domingo, 30 de setembro de 2018
Vida própria
Era inquieta a língua da condessa. Sempre achava um jeito de se mover, mesmo quando a boca estava entretida em uma sequência de beijos.
O que vocês disseram?
No sonho, Sócrates e Platão conversaram comigo. Não entendi nada. Era como se falassem grego.
Turnos
Talvez pelo bigode ruivo, semelhante a uma taturana, ou pela cicatriz abaixo do olho, a mosca do velório, que tinha se dado amistosamente com o defunto da tarde, aproxima-se com cautela do defunto noturno.
sábado, 29 de setembro de 2018
Ajustes
Você começa na literatura esperando aplausos. Depois, aceita agradinhos, até os indiretos. No fim, abana o rabo se alguém de sua idade pergunta, no shopping, se você é o que teve aquela coluna no jornal do bairro. Sim, você sorri, você assinou essa coluna por algum tempo, na década de 1980. E sente-se quase Shakespeare, neste sábado à tarde na Vila Santo Estéfano.
Um dos dois
Quem me conhece, um pouquinho que seja, sabe qual escolha eu faria se me oferecessem dois livros para ler: um sobre um suicida, um sobre um sobrevivente.
Atualidade
Não sei por que (embora talvez saiba muito bem) me lembrei hoje de uma conversa que ouvi quando menino. Eram todos homens velhos e, cada um ao seu modo, concordavam num ponto: a Morte, quando viesse, seria uma loira belíssima de vestido grená.
Ostracismo
Os pontos de exclamação andam sumidos. Parece que nada mais espanta ou amedronta na literatura. Logo serão encontrados apenas em livros infantis.
sexta-feira, 28 de setembro de 2018
Parceria de ouro
Há cronistas que têm a ventura de em todos os momentos da vida estar na companhia de seu principal assunto: eles mesmos.
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"Amor à terra", de Clarice Lispector
"Laranja na mesa.
Bendita a árvore
que te pariu."
Bendita a árvore
que te pariu."
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Comunicado
Quem encontrar uma tristeza
toda desengonçada, toda feiinha,
faça o favor de devolver: é minha.
toda desengonçada, toda feiinha,
faça o favor de devolver: é minha.
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Depois dos 90 (para Antero Greco, Celso Unzelte, Marcos Micheletti, Marília Ruiz e Vitor Guedes)
E se depois do Juízo Final vierem a prorrogação e os pênaltis?
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Autoavaliação (para Silvana Guimarães)
Sou perfeito sou bonito
se me falta algo
é senso do ridículo.
se me falta algo
é senso do ridículo.
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Hoje no portal do Estadão
Um passatempo (se tempo houver)
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/puzzle/
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/puzzle/
quinta-feira, 27 de setembro de 2018
Duas reflexões do Marquês de Maricá
"A impunidade é regra, quando a cumplicidade é geral."
***
"Um povo corrompido não pode tolerar um governo que não seja corrupto."
***
"Um povo corrompido não pode tolerar um governo que não seja corrupto."
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Literatura
Depois que você finalmente chega a ter algo parecido com um estilo, descobre que faltam algumas coisinhas - naturalmente as mais importantes.
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Prece do amante rejeitado
Que Deus lhe dê em dobro todo o mal que lhe desejo.
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Que não
Que nada, seja o que for,
Nos fira tão ternamente
E mate mais docemente
Quanto fere e mata o amor.
Nos fira tão ternamente
E mate mais docemente
Quanto fere e mata o amor.
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Exata proporção
Quando fizer o exame de consciência, não superestime o poder de um soneto. O máximo que ele pode fazer é absolver outro soneto.
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quarta-feira, 26 de setembro de 2018
Casuísmo
Por mais obstinados que sejam, ouvidos de mercador sempre abrem exceção para o tilintar de moedas.
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Acrofobia (para Rose Marinho Prado)
Depois que se descobriu concretista, o galo não sobe mais no poleiro, com medo de cair e se espatifar.
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Maneiras
Enquanto o vento derruba tudo, buscando epopeias, a brisa finge estar morta, para não espantar os haicais.
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Tecla
O problema da poesia são os poetas. Garantem que está viva, chegam a jurar, mas quando são convidados a apresentar provas pedem que esperemos um pouco - e voltam com aquele Camões e aquele Pessoa.
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Tipificação
Se você faz trovinhas, é possível que lhe deem estímulo. Se faz sonetos, lhe dirão que é melhor não reincidir.
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Uma pergunta da condessa
E aí, o menino não se manifesta?, disse a condessa, olhando para o meu umbigo, como se ele coubesse a resposta.
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Época
A primavera é a estação que inspira os poetas a comparar mulheres a flores. Nem sempre as homenagens são dignas das homenageadas.
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O que é
Conurbação é o nome que se dá às relações entre uma cidade e outras, quando passam da intimidade à promiscuidade.
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Façanha
Certos mortos conseguem ser tão desinteressantes que em meia hora de de velório é como se já não estivessem presentes.
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terça-feira, 25 de setembro de 2018
Palavras de ordem
Alguém já deve (ou devia) ter dito isso:
se uma bandeira vamos levantar,
que seja então a do lirismo.
se uma bandeira vamos levantar,
que seja então a do lirismo.
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Tema (para Rose Marinho Prado)
Concretistas não fazem odes.
Se fizessem, certamente exaltariam
O colosso de Rodes.
Se fizessem, certamente exaltariam
O colosso de Rodes.
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Declaração de bens
As únicas riquezas do poeta
são a herança mítica
e a fortuna crítica.
são a herança mítica
e a fortuna crítica.
