vestido

Às vezes ela se lembra dele, como acontece às mulheres quando, convidadas inesperadamente para um evento, vão dar uma espiada no guarda-roupa em busca de um vestido que elas sabem muito bem que não encontrarão, mas mesmo assim passam e repassam a mão em todas aquelas velharias que, se saírem de lá um dia, irão para um bazar de caridade.

Mau gosto

Merece a fama de grosseiro quem diz que tal ou qual mulher é para cinquenta talheres, ainda que em certos casos a estimativa possa pecar pela limitação.

Literalmente

Que se abram todos os zíperes
E o que quiseram negar
Possamos tudo gozar,
Ipsis verbis, ipsis litteris.

Picasso

Além de tudo, ele tem a seu favor a compacta sonoridade do nome.

"Desperta-me de noite", poema de Maria Teresa Horta

"Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

É rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas

A trégua
a entrega
o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes

Desperta-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo

E eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vais descobrindo vales."

Fernanda Lima

Usar a palavra esplendor como sinônimo de Fernanda Lima é tão legítimo e apropriado quanto utilizá-la como sinônimo de sol ou de chama.

Amor, meu morto querido

Quando secar a última lágrima e se dissipar a derradeira lembrança, não terei mais o que dizer. Por todos esses anos, tu, amor, foste meu único assunto e, embora já estejas morto, eu exploro ainda vilmente o teu corpo. Não deixei que ele descansasse em vida, não o deixo descansar agora. Falei tanto de ti, falo ainda, sempre, porque não falar de ti seria não falar de nada, seria morrer. Pobre amor, que Deus cale enfim minha voz e que tu, livre do meu veneno, possas germinar na terra onde estás e nela faças nascer flores dignas não de mim, que desejei ser teu conforto e fui teu algoz, mas de quem venha a merecê-las.

De entre os mortos

No corpo volta a pulsar
Um frenesi, um espasmo,
Talvez ainda não de orgasmo,
Mas um frisson similar.

Soneto que celebra os homens duros

Eu fui sincero contigo
E tão honesto me dei,
Que juro que não consigo
Saber onde foi que errei.

Dias tristes, os atuais,
Em que a verdade falar
Não é qualidade mais,
É por cretino passar.

O tempo é dos homens duros,
Não há lugar para os puros,
E aquele que jura que ama

No grande teatro do amor
Não passa de espectador
Largado embaixo da cama.

Rejeição

Doía-lhe ver seu amor rejeitado, mas doía-lhe mais, muito mais, saber que não acreditavam nele, embora por esse amor rejeitado ele toda noite se perguntasse se podia ser considerado homem alguém que chorava como ele.

Mãos

Ao poeta que se lastimava por seus infortúnios amorosos, um homem experiente nas lidas da paixão aconselhou que se resignasse com a sua sina. Há mãos de semear e há mãos de colher, resumiu, esfregando lubricamente as próprias e deixando ver, ao dizer a frase, uma língua que parecia ter andado pelo corpo de todas as rainhas do Sião.

Ser William, enfim

Literatura é ilusão.
Eu, no dia em que morrer,
Igual passarei a ser
A Shakespeare no caixão.

Eu não sou assim

Ela nunca beija; deixa-se beijar. Suas mãos não se movem enquanto as alheias, depois de percorrê-la às apalpadelas, a conduzem ao quarto. Na cama, ela também não se mexe. Aceita as investidas e as estocadas com resignação de prisioneira. Imagina-se talvez mártir, anseia pela dor e pela humilhação da carne, concentra-se no sofrimento e, quando consegue atingi-lo plenamente, seu parceiro, se é novo, se espanta e se assusta ao ver como ela abruptamente muda de posição e passa a montá-lo, como pesa sobre o seu corpo e como se torce, retorce e contorce sobre ele, parecendo querer esmagá-lo. Esse ímpeto não costuma se estender por mais que três minutos, durante os quais ela berra vogais de autoincitação e palavrões. Depois, ela apeia, rola para o lado e, deitada novamente de costas, começa a se desculpar: "Eu não sou assim, eu juro, eu não sou assim." É o momento em que o parceiro, se for um dos que já a conhecem bem, voltará a beijá-la e a dizer-lhe santa, minha santa querida, minha preciosa, até que se dê outra vez a transformação.

Um trecho de Nietzsche

"O pathos da atitude nada tem a ver com a grandeza; quem necessita de atitudes é falso... Cautela com os homens pitorescos! - A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado. Quem me viu nos setenta dias deste outono, quando sem interrupção fiz coisas de primeira ordem, que ninguém fará - ou faz diante de mim -, com uma responsabilidade para com todos os milênios vindouros, não terá percebido um traço de tensão em mim, antes transbordante frescor e alegria. Jamais comi com maior prazer, jamais dormi melhor. - Não conheço outro modo de lidar com grandes tarefas senão o jogo: este é, como indício de grandeza, um pressuposto essencial. A menor constrição, o ar sombrio, um tom duro na garganta são objeções a um homem, mais ainda à sua obra!..."

(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, publicado pela Companhia de Bolso.)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Um rapaz de futuro

Que pena tenho de mim
do rapaz que estudou trigonometria
história gramática filosofia
e até um tantinho de latim

Que pena tenho de mim
do rapaz tão tolo e poético
que a vida transformou num velho
patético entre os patéticos

Nos livros confiei tanto e hoje
eles apodrecem na estante
enquanto eu murcho no sofá -
eu e eles frutos que a morte colherá.

Tabela paulistana

São Paulo, puta metida,
Além do preço normal
Tu cobras adicional
Se pedem uma mexida.

Mantra para acompanhar a siririca (segunda edição, a pedidos)

Mariquinha, Maricota, com a direita e com a canhota.

(Repetir, até atingir o orgasmo ou ser por ele atingido.)

Qualquer Manuel

Gostaria de ter sido um dos heterônimos de Fernando Pessoa, mesmo o mais obscuro de todos, que se chamasse Manuel Algo ou Joaquim Qualquer Coisa. Ou que ao menos fosse um Alcibíades do Rego, citado num poema de Manuel Algo ou Joaquim Qualquer Coisa.

Esmola

Às vezes me dás uma esmola (um olhar, ainda que oblíquo, um sorriso amestrado) e fico feliz como se fosse aquele rei que babava na sopa ou o bobo da corte.

Brincadeirinha

A flor ruiva, tocada pelo dedo hábil e autorreverente, faz flutuar no quarto um odor salgado, um aroma morno, uma sugestão de maresia.

Fernanda Lima

Em Fernanda Lima, a beleza assenta delicadamente, como a chuva que, para não estilhaçar o azul do lago, desce sobre ele tentando fazer cada gota parecer uma pluma.

O gato gorducho

Ele sabia como doeria a saudade quando se dissessem adeus. Não se enganou. Mas não imaginava que a saudade atacaria tão traiçoeiramente, usando armas tão desleais - como a lembrança de como ela cantarolava enquanto ia tirando a roupa diante dele, de como às vezes até assobiava ao fazer isso, de como parecia sempre feliz nas horas do amor, como se estivesse praticando um exercício num parque. E de como ela ria gostosamente e dizia "vê se para com esse ciúme, Toninho", quando seu gato gorducho, do lado de fora, ficava arranhando a porta. E de como ria mais ainda quando, depois de aberta a porta, Toninho pulava nele para lhe deixar no corpo as rancorosas marcas que ele hoje olha com um sorriso condescendente e triste.

Fernanda Lima

Se fosse uma obra literária, Fernanda Lima seria uma coletânea de domingos.

Flagelo

Pela última cotação,
Dos dez que o têm como vício
O amor põe nove no hospício
E leva um para o caixão.

Malditos somos

Quando morremos
apesar dos bilhões de nós
que ainda ficam
se ouve a débil
e vingativa voz
da natureza
comemorar

Ao menos
um a menos.

"Morrer de amor", de Maria Teresa Horta

"Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso."

(Do livro Destino; fonte: Citador.)

O novelo

Seus dedos, tão velhos quanto ele, distraem-se às vezes em ficar contando e recontando os finos fios do novelo triangular e negligenciam outras tarefas que em nome do prazer tão bem executavam. Entretidos nesse contar e recontar, não se aventuram mais em torno do novelo nem exploram o interior úmido que anseia pelo toque. Também seus lábios, que poderiam compensar a inabilidade dos dedos, andam desatentos e quando se aproximam do novelo se aproximam sem o ímpeto antigo, como se fossem olhos e estivessem interessados apenas em conferir a conta feita e refeita pelos dedos.

Cotação do dia

Diante de minha alma há muito tempo passa um rio. Ela o olha, diariamente o vê seguir adiante. Quer jogar-se nele, afogar-se, mas o corpo não lhe obedece, e a água continua a fluir e a seguir diante de minha pobre alma tetraplégica.

