sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Escambo

A mulher que matou meu amor me deixou em troca a poesia.

Prontuário médico

Quando rompeste comigo,
Sofri tu nem sabes como.
Ainda hoje me dói o figo,
Ainda hoje me dói o estomo.

Orfanato

Às vezes ela se põe a mamar o peito dele. Ele imagina quanta felicidade ela deve ter proporcionado às garotas, nos anos de orfanato.

Aquilo que é

Aquilo que é essencial
Não passa nem passará.
É sempre agora, hoje, atual,
E vive, e existe, e está.

Look

O poeta é um desses tipos que encantam à primeira vista. Da segunda em diante...

Parcialidade

Há aqueles que veem só um lado da vida. Sou um deles. Vejo apenas o lado pior.

Ele

Quando ouço alguém citar o velho doido que no tweeter só fala de amor, admito que fico desconfiado.

Metido

O amor já nem pede licença ao coração para sair dos meus lábios.

Sistema

Amor é a única palavra essencial. As outras giram em torno dela e zumbem, agradecidas.

Integridade

Um poeta pode transformar um pedaço de pão numa rosa. Mas jamais faria o contrário, ainda que morresse de fome.

Na circunstância que for,
Nada nos abalará.
O amor é o nosso pastor
E nada nos faltará.

Mens insana

Que vale mais um demente
Do que uma pessoa sã
Sei eu, sabe toda gente,
E Erasmo de Roterdã.

Nem sempre

Nem sempre o poeta corresponde ao perfil. Há alguns que, se virados de ponta-cabeça, não lhes cai uma estrela dos bolsos.

Fernanda Takai

Fernanda Takai
É o vento soprando lento
Um verso de haicai.

Hasta siempre

Tu me mataste, querida,
Pena que só uma vez.
Ah, por que o deus que me fez
Me deu somente uma vida?

Se

Se o espelho da alma for igual aos comuns, pobre dela: espinhas, rugas, chupões, brotoejas.

Trocista

Compramos o espelho, levamos para casa, limpamos suas manchas e ele nos retribui fazendo caretas.

Questão de leitura

Os passarinhos cantam porque nunca leram Machado de Assis.

"Estadão"

Às vezes, na Caetano Álvares, surgia uma lua tão grande e tão inacreditavelmente cor de abóbora e irreal que eu a olhava bem, procurando ver se não havia nela um hambúrguer com ketchup escorrendo pelas bordas e um logotipo do McDonald's.

Par

A louquinha da fazenda apaixonou-se pelo espantalho. Só ele entende as histórias que ela, enquanto lhe oferece pão e maçãs, conta interminavelmente, tarde após tarde.

Solução

Nasceu um bezerrinho com cara de gente. Assim que o viu, o fazendeiro o matou e mandou queimarem o espantalho.

Incorporação

Em noites de lua cheia, o espantalho uiva e arreganha os dentes.

Quites

Ela gostou dele pelos seus modos bruscos e sua língua áspera. Ele gostou dela por suas mãos macias e seu extrato bancário.

"Juana aos quarenta e dois", de Eduardo Galeano

"Lágrimas da vida inteira, brotadas do tempo e da pena, empapam a sua cara. No fundo, no triste, vê nublado o mundo. Derrotada, diz adeus.
   Vários dias durou a confissão dos pecados de toda a sua existência frente ao impassível, implacável padre Antonio Núfiez de Miranda, e todo o resto será penitência. Com tinta de seu sangue escreve uma carta ao Tribunal Divino, pedindo perdão.
   Já não navegarão suas velas leves e suas quilhas graves pelo mar da poesia. Sor Juana Inês de la Cruz abandona os estudos humanos e renuncia às letras. Pede a Deus que lhe dê como presente o esquecimento e escolhe o silêncio, aceita-o, e assim perde a América sua melhor poetisa.
   Pouco sobreviverá o corpo a este suicídio da alma. Que se envergonha a vida de durar-me tanto..."

(Do livro Mulheres, tradução de Eric Nepomuceno, publicado pela L&PM.)

Cúmplices

Os poetas garantem ter um pacto com as rosas e os passarinhos. As rosas não desmentem e os passarinhos não negam.

Tarde

Hora de sair para o sol, de olhar para as árvores, de tentar descobrir por que essas pequenas coisas fazem tanta gente feliz.

Barquinho

Nas ondas flutuando
O barquinho vai
Sereno levando
Fernanda Takai.

Fernanda Lima

Fernanda Lima é uma dessas belezas que o tempo constrói aos poucos, movido pelo ideal da perfeição.

No asilo

O velho Aníbal observa os estertores da mosca na sopa. Em cada olho uma lágrima. Ele se levanta, com cara de asco: justo hoje, que é canja. Afasta-se. Quando ele já está no corredor para o dormitório, eu o ouço dizer duas vezes, com voz de choro, como um filho recriminando o pai: Deus! Deus!

