sábado, 28 de fevereiro de 2015

Soneto daquela que para nós é mais que uma mulher

Olhar-te me bastaria,
Ó santa do meu altar.
Nem se viesses a implorar,
Nem assim te tocaria.

Como, me diz, poderia
Eu o teu corpo tocar?
Toca-se por acaso o ar?
Toca-se a alma da poesia?

Não, minha santa, eu jamais
Sequer pensei em tratar-te
Como às mulheres normais.

A uma mulher corriqueira
Ninguém entrega sua arte,
Sua alma, sua vida inteira.


Cartilha

Analfabeto sexual
de A a Z
sempre na hora H
se enrosca no ponto G.

Na mosca

Como Fócrates previu
(E Fócrates era soda),
O sexo ainda está na moda,
Porém o amor já saiu.

Éden

De todos os pecados
o original
é o mais plagiado.

Cotação da tarde

19h05, hora de fechar a lojinha. Foi um dia comum. Como vem fazendo há dois anos, o amor nos matou com sua indiferença. Não passou nem perto daqui. São assim as mortes que ele nos impõe: parciais, para que em todo fim de tarde nos queixemos e digamos que com ele, ah, com ele poderia tudo ser tão diferente. O gozo do amor vem da nossa desgraça. O nosso gozo vem de fazê-lo gozar.

Art. 1º

Todo aquele que declarar interesse num corpo, sem ter no coração um fiapo de poesia, será considerado mais indigno e repulsivo que um porco, e lhe será destinada como ração a baba gosmenta dos sapos.

Colheita

Despeito, sim. Inveja. Rancor. Foram os frutos que colhi na árvore do  amor quando o sol se foi e eu fiquei sozinho no parque. Para minha irrisão, a brisa me traz em cada um dos seus sopros o eco do canto dos vitoriosos. Malditos! Exaltam a conquista do amor como se narrassem as peripécias da caçada de um búfalo, até o momento em que ele, no centro da cena, estrebucha entre síncopes de sangue.

Unforgettable

Mulher viciada, que inesquecível o dia em que me visitaste. Ficaste menos de duas horas, nunca voltaste, mas até hoje meu gato, quando lhe aliso o pelo, me pede afagos que eu não posso lhe dar.

Se

Se William Shakespeare estivesse vivo, poderíamos talvez vê-lo entrevistado num dos segmentos do programa do Jô Soares. O outro segmento, o principal, seria naturalmente ocupado pelo rei Roberto Carlos. Se este estivesse ensinando canto aos italianos em San Remo, a vaga seria de Luan Santana, que elogiaria o desempenho de Jô no acompanhamento, chamando-o de rei do bongô. Jô aceitaria constrangido. Todos nós somos testemunhas de sua modéstia. Se alguém comparar Jô a Shakespeare, ouvirá: "Menos, menos. Igual ao Saramago, se tanto."

Sonhos

Eu gostaria de ser um marinheiro bem rude, um sanfoneiro bem prosaico de voz esganiçada, um caminhoneiro bem grosseiro, um dançarino de aluguel disposto a, depois do expediente na academia de dança, ganhar um dinheirinho extra fazendo um gracioso encaixe de pélvis numa cama de motel. Eu gostaria de ser um desses tipos pelos quais você suspira enquanto a mão direita diz à esquerda que espere, porque a vez dela chegará.

Paradoxo

Se tudo ficou mais fácil com a internet, por que então é preciso reinicializar o computador? Reiniciar não bastaria?

Arrepio

Fã de Sade e Masoch, ele sentiu um arrepio erótico agora há pouco ao ouvir, no meio de uma notícia policial, a expressão tiro de pistola.

Lógica

Ser eu conseguisse ver um filme de Gláuber Rocha até o fim, talvez chegasse a gostar dele.

Sábado, 28/2, 11h11

Hora de ir à feira, fingir que estamos vivos. Alardearemos nossa presença, esperando que alguém vá dizer ao amor que não estamos tão mortos quanto ele queria. Comeremos um pastel, como se fôssemos insensíveis e invulneráveis, e cuidaremos para que nossa gargalhada soe espontânea, à prova de todos os detectores.

Ainda

Ainda se escreverá a história de paus de selfie que reinaram por um dia e hoje andam atirados em cantos que nem a vassoura nem as baratas alcançam. E também se relatará a desdita dos selfies que, puxados num velho arquivo, provocarão perguntas como: quem é essa que está aí comigo?

Cotação do dia (2)

Há por aí alguém que, tendo descoberto afinal que somos um gato sonso, nos dê veneno como se fosse um biscoito molhado no leite?

MQ e MB

Manoel de Barros e Mario Quintana são dois daqueles passarinhos que mereciam estar nos contos de fadas, bicando migalhas nas mãos da Branca de Neve e cantando para a Rapunzel.

Cotação do dia

Morreremos hoje outra vez. Estamos acostumados. Há dois anos não fazemos senão isso.

Prece

Amor amado, gentil,
Querido entre os mais queridos,
Te poupem de março os idos
E as noites frias de abril.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Soneto de como se há de implorar pelo amor (versão final)

O amor há de ser querido
Como se uma bênção fosse,
A graça maior, mais doce,
O paraíso perdido.

Ele há de ser desejado
Com fé e com devoção,
E com fervor e aflição
Ele há de ser suplicado.

De joelhos nós ficaremos
Diante dele e imploraremos
Que como servos nos tenha

E que até o último dia,
No tormento ou na alegria,
Como servos nos mantenha.

Esperança

Te busco no face. É a última tentativa. Sempre me bate mais forte o coração quando aperto a tecla em "sete ou oito pessoas que também curtiram". Já vês que continuo tolo.

Setenta e seis

O cansaço pesa
nos ombros
nas mãos
nas pernas
nas juntas
no coração
árvore tola
e incauta
onde se penduraram
as esperanças
hoje defuntas.

"Manifesto sessentão", de Sergio Lara

"Homens de sessenta, uni-vos!
Ide em horda ensandecida,
tomar na bruta,
fábricas, chancelarias,
igrejas, quartéis,
shoppings e bordéis

A não ser o estertor de
humilhante vida
nada a perder,
à luta, pois,
sem temer!

Abjurem netos, passes grátis
do metrô, esmolas da previdência,
receitas de lexotan, dentaduras,
cursos vagos de Tai-chi-chuan

Morram (a doce morte)
se preciso for,
pelo essencial direito,
da vida, do vinho, da canção, do amor..."

(Do livro Não houvesse tabaco e outros poemas", publicado pela Editora Scortecci.)

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Amigo

O amor é generoso. Sei do que falo. Ele me salvou de um câncer, há alguns anos, só para não se privar de sua brincadeira favorita, uma em que ele me espetava com alfinetes. Continuamos brincando até hoje.

Mago

Não me incomodaria ser Paulo Coelho por um mês. Andar de limusine, pegar uma praia mediterrânea, passar trinta dias sem pensar em como é ingrata a literatura.

Aqui fora

Lá dentro, no banquete dos comensais da literatura, explodem risos, rolhas, exclamações. A música e as luzes parecem ter enlouquecido. Daqui de fora, atiramos pedras e insultos. Já há uma hora estamos assim. Fingem não nos ouvir. Têm agora a desculpa de que a festa chegou ao auge e nem lá dentro se entende o que os convidados dizem uns aos outros. Continuamos lançando pedras. Talvez enfim alguém se indigne e venha aqui fora. Estamos dispostos a dialogar. Pode ser que ainda não tenham acabado as carnes e o vinho.

Estatística

Morrer de amor é uma asneira que quase ninguém mais hoje comete. Só três ou quatro, em dez.

Engraçadinhos

Gosto daqueles defuntos zombeteiros que se beliscam para ver se estão mortos.