Vinte anos

Desde o início
por ofício
dei o corpo aos homens
e por esperança
em algum benefício
a Deus entreguei a alma

Desde o início até agora
Não mudou nada

Com vinte anos de calçada
continuo igual às outras
uma mulher amarga
uma égua de aluguel
uma putinha malpaga.

Sobre a cova

Sobre a cova do poeta
nasceu anônima
cresceu discreta
uma erva mesquinha
enfezada
maninha
crispada
daninha.

Coroamento

Um dia chega o cansaço
E sobre as mãos vem pesar.
É hora então de se deitar
Sobre os louros do fracasso.

A lâmina

Deitado, como um defunto,
O amor, a quem o visita,
Mostrar os pulsos evita
E logo muda de assunto.

Fernanda Lima

Se alguém quiser descobrir
A beleza a quantas anda,
É simples: é só seguir
Os passos que dá Fernanda.

Em quê?

Em quê acreditaremos
Depois de crermos no amor
E de ele veneno pôr
Na comida que comemos?

"Longe, no mar, há uma ilha", de Robert Louis Stevenson

"Longe, no mar, há uma ilha
Onde o crepúsculo
É uma alameda de agitadas palmeiras
Desenhadas no sol.
E ao longo das costas e dos seus recifes
Ondas azuis reluzem e desfazem-se.
Aí irei, parece-me,
Quando tudo estiver terminado.

Não tenho nenhum castelo em Espanha,
Nenhuma ilha no pensamento,
Aonde voltar e partir outra vez
Quando a vida me castigar.
Ergue-te, indolente alma! Procura longe daqui
O nosso bosque na montanha,
Ou aproxima-te da ilha encantada,
Chega à baía que desejaste."

(De Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 25 de maio de 2014

Espelho

Sempre que me encaro assim,
Vejo que só um sandeu
Exatamente como eu
Daria importância a mim.

Ser Fernanda Lima

Ser Fernanda Lima é ter
Dons reais, de majestade,
E - mais do que isso - a humildade
De sabê-los exercer.

Ser Fernanda Lima é ser
Sóbria na celebridade,
Contida na intensidade,
Ser mais do que parecer.

Ser Fernanda Lima é dar
Exemplo, dia após dia,
De amor e de compreensão,

É o provérbio confirmar,
É ter a mente sadia
Num corpo formoso e são.

Um trecho de Diane di Prima

"Este é um dos velhos problemas da arte. Tudo é sempre cooptado, e o mais rápido possível. Como Cocteau costumava dizer, você precisa ser um tipo de acrobata ou equilibrista. Ficar três saltos à frente do que eles podem entender sobre o que você está fazendo, para que no momento em que a mídia perceba sobre o que você está escrevendo, por exemplo, mulheres e lobas, você não está colocado em apenas um ponto de vista, mas já os ultrapassou. É uma questão de quanto tempo você pode ficar naquele lugar. Para onde você quer ir? Você não quer fazer algo que já conhece ou que já descobriu. Então é natural para o artista dar estes saltos, que tanto surpreendem as pessoas."

(De Poesia beat, tradução de Sergio Cohn, publicação da Azougue.)

www.rubem.wordpress.com

No texto de hoje na revista "Rubem", falo de um trauma de infância: o de não ter convencido meu pai a comprar uma coleção de livros que para mim era a aspiração suprema. Nesse tempo, eu era um leitor, só, e, para minha felicidade, deveria ter permanecido assim. Tentações, presunções e empáfias me fizeram supor que eu talvez pudesse escrever livros. Foi essa, com mais algumas bizarras aspirações, a desgraça de minha vida.

Fernanda Lima

A quem no dom da beleza
As suas fichas aposta,
Fernanda Lima é a certeza,
Fernanda Lima é a resposta.

Destino

Há em nós um instinto de grandeza
Que não nos deixa nem na extrema-unção.
Não é vanglória, não é presunção,
É um ditame da nossa natureza.

Valor

Sou perito em perda,
Sou nulo, nenhum,
Sou um menos um,
Sou um zero à esquerda.

Astúcia

As lembranças vão se tornando tão amargas que a memória finge tê-las perdido.

Deslize de edição

É difícil acreditar que editoras cometam ainda o erro de publicar glossários no final de livros sem informar ao leitor, no início, sobre sua existência. Quando surge no texto a primeira palavra suscetível de causar dúvida, custa esclarecer, no rodapé, que ela e outras terão seu sentido esclarecido no glossário da página tal? Tive - mais uma vez - essa má experiência ao ler o belo livro Cada homem é uma raça, de Mia Couto, publicado pela Companhia das Letras. Passei batido por vários termos, adivinhando-lhes o significado, até chegar à última página e me deparar com o glossário. Achei depois, no índice desse livro de magníficos contos, referência ao glossário. Mas quem começa a ler um livro pelo índice?

Os homens de sua vida

Atraído por ela como um menino a quem se prometeu uma balinha, eu a segui até o edifício sombrio, e daí até o porão. Apesar da escuridão mofada, consegui distinguir cinco homens. "Pronto, ele é de vocês. Sirvam-se." Ao meu espanto ela respondeu: "Estes são os homens da minha vida. Não estão todos. Alguns já morreram." Desejando-me boa sorte, retirou-se. Quando voltou, duas ou três horas depois, ela perguntou aos cinco homens: "Gostaram?" Com fiapos de minha carne entre os dentes, disseram que sim. Ela nem olhou para mim, não viu minhas lágrimas, mas senti, com certo orgulho, que tinha sido aceito na seita dos desgraçados que viviam a vida para venerá-la.

"Para K. de M.", poema de Robert Louis Stevenson

"Amante do desolado pântano
E dos puros ventos do campo, eras
A espumante prata da chuva que apanhaste;
E amaste as águas dos regatos,
O orvalho, a geada e as montanhas, o fogo e os mares,
Os tumultuosos silêncios,
Os ventos que na escuridão tocavam a sua música,
E a alta e casta lua.

E como o fruto que, pálido e agudo,
Brota nos sulcos,
No nosso inóspito e nativo Norte -
Semeaste gelados frutos silvestres,
E entre as vozes, longe do homem,
Correu uma forte e amarga virgem.

O fruto maduro conserva o áspero
E aromático cheiro dos bosques.
E tu que amavas a desolada planície
Perfumada pelo vento e pela chuva,
Ouviste à tua volta cantar a gaivota -
Sentiste a frescura do tempo -
E as recatadas joias da chuva
Voltaram a adornar os teus cabelos."

(De Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 24 de maio de 2014

Soneto do amor incomensurável

Alguém me amou na ocasião
E a minha vida então era
Um misto de primavera
E de maduro verão.

Alguém me amou, e tão forte,
Que eu sempre me perguntava
Que deus assim me ensejava
Tanta e tão ditosa sorte.

Alguém me amou, e eu sentia
Que tanto afeto ninguém
No mundo mereceria.

Alguém me amou assim, e eu
Amei quem me amou, também,
Enquanto esse amor viveu.

Cultura

Na entrada da livraria
há desde aquela manhã
um marco
que o tempo
não apagará

Um raio de sol
por um instante
escapou da avenida
sorriu para mim
e deu uma espiada
para dentro
como se quisesse
ir até as estantes.

Amor, o verdadeiro

O amor - quando merece esse nome - é repentino como um incêndio e intenso como um vulcão. Arde, consome-se, destrói-se. Não deixa lembranças, porque não tem tempo para guardá-las - tão diferente daquele sentimento morno que lhe usurpou o nome e que vai colecionando fotos, fitas de cabelo e de vídeo, rolhas de champanha e cardápios de hotel numa gaveta que é aberta só nas solenes ocasiões por mãos velhas que tremem ao tocar objetos tão sagrados. O amor verdadeiro não chega a completar idades, etapas, bodas. Dura o suficiente para não se tornar ridículo, para não ser roído por traças num amarelado álbum de família. O amor de verdade vive apenas o bastante para começar a construir-se e para destruir-se ainda em construção.

Gentileza

Encharcada pelo repentino temporal, ela se abrigou sob o toldo da lanchonete. Enquanto decidia se entrava para tomar um suco, uma mecha de cabelos molhados se antecipou, desceu para os lábios e deu-lhes de beber.

Hem?

Para os grandes acontecimentos também sempre chega o instante em que alguém vai citá-los e mesmo quem deles participou faz um ar abobado de quem não se lembra e pergunta: hem?

Um trecho de Diane di Prima

"Acabei de perceber que sou eu o que está em jogo
Não tenho outro
Dinheiro para o resgate, nada para quebrar ou barganhar
A não ser minha vida ou meu espírito parcelado, em fragmentos,
esparramado sobre
a mesa de roleta, eu recupero o que eu posso
não tenho mais nada para enfiar debaixo do maître de jeu
nada mais para jogar pela janela, nenhuma bandeira branca
esta carne é tudo o que tenho para oferecer, para fazer a minha jogada
com esta cabeça imediata, e o que vem nela, meu movimento
enquanto deslizamos sobre o tabuleiro, pisando sempre
(assim esperamos) nas entrelinhas."