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Virtude
Um poeta deve ter, como amigos, flores e passarinhos. Homens e mulheres, só os que não sejam ligados a editoras nem participem de comissões julgadoras.
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Gafe
Fale do bem no discurso do mal
fale do mal na hora da missa
mas nunca fale de pá de cal
na casa de um concretista.
fale do mal na hora da missa
mas nunca fale de pá de cal
na casa de um concretista.
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Louvação (para Marisa Lajolo)
Louvado seja o consumismo
que acaba acolhendo tudo:
o romantismo, o parnasianismo, o concretismo.
que acaba acolhendo tudo:
o romantismo, o parnasianismo, o concretismo.
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"Ode aos calhordas", de Rubem Braga
"Os calhordas são casados com damas gordas
Que às vezes se entregam à benemerência:
As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
E cumprem seu dever com eficiência.
Os filhos dos calhordas vivem muito bem
E fazem tolices que são perdoadas.
Quanto aos calhordas pessoalmente porém
Não fazem tolices - nunca fazem nada.
Quando um calhorda se dirige a mim
Sinto no seu olho certa complacência.
Ela acha que o pobre e o remediado
Devem procurar viver com decência.
Os calhordas às vezes ficam resfriados
E essa notícia logo sai nos jornais:
'O Sr. Calhorda acha-se acamado
E as lamentações da Pátria são gerais.'
Os calhordas não morrem - não morrem jamais.
Reservam o bronze para futuros bustos
Que outros calhordas de nova geração
Hão de inaugurar em meio de arbustos.
O calhorda diz: 'Eu pessoalmente
Acho que as coisas não vão indo bem
Pois há muita gente má e despeitada
Que não está contente com aquilo que tem.'
Os calhordas recebem muitos telegramas
E manifestações de alegres escolares
Que por este meio vão se acalhordando
E amanhã serão calhordas exemplares.
Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder
E são recebidos pelas Embaixadas.
Gostam muito de missas de ação de graças
E às sextas-feiras comem peixadas."
Que às vezes se entregam à benemerência:
As damas dos calhordas chamam-se calhôrdas
E cumprem seu dever com eficiência.
Os filhos dos calhordas vivem muito bem
E fazem tolices que são perdoadas.
Quanto aos calhordas pessoalmente porém
Não fazem tolices - nunca fazem nada.
Quando um calhorda se dirige a mim
Sinto no seu olho certa complacência.
Ela acha que o pobre e o remediado
Devem procurar viver com decência.
Os calhordas às vezes ficam resfriados
E essa notícia logo sai nos jornais:
'O Sr. Calhorda acha-se acamado
E as lamentações da Pátria são gerais.'
Os calhordas não morrem - não morrem jamais.
Reservam o bronze para futuros bustos
Que outros calhordas de nova geração
Hão de inaugurar em meio de arbustos.
O calhorda diz: 'Eu pessoalmente
Acho que as coisas não vão indo bem
Pois há muita gente má e despeitada
Que não está contente com aquilo que tem.'
Os calhordas recebem muitos telegramas
E manifestações de alegres escolares
Que por este meio vão se acalhordando
E amanhã serão calhordas exemplares.
Os calhordas sorriem ao Banco e ao Poder
E são recebidos pelas Embaixadas.
Gostam muito de missas de ação de graças
E às sextas-feiras comem peixadas."
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Formação
Na adolescência
o que todo poeta concretista lia
era o ABC da Engenharia.
o que todo poeta concretista lia
era o ABC da Engenharia.
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Tarefa
Agora faz jejuns ainda mais prolongados e não toma remédio nenhum. Conservou o bom humor: diz que quer matar-se pacificamente.
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Especial
Mario Quintana era um desses poetas venturosos que todo ano, já no primeiro dia, a primavera vai em casa chamar.
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Tecnologia
Os chocalhos concretistas, feitos de pedrinhas cantantes, revelaram-se bem mais eficazes que as cantigas românticas para fazer dormir bebês entre seis e vinte e quatro meses.
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Passado contínuo
Não há mais tempo para modernismos na poesia. Até os manifestos já nascem tão velhos quanto os princípios que pretendem derrubar.
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segunda-feira, 24 de setembro de 2018
"Nós", de Fábio Montenegro
"Eu ando alheio, há muito, ao que se passa
sob a miséria e os torvelinhos da rua:
desconheço o clamor da população
e a vaidade, que em tudo tumultua.
Vivo do seu amor, da sua graça,
e adoro, sob a névoa que flutua,
através da cortina e da vidraça,
a palidez romântica da lua.
Em cada riso, em cada olhar, em cada
anseio que de ti me vem, querida,
sinto que cada vez és mais amada.
E assim, longe do mundo, refletida
tua alma na minh'alma, és alvorada
cantando o poema esplêndido da vida."
- Difícil achar algo desse poeta santista, ora citado como romântico, ora como parnasiano. No segundo verso - "sob a miséria e os torvelinhos da rua" -, o decassílabo imperfeito chama a atenção (provavelmente um descuido da edição). Se alguém souber algo sobre isso, será bem-vinda uma nota.
sob a miséria e os torvelinhos da rua:
desconheço o clamor da população
e a vaidade, que em tudo tumultua.
Vivo do seu amor, da sua graça,
e adoro, sob a névoa que flutua,
através da cortina e da vidraça,
a palidez romântica da lua.
Em cada riso, em cada olhar, em cada
anseio que de ti me vem, querida,
sinto que cada vez és mais amada.
E assim, longe do mundo, refletida
tua alma na minh'alma, és alvorada
cantando o poema esplêndido da vida."