Uma palavra, um nome

Uma palavra lida quase sem querer, mais entrevista que vista, pode mudar uma tarde. Uma palavra, geralmente um nome, pode mudar toda uma vida.

Soneto da última hora

É hora de me desfazer
De tudo quanto reluz,
De tudo quanto seduz
E me estimula a viver.

É hora de reconhecer
Que onde eu a esperança pus
Há muito tempo já a luz
Se dispensou de acender.

É hora afinal de admitir
Que tudo é pó e ilusão
E é tempo já de partir.

E, enquanto posso falar,
É hora de implorar perdão
E é hora de perdão dar.

Lady Macbeth

A tarde ainda não acabou de assassinar os seus pássaros, mas a noite, sua cúmplice e amante, já chega com o pano para sufocar todos os pios e apagar todos os vestígios de sangue.

Gentileza

Morrer é um favor que a qualquer momento podemos prestar aos nossos contemporâneos.

Soneto do amor estilhaçado

Em mil pedaços o amor
Se arrastava desmembrado,
Pedindo ao vento o favor
De ser ao lixo soprado.

Lembrando o terno passado
E seus dias de esplendor,
Abaixei-me, desolado,
Quis seu corpo recompor.

Fui os pedaços juntando
E só me detive quando
Rindo o amor me censurou:

"Todo esse circo para quê?
Eu sei, e também você,
Foi você quem me matou."

Jornal Nacional

Se um dia ouvisses meus versos com essa devoção com que ouves o William Bonner dizer boa noite.

Cotação do dia

Podemos até escrever mal, desde que um dia, ou dois, tenhamos escrito bem. Os leitores aceitam a decadência, mas não toleram que alguém lhes diga que escreve mal por princípio.

Abobrinha do dia

Morrer é uma dessas atividades que os vivos costumam deixar para a última hora.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Soneto do amor que sabe quanto deve

Curioso é como chegaste
Sem nenhuma indicação,
O número adivinhaste
E foste abrindo o portão.

Curioso é como acertaste
Sem nenhuma hesitação
E os vinte degraus galgaste
Rumo à minha solidão.

Curioso é como sabias
A cota exata de dias
Em que por ti esperei.

E para cada um trouxeste
Um beijo, e todos me deste,
Beijos que um a um eu cobrei.


Frases de Valeria Luiselli

"Ouvi alguém dizer, certa vez, que a personalidade é uma série contínua de gestos bem-sucedidos."

"Conheci há alguns meses uma prostituta, e outro dia ficamos no meu terraço como namorados, e fiquei acariciando sua cabeça até que saiu o sol. Dupla felicidade, dormir com uma prostituta. De algum modo soube que em um futuro me lembraria  desse instante e saberia que foi o único que justificaria todas as minhas histórias de amor, e que todas as outras mulheres seriam para mim uma tentativa de voltar para aquele terraço. Acho que você não entendeu nada de nada."

"É devastador o efeito do riso: capaz de destruir qualquer coisa que se pronuncie sincera, de invertê-la e mostrar seu lado ridículo."

(Extraídas do romance Rostos na multidão, tradução de Maria Alzira Brum Lemos, publicado pela Alfaguara.)


A compadecida

Um dia talvez eu revele aqui o nome de quem me matou. Foi há dois anos, já, embora o punhal esteja em meu peito, ainda, e o sangue goteje. Vocês não acreditarão. Como? Ela? Não pode ser. Uma criatura doce como ela. Doce?, eu direi. Vocês não a conheceram, então. Ela não é uma criatura doce, é uma criatura muito doce. Faz dois anos que me matou, e até hoje não ligou uma vez. Diz que é para não me incomodar. Os mortos precisam descansar.

Navio

Sinto-me como um navio à deriva, já quase atingindo a moldura e a inexistência. A mão do pintor (no caso uma pintora) me reapanha e, agora com tinta mais forte, me leva outra vez ao centro da tela, onde ficarei preso até que o bolor e a clemência do tempo me apaguem.

Dona do mundo

Resolveste
tomar posse do mundo e
começaste

Puseste a mão
no sol
é meu
disseste
no mar
é meu
na lua cheinha

Te ofereci
a mão

Não a pegaste
não disseste
é minha.

Mensageiro

Enquanto escrevo para ti, o pássaro que te leva todos os dias a carta (por que abominas o e-mail?) adverte-me para que me apresse, porque há indícios de chuva e não quer, além de tudo, pegar uma gripe por tua causa. Queixou-se mais uma vez do teu comportamento. Disse que ontem, talvez porque não te agradassem em qualidade e em quantidade meus adjetivos, tu perguntaste se por acaso ele não tinha deixado cair uma parte da mensagem. Talvez ele chegue um pouco atrasado hoje. Estou molhando as palavras em ouro, para compensar-te, minha querida encrenqueira.

Voltei, Valeria

Retomei teu Rostos na multidão, Valeria Luiselli. Intuição de leitor, mas principalmente sorte. Arrepio-me quando penso que poderia morrer sem levar, para onde for, se é que se vai para algum lugar quando se morre, a beleza da tua poesia, o humor do teu menino médio, a provocação de teus mistérios e tuas suposições. Sou um leitor velho já, Valeria, e já não imaginava que a literatura pudesse me dar mais um presente raro, como esse teu. Bravos, menina. Que travessura fizeste. É isso que teu livro é: uma deliciosa travessura. Quem, como eu, já passou da fase e não tem mais corpo para travessuras, pode fazer o que faço: aplaudir-te. E, se te chamo ali em cima de Valeria Luiselli, é porque chamaria Dante de Dante Alighieri e Emily de Emily Dickinson. Mas, aqui entre nós, te pisco e te sorrio, menina Valeria. Como conseguiste fazer isso? Não, não me contes. Deixa este velho bobo continuar procurando.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Fechando a loja

Ir fechando a lojinha: 19h15. Foi razoável o dia. Vendemos algumas quinquilharias, o que é bom quando nos dispomos exatamente a isso: vender quinquilharias. Um brinquinho, um broche, um anel. Depois que a amada escarneceu da nossa angústia poética, chamando-a de bijuterias, é uma sorte alguém ainda se interessar por elas. Não nos façamos de rogados. Continuemos a expô-las nas prateleiras, ainda que jamais vá entrar na loja aquela que as inspirou.

Menos

Expressar tudo "artisticamente" é uma lástima. Às vezes, deve-se simplesmente escrever que o homem atravessa a rua, deixando de lado a tentação de dizer que às suas costas começam a se formar nuvens ameaçadoras, prenunciando uma tempestade tropical. A literatura anda muito preocupada com a possível adaptação para o cinema e tenta desavergonhadamente facilitar o trabalho dos roteiristas. Deixemos o homem atravessar a rua.

Retoques

Sempre te projetei muito melhor do que jamais foste. Teus dedos, que logo depois viriam a me estrangular, eu chamei de borboletas, num poema que atiraste ao lixo com os cotonetes usados.

Aquele mau-caráter

O amor sabe que estamos falando dele, mas o que é que ele faz? Telefona? Liga? Só passa rapidamente as mãos pelas orelhas em brasa e diz: calor hoje, né?

Chamando o táxi para as putinhas

Olho a chuva através do vidro e imediatamente, como solícitas putinhas, começam a ocorrer as metáforas. Daria tudo para olhar a chuva através do vidro. Só. E ver simplesmente isso, por mais interessantes que sejam as putinhas, principalmente aquela de cabelos escorridos.

Perfil

Sou levemente vegetariano, ligeiramente surdo, compreensivelmente apolítico, fracamente concupiscente, toleravelmente antirreligioso, tolamente sentimental e completamente idiota.