(Extraído do poema "Cartas revolucionárias", traduzido por Sergio Cohn, do livro Poesia beat, publicado pela Azougue.)

Ler Mariana Ianelli

Ler Mariana Ianelli é um dos raríssimos encantos que me restam. Quando leio Mariana, sinto que ainda têm significado palavras como espírito, alma, arte. E poesia. Mariana é poeta, vate, poetisa, e cada texto seu vem com o que a poesia tem de mais essencial, o indizível. E, feiticeira também, detém o segredo da dose certa, das gotas exatas dessa inefabilidade. Mariana parece uma menina soprando bolhas de sabão nas entrelinhas. E as linhas são linhas de pauta pelas quais, como pássaros jovens, deslizam notas que não chegam a pesar sobre elas, apressadas no seu desejo de saltitar e gorjear. Na revista "Rubem", hoje, há um desses textos mágicos de Mariana. O endereço é www.rubem.wordpress.com.

Polivalente

No jogo do amor
não me faço de rogado
obedeço ao treinador
atuo recuado
jogo avançado
caindo pelo meio
entrando pelos lados
jogo até deitado.

Fernanda Lima

Fernanda Lima, resumo
Da essência, da quintessência,
Sinônimo da excelência,
Do sumo e do suprassumo.

Pragmatismo

Já não se importa em perder o amor-próprio. Incomoda-o perder o alheio.

Questão de idade

Chegada a maturidade,
Nossa melhor atitude
É esperar sem ansiedade
Que venha a decrepitude.

As marcas

Assim como aquele desenho esmaltado na xícara predileta, a marca de posse que o amor nos imprime vai se atenuando. É inevitável. No começo, quase não notamos. Depois, aos poucos, vamos percebendo. E, certo dia, nem sempre muito distante, vamos olhar, e onde está o desenho, onde está a amorosa marca? O tempo apaga tudo. Não lhe importa se está lidando com uma xícara ou com uma história de amor.

Perolazinha

Já nem olha para as coxas e para os braços da mulher de biquíni deitada sobre uma esteira, na praia. De vez em quando, ainda detém o olhar nos seios, que sobem e descem com suavidade, como as ondas da manhã. Mas o que o fascina no corpo é a perolazinha que cobre o umbigo e faísca quando tocada pelo sol. A mulher está de olhos fechados. Ele os fecha também e fantasia uma cena. Assim. Ajoelha-se ao lado dela e respira fundo. Baixa a cabeça, pousa a boca no ventre e começa pela pérola, resvalando pelo umbigo, presenteando a língua com um sabor jamais provado - um tanto áspero, um tanto salgado, deliciosamente perturbador.

Soneto da dor maior

Não há dor mais dura que essas
Que nos martirizam quando
Vão todas se desmanchando
As nossas caras promessas.

Um sonho, quando é de amor,
Se morre, dói atrozmente,
Mais funda e profundamente
Do que nenhuma outra dor.

Porém queixar-nos seria
Até uma hipocrisia,
Mesmo que pior ela fosse.

Pois também não há lembrança
Tão agradável, tão mansa,
E mais nenhuma tão doce.

Nós, heróis do nosso tempo

Heróis do nosso tempo
para nós tudo é desafio
uma nova carreira
uma nova mulher
um novo apartamento
um novo casamento
uma nova
baboseira qualquer

Somos fortes
e sentimo-nos bem
na companhia dos outros
desses heróis
que assim como nós
vencendo desafios
são todos e cada um
filhos do século vinte e um.

Mariazinha de régios Joões

Namorei esse
namorei aquele
esse assim era
aquele era assim

Alongava-se a tarde
e eu ali ouvindo
o nome das celebridades
com quem ela estivera

Eram cem duzentas
personalidades reais
talvez trezentas
talvez até mais

Todos nobres
todos ricamente herdeiros
e a tarde se alongando
e eu lá escutando

Pensei que seria indelicado
sair antes que fossem citados
o soberano da Inglaterra
e o príncipe da Baviera

Porque demorava essa citação
eu disse que era hora
pedi-lhe perdão
e avisei que ia embora

Já na outra calçada
eu a vi ainda acenando
ei espera aí espera
que ainda não te contei nada.

Autossugestão

Tão humilde, tão fraco, tão inferior me fiz, que acreditei - e tanto, que passei a sentir pena de mim. Mas os outros, não.

"IN MEMORIAM, F.A.S.", de Robert Louis Stevenson

"Recorda, ó despedaçado coração, recorda
   Como ele gozou a melhor parte dos humanos dias.
Viu abril florescer e do obscuro dezembro
   Não conheceu os frios mortais sobre a fronte e o coração.

Destinado a não conhecer o inverno, mas apenas a primavera,
   Percorreu alegremente o florido abril,
Encheu-se de música, alegres pensamentos, e viu,
   Veio e ficou e foi-se, sem deixar de sorrir.

Veio e ficou e foi-se, e agora que tudo acabou,
   Só, cruzaste a corrente da melancolia,
E tua é a angústia, mas ele, oh, ele possui o irrecusável
   E invencível gozo, o eterno sonho.

Repleta está a vida de tortura, fadiga, traições,
   Vergonha, desonra, morte, mas para ele nada foi assim.
Ele, um rapaz que passou pelas melodiosas estações
   E ao chegar fez desaparecer o dia da amargura."

(Da coletânea Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Fernanda Lima

Na Copa o Brasil já tem
Uma taça garantida.
Mais do que tu mais ninguém
Poderá ser mais querida.

Lições

Tu me ensinaste a viver.
Tu me ensinaste a alegria,
Depois a dor e a agonia.
Não me ensinaste a morrer.

Mensageiro

És tão fria que, se eu te mandasse uma rosa por um pássaro, tu o matarias com um dos espinhos dela.

Soneto do dia em que meu irmão foi um passarinho

Posso gritar. Por que não?
Mas quem meu grito ouviria
E quem me socorreria,
Quem me estenderia a mão?

Meu irmão fez isso, um dia,
Gritou sua solidão.
Havia uma multidão
Embaixo, mas quem o ouvia?

Gritou uma vez, gritou
Duas, gritou agoniado,
Depois do alto se atirou.

Não sei se ele no ar também
Gritou ou ficou calado.
Só sei que não pousou bem.

Big C

Ele nos ataca
às vezes uma
às vezes
duas vezes
às vezes mais

Seus ataques
são mortais
mas como um gato
encurralando um rato
ele nos fere
nos maltrata
mas só nos mata
quando já brincou demais

No entanto o jornal
diz que fomos valentes
sofremos atrozmente
e que morremos
mas lutamos bravamente
até o final.

Os que

Os que se lamuriam por amor, os que bradam por ele e dirigem súplicas atormentadas aos céus, os que se atam a crendices, os que recorrem a amavios, não têm noção de decência. De amor há de se falar baixinho, com reverência. O amor é um assunto íntimo, uma confidência da alma. Que arda no inferno quem, como eu, clama pelo amor como se estivesse anunciando na mais remota periferia pamonhas de Piracicaba.

Soneto das lições do amor

As complicadas noções
De côncavo e de convexo,
Assim como outras lições,
Ele as aprendeu com o sexo.

Com o sexo aprendeu a ver
Que entre receber e dar
E entre dar e receber
Pelos dois convém optar.

Aprendeu também os vícios
De acariciar orifícios
E de adestrar sua mão

Na arte de tornar o gozo
Mais gostoso, mais gozoso,
E de eriçar a paixão.

Cançoneta

Quantos
como eu
do amor viveram
o apogeu

Quantos
pelo amor
sofreram o desespero
como eu

Quantos
morreram já
pelo amor
Por que não eu?

Couvert

O amor começou a perder o prestígio na década de 1960 e hoje não passa de uma das preliminares do sexo.

Praia

Quando nos formos
deixemos na areia
não mais que um traço

Que o vento
para nos apagar
não precise perder
mais do que um segundo
e possa voltar
àquele ponto azul
em que o veleiro
espera um empurrãozinho
para velejar.

Ainda hoje

Ainda hoje, quando ele a evoca,
Ela se faz tão presente
Que até seu cheiro ele sente
Se com ternura se toca.

Fernanda Lima

Fernanda Lima, formosa,
Do afeto sacerdotisa,
Carícia morna de brisa,
Essência pura de rosa.

Fernanda Lima

Fernanda Lima, bela rainha,
Imagem terna do amor,
O sol é teu professor
E a lua é tua madrinha.

Ambivalência

O livre-arbítrio não é essencial só para a vida. Também da morte ele pode fazer uma questão de escolha.