Blusa

Reconheci tua blusa no bazar de caridade e beijei furtivamente os ombros, rocei os lábios pelo bispo, pelo cavalo, pela rainha, cuidando para que meus suspiros fossem ouvidos só por mim e pelo meu coração atormentado.

Esmola

Coma nuvens, recomendou a mulher na porta de quem o poeta tocou a campainha.

Saneamento

Os poetas deveriam ser escorraçados e banidos assim que fossem apanhados suspirando diante de uma mulher ou de um arco-íris.

"Funeral", de Wislawa Szymborska

"Tão de repente, quem podia adivinhar?"
"nervos e cigarro, eu bem que avisei"
"mais ou menos, obrigado"
"desembrulhe essas flores"
"o irmão também foi do coração, deve ser de família"
"com essa barba eu nunca ia reconhecer você"
"a culpa é dele, estava sempre metido em alguma"
"aquele novo ia fazer o discurso, não consigo encontrar ele"
"O Kazek está em Varsóvia, o Tadek no exterior"
"só você foi esperta, trouxe o guarda-chuva"
"e daí que era o mais talentoso deles"
"um quarto de passagem, a Baska não vai concordar"
"claro que ele tinha razão, mas isso ainda não é motivo"
"com uma portinha esmaltada, adivinha quanto"
"duas gemas, uma colherinha de açúcar"
"não era da conta dele, pra que isso"
"só azuis e só números pequenos"
"cinco vezes, e nenhuma resposta"
"que seja, eu podia, mas você também podia"
"ainda bem que pelo menos ela tinha esse cargo"
"não, não sei, talvez parentes"
"o padre é a cara do Belmondo"
"ainda não estive nessa parte do cemitério"
"sonhei com ele faz uma semana, foi um pressentimento"
"não é feia a filha"
"é  que nos espera a todos"
"deem pêsames à viúva por mim, tenho que correr para"
"no entanto em latim soava mais solene"
"foi-se, acabou-se"
"adeus, minha senhora"
"que tal uma cerveja"
"me ligue, a gente se fala"
"o número quatro ou o doze"
"vou pra cá"
"nós pra lá".

(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Aquele que

O poeta é aquele bobalhão que, quando abre a boca, dela só saem flores e palavras esdrúxulas.

Aflição

Se o chicote do amor já não nos fere como antes, é hora de perguntar o que será de nós.

Deixar pra lá

Num poeta hão de se tolerar certas coisas. Se ele tirar de um bolso um coelho e começar a conversar com ele, convém não estranhar - mesmo que ele chame o coelho de Camões.

"Pegada"

Poetas costumam dar-se bem com musas. Com mulheres, nem tanto.

Melhor não

Se o nosso espelho nos diz o que diz, o que dirão os outros?

Birrento

De todos os objetos que nos cercam, os espelhos são os menos condescendentes.

Logo cedo

A primeira de nossas esperanças diárias é desfeita de manhã, pelo espelho.

Artigo 1º

A melhor forma de autoestima é a miopia.

Lógica

Quando nos olhamos no espelho e dizemos "lindo", o espelho só pode achar que estamos falando dele.

Trasanteontem

O espelho já nos viu com melhores olhos.

Cotação do dia

Tão morto quanto ontem e anteontem, com todo o tédio que isso representa.

Cópia

Que lástima escrever uma frase de ouro e descobrir que é uma frase de outro.

Anzol

Uma frase de ouro às vezes não passa de sorte de principiante. Quarenta anos depois, o escritor estará ainda lançando seu anzol, em vão.

Sentinela

Do muro eletrificado,
A incorrigível libido
Espreita o quarto apagado
Onde dorme o amor proibido.

Eco

Quando digo a palavra amor, meus lábios se enchem de abelhas que zumbem: amor, amor, amor.

Só ele

Ainda que nos atire contra os rochedos e nos afogue nas profundezas, jamais aceitaremos um timoneiro que não seja o desastrado amor.

"Opinião sobre a pornografia", de Wislawa Szymborska

"Não há devassidão maior que o pensamento.
Essa diabrura prolifera como erva daninha
num canteiro demarcado para margaridas.

Para aqueles que pensam nada é sagrado.
O topete de chamar as coisas pelos nomes,
a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
a perseguição selvagem e debochada dos fatos nus,
o tatear indecente de temas delicados,
a desova das ideias - é disso que eles gostam.

À luz do dia ou na escuridão da noite
se juntam aos pares, triângulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros.
Seus olhos brilham, as faces queimam.
Um amigo desvirtua o outro.
Filhas depravadas degeneram o pai.
O irmão leva a irmã mais nova para o mau caminho.