A pergunta no jardim

Todo dia ela gasta duas horas regando as plantas. Quinze minutos bastariam. Conversa com cada uma delas, enquanto cuida para que a água se derrame devagar, quase gota a gota. Usa uma jarra de vidro. Parece-lhe adequada. Enche-a várias vezes e, ao enchê-la, para não parecer que privilegia as plantas, conversa com ela, a água e a torneira. Tudo que faz é assim, com amor. A mãe já lhe dizia, quando ela era menina, que esse temperamento a faria sofrer muito. Ela não se vê como uma sofredora. A irmã diz que ela é mais do que isso, é uma sonsa. É isso que ela pergunta agora à pitangueira: você me acha sonsa, querida? É uma pergunta que faz todos os dias. Nenhuma planta responderá. Todas gostam dela, todas a amam, justamente por ela ser assim bobinha, assim boazinha, assim sonsa.

Poetinha

Entre tantas outras coisas, Vinícius de Moraes era um poeta envelhecido em tonéis de carvalho.

Aberração

Quem ama desanda a ver arcos-íris nos momentos mais bizarros. À noite, especialmente.

Cartilha

O poeta há de aprender uma lição: não profissionalizar as palavras antes do tempo. As palavras também devem ter sua adolescência.

E no entanto ainda

Todos os ministérios
serão derrubados
todos os mistérios
decifrados
todos os homens sérios
desmascarados
e tu estarás ainda
com essa cara de místico fervor
na ponta da escada
gritando à lua em vogais berrantes
que não existe nada
nem existiu antes
minha loura amada
meu pálido amor
nem existirá
nada nada nada
que valha mais
que o amor
minha querida
que o amor
minha amada
que o
que o
que o.

Bolero

Sei por que não queres mais me ver - na verdade, não queres que te veja. Não mora mais em teu corpo a mulher a quem dei a minha alma.

Como eles querem

Se eu fosse mulher, viveria para flagelar os poetas. É isso que eles querem, para liberar o pardal que têm no peito e chamam ora de cotovia ora de violino.

Mentira

Se você sofreu por amor e ainda está vivo, desculpe: você é um farsante.

Seleção

Se você é um desses viventes que andam por aí, sinto muito. Não tem papo. Só respeito os mortos, e não todos. Só os que morreram de amor.

Honra ao mérito cultural

Ela andava com rapazes promissores: futuros poetas, cineastas, pintores. Um dia, assim do nada, casou-se com um milionário quarenta anos mais velho. Começavam aí décadas de comovente mecenato. Ela teve vários filhos, curiosamente diversos - e todos artisticamente talentosos.

Devolução

No bilhete que anexou aos objetos devolvidos, o amor me disse que nada do que vem de mim é presente, é tudo passado e embolorado.

Talião

Porque amo demais e já não tenho idade, Deus castigar-me-á com uma mesóclise daquelas.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Nome

Tu já nasceste com o dom
De espezinhar o meu eu.
Teu nobre nome e o seu som
Me gritam: és um plebeu.

Pouco

Por mais obcecados que pareçamos estar com a literatura, sempre lhe deveremos algo.

Soneto dos agrados que fizemos ao amor

Ao amor demos valia
E ao fazer-lhe a cotação,
Modificando o padrão,
Cremos que mais merecia.

E achamos que dar-lhe o dia
Seria pouco se não
Lhe déssemos com a outra mão
A noite e sua magia.

O dia e a noite assim dados,
Julgamos que pelo amor
Seríamos recompensados.

Tanto tempo já passou...
Por certo o amor desdenhou
Todos os nossos agrados.

Balanço

Minha vida não vale um haicai de Bashô.

Freguês

O leitor está sempre certo, mesmo quando olha para o nosso coração, lambe os beiços e diz: me pesa e me embrulha esse bofe.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Mulher gorda no sofá, vendo o Oscar e comendo pipoca

Ela não nos deu nem um sinal. E por que daria? Ela há muito perdeu nosso endereço e, quando alguém diz nosso nome, pergunta: quem? No entanto ela sabe o nome dos concorrentes ao Oscar e torcerá por todos. Cada um deles lhe lembra um tipo que já figurou na sua lista, como borboleta espetada num álbum. Ela conhece todos os nomes de atores - do A de Adalberto ao Z de Zoroastro. E, se o concurso fosse de cantores, também teria um preferido. E, se de marinheiros, idem. Verdade que nunca chegou a ter um George Clooney na lista, nem um Roberto Carlos, nem um Almirante Nelson. Porque sempre lhe faltaram algumas moedas, aposta há muitos anos em coadjuvantes, mas não diz isso a ninguém. Seu poeta predileto é J.J. Cunegundes, o Bode, também conhecido como Patativa do Agreste.

Cruz

Quando não estou escrevendo, estou pensando em escrever. A poesia não é um amor obstinado, é um vício tormentoso.

Facebook

Flertemos, pois, e nos amemos com toda a sandice de que o amor é capaz. Proclamemos tudo que o coração nos ditar. Isto aqui é só o facebook, gente. Se chorarmos depois, que seja na vida real. Aqui é o lugar das fantasias.

Da utilidade de um poeta

Que um poeta sirva ao menos para nos fazer um agrado de vez em quando - ainda que só com palavras.

Etiqueta

Nunca se deve desejar a uma pessoa jovem muitos anos de vida. Para elas, é uma ofensa As pessoas jovens, entre suas presunções, têm a de se sentirem imortais.

Aquele

Quando me aproximo, as pessoas se afastam. Sou aquele doido que, se deixarem, desandará a falar de amor como se amor fosse uma descoberta que tivesse acabado de patentear.

Perdão, Valeria

Desisti de ler Rostos na multidão, de Valeria Luiselli. Ela fragmentou a narrativa de tal forma que me perdi completamente. Já não sei quem faz o quê, nem quando, nem onde. Venho notando essa deficiência em mim. Mais de dois personagens na trama me confundem. Torno-me cada vez mais um ser que sente, só sente. O raciocínio vai me abandonando. Devo isso ao amor e às torturas que ele me vem impondo durante a vida toda, em seus cárceres. Ponho de lado qualquer texto, se uma de suas dez primeiras palavras não for amor. Viciei-me nisso, não tenho mais como recuperar-me. Não quero. Não quero. Que fique registrado. Não quero. O amor matou tudo que havia de racional em mim. Desculpe, Valeria. Como leitor, sinto que, abandonando pelo meio o seu livro, estou regredindo à era dos trogloditas. Só sei grunhir, e uma palavra me basta e me define: amor. Escreva um livro, Valeria, em que a palavra amor esteja em cada linha, e também nas entrelinhas, e eu o acharei magnífico - como seria este seu, se não fosse tão claramente escrito para adultos.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Cotação da noite

20h38. Fechar o escritório mais cedo, hoje. Se o amor nos mandar mensagem, nós a leremos amanhã. Já a estamos esperando há dois anos, por que viria justamente agora? O que o amor sabe fazer melhor é fingir-se de morto. Deixá-lo fingir. A ele compete fazer isso, a nós compete aceitá-lo como é. O amor será sempre o nosso defunto mais querido.

Tanca (versão final)

Um pássaro, ou era
Somente a ternura ausente
Que súbito viera?
Um trino, ou só a ilusão
Com a mão além, no violino?

Cotação do dia

Temos um caso antigo com a Morte. Por nós, deixaríamos para lá. Mas ela, fiel, nos telefona em ocasiões importantes, nos faz agradinhos, manda bombons e livros, nos conforta e nos consola e diz que nunca nos esquecerá, até o último de nossos dias.

Uma frase de Valeria Luiselle

"É assim que funciona o sucesso literário, pelo menos em certa escala. Tudo é um rumor, um rumor que se reproduz como um vírus até se transformar em uma afinidade."