Mão aventureira

Olha mais uma vez para a mão. Há já pelo menos meia hora que ela se mostrou surpreendentemente audaz, mas ele parece não acreditar ainda no que ela foi capaz de fazer. Olha para ela de novo, e de novo a cheira, para que o odor salino o convença da bravura de sua mão marinheira.

Adentro e afora

Curioso como adentro e afora têm o mesmo significado. Curioso e triste: madrugada adentro, e madrugada afora, minha insônia e eu te buscamos, minha alma, tu que em nosso vocabulário responderias também, se a alguma coisa respondesses, pelo nome de amor.

Exceção

Um dia, achei que poderia ser poeta. Faz cinquenta anos, já. Depois do famoso primeiro passo, dei todos os outros. Meritoriamente conquistei meu fracasso.

"Mexico City Blues - Refrão 230", de Jack Kerouac

"O cemitério populoso da podridão do amor,
O leite derramado dos heróis,
Destruição de lenços de seda
por tempestades de poeira,
Carícias de heróis vendados atados aos postes,
Vítimas de assassinatos admitidas nesta vida,
Esqueletos barganhando dedos e juntas entre si,
A carne trêmula dos elefantes da gentileza
sendo despedaçada por abutres,
Concepções de rótulas delicadas,
Medo de ratos espalhando bactérias,
A Fria Esperança de Gólgota pela Rica Esperança do ouro,
Folhas úmidas de outono contra
os cascos de barcos,
As delicadas imagens de cola dos cavalos-marinhos,
Sentimentais "eu te amo" nunca mais,
Morte por longa exposição à desonra,
Misteriosos e encantadores seres terríveis
ocultando seus sexos,
Pedaços da essência de Buda congelados
e microscopicamente fatiados
Em Morgues do Norte,
Pomos do pênis a ponto de semear,
Mais gargantas cortadas que grãos de areia -
Como beijar minha garota na barriga
a suavidade da nossa recompensa."

(Tradução de Sergio Cohn, extraído da coletânea Poesia beat, publicada pela Azougue.)

Amor?

"Amor?", disse o ancião ao rapaz. "Não sei como vou te explicar, é uma coisa tão antiga... Deixa ver, amor é... amor é, faz tanto tempo que eu não falo disso, espera um pouco." Abriu então uma gaveta e dela, imediatamente, saiu um bando de pássaros que se puseram a voar pela sala. "Amor é isso", disse o velho. E, remexendo na gaveta, puxou papéis quase tão antigos e acabados quanto ele. "Amor é isto, também." O rapaz, que já havia estranhado os pássaros, perguntou o que era aquilo. "São versos", respondeu o velho, "versos que eu fiz para a minha amada." O rapaz estava atônito: "Versos? Amada?" O ancião suspirou: "Qualquer hora eu te explico melhor."

Antiguidade

Morrer de amor é uma dessas delícias de que ouvimos falar hoje com aquele sorriso cético, igual ao que abrimos sempre que alguém da família fala do lendário gosto do bolo de fubá da bisavó.

Morrer de amor

Adoecer por amor, definhar por ele, morrer dizendo o nome da amada ao padre na extrema-unção já são coisas de que a modernidade há meio século nos poupou. Somos civilizados, agora. Morremos de doenças que a medicina, para conforto de quem se vê na necessidade de atestar o óbito, catalogou sem erro. Qualquer dedo, por mais leigo que possa ser, em um minuto chega à página certa. É a ciência que corre agora em nossas veias e estamos surdos para os rouxinóis.

A marca

O amor verdadeiro, o amor único, aquele que transforma a vida numa ampulheta e escorre em cada grão dela, deixa no coração uma marca, uma chaga que nem os vermes se atreverão a devorar quando o sofrido corpo for entregue à terra.

Ela, o sol

Ele nunca a viu nua. Mas, nos sonhos que se seguem às suas insônias, ela chega, dourada como o sol no cio, e se deita na cama com ele, esplêndida, exuberante, majestosa. Depois que ela se vai, ele sente ainda em cada centímetro de pele a febre que fica em seu corpo machucado e agradecido. Seus lábios em fogo brilham no quarto às escuras, quando ele os abre para implorar: volta, volta, vem.

Voragem

Com a desculpa de afastar um cisco, pôs-se a soprar os cabelos dela, e eles de repente começaram a levantar ondas nos quais seus lábios venturosamente se afogaram.

Fernanda Lima

Fernanda, lembra que eu disse
Que nessa competição
Seu seria o galardão
E a lua seria vice?

Coroamento

Um dia chega o cansaço.
Não há por que reclamar.
É a hora de se deitar
Sobre os louros do fracasso.

Soneto do que há de bom e mau no amor

Amor, por bem ou por mal,
Para a doce aspiração
Ou a cruel frustração,
Jamais tu terás rival.

Quem pode dar-nos igual
Júbilo ou exultação,
Desdita ou desilusão,
Assim como dás, tal qual?

Amor, me deste o melhor,
Amor, me deste o pior,
E o que me deste eu mereço.

E porque és assim, Amor,
Eu te exalto, meu Senhor,
Te proclamo e reconheço.

No cinema

Devagar, ele avança. Primeiro os dedos, o tato, o contato com o ombro nu. Conquistada essa posição, encosta a coxa na coxa da mulher, vencendo finalmente o último milímetro. Sua mão esquerda, despeitada pelo sucesso da outra, inquieta-se, pede, quer. O homem não sabe ainda o que fará com ela quando as luzes do cinema se apagarem: se irá fazê-la aventurar-se também pelo corpo da mulher ou se a deixará ficar no meio das próprias coxas, onde - sob o pretexto de companhar o ritmo da música ambiente - ela começou a dedilhar, dedilhar.

Cantiga de ninar

Ser uma folha
uma flor
em teus cabelos pousar
embrenhar-me em teu trigo
ali ficar escondido
e quando o sol se for
anoitecer contigo
ouvindo a brisa ninar
sussurrantemente o trigal.

Máxima

Sem ideal não se vive, porém se dorme muito melhor.

O lacaio e a rainha

Vivi outra vida, cinco séculos atrás. Eu era humilde, como hoje. Não me distinguia em nada, embora me considerasse, como agora, poeta. Assim como esta, foi obscura aquela vida. E, assim como nesta, apaixonei-me absurdamente por uma rainha. Tive melhor sorte então. Favorecido por um deus benigno, eu, o mais insignificante dos lacaios, era em certas noites introduzido na alcova real e, pela madrugada adentro, em tons que a paixão me ditava, murmurava minha alteza, minha rainha, minha majestade adorada, e ouvia, em resposta: poeta, meu poeta, ai, poeta.

O terreno (para o Márcio Canuto)

Era um terreno vazio
grande e adequado
para um parque perfeito
ou para um colégio apropriado

Era da prefeitura diziam
e em toda eleição candidatos
promessas apresentavam
de fazer algo importante ali
onde o mato crescia

Além do mato (reconheça-se)
flores urbanas ali cresciam
e formigueiros também e ratos
enquanto a cada eleição
sucedia outra eleição

Enquanto espera ainda uma construção
a fita desatada e a inauguração
o bairro hoje sentiu o alvoroço
de ver estendidos no mato
como se quisessem colher as flores
três homens-feitos e um moço
e fugindo à aglomeração
uma mulher puxando uma menina
sob o cheiro já podre do ar
e o som abafado de vozes
ecoando a palavra chacina.

"Esta grande esperança", de Robert Louis Stevenson

"Desde que me dês esta grande esperança, ó Deus,
Desde que os meus passos percorram o florido chão,
E os grandes bosques me envolvam, e o claro amanhecer
E a púrpura tarde docemente me levem
De dia para dia, de noite para noite, ó Deus,
Não desdenharei a luz do amor,
E continuarei a subir, sempre a subir
Até a pobre estrela do homem, até as terras inertes do homem,
Até a azul firmeza da morte.
À minha vida não faltará a luz do amor,
Às minhas mãos não faltará o amoroso contato de outras mãos,
Mas dia após dia, enquanto ainda respirar,
Dia após dia, até o meu último instante,
Terei uma amiga perfeita,
O seu coração provará o meu riso e as minhas lágrimas,
E os seus bondosos olhos acompanhar-me-ão até o fim."

(Da coletânea Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quinta-feira, 22 de maio de 2014

1938-1961

Podia ter sido lindo,
Se não fosse esse contraste,
Se eu já não estivesse indo
Quando ao mundo tu chegaste.

Íris, Íris, Carla, Carla

Com os lábios carregados de batom escarlate, ela imprime a boca na palma da mão e põe-se a beijá-la. Quando o fôlego lhe falta, ela para e murmura: "Íris, Íris..." Depois volta aos beijos e, com os olhos já fechados pela volúpia, sussurra: "Carla, Carla..." Quando já não sabe se beija Íris, Carla, ou as duas, aperta entre as coxas a mão em que está a boca impressa e, como toda noite, geme: "Obrigada, querida, obrigada."