Preferem o sabor de outros frutos
da árvore proibida do conhecimento
do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
toda essa pornografia na verdade simplória.
Os livros que os divertem não têm figuras.
A única variedade são certas frases
marcadas com a unha ou com o lápis.

É chocante em que posições,
com que escandalosa simplicidade
um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kama Sutra conhece.

Durante esses encontros só o chá ferve.
As pessoas sentam nas cadeiras, movem os lábios.
Cada qual coloca sua própria perna uma sobre a outra.
Dessa maneira um pé toca o chão,
o outro balança livremente no ar.
Só de vez em quando alguém se levanta,
se aproxima da janela
e pela fresta da cortina
espia a rua."

De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Paranoia

Depois que entrei no tweeter, estou estranho. Sempre acho que tem uma multidão me seguindo.

Trilhas

A língua enxerga no escuro.

Habilidade

Para realizar seus melhores truques, a língua prescinde das palavras.

Possibilidades

A língua é como um garoto solto no supermercado. Ninguém nunca sabe onde ela vai se enfiar.

Esperança

Talvez o amor nos diga um dia aquele seu outro nome que só aos seus mártires ele revela.

29 de outubro

Agora que a eleição acabou, durmamos sem um barulho desses.

Acessório

Um pouco de luxúria para amornar a brisa desta tarde.

Batom

A língua voltou vermelha, escorregadia, mordida e com gosto de morango.

Provedor

Sem o amor, quem garantirá a tristeza dos nossos olhos?

Inventário

Com o poeta foi encontrado
Um poema curto, um cartão
E também um coração.
Tudo, claro, em mau estado.

Quarta

Será mais um dia em que morreremos mais um pouco, jubilosos pela renovada ventura que é ir morrendo pela sagrada causa do amor.

Nós não

O amor mata pelo menos um de nós por dia, como numa novela de Agatha Christie. A cada morte nos apalpamos, incrédulos, com a tristeza lenta dos excluídos.

Perfeição

O espantalho novo era tão convincente que a lua, por um instante, se escondeu atrás de uma nuvem, com a mão nos seios.

Um trecho de Herta Müller

"As ninhadas de gato que nasciam no inverno eram afogadas em um balde com água quente, e aquelas que nasciam no verão, em um balde com água fria. Após o afogamento, os gatos eram enterrados no monte de esterco, tanto no inverno como no verão."

(De Depressões,tradução de Ingrid Ani Assmann, publicado pela Editora Globo.)

Cotação do dia (3)

Me sinto como uma borboleta espetada, observada por um menino que diz a outro: olha que feia, esta.

Cotação do dia (2)

Se um cachorro me seguir por um quarteirão, ou meio, acreditarei que Deus existe.

Cotação do dia

Tudo maravilhosamente cinza e melancólico.

Perfeição

O espantalho novo era tão convincente que a lua, por um instante, se escondeu atrás de uma nuvem, com as mãos nos seios.

Caçamba

Veio então o garrafeiro
E carregou com cuidado
Um coração bom, inteiro,
Pelo amor cruel rejeitado.

De todo o amor, restou só
Um livro como lembrança.
O resto, o sonho, a esperança,
Virou cinza, nada, pó.

Laudo

Só após termos sofrido
Até à exasperação,
Chegamos à conclusão:
O amor não vele um gemido.

Foi

Pois é, foi belo, foi lindo,
Como um sol de primavera.
Pois é mas não era infindo,
Pois é, foi lindo, já era.

Guichê

Sei bem qual é meu quinhão.
Dos prêmios sempre o menor,
Dos males sempre o pior,
Das culpas a danação.

"Certa gente", de Wislawa Szymborska

"Certa gente fugindo de outra gente.
Em certo país sob o sol
e algumas nuvens.

Deixam para trás certo tudo o que é seu,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos nos quais agora se fita o fogo.

Trazem às costas trouxas e potes
quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia.

No silêncio alguém cai de exaustão,
na algazarra alguém rouba de alguém o pão
o filho morto de alguém é sacudido.

À sua frente uma estrada sempre errada,
uma ponte, mas não a de que precisam,
sobre um rio curiosamente rosado.
Ao redor uns disparos, ora mais perto, ora mais longe,
no alto um avião meio rodopiante.

Viria a calhar certa invisibilidade,
uma parda rochosidade
ou melhor ainda a inexistência
por um tempo breve ou mesmo longo.

Algo ainda vai acontecer, mas onde e o quê.
Alguém vai lhes barrar o caminho, mas quando, quem,
em quantas formas e com que intenções.
Se tiver escolha,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida."

(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Linha reta

Geralmente os preconceitos são confirmados pelos pós-conceitos.

Cotação do dia

O médico lhe disse que tudo estava bem, que só lhe faltava um pouquinho mais de vontade de viver. E um gato.

Fora do expediente

À noite, quando ninguém o fiscaliza, o espantalho come maçãs e vai beber água no riacho.