(Do romance Rostos na multidão, tradução de Maria Alzira Brum Lemos, publicado pela Alfaguara.)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

23h00

Hora de fechar o escritório. Dormir. Se algum poema retardatário chegar, que espere até amanhã. O que têm os poemas a dizer, afinal, que já não tenham dito? Sempre o mesmo: o amor fere, o amor mata. E, no entanto, estamos aqui, aqui continuamos, pregados na ridícula cruz de nosso prosaico martírio. Nossos lábios têm vergonha de nós. Tanta servidão nós os obrigamos a transmitir diante de um sentimento que elevamos à condição de vilão, quando ele, no fundo, tirando os exageros poéticos, consiste somente em arfar e resfolegar.

Lista

Se eu fosse mulher, também
Me daria aos marinheiros
E aos rudes caminhoneiros.
E aos poetas? Nenhum, ninguém.

Condução

Caso o amor ainda me queira,
Aviso: cansei-me, já.
Só vou se for de liteira
Ou então de riquixá.

Sexo

Sua glória de ontem
virou escárnio

A espada-de-são-jorge
agora é um lírio
murchando no jarro.

A aliciadora

A poesia escolhe sempre os mais tolinhos, enche-os de presunção, unge-os como predestinados e promete-lhes tesouros, se a seguirem. Quando os abandona, trinta ou quarenta anos depois, já balofos, calvos e derrotados, nem olha mais para eles. Nojo de tê-los escolhido. São tão insensatas as apostas feitas nos jovens. Mas ela nunca aprende. Está sempre apostando, apostando. Quem sabe aquele loirinho ali, com rosto de anjo. Ou aquela garota lá, com cara de queridinha da vovó. Por que não? O que lhe custa? A abordagem já está pronta há séculos. É só se aproximar e puxar os folhetos.

Resumo

Amores tantos, gorados,
Ideais, já todos perdidos,
Os sete palmos medidos,
Já pagos e reservados.

Soneto da Rainha Maluca (versão final)

O Amor é mesmo um bufão.
Mesmo que razão não tenha,
Não há vez em que não venha
Dizer-nos que tem razão.

E em convencer-nos se empenha
De que, fora dele, não
Há nenhuma solução
Que válida se mantenha.

Ousei dele duvidar
E ele, sem pestanejar,
Como a Rainha Maluca

Agiu com Alice, a travessa,
Mandou cortar-me a cabeça.
Da garganta até a nuca.

Dos males

Tem de uma lei o rigor
E a firmeza de uma norma.
Sabemos todos que o amor
Ou nos mata ou nos deforma.

100%

A carne é fraca
a luz opaca

Se não resistiu
o senhor Grey
por que eu resistirei?

Simplesinho

Louvar o amado
Shakespeare já fez
de modo insuperado

Louvar a amada
Dante já fez
de forma consumada

Resta-nos cantar
o que resta
de maneira apropriada.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Uma nota sobre Valeria Luiselli

Comecei a ler Rostos na multidão, da romancista mexicana Valeria Luiselli. Certamente não o estaria lendo, não fosse a recomendação de Enrique Vila-Matas na contracapa. Estou aí pela página 30 e, por enquanto, maravilhado com essa jovem escritora - nascida em 1983. Livro delicioso de ler, extremamente espirituoso. A cada parágrafo, Valéria dá a impressão de uma facilidade de escrever que, posta sob análise, mostra ser, na verdade, uma conquista de sua técnica. Uma facilidade meticulosamente construída. Seu bom humor é notável. Um exemplo é a referência que ela faz a Roberto Bolaño: "É o escritor chileno morto com mais amigos vivos."

Pequena ode para Mário Cesariny (versão final)

A amiga Priscylla me falou de ti
Mário Cesariny
e simpatizei com teu nome
igual ao de Sá-Carneiro
e o sobrenome com esse "y" final
tão chique tão francês tão inusual
sugerindo esta rima em "i"

No centro cultural vergueiro
(casa do teu xará Chamie)
buscando o milagre de um livro teu
não encontrei um mas três

Lá estavam fazia trinta
fazia quarenta anos
virgens intocados
e a mim meu Mário Cesariny
cabia essa mais que alegria
de fazer dar seus primeiros passos
esses já três velhinhos
esses três queridos Mariozinhos teus.

Soneto do titio (versão final)

O amor para ele acenou
Mas ele finge não ver.
Há muito tempo findou
Sua estação de colher.

Ele muda de calçada,
Mas outro convite vem
E com ele uma gargalhada:
"Não quer dar uma, meu bem?"

Enquanto vai se afastando,
Vão dele as putas zombando.
Uma o chama de titio,

Outra de vovô. Distantes
Estão os tempos radiantes
Do sangue quente e do cio.

História

O que primeiro o encantou em Roberto foi sua preciosa voz de soprano. Apaixonaram-se, viveram juntos por dezoito anos. Depois, como ocorre nas histórias, separaram-se. Quando ele se lembra de Roberto, chora sempre que se reinventa nos seus ouvidos sua voz aguda.

Hipótese

Pode ser que alguém dissesse
Algo que te salvaria
Do desamor, da agonia.
Pode ser, se alguém soubesse.

Especialidades

Amor é paixão, tormento, inquietação aguda, rancor, fúria. Carinho, compreensão e afeto pertencem, como se diz, a outro departamento. O amor não é uma associação de caridade.

Foto

Nos traços da juventude,
Para quem souber olhar,
Já é possível notar
As traças da senectude.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Soneto do senhor Grey

Havia certa malícia
No modo com que me olhaste,
A língua movimentaste
E disseste: que delícia.

E havia certo langor
No jeito com que, me olhando,
E o sorvete lambiscando,
Suspiraste: que calor.

Depois, guardando a linguinha,
Mordeste toda a casquinha,
Fazendo um ruído rascante.

Menina doida, pensei,
Será que do senhor Grey
Você se tornou amante?

Soneto que tenta definir o amor

Amor é o nome que dão
Àquele cruel sentimento
Que rapidamente ou lento
Nos mata sem compaixão.

Amor é aquele bufão
Meloso, chato, gosmento,
Que nos submete ao tormento
Das tolas rimas em ão.

Amor é tanto tragédia
Quanto farsa ou comédia,
É tudo, é quase ou é nada.

Amor é febre de vida,
Amor é impulso suicida,
Amor é uma patacoada.

Passeio

Um pipizinho no poste
uma cheiradinha
aqui outra
cheiradinha ali
numa plantinha amarga
uma corridinha
e a volta para casa

Nenhuma esfregação
nada de zoeira
o amor nos leva
e nos traz na coleira.

Parcela

Nem todos os que traem o amor são bastardos. Só os filhos da puta.

O modo

O amor nos trouxe a faca. Dissemos que preferíamos veneno. Ele nos beijou, então.

Megafone

A poesia pletórica
com sua bombástica retórica
segue-nos
persegue-nos
como o caminhão
gritando pamonha
atrás de um cortejo fúnebre.

Modus vivendi

Quando vamos aprender?
Estamos sempre ocupados,
Absurdamente obstinados
Mais em ser do que em viver.

Soneto das frases extorquidas pelo amor

Às vezes obedecia
Ao que ela determinava
E em seus ouvidos soprava
As frases que ela pedia.

Ela então me agradecia
E me beijava, beijava,
A repetir me instigava,
E eu tudo então repetia.

Palavras que ainda hoje teimam
Em se fazer escutar,
Sílabas fortes que queimam

E que enquanto eu vivo for
Hão de se ouvir e queimar
Repetindo amor, amor.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Dedo em riste

E, porque o calor estava pra lá do Senegal, e porque havia acabado a cerveja, ele saiu à sacada e exortou o céu: chove, filho da puta!

Liberdade

Do alto
do mais alto
viaduto
jogar sem comiseração
minhas rimas em ão
minha presunção
de obras-primas
e com a alma leve
livre de tercetos
e quartetos
finalmente olhar o céu
sem o dever da poesia.