Cântico

Amor, perversa entidade,
Que não me deixas viver,
Que não me deixas morrer,
Eu louvo a tua maldade.

Fácil

Daqui a quinze anos, daqui a dez, daqui a um, nada disto importará. Estará apagada a chama e o amor
será uma lembrança. Não será preciso fazer nada, apenas deixar que o tempo flua. Tão simples, tão óbvio, tão fácil. Então por que o coração se obstina e se recusa a aceitar?

Assunto

Sei que não é bom assunto
Falar de alguém que nos mata,
Mas o amor fez-me defunto
E é disso, aliás, que se trata.

Extremos

Tão frágil era sua autoestima que, por sugestão do psicanalista, sempre que se via sozinho dizia em voz alta: "Eu sou, eu posso." Na consulta seguinte, dois meses depois, voltou com um problema diverso: estava se achando presunçoso demais.

O máximo

De mim, o que você quer?
Depois que a vida lhe dei,
Minha querida, eu não sei,
O que mais quer que eu lhe dê?

Aranha ou besouro

Tomavam um cafezinho e conversavam. Ele olhava para a blusa da mulher e imaginava como faria. Era um plano juvenil, infantil até, mas ele o havia desenvolvido exaustivamente na véspera e não lhe ocorria outro. Estenderia o braço por cima da mesinha da lanchonete, apontaria o dedo para a blusa e, enquanto a mulher o fitasse intrigada, avançaria a mão rapidamente para a blusa e, fingindo desequilibrar-se, se agarraria ao tecido quadriculado, o suficiente para sentir por um momento a carne macia sob o sutiã. Depois de desculpar-se, diria, para se justificar, uma frase que ainda não tinha definido. Seria algo como "era uma aranha" ou "era um besouro". Enquanto se decidia pela aranha ou pelo besouro, continuava admirando o movimento da blusa xadrez, inflando-se e desinflando-se. Era mesmo um plano infantil, ele reconhecia, lamentando não ter, em nome da verossimilhança, levado a aranha ou o besouro.

Por quê?

Amor, que matas e feres,
Por que me tens açoitado,
Por que me tens lacerado,
Por que matar-me não queres?

Um poema de Emily Dickinson

"A alma escolhe sua companhia
E fecha a porta, depois.
Em sua augusta suficiência,
Cessam as intromissões.

Indiferente, vê as carruagens
Parando junto ao portão;
Indiferente, um rei de joelhos
Sobre suas alfombras.

Sei que, dentre uma vasta multidão,
Ela escolheu um ser apenas;
Depois, cerrou as aldravas de sua atenção,
Feito pedra."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)

Fernanda Lima

Buscando a perfeita rima
Que pudesse enaltecê-la,
Fez rimar Fernanda Lima
Com sol, com luz, com estrela.

Fernanda Lima

Fernanda, sem hesitar,
Decretou, de próprio punho:
A Copa vai começar
No dia 12 de junho.

Negro sobre negro (para Frida)

À meia-noite na sala
no centro da treva
no âmago do escuro
um escuro mais trevoso
um negro mais tenebroso
vem e vagarosamente se instala

Essa escuridão espessa
feita de fios lustrosos e seda
por um instante reina

Depois de alcançar a perfeição
cansa-se da imitação
acende dois faróis verde-amarelados
boceja e abandona a sala

Mas antes de abandoná-la
deixa na treva um miado
que arrepia a espinha da escuridão.


V(ã)idade

Todos me aplaudem

São dois mil
cinco mil

Quando os aplausos
dão uma trégua
mais alguém fala
de alguma
outra coisa que fiz
e então bis
voltam os aplausos

Vejo mal
não distingo mais
um ó de um á
estou quase surdo
mas hoje não há
múmia mais feliz no mundo.


Soneto de quem falhou em tudo

Foi um menino enganado.
Compravam brinquedos raros,
Davam-lhe presentes caros,
Em troca do amor negado.

Foi um rapaz iludido.
Cedeu-se inteiro ao amor,
Entregou-se com fervor
E seu amor foi traído.

Gorou também como artista
E é bem mais extensa a lista
De tudo em que malogrou.

Tentou suicidar-se, e nem
Nisso se deu muito bem,
Porque a corda arrebentou.

A migalha

Na lanchonete a mulher, na quarta tentativa, conseguiu puxar com a língua uma migalha de pão do lábio superior. Ele, na mesa vizinha, acompanhando as quatro rápidas e úmidas fisgadas, sentiu uma inquietação morna, igual à da tarde, anos antes, em que vira na aula de educação física uma das garotas tirar meticulosamente do joelho uma casca de ferida.

A doença

Hoje, graças à evolução dos costumes e ao contínuo trabalho de prevenção, o amor é uma doença extinta. Alguns historiadores dizem que, com ele, por efeitos colaterais ou por solidariedade, morreu também a poesia.

A peça

Há muito soou
o terceiro sinal
e na plateia lotada
a garotada
pergunta afinal
quando começa a peça

Atrás da
cortina fechada
um enfarte
matou a bruxa malvada
e enquanto a morte
impede a arte
e aborta a peça
a garotada na plateia
inicia a pateada
começa começa começa.

Um poema de Sikong Shu

"DOENTE MANDANDO UMA CONCUBINA EMBORA

Ocasiões que ferem o coração estão diante de mim
Encharcado tenho o corpo, frente à coberta de estimação.
Gastei dinheiro bom pra te ensinar dança e canções
Agora deixo a outro gozar teu saber e tua frescura."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Os encarcerados

Amor, e se acontecer
Que um dia adoeças e morras,
Quem virá nos socorrer,
Quem abrirá as masmorras?

Como um peito de mãe

Quando alisa os negros cabelos dela, finge que seus dedos são órfãos pobres, muito pobres, esgueirando-se dentro da noite para ocultar-se dos inimigos. Ontem, talvez porque a escuridão estivesse mais densa e ameaçadora, ou por malícia, o menor dos órfãos pôs-se a chorar, e os outros quatro desceram com ele pouco a pouco, até chegarem a uma carne alva como o dia, que os recebeu afetuosa e tranquilizadora, como um peito de mãe.

Soneto do navio e de sua falsa majestade

Quando eu, tal qual um navio,
Fingia ser soberano,
Já de mim se desprendia o
Ácido cheiro do guano.

E quem andou nos conveses,
Mesmo não sendo verão,
Sentiu o ardume das fezes
Subindo do meu porão.

Por muito tempo iludi
E bem melhor pareci
Do que jamais eu serei.

Hoje, tão perto do fim,
Sei que será sempre assim:
Fedi, fedo e federei.

Avenida Paulista, 2.073

Não viverei para ver
o que o tempo certamente fará
com a galeria
com a cafeteria
com o acesso à Livraria Cultura

Não viverei para ver
como tudo se modificará
como a estante de poesia
mudará talvez para onde havia
a seção de arquitetura

Não viverei para ver
a manhã em que para mim não sorrirá
aquela atendente esguia
que para nós fazia mesura após mesura
naquele tão longínquo dia

Não viverei para ver
com quem você nessa manhã estará
para perguntar à atendente esguia
diante dos livros de arquitetura
onde foi parar a estante de poesia.

Uma coisa apenas

Queres saber o que espero
E eu te respondo, com escusas:
Exceto o amor, que recusas,
De ti nada mais eu quero.

Um poema de Meng Jiao (751-814)

"CANÇÃO DO FILHO QUE FOI VIAJAR

Boa mãe nos dedos tem os fios
- Cosidos vão nas vestes do filho
Junta os pontos mais perto da partida
Pois receia que possa ser a volta longa.
Uma polegada de erva nesse teu coração
Paga bastante para a luz que rompe da estação."

(De Uma antologia de poetas chineses, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Onde o amor está (para Priscylla Mariuszka Moskevitch)

O amor nunca estará
olhando para nós em retratos na sala
nem nos sorrirá no álbum
folheado num domingo de chuva no sofá

Do amor não haverá
áudios nem vídeos
ninguém dirá
escuta aí ó
nem olha lá

E se vídeo e se áudio
e se fotos houver, lá
onde o rosto mais triste estiver
lá é que o amor estará.

"Pé na cova"

O episódio de ontem mostrou mais uma vez que nem só de artifícios vive a tevê. Há lugar também para a arte. Esta há de ser saudada sempre, e mais ainda agora, quando tão poucas vezes aparece.

Cotação do dia

Alguém que se recolhe a si mesmo da calçada, se pega na mão, se observa e sente que era melhor ter-se deixado levar pelo vento e pela chuva.

Fernanda Lima

A graça em ti, e o talento
São uma só inteireza.
Ao juntá-los, a beleza
Perfaz em ti cem por cento.