A norma

Tudo que vive finda,
A norma há de vingar.
E o que não nasceu ainda
Também há de findar.

Modo de usar

A vida talvez seja mesmo boa. Viver é que é difícil.

A dona

A menininha recolhe a folha do chão e dá à mãe. A mãe diz que a folha é da árvore. "Quer, árvore, quer?", a menina então oferece.

Ardil

É um bem-te-vi que, expulso e ignorado pelo grupo, chama os outros e ele mesmo responde, falseando o gorjeio.

Onde se fala de combates e derrotas (versão final)

Não temos nada a fazer.
Lutamos muito, perdemos,
Vivemos muito, sofremos,
Nos resta apenas morrer.

Nos contentamos em ter
Se não o que pretendemos,
Se não o que merecemos,
O que pudemos colher.

É pouca coisa, talvez,
Para quem fez o que fez
Pensando em tudo ganhar.

Mas está ditada a sorte,
Lutar não adianta. A morte
Logo virá nos chamar.

Promessa

Morderia tua blusa e mastigaria, até esfarinhá-los, esses malditos botões que se obstinam em me privar do calor do teu colo.

Norma

Que nós saibamos morrer,
Que alívio não supliquemos,
E nunca venha a saber
O ingrato amor que morremos.

Oxalá

A única esperança é a de que a alma exista, mesmo, e não seja tão tola quanto o coração.

"Primeira foto de Hitler", de Wislawa Szymborska

"E quem é essa gracinha de tiptop?
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe;
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão essas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?

Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.

Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.

Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos."

(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O drama

O drama não é ficar velho. É perseverar.

Dor

Lembro-me de tudo, até
(Lembra?) daquela migalha
Que deslizou na toalha
Na mesinha do café.

Identidade

Amanhã seremos os mesmos, se nos reconhecermos.

Providência

Quando vai falar de amor, ele primeiro tira o pó das quatro letras.

Lances

Imaginar que os dedos são peças e jogar xadrez na blusa dela,

Aniversário

Não te mandarei flores, desta vez. Flores não miam, não se espreguiçam no colo, não pedem afagos.

Sombra

Quem participa de redes sociais tem sempre a impressão de que está sendo seguido.

Mau passo

Quis acompanhar os passos da garota. Tropeçou na bengala.

Experiência

Fala do amor com conhecimento de causa: foi arruinado por ele.

Fernanda Lima (2ª edição)

Fernanda Lima é magia,
O poema da exatidão,
Os números da escansão
E a alma da geometria.

Dever

De todos, o mais atroz,
O que mais nos suplicia,
Passo a passo, noite e dia,
É o dever de sermos nós.

Pauta

Escrever bem pouco, menos,
Não falar mais da tristeza,
Cantar o amor, a beleza
E outros assuntos amenos.

Prudência

Ninguém que tenha juízo
E saiba a vida viver,
Deve com o amor se meter
Se não for mesmo preciso.

Que seja então adeus (versão final)

Se já não te anima a chama,
Aquela que à vida dá
O sentido que nela há
E identifica quem ama.

Se a ti já não te comovem
Aquelas tardes douradas,
Aquelas juras juradas
Que a mim até hoje me movem.

Se este amor que me enternece
Ao teu juízo parece
Ter chegado já ao fim,

Se já não lembras de mim
Nem estou nos sonhos teus,
Que seja isto, então: adeus.

Coautora

De ti sou um devedor.
Com o amor que não me deste
E com a dor que me impuseste
Tu me tornaste escritor.

Estoque

Que o blog sobreviva, se puder, dos velhos frutos. Os novos, se nascerem, serão murchos e mesquinhos.

Tato

Na escuridão do quarto, sua mão busca a flor ruiva.

27 de outubro

O último carro de som sumiu na esquina. Talvez a poesia possa murmurar alguma coisa, agora.

Certeiro

A chuva desviou seus pingos, para poupar-te, mas um deles, atrevido e amoroso, caiu em tua testa e, descendo pelo nariz, beijou teu batom escarlate.

Soneto da tristeza circense (versão final)

Escrever foi a sina que me coube
E crendo nessa sina me empenhei
Como pela coroa luta um rei,
Entretanto escrever eu nunca soube.

Derrotado, infeliz, amargurado,
Vencido pela própria incompetência,
Tenho afinal agora a consciência
De que escrever jamais foi o meu fado.

Se fosse, o amor jamais escarneceria
De meus versos, de minha poesia,
Não os submeteria a humilhação.

Se fosse, o amor acaso chamaria
Este texto, que eu chamo de elegia,
De farsa ou de comédia-pastelão?

Fernanda Lima

Fernanda Lima deveria ser nomeada ministra das segundas-feiras, para enfim redimi-las.