- Difícil achar algo desse poeta santista, ora citado como romântico, ora como parnasiano. No segundo verso - "sob a miséria e os torvelinhos da rua" -, o decassílabo imperfeito chama a atenção (provavelmente um descuido da edição). Se alguém souber algo sobre isso, será bem-vinda uma nota.
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Autenticidade
Nas novelas eróticas, dificilmente um personagem chamado Paulo Pinto induzirá o leitor a erro.
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Usos e costumes
Houve tempo em que só aos parnasianos se reconhecia o direito de se pavonearem.
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História
Dura era a vida dos poetas românticos. Precisavam matar um cisne por dia.
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Reputação
Os concretistas são os melhores autores de placas fúnebres e frases lapidares.
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Facções
Procure sua turma, pixote.
Trate de sua chave de ouro,
Que eu cuido do meu estrambote.
Trate de sua chave de ouro,
Que eu cuido do meu estrambote.
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Causa
Se em morrer de amor não houver sentido
me diga então por que razão
tanta gente tem morrido.
me diga então por que razão
tanta gente tem morrido.
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Prova
Posto diante de um poema concreto, São Tomé exigiu: quero ouvir para crer.
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Material (para Rose Marinho Prado)
Convidado a visitar o castelo do poeta romântico, o concretista se espantou: que desperdício de areia.
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Cautela poética
Se a declamação é de um poeta concretista, os espectadores da primeira fila devem estar preparados para se esquivar de perdigotos empedregulhados.
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Premeditação
Os autores de novelas policiais matam um personagem logo no início, nos levam à cena do crime e, depois de pedirem nossa ajuda para descobrir o assassino, fazem tudo para nos lançar em pistas falsas até a página 240, ou 340, segundo o tamanho de seu ócio ou a encomenda do editor.
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domingo, 23 de setembro de 2018
Frase de Jonathan Swift
"A sátira é uma espécie de espelho, onde aqueles que o fitam descobrem a cara de toda a gente menos a sua."
Egolatria (para Silvana Guimarães)
Num acesso de proparoxítona jactância
A melancia inflou-se
E proclamou-se melância.
A melancia inflou-se
E proclamou-se melância.
Hoje na revista Rubem
Frases sobre poesia, provérbios e mais algumas coisinhas.
https://rubem.wordpress.com/2018/09/23/poesia-proverbios-chatos/
https://rubem.wordpress.com/2018/09/23/poesia-proverbios-chatos/
sábado, 22 de setembro de 2018
Arte declamatória
Diante da plateia atônita, o sonetista morreu depois de treze convulsões de esplêndida verborragia coroadas pelo derradeiro e heroico decassílabo.
"Madrugada", soneto de Ribeiro Couto
"Se minha mãe chegasse nesta hora
Como havia de ser o seu sorriso?
Sorriso? Não. Diria como outrora
'É tão tarde, menino sem juízo!'
É tarde. Não há dúvida. Lá fora
Vejo o dia nascer, ainda indeciso,
E eu a escrever poesia até agora,
Meu veneno, meu mal, meu paraíso.
Ao fim de tantos anos e trabalhos,
Ainda sou o menino que antes era.
Para dormir tinha que ouvir uns ralhos.
Se vou sempre tão tarde para a cama,
É talvez na esperança - ó vã espera! -
De ouvir quem já não ralha nem me chama."
Como havia de ser o seu sorriso?
Sorriso? Não. Diria como outrora
'É tão tarde, menino sem juízo!'
É tarde. Não há dúvida. Lá fora
Vejo o dia nascer, ainda indeciso,
E eu a escrever poesia até agora,
Meu veneno, meu mal, meu paraíso.
Ao fim de tantos anos e trabalhos,
Ainda sou o menino que antes era.
Para dormir tinha que ouvir uns ralhos.
Se vou sempre tão tarde para a cama,
É talvez na esperança - ó vã espera! -
De ouvir quem já não ralha nem me chama."
Trecho de carta
Você me pergunta se continuo tolo ou se estou mudado. Servidor que fui de outra condessa, ajeito minha gravatinha de garçom e, estendendo o prato em que disfarçado de cordeiro me sirvo, respondo: estou como quiser, Madame.
sexta-feira, 21 de setembro de 2018
Pensamento de Lin Yutang
"A filosofia tornou-se uma ciência por intermédio da qual começamos cada vez mais a compreender cada vez menos o que somos. O que conseguiram os filósofos foi isto: quanto mais falam, mais confusos ficamos."
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Incompletude
Sou meio em tudo
meio insano meio são
até minha metade
é só meia metade.
meio insano meio são
até minha metade
é só meia metade.
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De novo o brilho
Quando, no meio de um sono de já quase três semanas, foi chamado pelo escritor, o ponto e vírgula sonhou que estavam voltando seus melhores dias. Imaginou-se de novo em textos nos quais se enumerassem as joias de uma rainha (colares; brincos; anéis) ou os fulgores de sua beleza (o sorriso; os olhos azulíssimos,;os cabelos de ouro). Viu-se numa lista de compras (cebola; batata; desodorante; leite; café).
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Inspiração
Os Três Tenores foram uma das recentes versões dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
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Aspecto
Já há algum tempo sei que só devo dormir em casa. Se eu me deitar em qualquer outro lugar, ainda que seja num parque sob pleno sol, inevitavelmente alguém chamará o IML.
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Hoje no portal do Estadão
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/na-minha-mao/
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quinta-feira, 20 de setembro de 2018
Mistério
Até hoje não se sabe o tipo de argumento usado pelo fantasma para, nas três noites em que frequentou a casa, convencer o gato sonso a acompanhá-lo quando na quarta manhã se foi.
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O motivo
Se agora digo tudo com sussurros, não é com nenhuma intenção erótica; é falta de energia, nada mais que isso.