Cantiga de ninar

Ser uma folha
uma flor
em teus cabelos pousar
embrenhar-me em teu trigo
ali ficar escondido
e quando o sol se for
anoitecer contigo
ouvindo a brisa ninar
sussurrantemente o trigal.

No teu sonho

É possível que tenhas ouvido esta noite, em teu sonho, teu nome sussurrado e, depois, uma canção cheia de palavras amorosas. Não, não era eu - era um deus jovem ou um diabrete, compadecido com os meus infortúnios.

A peste

As musas o abandonaram e seus poemas foram atingidos por uma praga que roía laboriosamente os textos escritos à noite, deles restando apenas, de manhã, pedacinhos de papel picado nos quais, com muito esforço, era possível ler sempre a mesma e única palavra: não.

Ideal

Um poema só há de ser feito
Se for mais doce que o sumo,
Mais puro que o suprassumo,
Perfeito mais que o perfeito.

Herói ainda

Posso ainda
com esta idade
esquecer meus reumatismos
tentar alguns heroísmos
subir na escada
trocar uma lâmpada queimada
repintar uma parede descascada
tapar no telhado um vão

Com esta idade
posso ainda
quebrar as costelas
escorregando na cozinha
abrindo uma janela
ou fechando-a
prendendo-a
ao bater o portão.

Estilo

O que se chama de estilo pode ser uma armadilha para o escritor. Muitas vezes, aquilo que parece a expressão de uma legítima conquista nada mais é do que falta de ousadia e preguiça.

Trigal

Alisa-lhe os cabelos e instrui a mão a se comportar como a primeira brisa da manhã despertando o trigal.

"Com a primeira canção dos melros", de Robert Louis Stevenson

"Com a primeira canção dos melros,
Embriaga-se o meu coração:
Um prazer fresco inunda o meu peito
E percorre cada nervo.

O meu peito estremece levemente,
O meu coração acorda tão fresco
Como as sarças que movidas pelo vento
Levam uma pedra até o charco.

Mas ao ver-te, ao encontrar-te,
O meu pulso bate velozmente,
Como o lago que escurece
Quando as rajadas fustigam a sua água."

(Da coletânea Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

terça-feira, 20 de maio de 2014

Soneto da desesperança

Abdiquei já da esperança.
Tudo que começa torto
Já desde sempre está morto,
Quem espera nunca alcança.

Matei já dentro de mim
O que ao amor me induzia,
Me sugava e me exauria,
E estou bem melhor assim.

Às nuvens não subirei,
A lua não te trarei,
Como cheguei a pensar.

Se acaso a lua eu trouxesse
Talvez nem sequer tivesse
A chance de te entregar.

O dia

O dia chegará
eu sei
em que você me dirá
olha pra mim chega
acabou

Quando esse dia chegar
esse dia será
eu sei
um dia que doerá
como doem aqueles dias
que cismam de doer
como se fossem
todos os dias
num só dia.

Um pé nas costas

Estão nus e, ajoelhados na cama, abraçam-se. Faz uns minutos que estão assim. Esqueceram-se de algum detalhe e olham ao mesmo tempo para o criado-mudo. Ela estica o braço esquerdo, ele estende o direito, mas não chegam a pegar o livro. O movimento súbito - talvez o abrupto roçar dos joelhos, quem sabe o balançar dos seios dela ao se mover - acendeu nos dois uma desajeitada urgência que os faz deixar para depois a consulta ao Kama Sutra. Com o que já sabem, darão conta daquilo com um pé nas costas, ele pensa - e precisa concentrar-se, porque a metáfora o leva a se lembrar de algumas das ilustrações do livro e o instiga a rir.

Reflexão

Ter consciência de minha idiotice me torna menos ou mais idiota?

O amor em 2014

Pela trama derrotado
no fim do terceiro ato
o amor lentamente
caminha para o fundo do palco

Fosse outro tempo
a plateia o aplaudiria
e as mulheres certamente
começariam a fungar
e a tirar das bolsas os lenços

Se fosse um tempo
mais propício aos amores
é possível que gritassem bravo
e lhe atirassem flores

Hoje porém caminhando lentamente
para o fundo anônimo do palco
esperando ainda aquela simpatia
da plateia pelo mais fraco
o amor ouve o início de uma vaia
e da primeira fileira um vozeirão
grita fora fora cai fora canastrão.

Um poema de Herman Melville

"SOBRE OS HOMENS DO MAINE mortos na vitória de Baton Rouge, na Louisiana


Ao longe tombaram. Esta era uma terra
   De figos e laranjas, juncos e tília
(Uma terra tão diferente da sua,
Repleta de frios pinheirais),
   Ainda assim este era o clima da sua Terra.
E aqui, ainda jovens, por ela morreram -
                      Os Voluntários,
Por ela disseram suas orações às portas da morte:
   Tão vasta a Nação, e todavia tão fortes os laços que a unem.
Que dúvida poderia, então, fazer soçobrar
   A sincera fé e a imensa coragem da República."

(Da coletânea Poemas de Herman Melville, tradução de Mário Avelar, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Fernanda Lima

Tomado pelo feitiço
Que existe em Fernanda Lima,
De deusa o poeta a chamou.
O irado sol, lá de cima,
As orelhas lhe puxou:
Deusa só? Apenas isso?

De menino

"Que lindo! Parece de um menino!", ela disse quando o viu nu. E porque era a primeira mulher que se referia àquilo sem desdém, e até com entusiasmo, ele, sem saber como se portar, disse obrigado e começou a chorar. Como um menino.

Sede

A janela ficou aberta na tarde de verão, e a ameixeira, estendendo um galho até o jarro na mesa da sala, furtou um pouco de água das rosas.

Penugem

Primeiro distraidamente, depois com intenção e ritmo, alisou o pescoço dela e, em certo momento, notou que ambos imaginavam como seria se, em vez de ali, os dedos dele estivessem fazendo eriçar-se outra penugem, mais espessa e tão macia.

Sofá

Agora veio o castigo
Que há muito eu já merecia.
Durmo sozinho, comigo,
E me acho má companhia.

Soneto do corredor de biga e da jovem nobre romana

Vivi outrora uma vida
Que, de minhas mais de cem,
É a que lembrar mais convém,
Por ser a mais bem vivida.

Isso foi na Roma antiga.
Já faz tanto tempo que eu
Não lembro se era um hebreu
Ou um corredor de biga.

Só lembro que dei amor,
Maior riqueza de um pobre,
A uma patrícia formosa

Que por respeito e o pudor
Devidos sempre a uma nobre,
Chamarei aqui de Rosa.

Verbo e advérbio

Por muito tempo os dois se esqueceram do amor e, no dia em que o procuraram, descobriram que, cansado de esperar, ele havia aproveitado a carona de um verbo e de um advérbio e sumira definitivamente.

Um poema de Guan Daosheng, a "Dama Guan" (1280-1368)

"CANÇÃO DE TI E DE MIM

... Par assim nunca houve de amantes!
Faz de barro duas figurinhas o artesão
E logo parte ambas e volta a fazê-lo
Trabalhando o barro mistura outra vez
Te faz a ti e a mim me faz de novo
E assim é que
Agora tu estás em mim e eu em ti
Vivos a mesma cama partilhamos
Mortos uma mesma tumba."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Dezembro, 2009

Ousei olhar-te no rosto.
Sei hoje que não devia.
Que triste era o meu sol-posto
Diante do teu, que nascia.

Soneto do amor incomunicável

Difícil é compreender-te
Se quando dizes amar-me
Dizes sempre sem olhar-me
E sem que me deixes ver-te.

Difícil é conter a ânsia
De teu cabelo afagar
Se teimas em me afastar
E em ter-me sempre a distância.

Se queres ver-me feliz,
Reflete um pouco e me diz:
É justo que eu assim pene,

Sem sequer poder olhar-te
E não conseguir falar-te
Já nem mais pelo msn?

Bis

Amor, penso que já é hora
De tu me ressuscitares.
Devolve-me a vida agora,
Para outra vez a tirares.

O senhor

Depois de três horas de tortura, o Amor perguntou de novo: "Confessa! Quem é o teu senhor?" Minhas costas sangravam deliciosamente e eu me curvei para beijar a mão que segurava o chicote.

Gosto de maçã

Beijam-se como se fosse a primeira vez, ou a última. Os lábios se procuram com raiva, como se entre eles houvesse uma antiga desavença. Os dentes entrechocam-se, as línguas se atacam, se punem, como animais de diferentes espécies. Ele e ela parecem determinados a engolir-se. As mãos também se apertam, como se quisessem destroçar-se. É longa a batalha. Quando ela termina, as mãos se soltam, contrafeitas como se lhes tivesse faltado conquistar algum território, e nos lábios dele e dela há um gosto de maçãs machucadas.

Suprassumo

Preguiçoso, embora perfeccionista, ele já escreveu dois livros de poesia, cada um composto por quarenta e dois monósticos, e todo ano espera ser pelo menos indicado ao Nobel.