Fonte

Eu te beberia inteiro, minha fonte, até que em minha garganta a tua água salina começasse a emitir grugrulejos, como se nela murmurasse o mar.

Me diz

Em ti, coração de pedra,
Alheio à dor e à tristeza,
Algum sentimento medra,
Além da crua aspereza?

Peça

A ele coube o papel de morrer de amor, enquanto os outros morrem estrangulados pela luxúria que os aperta como uma sucuri no cio.

Desdém

No tempo em que a vida sorria para nós, éramos jovens e orgulhosos demais para lhe dar atenção.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Não ouso trabalhar nada mais esta noite. Aqui, eu tenho uma terrível insônia e sofro de terrores noturnos. Foi por isso que pedi um outro Dickens; se leio Dickens na cama, ele distrai o meu espírito. Meu trabalho me excita de tal forma que à noite me sinto quase insana e durante todo o dia trabalho quase sem interrupção. Uma grande parte já está copiada e endereçada a você, para o caso de me acontecer algum infortúnio. Coragem! Há um grande pássaro negro voando sobre mim, e eu tenho tanto medo de que ele pouse, fico tão aterrorizada. Não sei exatamente que espécie de pássaro é ele."

(De Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicação da Editora Revan.)

domingo, 26 de outubro de 2014

De joelhos

O melhor amor é aquele que nos põe de quatro, para adorá-lo.

Sabedoria

Saiu à janela e gritou amor, como se depois de sete décadas houvesse afinal descoberto a essência a a razão de viver.

Primazia

Quem pichou teu nome no muro, amor, te merece mais do que eu.

Baba

Quando me põem a sopa, no asilo, proíbem-me de falar de amor, para o prato não transbordar.

Eleição (3)

Gostaria de ser preso por fazer boca de urna para o amor.

Eleição (2)

Bom seria um domingo em que tropeçássemos em impressos nos quais houvesse, só, a soberana face do amor.

Eleição

Eu me esgueirei, vi que não havia fiscal nenhum por perto e gritei: amor.

Escolha

Morrer é uma das hipóteses que o generoso amor nos oferece.

Um dia

Um dia irei gritar teu nome aí com tanto escândalo e impudicícia que só te restará açular tuas cachorras contra mim. Reconhecendo-me, elas me lamberão o rosto antes de morder-me e devorar-me.

www.rubem.wordpress.com

Hoje, uma situação familiar. Um avô, seu neto, uma aventura no quintal. No início da história um gato, que é sempre a melhor maneira de começar um relato (ou terminá-lo). Bom domingo.

Bom dia

Bom dia para os sobreviventes da noite, para os supliciados do amor e de suas lembranças, para os que veem no sol uma trégua para o sofrimento. Boa noite para os que regaram a madrugada com suas lágrimas. Se eu fosse escritor, teria composto um poema, ou ao menos alguns versos que pudessem talvez confortar, com a minha desgraça, desgraças alheias. Tenho para dar a vocês, companheiros de infortúnio amoroso, um silêncio que já anuncia, sem palavras, o silêncio final. Que eu esteja sofrendo as derradeiras dores, e que a vocês seja dado ainda um tempo para que o amor, castigando-os, os faça receber na carne e na alma aquele martírio cheio de venturas que só o amor pode propiciar.

Cotação da madrugada (2)

Fiz tanto estardalhaço aqui, esparramei tanta espuma, espalhei pétalas, falei de amor como se de amor entendesse. Foram quatro anos e meio. Esse foi o tempo que durou meu ímpeto, essa a eternidade que cantei em meus desvarios. Eu me iludi, eu os iludi. Sou apenas uma pessoa reles, abjeta, desprezível. Desculpem-me ao menos, se não puderem perdoar-me.

Cotação da madrugada

Blog febril, morituro. Autor febril, morituro. Tudo assim, banal. Não tenho mais forças para a poesia, para o drama, para a corda libertária. Deus, que fim!

sábado, 25 de outubro de 2014

Cotação do dia (2)

Ter morrido há muito tempo nos traz a vantagem de quase nem nos lembrarmos mais.

Personagem

Nenhuma sala, por mais requintada que seja a decoração, está completa se nela faltar um sofá cheio de pelos de gato.

Cotação do dia

Há sábados em que a gente gostaria de ter morrido na sexta.

Fernanda Lima

Para enumerar as metáforas de beleza que cabem a Fernanda Lima, uma centena precisará representar mais do que cem, e a casa do milhar haverá de ser um esplendoroso palácio.

Pós-banho

Escrever sobre ti me provoca um êxtase igual ao que sentia o escravo favorito da rainha Krystal quando era chamado para enxugar com os lábios cada um dos dedos do seu pé.

Hierarquia

Depois dos beijos e de tudo mais, ela jamais se esquecia de me dizer obrigado, para que eu não ousasse ver naquilo algo mais que um trabalho prestado.