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Com a palavra a defesa
Quando digo que sou escritor, sinto que é cada vez mais uma alegação do que uma convicção.
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Encontro
"Bom dia. Há quanto tempo. Está doente? Não põe mais nada no blog..."
"Bom dia. Não, tudo bem. Eu estava doente quando escrevia."
"Bom dia. Não, tudo bem. Eu estava doente quando escrevia."
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quarta-feira, 19 de setembro de 2018
terça-feira, 18 de setembro de 2018
Prodígio
Os chatos têm uma memória admirável. São capazes de nos contar por dez dias seguidos, sem uma falha, suas piores piadas.
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Cotação do dia
Acredito que até os tropeções silábicos dos meus versos poderiam ser-me perdoados, se eu tivesse cinquenta anos a menos, alguns mil fios de cabelo a mais e um sorriso que não fosse este, amargo como convém a um derrotado.
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segunda-feira, 17 de setembro de 2018
Amanhã
Não desanime. A poesia e você talvez tenham em comum algo que um dia você descobrirá.
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domingo, 16 de setembro de 2018
Expiação
Um aqui destruído
outro ali incendiado
os ônibus são hoje punidos
como os bodes do passado.
outro ali incendiado
os ônibus são hoje punidos
como os bodes do passado.
0800
Se alguém lhe perguntar um dia
o que é ser e o que é não ser,
passem-lhe o telefone da filosofia.
o que é ser e o que é não ser,
passem-lhe o telefone da filosofia.
sábado, 15 de setembro de 2018
Necessidade
Se eu não me presumir importante, continuarão a andar comigo os que se julgam mil vezes mais importantes que eu?
Nas nuvens
O poeta romântico dizia conhecer todas as estrelas, nome por nome, e comentava que isso era simplesmente uma retribuição, porque todas também sabiam que ele era Felisberto Felício de Oliveira.
Identidade
Cada dia maior é a dificuldade
para distinguir em fantasma falso
de um fantasma de verdade.
para distinguir em fantasma falso
de um fantasma de verdade.
A síndrome
Escreve duas páginas e já fica ofegante.
Pergunta aqui, pergunta ali,
E Estocolmo é sempre mais adiante.
Pergunta aqui, pergunta ali,
E Estocolmo é sempre mais adiante.
sexta-feira, 14 de setembro de 2018
Ora direis
Olavo Bilac, coitado,
de tanto falar com estrelas
ficou completamente aluado.
de tanto falar com estrelas
ficou completamente aluado.
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Hoje no portal do Estadão
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/pret-a-porter/
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quinta-feira, 13 de setembro de 2018
Responsabilidade
O substantivo velho tem sido visto na companhia de adjetivos noturnos, rechonchudos, sinuosos e calipígios.
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Vitória
Vençamos. Mas se formos vencidos
que os melhores destroços
sejam os nossos.
que os melhores destroços
sejam os nossos.
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Etapas
Convencer os leitores de que sou um escritor e estou vivo é um processo cuja etapa inicial será a de convencer-me a mim mesmo de que sou e de que estou.
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Do ramo (para Alexandre Brandão, Cássio Zanatta, Henrique Fendrich e Marco Antonio Mártire)
Se os parnasianos tivessem conseguido o monopólio das estrelas, elas estariam muito mais bem conservadas.
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Defesa (Lu Nobre)
Não creio que fazer sonetos seja uma coisa tão abominável. Há tantos sonetistas com estátuas por aí...
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Meios
Os poetas românticos chegavam ao céu a bordo de uma nuvem. Os concretistas, numa escada.
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Trecho de carta
Você me pergunta por que não uso mais a palavra esperança. Eu lhe digo. Toda vez que agora a pronuncio noto a estranheza que ela provoca em meus lábios murchos. É como se os estivesse obrigando a participar de uma farsa.
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Sintomas
Escrever diariamente, a vida toda, pode não fazer de você um escritor. Talvez indique uma outra anomalia qualquer.
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quarta-feira, 12 de setembro de 2018
Estoicismo
Os que amam ser mártires da literatura desconfiam das frases que lhes vêm sem arabescos e em plena luz do sol.
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Mercado de trabalho
Na sala de administração do cemitério: uma vaga para coveiro.
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Autorretrato
Sou uma árvore velha. Se me sacudirem, de mim só cairão vírgulas.
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Ademais
Como poeta, sei que tenho todos os meus mil defeitos e mais aqueles que naturalmente insistem em me atribuir.
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Propriedade
Os melhores perdigotos sempre foram os dos parnasianos. Capazes de fazer surgir instantaneamente, numa superfície de mármore, uma sucessão de arco-íris.
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Ojeriza
Palavras como legado e patrimônio são tão cerimoniosas, tão incompatíveis com a simplicidade que merece sempre a literatura, e no entanto dia após dia há quem tenha o descaramento de pronunciá-las, com o ridículo microfone na mão.
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Jeitinho
A poesia não me tornou grande, mas com ela aprendi a expressar melhor minha pequenez.
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Garantia
Não termos muito a dizer é a mais segura das formas de manter o apreço dos leitores.
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Roleta
Se for apostar
aposte numa viúva rica
ou numa sinecura -
jamais na literatura.
aposte numa viúva rica
ou numa sinecura -
jamais na literatura.
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Mistura
Francamente: juntarem latim e grego para formar uma palavra tão desgraciosa quanto seropédica...
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Modos
O que desagrada em certos fantasmas não são as liberdades que acabam tomando conosco: são seus dedos gelados, o hálito de uísque em nosso travesseiro e a mania de nos chamarem de Helga.
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Um poema de Clarice Lispector
"Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto, amém."