"Para o Carlinhos", de Roberto Piva

"vou moer teu cérebro, vou retalhar tuas
coxas imberbes e brancas.
vou dilapidar a riqueza de tua
adolescência. vou queimar teus
olhos com ferro em brasa.
vou incinerar teu coração de carne &
de tuas cinzas vou fabricar a
substância enlouquecida das
cartas de amor.

                  (música de
               Bach ao fundo)"

(De Antologia poética, publicação da L&PM.)

Errata

Leitor
na página vinte e sete
onde está
a bondosa janete
leia a perversa janete

uma alteração essencial
como ficará claro
no final.

SAC

Nos encaminharam então
educadamente
à seção de perdas e danos

Entramos
batemos
e naturalmente
pois não
ao seu dispor
o gerente
era o amor.

O chefe

Não somos nós quem escolhe.
Nos cabe apenas plantar.
O amor é que irá optar
Se somos nós quem o colhe.

"No 25º ano de sua vida", de Konstantinos Kaváfis

"Regularmente vai a essa taverna
onde, no mês  passado, os dois se haviam conhecido.
Perguntou, mas não souberam dizer-lhe coisa alguma.
Pelas palavras deles, compreendeu que se tratava
de um desconhecido qualquer, um entre os muitos
jovens desconhecidos e suspeitos
que por ali costumavam aparecer.
Vai à taverna, porém, regularmente, toda noite,
e, lá sentado, põe-se a olhar a porta;
vigia a entrada até ficar exausto.
Talvez chegue. Hoje quem sabe vem.

Durante três semanas faz o mesmo.
A sua mente enfermou-se de lascívia.
Os beijos na boca lhe ficaram.
Padece, toda a sua carne, de um desejo ardente.
Quer unir-se a ele uma vez mais.

Tenta, bem entendido, não trair-se.
Mas por vezes isso já quase nem lhe importa.
Aliás, bem sabendo ao que se expunha,
tomou a decisão. Não é nada improvável uma vida assim
levá-lo a um escândalo fatal."

(De Poemas, tradução de José Paulo Paes, publicado pela Editora Nova Fronteira.)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Poeminha da mudança de tática

Dizer-te uma coisa, mesmo
Que seja tola e vazia,
Uma bobagem dita a esmo
Sem pretensão de poesia.

Dizer-te alguma tontice,
Um galanteio qualquer,
Perguntar se alguém já disse
Que és uma linda mulher.

Dizer-te um dito jocoso,
Dizer-te um dito chistoso,
Ou só um tudo bem aí?

E quem sabe tu te encantes
Como eu, com meus versos, antes,
Nem uma vez consegui.

Coautoria

Perder a virtude é um daqueles atos em que sempre são bem-vindas mãos alheias.

Do que não me livrou Roberto Piva

Se eu tivesse lido
roberto piva
quando era ocasião
teria me privado
de escrever tantos poemas
de formatura
de cursos de corte & costura
de secretariado
e de primeira comunhão

Se eu tivesse lido
roberto piva
teria levado
em consideração
e louvado
o furúnculo no rabo
do chefe do almoxarifado
e o homúnculo
sentado no colo do anão.

Sonetinho vagabundo daquele amor que matamos

Agora que morto está
O amor por nós renegado
E que mais nenhum cuidado
Ele pede ou pedirá,

Agora, que enfim morreu,
Não faz sentido saber
Quem de nós o fez morrer,
Se foste tu ou fui eu.

O mundo deve seguir.
Alegra-me sempre ouvir
Que estás mais bem do que mal.

Minha história é parecida.
Com o amor morreu minha vida,
Mas o que é a vida, afinal?

"A Coreia é na esquina", de Roberto Piva

"Assim não dá meu tesão
eu começo a sonhar com você todas as tardes
& você lá em Santos
comendo amendoim
vendo anjos nas cebolas do mercado
navios entram & saem do porto polidos
eu corto as veias & rego meu queijo de Minas
você me ama eu sei & me envaideço
amoras jorram a beleza anarquista de suas coxas molhadas
o peixe-espada pode lhe declarar amor
eu penso nessas ilhas perfumadas
mas o caminho de volta eu só conto
a este urubu em carne viva
que grasna na sacada."

De Antologia poética, publicação da L&PM.)

Lourenço Diaféria

Se o Brás fosse um Estado, sua capital seria Lourenço Diaféria.

Memória do "Estadão"

O sangue que melhor gastei foi aquele que ficou na Major Quedinho. Como era bom, depois das caçadas noturnas aos erros de gramática e de informação, às traiçoeiras crases e às vírgulas indevidas, vê-lo correndo nas rotativas do Estadão, enquanto os últimos boêmios saíam dos dancings Avenida e Chuá e da gafieira do Som de Cristal e o sol se preparava, ainda bocejando, para ir acordar e encaminhar às aulas as meninas do Caetano de Campos.

Jardim

De manhã
regando os canteiros
ela recolhe
os fiozinhos dourados
junta-os na palma da mão
e os sopra de volta
para a cabeleira do sol.

Eu Roberto Piva nos viadutos

repentinamente
eu era roberto piva
e são paulo percorria
e do alto
de cada viaduto
arremessava pragas
e insultos
contra os merdalhões
e os vendilhões
da poesia.


Estranhos

Alguns encontros depois
Ele sentiu que ela estava
E ela que ele ali se achava,
Mas não estavam os dois.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Poema de Julio Cortázar para Alejandra Pizarnik

"Posto que hades não existe, seguramente estás lá
último hotel, último sonho,
passageira obstinada da ausência
Sem bagagens nem papéis,
Dando por pagamento um caderno
ou um lápis de cor.
- Aceite-os, barqueiro: ninguém pagou mais caro
o ingresso aos Grandes Transparentes
ao Jardim onde Alice a esperava.

(Tradução de Ana Maria Ramiro.)

A jardineira

A jardineira do meu poema,
A jardineira que não existe,
É velha, vive entre flores, não é triste,
A jardineira que não existe.

É simples sua história,
Marido não tem,
Parentes não tem,
Tem sete filhos doentes,
Tem doze lustros de idade
E mais os anos incertos
Que a idade olvidou.

Tem uma propriedade,
Um sobrado suburbano
Que o último viúvo lhe deixou,
Tem seis dias por semana,
De sol a sol,
Dia a dia,
De faina dura e suor
Para plantar, regar e colher
As flores que vai vender
Domingo na cidade.


Mas por ter sempre
Os braços cheios de flor
E a mente sempre vazia
Não é triste a minha jardineira,
A jardineira do meu poema,
A jardineira que não existe.

Marco zero (versão final)

Caminho, mas parece que não ando.
O mundo passa, mas vou só comigo.
Gente brigando? Alguém gritou? Amigo
Fez sinal? Onde? Quando? Estou andando
Mas sem vontade nem consciência, apático.
Estático, absolutamente estático.

Ego (2)

O que fizemos foi pouco.
Apenas o suficiente
Para deixar Balzac doente
E Beckett de inveja louco.

Soneto da total servidão

Quando, sem juízo ou pudor,
Eu me entreguei todo a ti,
O que primeiro perdi
Foi meu senso de valor.

Amei-te demais, e por
Te amar, de mim me esqueci
E só um papel vivi,
De escravo do teu amor.

Sonetos te dediquei,
Em odes te celebrei,
Ah, já nem lembrar-me quero.

Foi tudo tão infantil,
Tão tolo, besta, pueril...
Por que não fiz um bolero?

"Ancorado em Paris", de Juan Gelman

"Do que sinto falta é do velho leão do jardim zoológico,
sempre tomávamos café no Bois de Boulogne,
contava-me suas aventuras na Rodésia do Sul
mas mentia, era evidente que nunca havia
saído do Saara.

De qualquer maneira encantava-me sua elegância,
seu jeito de dar de ombros ante as
mesquinharias da vida,
olhava os franceses pela janela do café
e dizia 'os idiotas fazem filhos'.