Um trecho de Herta Müller

"Eu ia para o quintal penteada e vestida e me trancava na privada, abaixava a calcinha e me sentava na fedida casinha chorando alto para mim mesma. Chorava lá para ninguém me apanhar e, quando ouvia passos lá fora, imediatamente me calava e fazia barulhos com o papel higiênico, pois sabia que nesta casa não se podia chorar sem motivo. Mamãe me batia às vezes quando eu chorava, e dizia, bem, agora você finalmente tem um motivo."

(Do livro Depressões, tradução de Ingrid Ani Assmann, publicado pela Editora Globo.)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Cassino

Uma frase de ouro às vezes não passa de sorte de principiante. Trinta, quarenta anos depois, o escritor estará ainda procurando outra.

Choque

Que lástima escrever uma frase de ouro e descobrir que é uma frase de outro.

Tetas

Me agradaria mamar em ti gulosamente, como se eu fosse aquele teu filho estragado pela criada viciosa e pelos livrinhos de sacanagem.

Lucro (para a Pris)

Eu te agradeço as horas de aflição,
Cada minuto agudo de agonia,
Cada dor, cada mortificação
Que me reconciliaram com a poesia.

Despudor

Como alguém há de levar a sério quem, sem o menor pudor, se diz poeta?

Argh

"Ao fim e ao cabo" é o mais pernóstico e desavergonhado pleonasmo que eu conheço.

Passa-se o ponto

Amanhã ou depois, o blog será uma lembrança para poucos. Tanto clamor passou por ele, tanta dor, tantos anseios, e, no entanto, quem puser os olhos sobre ele verá uma casa comum, onde será lícito supor que tenha vivido um pachorrento professor de geografia ou um corretor de seguros. Não, não serão lágrimas as manchas nas paredes. Serão a umidade e o descaso do proprietário, de quem se dirá vagamente que morreu ou foi morar em Piracicaba.

Cotação do dia

Só nós vemos no céu azul as nuvens funestas. Não é um privilégio.

Um poema de Emily Dickinson

"Do Drama, a mais viva expressão é o dia comum,
Que nasce e morre à nossa vista;
Diversamente, a Tragédia,

Ao ser recitada, se dissipa
E é melhor encenada
Quando o público se dispersa
E a bilheteria é fechada.

"Hamlet" seria Hamlet,
Inda que Shakespeare não o criasse,
E "Romeu", embora sem mais lembranças
De sua Julieta,

Seria perpetuamente encenado
No coração humano -
Único teatro que, sabidamente,
O proprietário não consegue fechar."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Número

Enredados num número formado pelo seis e pelo nove, ele e ela provam o sal da vida.

23 de outubro

Adianta abrir o jornal?
Procuro Pessoa em vão,
Borges, Machado, Nerval.
Maldita seja a eleição.

Querer, querer, querer

Queremos, queremos, queremos. Pequeno é o mundo para tanto querer. Quando essa obsessão se torna maior do que nós, astuciosamente nós a chamamos de amor ou ideal.

Livro

Folheei hoje um livro que me deste, e as páginas, estranhando a aspereza de minhas mãos, perguntaram onde estavam as tuas mãos. Respondi que no peito de um marinheiro.

Último raio de sol

O amor é uma garota desenganada que pede para ir ao jardim do hospital para ser tocada pela última vez por um raio de sol.

Beleza

Beleza, é em teu louvor
Que os astros brilham de espanto,
Que as rosas nascem do encanto
E os homens morrem de amor.

Grude

O próximo sempre tende a se tornar promíscuo.

Aparência

Pior se aqueles dois chumaços de algodão nas narinas nos deixarem com cara de palhaço.

Astúcia

Sair do palco da vida tão sorrateiramente que a vaia só nos pegue já no cemitério.

Cócega

O pior que pode acontecer a um morto é não poder dar um tabefe na mosca que insiste em pesquisar qual é a sua narina direita e qual é a esquerda.

Cotação da noite

Se no último suspiro disseres o nome dela, talvez só fique um fio de saliva no travesseiro do hospital.

Minha vida coube em tua bolsinha

Se eu do amor fosse ainda crente
Se dele não desconfiasse,
Se eu fosse tolo, inocente,
Talvez o amor compensasse.

Talvez, se nele eu confiasse
Como confiei ternamente,
Eu outra vez me enganasse,
Talvez pior que antigamente.

Mas uma coisa não mais
Eu poderia jamais
Dar a ti como ontem dei:

A vida, que tu pegaste,
Na tua bolsa guardaste,
E eu nunca recuperei.






Cotação do dia

O blog e o autor respiram por aparelhos.

1900 e nada

Morrer de amor é coisa tão antiga. E eu sou tão saudosista.

Resumo

Tanta trigonometria,
Tanta hipotenusa, abscissa.
No fim, a dor, a agonia,
A morte, o velório, a missa.