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto, amém."
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"Arte de amar", de Manuel Bandeira
"Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não."
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não."
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Para o anúncio de venda de um poema concretista
Amplo, ensolarado, a cem metros do metrô.
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Frase para a abertura de um prefácio
Falar de Fulano é falar de poesia, e vice-versa.
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Frase para um romance policial
Tinha uma dessas bundas que fazem ninguém notar a ausência de um belo par de olhos verdes ou azuis.
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terça-feira, 11 de setembro de 2018
Pré-eleitoral
O que diriam, do Oiapoque ao Chuí, se você tivesse a coragem de admitir que seus problemas são todos, basicamente, literários?
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Futuro
A literatura é aquela tia polonesa que não temos e da qual nunca vamos herdar a fortuna.
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Peculiaridade
A única coisa autêntica que alguns escritores velhos como eu têm é a tosse. No resto, são genuinamente literários.
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Reclassificação
Os poetas atuais tiraram a tristeza do catálogo ou passaram a chamá-la por outro nome.
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Exemplo
Minha tarefa, como velho escritor, é provar diariamente que consigo fazer algo além de respirar.
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Modernidade
Mudamos demais:
até gripe hoje nós compartilhamos
pelas redes sociais.
até gripe hoje nós compartilhamos
pelas redes sociais.
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Acervo
Quando imaginou que eu estava duvidando de sua glória, o poeta começou a puxar recortes da gaveta, tão velha quanto ele, sua casa e sua tristeza.
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"Em branco", de Ana Martins Marques
"Dizem que Cézanne
quando certa vez pintou um quadro
deixando inacabada parte de uma maçã
pintou apenas a parte da maçã
que compreendia.
É por isso
meu amor
que eu dedico a você
um poema em branco."
quando certa vez pintou um quadro
deixando inacabada parte de uma maçã
pintou apenas a parte da maçã
que compreendia.
É por isso
meu amor
que eu dedico a você
um poema em branco."
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Um poema de Ana Farrah Baunilha
"Porque eu nasci rachada
partida no meio
toda aberta
ausente de proeminências viris
e por isso não podia
sentar arregaçada, que nem meu irmão
andar sem camisa ou subir nas árvores
não podia brincar de lutinha, porque era
muito "agarramento"
Eu saía quebrando tudo, de raiva
revoltadinha
quando ganhei o primeiro sutiã
queria ter feito estilingue com ele
pra jogar pedra no telhado da vizinha
- aquela faladeira!
Mas qual!
fui é virar alvo
na vida
(muito Geni)"
partida no meio
toda aberta
ausente de proeminências viris
e por isso não podia
sentar arregaçada, que nem meu irmão
andar sem camisa ou subir nas árvores
não podia brincar de lutinha, porque era
muito "agarramento"
Eu saía quebrando tudo, de raiva
revoltadinha
quando ganhei o primeiro sutiã
queria ter feito estilingue com ele
pra jogar pedra no telhado da vizinha
- aquela faladeira!
Mas qual!
fui é virar alvo
na vida
(muito Geni)"
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Quadrinha pessoana
Simular amor faz bem.
Finja que você ama
Quando você ama
E quando não ama, também.
Finja que você ama
Quando você ama
E quando não ama, também.
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Epígonos (para Rose Marinho Prado)
Depois de Gutemberg, só na época concretista os tipógrafos voltariam a conquistar a glória.
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Cotação do dia
Digo, com a autoridade de quem melhor me conheceu: apodreci como homem e não amadureci como poeta.
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Experiência
Se não tivesse me metido com a literatura, que trauma de infância eu poderia invocar?
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Lados
Que o empenho em ser escritor não lhe tire o prazer de aproveitar o melhor papel que a literatura oferece: o de leitor
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Destino
Quando descobriu não ter talento
Era muito tarde. Tinha já
sido aclamado como gênio.
Era muito tarde. Tinha já
sido aclamado como gênio.
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Façanha
Do que às vezes duvido
não é de a literatura e eu
termos convivido
mas de ela e eu
havermos a nós sobrevivido.
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segunda-feira, 10 de setembro de 2018
"Caldo", de Líria Porto
"eu mordia a boca dele
sabia a peçonha na língua
lambia e bebia a saliva
era para engolir ele
morrer dele
do adocicado da víbora."
sabia a peçonha na língua
lambia e bebia a saliva
era para engolir ele
morrer dele
do adocicado da víbora."
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Um poema de Adriane Garcia
"O espelho, espelho meu
Dizia que qualquer uma
Era mais bela do que eu
E eu acreditei anos a fio
Nesse presente
Que a Madrasta me deu."
Dizia que qualquer uma
Era mais bela do que eu
E eu acreditei anos a fio
Nesse presente
Que a Madrasta me deu."
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"Língua pária", de Sivana Guimarães
"1.
Em casa de poeta
a palavra espeta.
2.
Se o entendedor é mau,
qualquer ponto é final.
3.
Pra quem sabe ler,
nem todo pingo é letra.
Pode ser lágrima."
Em casa de poeta
a palavra espeta.
2.
Se o entendedor é mau,
qualquer ponto é final.
3.
Pra quem sabe ler,
nem todo pingo é letra.
Pode ser lágrima."
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Perfil
Nem pompa nem circunstância.
Sou um poeta de ocasião,
Se querem chama e clarão,
Procurem em outra instância.
Sou um poeta de ocasião,
Se querem chama e clarão,
Procurem em outra instância.
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Autossuficiência
Os chatos não costumam ter o dom da loquacidade. Não lhes faz falta nenhuma.
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Celeridade
Frases curtas têm a vantagem de às vezes conseguirem passar sem que as alcance um adjetivo ou um advérbio.