Olhos de cordeiro

Ele lhe dizia boa noite, só, com a sobriedade requerida pela boa educação. Olhava-a com olhos de cordeiro, sufocando o lobo que dentro dele queria urrar, enterrar as garras, morder, dilacerar. Dizia boa noite e esperava que num sonho dela caísse a máscara e finalmente ele se mostrasse como era, um animal trancado numa jaula, aguardando aquele momento único de distração da domadora, em que se atiraria sobre ela e revelaria que todo o tempo estivera se preparando para ignorar o chicote, arreganhar os dentes e eriçar todos os pelos, os dele e os dela.

Soneto dos deuses que perderam o poder

Com a influência há muito já finda,
Num velho a.C ou d.C,
Os deuses, sem saber por que,
Às vezes nos chamam ainda.

Sabemos, eu e você,
Como nossa afeição linda,
Que nos pareceu infinda,
Morreu, sem quê nem porquê.

Nós rogamos com fervor
A um desses deuses, o Amor,
O dom da ressurreição.

Ele tinha então poder,
Mas o usou para dizer
Só uma palavra: não.

Fernanda Lima

Estás ainda mais formosa.
O bem-te-vi, mal te viu,
Parou de beijar a rosa
E te chamou: Nanda, ei, psiu.

Um poema de Su Shi ((1036-1101)

"CRUZEIRO NO RIO YIN

... A montante corre direito e límpido
A jusante vai sinuoso, encrespado
Da barca pintada me inclino no espelho
E sorrindo pergunto: - Ei, tu, quem és?
Surge repentina uma carapaça de tartaruga
Que me transforma barba e sobrancelhas
E deste rosto faz cem vertentes leste
Momentos depois! - Eis-me inteiro outra vez."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Fernanda Lima

Fernanda Lima, guria,
O sol chegou lá do oriente
E fez a viagem somente
Para te dizer bom dia.

Bom dia

Bom dia a todos. A mim
Bastará um dia falho,
Um diazinho assim-assim:
Eu sei bem quanto não valho.

Aberração

Na literatura, não existe espécime mais disforme, aberratório e lastimável do que uma poesia prosaica.

Evocação

O sol a acompanhou pela calçada e, por um instante, ao fazer escorrer alguns fios de ouro pelos seus cabelos, evocou num homem a lembrança de uma cachoeira numa manhã de verão.

Aconchego

Talvez tivesse sido um passarinho, talvez o vento, talvez o homem que havia acabado de passar por ela. O fato é que, vendo-se de repente com uma pequena flor na mão, ela a levou ao colo, para protegê-la do frio da manhã.

Único

Quando o grande amor entrou na sua vida, ele não sabia se havia sido bom ou ruim não ter aprendido nada com os anteriores, a não ser a evidência de que nenhum deles era o verdadeiro.

Anúncio

Se não temesse o escárnio dos vizinhos e o rigor de alguma postura municipal, iria ao parque do bairro e circularia entre as árvores com uma tabuleta: "Preciso de amor!"

Entre a nuca e a boca

Sempre que passa pela mesa dela, sopra-lhe a nuca. Faz isso há uma semana já e, desde o primeiro sopro, ele e ela não se disseram uma palavra, embora há três anos trabalhem na mesma sala e antes conversassem com frequência e agrado. Os dois sabem que há alguma coisa em andamento no enredo deles e pressentem que esperar por ela será tão bom quanto tê-la. Entre a nuca e a boca a distância vai ficando menor, a cada sopro.

"Sou como aquele que durante muito tempo", de Robert Louis Stevenson

"Sou como aquele que durante muito tempo aguardou,
Perscrutando com agudo olhar o tempestuoso mar,
Algures, num promontório, observando as velas,
Como se procurasse entre todos os barcos o último, o esperado;
E vela após vela, o seu coração incendiado de alegria,
Apagava-se cruelmente, até que um dia
Um barco, com a ansiada bandeira no seu mastro,
Surgiu vivamente e em porto firme ancorou;
Mas não, a amada não vinha, tinha morrido.
Ele não voltará ao promontório; já não voltará a ver o mar
Com incontáveis veleiros, vela após vela, confundindo
Os seus olhos e troçando da sua espera. Fatigada cabeça,
Descansa agora; fecha os olhos; pois nunca mais
Alimentarei esperanças, nem me afligirá a angústia.

Por amor assim esperei; e por amor
Ansiosamente retesei os meus sentidos e esperei;
Esperei por ela, ensaiando a minha canção;
Até que nos distantes céus de chumbo
Uma ave dourada esvoaçou ao longe e fugiu
Sem rumo sobre a água diante de mim;
E com as mãos estendidas vi a resplandecente ave que fugia
E esperei, até cair morta aos meus pés.
Ó dourada ave destes céus de bruma
Quanto tempo procurei, com os meus olhos cansados,
Procurei, ó pássaro, a promessa do teu voo!
Mas já amanheceu, a manhã já morreu,
O dia veio e partiu; e uma vez mais eis a noite
Sobre a minha vida solitária, imensa e livre."

(De Poemas de Robert Louis Stevenson, tradução de José Agostinho Baptista, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 18 de maio de 2014

Uma esperança

Se o amor tem uma esperança
ainda que pouca
ainda que mínima
quase nenhuma

Ele enfrenta
as adversidades
as catástrofes
as calamidades

Se o amor não tem uma esperança
ainda que pouca
ainda que mínima
quase nenhuma
ele inventa uma.

Soneto do tiozão na esquina

Uma mulher acenou,
Mas ele finge não ver.
Há muito tempo passou
Sua estação de colher.

Ele muda de calçada,
Mas outro convite vem
E, com ele, uma gargalhada:
"Não quer dar uma, meu bem?"

Enquanto vai se afastando,
Todas vão dele zombando.
Uma o chama de titio,

Outra de vovô. Distantes
Estão os tempos radiantes
Do sangue quente e do cio.

Anfiguri (para o Xico Sá)

Nadando no rio Tâmisa,
Num dia de fria brisa,
Eu roguei por uma câmisa
Mas deram-me uma camisa.

A echarpe

Nua diante do espelho, coloca a echarpe e sorri ao compará-la com os cabelos. Desce os olhos devagar, molemente, para os fios embaixo do umbigo, e sorri de novo: combinam. Tudo correrá bem hoje, se o homem não for um daqueles que só fazem certas coisas no escuro.

Como?

Falar de amor como, se as
Imagens já se gastaram,
Goraram as juras e as
Palavras já se cansaram?

Um haicai (para Mariana Ianelli)

No palco da mata,
As palmas batendo palmas
Ao vento acrobata.

Estoque

Tudo que a tristeza dá
Terei sempre ao meu dispor.
O Amor é meu provedor
E nada me faltará.

"Espátula", de Eugenio Montale

"Tu crês que o pessimismo
tenha realmente existido? Se olho
em volta, dele não encontro vestígio.
Dentro de nós, ademais, nem uma voz
que se queixe. Se choro é o contraponto
para enriquecer o grande
país de cocanha que é o amanhã.
Já bem raspamos com a espátula
cada erupção do pensamento. Agora
todas as cores exaltam nossa palheta,
salvo o negro."

(De Poesias de Eugenio Montale, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicação da Record.)

Fernanda Lima

Para tê-la bem na pele
E lembrá-la sempre, o Amor
Instruiu o tatuador
A esmerar-se no "f" e no "l".

Parvoíce

Quando o coração reuni,
E a alma, para entregar-vos,
Sei hoje que procedi
Como procedem os parvos.

Parcimônia

Não pensa nunca em orgia.
Poder o rosto pegar-lhe,
Poder a boca tocar-lhe,
Beijá-la já bastaria.

A amiga da mãe

Quando a amiga de sua mãe, depois de conversar com ela por duas horas, se levantou do sofá e se despediu, o garoto de treze anos esperou que morresse no corredor o eco dos seus saltos altos e das gargalhadas roucas, e assim que a mãe, voltando, foi para a cozinha, ele se sentou no sofá e, passando a mão no ponto ainda quente onde a mulher estivera sentada, sentiu uma inquietação, uma intuição de sol e mar, um marulho nas entranhas e uma agonia ali onde sua calça havia raivosa e repentinamente se intumescido.

Ouro sobre o azul

Gostaria de ter a mão levada pela cachoeira dos cabelos dela até aquela elevação abrupta, aquela curva repentina, e, como um menino na montanha-russa, prender o ar, engolir o susto e gritar de prazer com o solavanco e a passagem rápida - ou deixar a mão ali, onde os longuíssimos fios loiros assumem arredondadamente a forma da calça jeans, derramando ouro sobre o azul.

Certezas

Que todo sonho definha,
Que toda vida perece,
Que toda glória é mesquinha,
Que tudo morre e apodrece.