Inveja

Quando penso que decerto há homens muito mais tristes do que eu, sinto ser essa uma de minhas mais deploráveis inferioridades.

Prodigalidade

É generoso o amor. Sempre nos dá mais corda do que aquela de que precisamos para nos enforcar.

Exemplo

Por que Deus não nos fez pequenos como as formigas? Não conheço uma formiga barriguda, jactanciosa, literata, cineasta. Nenhuma que ambicione o Oscar ou o Nobel.

Cotação do dia

Palavras exauridas, nenhuma ideia. Forças para no máximo um haicai, o último.

Um trecho de Luiz Carlos Cardoso

"Fracassado, sim. Mas acho que perdedor expressa melhor essa condição. Ou seja, é o especialista em perder, devido a uma falha trágica em si. Falha trágica também não, pois essa impõe um valor de rei Édipo que é exagerado atribuir ao perdedor. Enfim, sempre perde, o perdedor. E de tal modo traz incutida a sina de perder que se especializa nos empreendimentos cujo fracasso seja mais inevitável e rápido. Seu sentido se apura na intenção de farejar a perda possível, persegui-la e alcançá-la."

(Do romance Crime improvável, publicado pela Ficções.)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Odisseia

Ao ouvir o canto das sereias, Ulisses amarrou-se no próprio mastro.

Lacuna

Para um cachorro se igualar a um gato, só lhe falta a majestade.

Definição

Um nefelibata autêntico não cai das nuvens nem que chova.

Anódinos

Há amores que não chegam a manchar a reputação de um homem, nem sua camisa de batom.

Aniversário

Obrigado pelas setenta e seis flores que não me mandaste. Meu gato não olhará para elas com ciúme e terá lugar sobre a mesa para se escarrapachar, se quiser.

BO

No dia em que o desmascararam, ele já havia convencido mais uma incauta de que era a reencarnação de Castro Alves.

Segundo turno

Para onde foi a poesia?
Só escuto rataplãs
Que prometem, noite e dia,
Mentirosos amanhãs.

Perfil

É uma indesculpável rata,
Não pega bem, soa fraco,
Pegar um cão vira-lata
E o chamar de fura-saco.

Escritor

Um escritor é alguém que preserva suas memórias e ousa modificá-las.

Soneto de como se acende o fogo do amor e do sexo (versão final)

Se bem que, ao se resumir,
Mais chances haja de errar,
Mulheres gostam de ouvir
E aos homens cabe falar.

A alguns agrada mentir,
No louvor exagerar,
Maior afeto fingir,
Paixão maior simular.

Vale tudo nesse jogo,
Vale até mesmo a verdade.
Importa apenas que o fogo,

Seja do amor ou do sexo,
Arda com intensidade
A um simples beijo ou amplexo.

"A ponte", de Mario Benedetti

"Para cruzá-la ou não cruzá-la
eis a ponte

na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país

trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar

venho com as faces da insônia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra

nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco

eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções

na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país."

(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Haicai

Na areia teu nome:
Momento que o tempo, vento
Contínuo, consome.

Haicai

O vento, ao passar,
Furtou três folhas, lançou
Três barcos ao mar.

Haicai

Navio a zarpar.
Os lenços, pombos suspensos,
Anseiam voar.

Barcaça

 O mais infeliz dos homens é aquele que sobrevive ao naufrágio do amor.

26 de outubro

Não precisa me bajular tanto, eu sou apenas um eleitor.

Detalhe

Acariciou também aquela perolazinha que parecia um delicado fruto do umbigo.

Tempo

Por mais um desses enganos
Que falseiam a verdade,
O amor durou só dois anos,
Em vez de uma eternidade.

Soneto da integridade do ser (versão final)

Nós fomos tão aplicados,
Nós nos esforçamos tanto,
Quisemos ser, e no entanto
De ser já estamos cansados.

Fomos tão compenetrados
(Nem mesmo Deus sabe quanto)
Que hoje o nosso riso e o pranto
Repetem ritos passados.

Buscamos nossa unidade,
Nossa personalidade,
Ousamos ser novo ser.

Podendo ser tantos, somos
O que ontem e anteontem fomos,
E assim sempre, até morrer.

Pedinte

O artista é um cachorro inseguro que suplica constantes afagos. Vende uma obra-prima por um sorriso e, já no instante seguinte, acha que lesou o comprador.

Um trecho de Choderlos de Laclos

"À espera da felicidade de te rever, entrego-me, minha doce amiga, ao prazer de te escrever. E é ocupando-me de ti que empresto algum encanto ao pesar da distância. Retraçar meus sentimentos, recordar-me os teus, é para meu coração verdadeiro gozo; e é com este que mesmo o tempo das privações oferece mil bens preciosos a meu amor."