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Defesa
Se não houver no juízo final
em meu favor uma prova,
que haja uma provinha -
se não uma trova,
pelo menos uma trovinha.
em meu favor uma prova,
que haja uma provinha -
se não uma trova,
pelo menos uma trovinha.
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Vilões
Talvez eu não venha sendo justo com Deus quando o culpo por meus insucessos literários. Por que só me ocorreu hoje que o vilão pode ser outro? Os críticos literários, por exemplo.
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A causa
Quando como poeta não me vejo
não censuro a poesia
nem condeno o espelho;
culpo a minha miopia.
não censuro a poesia
nem condeno o espelho;
culpo a minha miopia.
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Vigor (para o Verissimo)
O predador sexual
comprou uma boneca inflável
com desempenho regulável
e garantia semestral.
comprou uma boneca inflável
com desempenho regulável
e garantia semestral.
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domingo, 9 de setembro de 2018
Saldão (para Helena Russano Alemany)
Até os poemas hoje são venais.
Alguns muito, alguns mais,
Alguns muito mais.
Alguns muito, alguns mais,
Alguns muito mais.
Futuro
Os robôs saberão, talvez já saibam, se a dose exata de lirismo num poema é um ou são dois por cento.
Hoje na revista Rubem
Eu me fragmento e me esparramo. Se acharem um coração, ou coisa parecida, é meu.
https://rubem.wordpress.com/2018/09/09/esparramando-coisas-raul-drewnick/
https://rubem.wordpress.com/2018/09/09/esparramando-coisas-raul-drewnick/
Definição (para Ana Farrah Baunilha)
Quem disse que dói o amor?
Uma assopradinha, duas palavrinhas
e pronto - a dor passou.
Uma assopradinha, duas palavrinhas
e pronto - a dor passou.
Alerta
Dados recentes confirmam a alarmante expansão do número de sonetos nas confrarias literárias.
Proporção
Quem acredita em pactos com o Diabo deveria responder a uma pergunta: quantas almas Shakespeare ofereceu?
Ponto contra
Quando soube que Camões escreveu sonetos, o rapaz balançou a cabeça: ninguém é perfeito.
sábado, 8 de setembro de 2018
"Construção na vertical", poema de Arménio Vieira
"Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.
Mas atenção: o uso de cola
estragaria o teu poema.
Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!
Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.
Quando estiver concluído,
não assines. O poema não é teu."
podes construir um poema.
Mas atenção: o uso de cola
estragaria o teu poema.
Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!
Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.
Quando estiver concluído,
não assines. O poema não é teu."
Soneto do fantasma do menino (para Lu Nobre)
Por que nunca te empenhas em saber
De onde vêm esses gritos e gemidos
Que certas noites ferem teus ouvidos
Sem compaixão até o amanhecer?
Não gostarias de reconhecer
Que esses gritos ouvidos e reouvidos,
Noites depois de noites repetidos,
Vêm de ti mesmo, de teu próprio ser.
Ouve bem essa voz, que geme. Ouviste?
Era a voz que tu tinhas quando criança,
Quando eras um menino doente e triste.
Tu sabes mas preferes ignorar
A voz que embora já sem esperança
Insiste em te afligir e te chamar.
De onde vêm esses gritos e gemidos
Que certas noites ferem teus ouvidos
Sem compaixão até o amanhecer?
Não gostarias de reconhecer
Que esses gritos ouvidos e reouvidos,
Noites depois de noites repetidos,
Vêm de ti mesmo, de teu próprio ser.
Ouve bem essa voz, que geme. Ouviste?
Era a voz que tu tinhas quando criança,
Quando eras um menino doente e triste.
Tu sabes mas preferes ignorar
A voz que embora já sem esperança
Insiste em te afligir e te chamar.
Aviso aos assinantes
Escrevo para o meu blog
para hoje à noite
ou amanhã à tarde
não para a posteridade.
para hoje à noite
ou amanhã à tarde
não para a posteridade.
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
À frente do meu tempo
Sempre fui precoce.
Tinha já quase sessenta
Ainda na casa dos quarenta.
Tinha já quase sessenta
Ainda na casa dos quarenta.
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Hoje no portal do Estadão
https://emais.estadao.com.br/blogs/escreviver/a-moda-da-casa/
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quinta-feira, 6 de setembro de 2018
De Clarice Lispector, sobre o amor
"E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa que eles precisam."
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Um soneto de Petrarca
"Se a minha vida do áspero tormento
E tanto afã puder se defender,
Que por força da idade eu chegue a ver
Da luz do vosso olhar o embaciamento,
E o áureo cabelo se tornar de argento,
E os verdes véus e adornos desprender,
E o rosto, que eu adoro, empalecer,
Que em lamentar me faz medroso e lento.
E tanta audácia há de me dar o Amor,
Que vos direi dos martírios que guardo,
Dos anos, dias, horas e amargor.
Se o tempo é contra este querer em que ardo,
Que não o seja tal que à minha dor
Negue o socorro de um suspiro tardo."
(Tradução de Renato Suttana.)
E tanto afã puder se defender,
Que por força da idade eu chegue a ver
Da luz do vosso olhar o embaciamento,
E o áureo cabelo se tornar de argento,
E os verdes véus e adornos desprender,
E o rosto, que eu adoro, empalecer,
Que em lamentar me faz medroso e lento.
E tanta audácia há de me dar o Amor,
Que vos direi dos martírios que guardo,
Dos anos, dias, horas e amargor.
Se o tempo é contra este querer em que ardo,
Que não o seja tal que à minha dor
Negue o socorro de um suspiro tardo."
(Tradução de Renato Suttana.)