Os dois ou três caçadores ingleses que havia
comido
provocavam-lhe más recordações e até melancolia,
'as coisas que se fazem para viver', refletia
olhando a juba no espelho do café.

Sim, sinto muito sua falta,
nunca pagava a despesa,
mas sugeria a gorjeta a ser dada
e os garçons saudavam-no com especial deferência.

Despedíamo-nos no começo do crepúsculo,
ele voltava para seu bureau, como o chamava,
não sem antes advertir-me com uma pata em meu
ombro
'tem cuidado, meu filho, com a Paris noturna'.

Sinto verdadeiramente sua falta,
seus olhos às vezes enchiam-se de deserto
mas sabia calar como um irmão
quando emocionado, emocionado
eu lhe falava de Carlinhos Gardel."

(Do livro Poesia argentina, tradução de Bella Jozef, publicado pela Iluminuras.)

"Maneiras de lutar", de Rubén Vela

"Que não me digam
que escrevem simplesmente,
que dizem o poema
sem pensá-lo sequer.
Que ele nasce sem mais nem menos.

É um árduo trabalho,
um ofício de ferreiros, um fazer proletário,
um cansaço que continuará amanhã.

Que não me digam
que se fazem poemas sem suores,
sem uma longa e violenta jornada de trabalho.
Tenho as mãos como as de um lavrador,
duras, gastas, cheias de poemas."

(Do livro Poesia argentina, tradução de Bella Jozef, publicado pela Iluminuras.)

www.rubem.wordpress.com

Texto de hoje relata uma corrida por cebolas e batatas, num dia de saldão no supermercado.

Cotação do dia

Talvez eu chegue a encontrar certa maturidade na arte. Ela é desejável, ainda que fingida. Na vida, não. Quem quer saber do que sente um homem que acorda às sete da manhã e vai dormir às dez da noite?

Ego

Nos damos muito valor.
Quem em nós acreditar
Corre o risco de julgar
Shakespeare um amador.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Cotação da noite

Um pouco de terra nas sílabas, como se fosse um morto falando.

Tanca (versão definitiva)

Sorris. Cinge-te essa
Ventura que o espasmo dura
De um raio. Depressa
O instante áureo se dilui
E flui a treva constante.

"A origem", poema de Konstantinos Kaváfis

"O prazer proibido consumou-se.
Eles se erguem do leito e, sem falar-se,
vestem-se à pressa.
Saem da casa em separado, às escondidas; vão-se
um tanto inquietos pela rua, como se
temessem que algo neles revelasse
em que espécie de leito possuíram-se.

Mas, do artista, como a vida se enriquece!
Amanhã, no outro dia, anos depois, serão escritos
os versos fortes que aqui têm sua origem."

(Do livro Poemas, tradução de José Paulo Paes, publicação da Editora Nova Fronteira.)

Autoajuda

Seis são trezentos e seis.
Nulos, nossa melhor tática
É a distorção matemática.
Plebeus, posamos de reis.

Ainda

Penso hoje como pensei
Quando era jovem e são.
Soube ontem, e hoje ainda sei:
Moços têm sempre razão.

Causa

Se eu vier a morrer de overdose, que a culpa seja de sua boca e suas mãos amorosas.

Epifania

Diante do amor, eu sempre me comportei como um menino matuto que pela primeira vez vê o mar.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Soneto do indecifrável enredo (versão final)

O que temos é um mistério,
Talvez tudo, talvez nada,
Será este um caso sério
Ou uma história engraçada?

O destino escreve o enredo
E o acaso sugere a trama
Mas ambos mantêm segredo:
Tem mesmo amor quem diz que ama?

E ora rindo, ora chorando,
A história vamos tocando
Sem vislumbrar o final.

Um dia talvez saibamos
Dizer se nós nos amamos
Ou o que é isto, afinal.

Soneto de como aviltamos nosso amor

Em qualquer que seja o evento
E seja qual for sua hora,
Deixemos sempre de fora
O amor, esse cão sarnento.

Em noivado ou casamento,
Formatura ou bota-fora
De senhor ou de senhora,
Podemos o pestilento.

Dele tivemos orgulho,
Como troféu o ostentamos.
Agora, temos engulho

De ver esse ser abjeto
Em que nós o transformamos
Com nossa falta de afeto.

"Praça da Moça Blues", de Sergio Lara

"Não, não há ninguém
pra quem dizer adeus,
ou oferecer outro blues...

Na névoa amarela da Praça da Moça,
eu, como poeta
(morrendo aos poucos de amor...)
perdi o medo e a coragem
minha carne é indolor...

Não, não há ninguém
pra quem falar adeus
ou oferecer outro blues...

Na Praça da Moça, vazia
minha saudade é
vaca sem ordenha
ovelha sem tosquia
grafites, poemas,
flashs furtivos de luz...

Não, não há ninguém
pra quem dizer adeus
ou oferecer outro blues."

(Do livro Não houvesse tabaco e outros poemas, publicado pela Scortecci Editora.)

"Uma noite", de Konstantinos Kaváfis

"Era o quarto vulgar e miserável,
escondido no andar de cima da taverna
suspeita. Da janela avistava-se o beco,
um beco imundo e estreito. Lá de baixo
vinham as vozes de alguns operários
que jogavam às cartas, divertindo-se.

Ali, num leito reles, ordinário,
eu tive o corpo do amor, desfrutei-lhe dos lábios
rosados e sensuais toda a ebriez -
tal ebriez dos lábios róseos, que ainda agora,
ao escrever, tantos anos depois,
nesta casa vazia, eu de novo me embriago."

(De Poemas, tradução de José Paulo Paes, publicação da Editora Nova Fronteira.)

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Projeto (versão final)

Quisera ter a coragem,
Com lâmina ou comprimido,
Com corda ou com estampido,
De fazer a última viagem.

Caldo de galinha

Dizem que, assim como Quintana, Drummond sabia voar,  e só não o fazia por imposição de uma de suas mineirices: a cautela.

Ana C.

Serias Ana só, se
Um anjo torto não viesse,
Aninha, e não te dissesse
Vai, Ana, ser Ana C.

"Peregrinação", de Alejandra Pizarnik

"Chamei, chamei como náufraga ditosa
as ondas verdugas
que conhecem o verdadeiro nome
da morte

Chamei o vento
confiei-lhe o meu desejo de ser

Mas um pássaro morto
voa até a desesperança
em meio à música
quando bruxas e flores
cortam
a mão da bruma.
Um pássaro morto chamado azul.

Não é solidão com asas,
é o silêncio da primavera,
é a mudez de pássaros e vento,
é o mundo irritado com meu riso
ou os guardiães do inferno
rompendo minhas cartas.

Tenho chamado, tenho chamado.
Tenho chamado até  nunca."

(Tradução de Ana Maria Ramiro.)

Soneto de quando eu tive uma alma

Quando a alma eu te ofereci,
Meu presente não quiseste
E francamente disseste
Que era pouco para ti.

E quando eu, tolo, insisti,
Nenhuma atenção me deste
E pouco de mim fizeste,
Deixando-me mudo, ali.

Hoje eu já não poderia
Dar-te a alma que eu pretendia.
O tempo, querida, passa

E vendo agora o que sou
Observo que não me restou
Mais nada além da carcaça.

Corcel (versão final)

Na alma ele tem um cavalo
Que, quando pressente uma égua,
Revoluteia sem trégua
E tenta ao chão atirá-lo.

Cavalo farejador,
Destruidor de porteiras,
Corcel que ignora fronteiras
Quando o chicoteia o amor.


Lustradinha

Não, eu não sou um escritor, eu sei disso. Mas custa-lhe ser amável, como alguns, e de vez em quando chamar ao menos de graciosa uma de minhas quadrinhas?