Machado mastigado

Bentinho agora não mais
Tem afeto a Capitu.
Segundo os livros atuais,
Gama nela pra chuchu.

Vocação

Mesmo tentando poupar-nos,
E dure o tempo que for,
Mesmo sem querer matar-nos,
O amor nos mata de amor.

Cotação do dia

Sou uma contradição em termos: uma imensa insignificância.

Soneto do humorista de uma piada só

Eu sou um velho humorista
Que em década bem passada
Por uma original piada
Fui tido como um artista.

Foi uma breve vitória,
Durou não mais que três meses.
Contada depois, mais vezes,
A piada soou simplória.

Eu igual já a contei,
Eu já a modifiquei,
Não sei mais como a contar.

E ao público que me fita
Repito a pergunta aflita:
Vocês não vão gargalhar?

Um poema de Bai Pu (1227-1306)

"Encontros bastantes e foram felizes
É muita aflição? Sentimentos
Se embrulham - pacotes de cânhamo
Passeios sob o muro do Leste por acaso
Ajudam, mas pouco. Lamento. Ah! O frio. Límpida
A lua e contra o seu amarelo a flor."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 17 de maio de 2014

???

Que paz haverá, que calma,
Se o amor e a rubra paixão
Te açoitam o coração
E te martirizam a alma?

Estratagema

Beijar-te sempre depressa, para não privar-me senão por alguns segundos do som mágico de tua voz.

Aos tubarões

Sem esperança é melhor

Fechar a cortina
o micro
o celular
os ouvidos com tampões
e refugiar-se no sofá
com as pernas para cima
como se a sala alto-mar fosse
e estivesse sitiada por tubarões

Sem esperança é melhor

Sem esperança se pode ficar
assim levado pelas ondas
sem sonhos nem aspirações

Mas se uma gaivota gritar
se uma brisa soprar
e houver no grito e no sopro
uma insinuação de amor
ah com que bons ouvidos a ouviremos
e como nos atiraremos
rapidamente aos tubarões.

Revisão

Qual há de ser o procedimento
para repor o amor
em funcionamento
se há muito já
na sua produção
não entra sequer
em cogitação
o uso daquele
antigo equipamento:
o sentimento?

Soneto do amor sobre o qual recai a suspeita de bruxaria

Amor, que tens que me impele
Assim com tanta paixão
A beijar-te a boca, a mão,
Tudo que é teu, tua pele?

Amor, que tens que me deixa
Tão docemente domado
Que mesmo por ti pisado
Não faço nenhuma queixa?

Amor, me diz, o que é isso,
Que bruxaria ou feitiço
Tu lançaste contra mim?

Amor, que fazes comigo?
Além de tudo, o castigo
Desta poesia ruim...

Nova literatura

Todo dia, sob o auspício
Da falsificação da arte,
Alguém esculhamba o hospício
Do alienista Bacamarte.

Gaveta

Toda manhã, antes de sair para o trabalho, quando vai pegar a calcinha na gaveta, ela faz a mão ir até o fundo, apalpa por alguns instantes o dildo, suspira, diz-lhe palavras amorosas, chama-o pelo nome que só ela sabe, depois o camufla de novo e, antes de fechar a gaveta, implora a ele que a espere, dá-lhe três beijinhos e lhe promete voltar logo.

Gatos

É a terceira noite, já, que ela acorda com as escaramuças amorosas dos gatos na rua, com os miados curtos, longos, entrecortados, unidos, mesclados, que lhe arrepiam a nuca. Como na primeira e na segunda noites, ela puxa as pontas do travesseiro para os ouvidos e tenta mergulhar novamente na escuridão do sono. Parece que vai conseguir desta vez. Os gatos silenciaram e ela já ouve, ao longe, o apito do guarda-noturno. Seu corpo, que já começara a se retesar, vai se distendendo aos poucos. Ela suspira, de alívio. Mas logo os sons do amor voltam e os miados se tornam agudíssimos, longuíssimos, aflitíssimos, agônicos. Ela desiste de ignorá-los e agora os acompanha com os nervos eriçados. Faz ainda uma última tentativa de resistir, mas, assim como na primeira e na segunda noites, acaba fazendo a mão deslizar, nervosa, chegar ao ventre e, ansiosa, descer um pouco mais.

"Shiloh, um réquiem", de Herman Melville

"Flutuando levemente, descrevendo círculos,
   Pairam as andorinhas
Sobre o campo em dias nublados,
   O campo da floresta em Shiloh -
Sobre o campo onde a chuva de abril
Confortou corpos ressequidos em sofrimento
Ao longo da pausa da noite
Após o combate de domingo
   Em torno da igreja de Shiloh -
A igreja solitária, de troncos feita,
Que para tantos ecoou lamentos de despedida
   E sinceras preces
   De adversários moribundos ali se confundiram -
Adversários ao amanhecer, amigos ao crepúsculo -
   Fama ou país pouco lhes importa:
(Tal como uma bala pode enganar!)
   Mas agora no solo jazem
Enquanto as andorinhas sobre eles flutuam,
   E o silêncio se instala em Shiloh."

(De Poemas de Herman Melville, tradução de Mário Avelar, publicação da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Deveria ser simples

Deveria ser simples, como fechar um escritório na sexta à tarde para voltar só na segunda de manhã. Deveria ser tão corriqueiro que as mãos dessem conta de tudo, sem incomodar o cérebro. Mas o amor, acumpliciado com o coração, se recusa a ser fechado e estrebucha como um louco que tentam enfiar em uma camisa de força.

Pode ser triste um sábado

Pode ser triste um sábado, se todos os ideais, mesmo os menores, se acumulam como trapos de chão pelos cantos da casa, se falta, da canção que se quer rememorar, uma nota, um som, uma frase, e se a palavra fracasso nos acompanha em cada gesto, até na simples e gorada tentativa de reinventar certa manhã em que o sol, para o sofrimento futuro de nossa memória, brilhou sobre um rosto que teima em não se mostrar como naquele dia, como se apenas naquele dia tivesse existido - essência do fulgor e da vida.

Fernanda Lima

Fernanda Lima, guria,
Se o sol pedir por favor
De volta o brilho e o calor,
Você lhe devolveria?

Varal

Quando ela foi recolher a roupa no varal, notou que na parte de baixo da calcinha branca uma abelha zumbia, esvoaçava e voltava a zumbir, sempre no mesmo açucarado ponto. Uma mornidão, como se o sol do quintal a estivesse lambendo, chegou ao seu ventre e começou a descer lento, como se a abelha houvesse desistido da calcinha e estivesse agora na calça jeans que ela vestia, e zumbisse, e esvoaçasse, e avançasse e recuasse, buscando um pouco mais de embriaguez no ponto onde a mão ansiosa já acariciava o zíper e se dispunha a abri-lo.

Permissão

Podes falar alto, já.
As flores não têm ouvidos,
As velas não têm sentidos,
O morto não saberá.

Afeto

Tu sabes, tanto quanto eu,
Que vive só uma vez,
Uma em um milhão, talvez,
Aquilo que em nós viveu.

Eram três

Um deles me apontou ei você
e enquanto minhas irmãs fugiam
eles me pegaram
e me levaram para o mato

Eram três
e eu pensei em fugir também
mas o que tinha me chamado
me puxou e mandou vem
vem senão eu te mato

Eu obedeci
me deitei no chão
e cada um
teve a sua vez

Quando me levantei
o que tinha me chamado
me atirou de novo ao chão
e se atirou de novo
em cima de mim

E como se estivesse
prevendo o que eu seria
a cada estocada que dava
me dizia sua puta
e puta sua puta repetia

Eram três homens
naquele dia

Depois perdi
a noção dos homens
e dos dias.

Hoje, sábado

No entanto almoças e jantas
E em riso os dias consomes.
Que te importam minhas fomes,
Que são de amor e são tantas?

O suspiro

Dois dos sete arqueólogos ainda duvidavam de que aquela fosse a ossada do Amor. Estavam apresentando seus contra-argumentos quando do feixe de ossos saiu um suspiro triste que eles, embora quisessem, não puderam considerar como um lamento da brisa nas árvores próximas da escavação.

Quando anoitecer

Quero o que tiveres de mais salgado e pecaminoso. Embora maus, sei fazer versos líricos e conheço três floriculturas. Posso oferecer-te poemas e rosas ou, se preferires, um gato de espécie exótica. Andarei, se quiseres, de mãos dadas contigo no parque e falaremos de literaturas e filosofias, enquanto houver sol. Mas, quando anoitecer, puxa-me para a grama. Puxa-me, ou puxo-te eu. Puxa-me e ensina-me tudo que tiveres aprendido nos livros de pornografia. Ensina-me, ou ensino-te eu.

Críticos

Se aparecer à tua janela um pássaro com um papelzinho, não será uma mensagem minha. Nem os pássaros aceitam mais os meus versos.