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Currículo
Frequentar o amor jamais.
Agora vou só, se for,
Às aulas ausenciais.
Agora vou só, se for,
Às aulas ausenciais.
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Plano de ação
Se for tomar medidas de amor
pense-as e repense-as -
ou sofra as consequências.
pense-as e repense-as -
ou sofra as consequências.
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Por exclusão
No fim das novelas policiais
a maioria dos suspeitos frustra
as impressões iniciais.
a maioria dos suspeitos frustra
as impressões iniciais.
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Talvez e não
Minhas mentiras podem até
mas meu futuro literário não
ir além do segundo quarteirão.
mas meu futuro literário não
ir além do segundo quarteirão.
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Teoria da conspiração
As duas magníficas torres
foram derrubadas por um maestro
e por três tenores.
foram derrubadas por um maestro
e por três tenores.
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quarta-feira, 5 de setembro de 2018
Um soneto de Antonio Carlos Secchin
"Desmoronam promessas e misérias,
pedaços da palavra e da memória,
e o sol da força bruta da matéria
escorre para o ralo como escória.
Os ratos já devoram toda história,
e avançam contra os cacos do passado,
seus dentes decompondo em pó a glória
de um futuro podado na semente.
Do muito que sonhamos talvez sobre
o sopro de uma aurora que nos leva
além de nossa dor, mas não descobre
a flor que pulsa e arde em meio à treva.
Depois, virando cinza o que é graveto,
não sobrará nem mesmo este soneto."
pedaços da palavra e da memória,
e o sol da força bruta da matéria
escorre para o ralo como escória.
Os ratos já devoram toda história,
e avançam contra os cacos do passado,
seus dentes decompondo em pó a glória
de um futuro podado na semente.
Do muito que sonhamos talvez sobre
o sopro de uma aurora que nos leva
além de nossa dor, mas não descobre
a flor que pulsa e arde em meio à treva.
Depois, virando cinza o que é graveto,
não sobrará nem mesmo este soneto."
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Mais um poema de Clarice Lispector
"Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida, há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata."
que é para ser
intensamente vivida, há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata."
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Prodigalidade
Saudável tempo o das musas amplas e sólidas, cujos seios, sem exagero e com pleno gosto, podiam ser chamados de peitaria.
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Mario Quintana
Poetas enciumados diziam que Mario Quintana cantava mal e não voava tão bem quanto se apregoava.
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Socrática
Conhecer-se a si mesmo é a mais desinteressante das tarefas se você não é daqueles afortunados tipos que não param de se modificar.
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Graças aos deuses
Felizmente o dom dos chatos é natural, nasce com eles. Chatos premeditados seriam mais terríveis que todas as pragas bíblicas.
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Cotação do dia
Escrevo hoje como quem
já tendo a fama arrasada
não sonha mais mudar nada
nem agradar a ninguém.
já tendo a fama arrasada
não sonha mais mudar nada
nem agradar a ninguém.
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Frete
Enfeitei tanto minha poesia que já na primeira esquina um marinheiro buzinou seus peitos e perguntou quanto era.
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Extremos
O fazedor de frases ou é considerado um fenômeno e chamado de aforista ou é tido como um espertalhão que dá à sua preguiça um ar de genialidade.
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terça-feira, 4 de setembro de 2018
Um poema de Cesário Verde
"Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer."
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer."
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"Fim", de Mário de Sá-Carneiro
"Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos berros e aos pinotes -
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços a acrobatas.
Que meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro."
Rompam aos berros e aos pinotes -
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços a acrobatas.
Que meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro."
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A seu tempo (para Rose Marinho Prado)
Ninguém, como os poetas antigos, para falar daquelas rosas de antologia.
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Veto
Pago o preço da idade. Palavras como amor e primavera já não aceitam minha carteirinha de poeta.
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Os dons de Mario Quintana (para Silvia Galant François)
Quando me dizem que tenho alguma coisa de Mario Quintana, sei que louvam meu assobio, porque ainda não aprendi a voar.
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Registro
O que hoje tenho a dizer sobre a literatura é que venho lidando com ela há pelo menos seis décadas e de vez em quando posso gabar-me de algum progresso, embora ainda só tenha a coragem de pegá-la com a mão enluvada.
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Mestre
O que Millôr Fernandes tinha não era bom humor. Era bem mais que isso.
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Chez moi
Todos os dias, sem sair de casa, eu poderia conversar com um homem que se diz sábio, se eu me aturasse.
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Pasta de elástico
A meia dúzia de recortes que formam minha fortuna crítica definha numa gaveta que há décadas não é aberta.
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De Hilda Hilst
"Alguns doutos em ciências descobriram que, quanto maior o intestino, mais místico o indivíduo. E quem mais místico que Deus? Grande intestino, orai por nós."
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Cotação do dia
Se você estivesse um pouquinho mais morto, um pouquinho só, poderia gozar agora a delícia de um passeio pela Consolação, deitado e embalado em rica madeira.
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Bem-aventurado engano
A sorte da literatura é que, ao contrário do que você chegou a imaginar, ela nunca dependeu de você.
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Frase subitamente interrompida
Pensar que os mortos não ouvem mais Chopin nem leem Wislawa. Pensar que nós logo...
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Trasanteontem
Fui pesquisar qual foi a última vez em que alguém falou de amor. Descobri, como imaginava, que fui eu, numa época em que ainda podia me considerar jovem.
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Oito ou oitenta
Alimentar um blog diariamente por nove anos pode indicar qualquer coisa entre a banalidade e a obsessão.
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Nem sempre
Um erro muito comum entre escritores é o de julgarem que estão a todo momento obrigados a dizer alguma coisa.