Soneto da paz que conquistaste

Agora que já estou
Mais morto do que um finado,
Quem sabe tu aches que eu sou
Um homem do teu agrado.

Nunca mais agora eu vou
Com aquele jeito estouvado
Dizer que ou me aceitas ou
Eu morrerei ultrajado.

Morto estou, e livre estás
Para desfrutar em paz
O que antes eu te impedia.

Jamais eu te louvarei,
Jamais te importunarei
Com a minha tosca poesia.

Matinal

Logo cedo
você me derrubou
com um torpedo.

Pulvis

No cemitério a peneira
No teste não se aprofunda.
Tanto faz pó de primeira
Quanto faz pó de segunda.

Ao largo

O amor, se não nos doer,
Se não nos atormentar,
Melhor não aparecer,
Melhor nem se aproximar.

Opostos

Enquanto eu nem te beijava
Quando eu estava contigo,
Aquele outro te apalpava
Um palmo abaixo do umbigo.

Rejeição

Que eu tenha tanto sofrido
Por algo que não negavas
Nem mesmo a quem não amavas
Foi tão duro, tão doído.

Sovina

Tão bem guardas o que tens
Que nada me espantaria
Se pusesses a alegria
Na declaração de bens.

Ainda

Já que você quis saber
Eu juro, por esta mão,
Que você, querida, não
Deixou de me dar prazer.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Facebook

Hoje ninguém mais é uma ilha.
Qualquer um de nós agora
Comenta, curte a toda hora,
Marca a foto, compartilha.

Flagrante

Nas noites de lua cheia,
Quando ele se põe a uivar,
Não há como duvidar:
O amor é o louco da aldeia.

Puxando o carro (versão final)

Quando o fogo virou palha
Que o vento veio e soprou,
O amor juntou toda a tralha,
Deu tchauzinho e se mandou.

Vênus (versão final)

Pediu-lhe que ela mostrasse
Seu belo monte de Vênus.
Ela mandou que ele andasse:
"Menos, rapaz, menos, menos."

Cotação do dia

Escrevo cada vez menos. Desculpem. Até sua chibata o amor vem economizando em mim.

Momento

Ergueste o teu braço
E eu zonzo gozei,
No ar que respirei,
A febre, o mormaço.

Soneto de ti e de teu feitiço

Quero fazer-te um carinho
Como se, de supetão,
Se aninhasse um passarinho
Na palma de tua mão.

E como se, com o biquinho,
Ávido de perfeição,
Ele, em teu dedo mindinho,
Desenhasse um coração.

É tão bobo isso, eu bem sei,
Mas esta noite eu sonhei
E foi justamente com isso.

Não escarneças de mim.
Se eu me tornei tolo assim,
Foi por ti, por teu feitiço.

Confissão

Ter morrido de amor me dá certo orgulho.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A outra

Terás estado em meus dias,
E no meu viver o teu,
Mas não estarás no meu
Álbum de fotografias.

Pois é

Se tivéssemos vivido
O que o coração pediu
E a carne não conseguiu,
Já te teria esquecido.

Perfil

O amor é uma lagartixa, não para nunca de morrer. Esmigalhado, estrebuchante, nele sempre ainda algo se move. E é fascinante esse se-mover.

Distorção

Para o meu coração tolo e apaixonado, eras uma garota rebelde e maluca. Quem me convenceria, então, que eras só uma dona de casa que vez por outra puxava um fuminho vendo um filme do Woody Allen? Queria fugir contigo para Katmandu. Teu fôlego dava só até Presidente Prudente.

Happy end

Quando nossa hora chegar,
Que a morte não nos maltrate,
Quando o amor nos matar,
Que a mulher certa nos mate.

Cotação do dia

Estamos vivos não por clemência do amor, mas porque ele, apesar de tudo, ainda vê em nós alguma possibilidade de entretenimento.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Quadrinha requentada

Que falte à vida o que for,
A força, a fé, a alegria,
Mas nunca nos falte o amor,
Pão nosso de cada dia.

Soneto da inexprimível beleza

Sempre que anseio cantar
Essa tua formosura
Acabo por deplorar
Nunca estar à tua altura.

E quando a minha ternura
Eu almejo te expressar,
Ela me soa tão dura
Que acho melhor silenciar.

Mulher que me cativaste
E a beleza me ensinaste
Em teu rosto a distinguir,

Por que não dizes, mulher,
Nem me sugeres sequer
Como eu te devo exprimir?

Tu

Repito, se tu quiseres:
Tu és a essência da vida,
Das bênçãos a mais pedida,
A mulher entre as mulheres.

Soneto da hora sincera

Quando nada mais se espera
E a vida está no final,
Que possa soar-nos sincera
Nossa palavra, afinal.

Morto o tempo da quimera,
Do romantismo e do ideal,
Chegada para nós é a era
De reconhecer o real.

Em tudo a que nos lançamos,
Completamente falhamos,
Essa foi a nossa história.

Podem acaso fracassos
Descritos por falhos traços
Pintar a face da glória?

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Apesar

Apesar do gosto de marinheiro que tinham, era bom beijar suas mãos e seu corpo.

A verdade

Que me desculpe quem ama,
Porém faz todo o sentido:
Tirando os dados na cama,
O amor não vale um gemido.

Gentileza

Se ela por mim perguntar,
Quiser saber como vou,
Diga, para lhe agradar,
Que há muito já morto estou.

Roteiro

Viver mal para escrever bem vem sendo meu lema. Tenho cumprido satisfatoriamente a primeira parte.

Cotação do dia

Talvez neste domingo, também, o amor não nos mostre, dele, nada além daquela língua zombeteira.

Soneto do amor e do ódio (versão final)

Quando ao amor tu te entregas,
Eu noto, com decepção,
Que sentes menor paixão
Do que quando o amor me negas.

E quando dizes odiar-me
É bem maior teu fervor
Do que esse débil calor
Com que tu juras amar-me.

Nesse contraste é que eu vivo
E sofro, como cativo,
Essa infindável tortura,

Sem saber se é mal ou bem
Tu me amares com desdém
E me odiares com ternura.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Dívidas

Talvez
na hora do enterro
venha ainda alguém
cobrar-me mais um erro

Que esse
se vier
vá me cobrar no inferno
ou onde mais eu estiver.

Soneto do fruto que pelo amor nos é negado

Enquanto o amor insistir
Em se fazer de rogado,
Venha o que estiver por vir,
Nada será alterado.

Que adianta o fruto existir,
Graúdo, belo, dourado,
Se quando o vamos fruir
Ele nos é recusado?

O amor o fruto nos mostra
Mas avisa bem: é amostra,
Só para olhar, não tocar.

Só depois de um cativeiro
De ao menos um ano inteiro
O poderemos provar.

Soneto do homem atirado ao mar (versão final)

No teu navio embarquei
Em uma noite distante
Que, ainda que eu viva bastante,
Igual jamais viverei.

Como esquecer poderei
Aquele dourado instante
Em que, no jantar dançante,
A tua boca beijei?

E como irei olvidar
Que ao me atirares ao mar,
Sem boia e sem compaixão,

Lá do alto, do tombadilho,
Gritaste: "Cai fora, filho,
Sou mulher do capitão"?

Mérito

Sobreviver ao amor,
Confrontá-lo, desafiá-lo,
Enfrentá-lo, subjugá-lo,
Há de valer-nos louvor?

Um poema de Martha Medeiros

"ele diz que me ama, deseja
me quer para sempre, me pede
para ser sua mulher, me corteja
me faz confissões, me venera
me entrega sonetos, me beija
implora meu sim, me calo
depois penso melhor, que seja."

(Do livro Poesia reunida, publicado pela L&PM Pocket.)

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Hipocorístico

Quando começou a chamá-la pelo diminutivo, sentiu que era hora de protegê-la desse afeto antes que ele florescesse e pudesse magoá-la como só as flores do amor costumam magoar.

Sinal fechado

Ter medo do amor é a maior covardia do homem - e talvez, também, a mais sábia de suas atitudes.

Louvor

Talvez a tarde te exprima
Melhor com seus bem-te-vis
Que estes versos infantis
E esta indecifrável rima.

Tardio

Estou já morto e enterrado,
Mas, se um aroma de flor
Me vem com o vento estouvado,
Aspiro ainda por amor.

O que for

Talvez ele seja puro,
Talvez te pegue por trás,
O amor é um tiro no escuro
E jamais o entenderás.

Soneto do amor e do seu bom aluno

Como um bom educador
Desempenhando o papel,
O amor foi meu professor
E ensinou-me a ser cruel.

Acolheu-me em seu ardor,
Deu-me seus lábios, seu mel,
Tornou-me seu devedor,
O seu escravo fiel.

Depois de me escravizar,
Mandou-me um dia pastar
Sem dó nem consolação.

Hoje, se ele se aproxima,
Logo lhe recuso estima.
Aprendi bem a lição.

Cotação do dia

Não sou desses que deliberam e agem. Sou frouxo, doentio, estragado pelos mimos da infância e pela poesia. Nunca dei um ultimato, só penultimatos.

Um poema de Martha Medeiros

"puxei a manga da camisa um pouco pra cima
perto do cotovelo, e abri o botão calmamente
Como se fizesse isso todo dia na tua frente
não te olhei como amiga nem professora
e não liguei para a pouca idade que tinhas
eu era mais madura e você mais coerente
tinha certeza de tudo mas não se mexia
passei a mão no teu cabelo
te beijei na testa, no queixo
beijei tua nuca e tua boca
e fui a primeira mulher nua de tua vida."

(Do livro Poesia reunida, publicado pela L&PM.)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Cotação da noite

Já fui menos covarde. Hoje tenho medo do amor. Não suportaria mais suas ondas, embora em sonhos eu morra ainda gozosamente, atirado por elas entre os detritos da praia.

Cotação do dia

Não temos muito a fazer.
Lutamos tanto, perdemos.
Menor esforço faremos
Agora, para morrer.

Soneto da amizade (versão final)

Sou réu mais que declarado
E nunca me absolverei
Pelo pouco que te dei
Em troca do que tens dado.

Não sei quanto viverei
Mas serei sempre culpado
Por não te haver compensado
Pelo que de ti ganhei.

Talvez tu me dês perdão,
Minha amiga, mas eu não.
Levarei sempre comigo

Como triste realidade
Ter tido a tua amizade
Sem nunca ser teu amigo.

Balanço

De tudo quanto perdi,
O que lastimo somente
É aquilo que infelizmente
Nem cheguei a dar a ti.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Soneto do convite ardiloso

O vento passa e te diz
Assim como disse outrora
Que se queres ser feliz
Tu deves segui-lo agora.

Mas tua alma, que ainda chora
Aquela ideia infeliz
De ouvir o vento e deplora
Ter desejado o que quis,

Implora que tu atento
Fiques aos ardis do vento
E não te deixes levar

De novo para um pomar
Pleno de frutos dourados
Que te serão recusados.

Diploma

Para ser reconhecido,
Amado e reverenciado,
O amor só fará sentido
Se morto e crucificado.

"Beatles", poema de Sergio Lara

"Os 4 cavaleiros
dum apocalipse
adolescente
como o tempo
céleres passaram
num repente
...
(ficou para sempre
- rastro de som e luz -
de brilho diferente!)"

(Do livro Não houvesse tabaco e outros poemas, publicado pela Editora Scortecci.)

Soneto do pai vilão (versão final)

Eu sou o fruto gorado
De uma semente lançada
No tempo mais que adequado
E numa terra abençoada.

Nem bem estava plantado,
Já tinha fama espalhada
E já meu nome cantado
E a beleza adivinhada.

Menos se iria esperar
De algo que com a própria mão
O amor quisera plantar?

Gorei no entanto e hoje sei
Que o amor foi pai e vilão.
Por ele é que não vinguei.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

19h47

Hora de fechar tudo e ir para o fundo mais fundo e surdo da casa. Se o amor tocar a campainha, nos dispensaremos de ouvir sua cantilena.

O melhor

Nem sempre o melhor é o certo.
O arco-íris não contemplei
Porque, tolo, conservei
O meu guarda-chuva aberto.

Soneto do que restou do amor (versão final)

Que o que ficou fosse doce,
Mesmo que tão impreciso
Que mentir fosse preciso
A fim de que crível fosse.

Que em nossos lábios ninguém
Pudesse nunca encontrar
Nem jamais em nosso olhar
A falsidade que têm.

O amor extinto louvemos
Com a força que ainda nós temos,
E mais alguma, talvez.

Se necessário, falseemos
E o parco amor aumentemos.
Seria a primeira vez?

Relação

O que sinto, de verdade,
Da vida e do que a circunda,
Não é mais que uma profunda
Incompatibilidade.

Cotação do dia (2)

A carne pisada
É o mesmo que nada.
Pior, minha amada,
É a alma rasgada.

Cotação do dia

Admitir que a vida não tem sido, para mim, um exercício muito prazeroso.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Soneto do amor simplesinho (versão final)

Palavras tolas de amor,
Quem não as disse uma vez?
Eu fiz isso, você fez,
Não chega a ser um horror.

Se o amor verdadeiro for,
Jamais terá sensatez
E será estupidez
A essa verdade se opor.

O amor teorias não ama
E de discursos reclama,
Mas a uma amável cartinha

Não costuma resistir,
E nem se o fazem ouvir
Os versos de uma quadrinha.

Soneto do mastro amaldiçoado (versão final)

Disse que se chamava Doroti.
Depois de bolinar-me numa esquina
E de autoproclamar-se ainda menina,
Me pediu que a comesse em pé, ali.

Era feia como uma triste sina,
Mais feia que ela nunca conheci,
E me mandava põe aqui, põe aqui!,
Com a voz insuportavelmente fina.

Me dizia vem, vem, meu marinheiro,
Eu te dou por amor, não por dinheiro,
Vem com tudo, meu bem, não sejas mau.

Não a querendo grátis e nem paga,
Fugi dela, e ela, então, rogou-me a praga
Que mantém o meu mastro a meio pau.

Cotação do dia (3)

Sente-se morto há tanto tempo que já se acha merecedor de homenagens: talvez uma missa de quinto ano, quem sabe o posto de decano.

Cotação do dia (2)

Que bela é a vida. Alegria
Desde o início até o final.
Nenhuma porém igual
Àquela do último dia.

Cotação do dia

A convicção de que foi uma lástima não ter morrido em 2010.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Um trecho de Vladimir Nabokov

"Não pare para pensar, não interrompa o grito, exale, libere o arrebatamento da vida. Tudo está florido. Tudo está voando. Tudo está gritando, sufocando em seus gritos. Riso. Correndo. Cabelo solto. Isso é tudo o que importa na vida."

(Do conto "Deuses", do livro Contos reunidos, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Alfaguara.)

A palavra amor

A palavra amor não deve ser pronunciada. Um sussurro lhe convém mais.

Alma

Acreditar na alma não é só uma esperança. É a única.

Cotação do dia

Um morto que, passada a primeira hora, já não chama a atenção.

www.rubem.wordpress.com

Nova crônica, hoje.

Perfil

Não saio bem em fotos ensolaradas. Me caem bem os crepúsculos.

Uma frase de Vladimir Nabokov

"Hoje minha alma está cheia de gladiadores, de sol, do ruído do mundo..."

(Do conto "Deuses", de Contos reunidos, tradução de José Rubens Siqueira, publicado pela Alfaguara.)