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Sabem?
Sabem quando nós pensamos ter com alguém ou alguma coisa uma ligação muito especial? Fiquem tranquilos. Não vou falar outra vez de condessas nem de poesia.
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segunda-feira, 3 de setembro de 2018
"Fuego mudo", de Mario Benedetti
"A veces el silencio
convoca algarabías
parodias de coreje
espejismos de duende
tangos a contrapelo
desconsoladas rabias
pregones de la muerte
sed y hambre de vos
pero otras veces es
solamente silencio
soledad como un roble
desierto sin oasis
nave desarbolada
tristeza que gotea
alrededor de escombros
fuego mudo."
convoca algarabías
parodias de coreje
espejismos de duende
tangos a contrapelo
desconsoladas rabias
pregones de la muerte
sed y hambre de vos
pero otras veces es
solamente silencio
soledad como un roble
desierto sin oasis
nave desarbolada
tristeza que gotea
alrededor de escombros
fuego mudo."
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Na mesma
Sei que o otimismo não é meu forte. Se eu escrevesse em inglês, talvez morasse num palácio cujos impostos não conseguisse pagar.
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Prejuízo
Melhor ficar longe da literatura. Ela não anda resolvendo nem mais o problema dos editores.
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Justiça
Deve-se reconhecer uma virtude nos chatos: são todos perfeccionistas.
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Ainda um pouco mais
Quando se espreguiçava, a condessa o fazia lentamente, como se estivesse no fim de um ato amoroso que lhe custasse abandonar.
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"Poema do infante", de Antonio Carlos Secchin
"É a noite.
E tudo escava tudo
na língua ambígua que desliza
para o esquivo jogo.
Amargo corpo,
que de mim a mim se furta,
não recuso teu percurso
no hálito das pedras
que me existem em ti
- estéril dardo entre águas
estancadas.
O nada, o perto, o pouco
não posso dividir
do que se espera o que me habita,
ao fazer fluir a via antiga
de um menino que mediu o lado impuro."
E tudo escava tudo
na língua ambígua que desliza
para o esquivo jogo.
Amargo corpo,
que de mim a mim se furta,
não recuso teu percurso
no hálito das pedras
que me existem em ti
- estéril dardo entre águas
estancadas.
O nada, o perto, o pouco
não posso dividir
do que se espera o que me habita,
ao fazer fluir a via antiga
de um menino que mediu o lado impuro."
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A voz das ruas (para Arlete Franco)
Tantos decibéis
tamanha atoarda
por uma pamonha de Piracicaba.
tamanha atoarda
por uma pamonha de Piracicaba.
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Mormaço
De algumas palavras da condessa emanava certos dias um ar salino, que eu disfarçadamente colhia com a língua.
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No mínimo
Quem a própria glória mede
é tolo se a de Cervantes
e a de Shakespeare não excede.
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Coragem
Se você quer irritar um gramático, pergunte-lhe se as vírgulas servem para indicar uma pausa para a respiração.
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Da lista
E há os poetas sazonais, dispostos a celebrar incansavelmente o encanto das flores, dos frutos, das folhas, verões, outonos, primaveras e invernos. Não é preciso lê-los; é fácil distingui-los. Na mesa de trabalho têm sempre, grande, vistoso e imperativo, um calendário.
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domingo, 2 de setembro de 2018
Prêmio (para Ana Farrah Baunilha)
Se ficava satisfeita comigo pelo meu bom desempenho em alguma tarefa, qualquer tarefa, a condessa me dava pelo menos três pancadinhas na cabeça. Nesses momentos eu gostaria de saber latir triunfalmente como suas três cachorrinhas.
Nem tanto
Literatura é coisa séria, sim. Mas não exageremos. Ela não é, como gostaríamos, tão mais importante que a vida.
Vocabulário
O nome atribuído ao rumo
depende do fim da história:
o do medíocre é caminho,
o do herói é trajetória.
depende do fim da história:
o do medíocre é caminho,
o do herói é trajetória.
Trunfo
Os poetas têm uma vantagem: pelo menos no começo, os leitores esforçam-se para ver algo de especial neles.
Classificação
O ruim dos pecados é que, já na segunda vez em que cometemos cada um, começamos a compará-los e a lhes atribuir notas.
Ingrediente
Saber contar uma história não é tudo, já se vê, mas de vez em quando os novos romancistas deveriam pelo menos pensar nessa hipótese.
sábado, 1 de setembro de 2018
Um poema de Clarice Lispector
"O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição."
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição."
De junho
Confesso a você que me interessa muito mais o que aconteceu a Leopold Bloom no dia 16 de junho de 1904 do que saber como perdeu a vida na Normandia o soldado John Smith, ou o capitão Alfred Overlord, em 6 de junho de 1944. Não precisava ter dito, não é? Você há muito conhece meu grau de desumanidade.
O que
Vocês certamente imaginam do que a condessa falava quando dizia que meu amiguinho andava meio desanimado.
Quando
Você me pergunta
quando eu deixarei de ser tolo.
Eu lhe respondo:
o dia está chegando
em que deixarei de ser tudo.
quando eu deixarei de ser tolo.
Eu lhe respondo:
o dia está chegando
em que deixarei de ser tudo.
Efeitos sonoros
Se eu fosse votar num verso por sua sonoridade, seria sem dúvida este, de Bilac: "O ângelus plange ao longe em doloroso dobre."
Acontecimento (para Alfredo Aquino e Mariana Ianelli)
Os melhores poemas costumam vir misteriosamente prontos para o poeta. Este deve recebê-los com humildade e escapar à tentação de aperfeiçoá-los. Virgular é já um desrespeito.
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