(De As ligações perigosas, tradução de Sérgio Milliet, publicação do Círculo do Livro.)

Fernanda Lima

Dizer que Fernanda Lima é bela, só, é um erro que se comete em nome da concisão.

Acalanto

Ah, durmamos, durmamos, nesta abençoada hora da noite em que as batalhas eleitorais arrefecem.

Insônia

Que Morfeu venha logo e que não peça o meu voto.

Alma

A gaiola escancarar,
Mirar o céu, as estrelas,
Querer tocá-las, vê-las,
Ganhar a amplidão, voar.

Fernanda Lima

Num possível dicionário de metáforas, arco-íris seria um dos sinônimos de Fernanda Lima.

Oportunismo

O carro da Cândida passou há um minuto - e já há quem queira votar nela.

Caçamba

Dos escombros eleitorais saiu uma voz fina, pedindo clemência. Era a poesia.

O impossível

Encontrar um soneto rabiscado no verso de um santinho eleitoral.

Questão de higiene

Quando o amor põe as luvas, não é para não deixar suas impressões digitais, mas para não sujar seus dedos em nossa garganta.

Mordomo

A partir do momento em que numa trama se introduz o amor, todos os outros suspeitos perdem um pouco de sua importância.

Brasil

E aí, Pero Vaz? Esse gigante caminha ou não caminha?

Gosto

Na língua, o morango que ele colheu nos lábios escorregadios de batom.

Soneto da paz que se procura merecer (versão final)

Agora os dias inteiros
São nossos. Nada nos chama,
Ninguém mais nos quer nem ama,
Nós fazemos os roteiros.

O amor já não nos reclama
Aqueles atos useiros
Nem os tormentos vezeiros,
Extinta está sua flama.

Agora que estamos sós,
Cuidemos enfim de nós,
Busquemos a nossa paz.

Possamos hoje ser só
Aquele pouco de pó
Sob a inscrição: aqui jaz.

"Subúrbia", de Mario Benedetti

"No centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
há uma fonte luminosa um chafariz
que levanta convicções coloridas
e é lindo contemplá-las e segui-las

no centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
há uma dor que palmo a palmo
vai ganhando seu tempo
e é útil aprender sua marca firme

no centro da minha vida
no núcleo capital da minha vida
a morte fica longe
a calma tem cheiro de chuva
a chuva tem cheiro de terra

isto me contaram porque eu
nunca estou no centro da minha vida."

(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Birras

De quem diz seminal, mulherio, patota, visceral, crucial. E de quem não diz amor quando quer dizer.

Soneto dos dois vitais aprendizados (versão final)

Viver não faz meu estilo.
Não tenho preparo, jeito,
Em tudo vejo defeito,
Ou nisto, ou nisso, ou naquilo.

Disseram que era tranquilo,
Que eu logo estaria afeito,
Que para viver fui feito,
E mais isso e mais aquilo.

Eu só sei que envelheci
E a viver não aprendi,
Nem sei se vou aprender.

O que me aflige é pensar
Se saberei me portar
Quando me couber morrer.

Soneto de quantos podem ocupar uma cama

A ti eu não mentirei.
Ao saber que até o Loxas
Te andou metido nas coxas,
Admito que me queimei.

E quando me confirmaram
Que os dedos de Ígor Catunda
Dedilharam tua bunda,
Meus nervos se alucinaram.

Confesso que isso me doeu:
Por que todos menos eu?
Mas, depois da frustração,

Aceito já o fracasso
E a pergunta que me faço
É outra agora: por que não?

Dublagem

Não era a tua voz, amor, mas como a brisa a imitou bem esta noite, sussurrando na veneziana.

Jardim

A lambida do vento arrepiou a nuca da rosa.

Técnica

São a língua e os dedos que preparam o corpo para a semeadura do amor.

Salivas

O que uma língua tem a dizer a outra nem sempre se exprime com vogais e consoantes.

Meia-noite

Uma língua solícita é um bem inestimável.

Imposição

À noite, o ardiloso Satanás lhe impõe uma sede que somente fontes salinas podem saciar.

Esquinas

Esqueceu a língua em algum lugar, na noite cheia de sussurros, apelos e mormaço.

O amor é...

Se um dia se encontrar uma definição para o amor, ela virá da inspiração de um poeta.

Logotipo

Cinco dedos torcendo o pescoço de uma rosa - essa é a imagem que tenho hoje do amor e de sua mão impiedosa.

Quantas

Quantas velas gastarei ainda contigo, amor, meu mau defunto?

Terceirizando

Para poupar o amor, eu mesmo teci a teia na qual ele me enredou. Se eu o tivesse, lhe daria também o ferrão com que ternamente me matou.

Relendo Pessoa

Não sou um animal sadio
não tenho cio
não fornico
não procrio

Tenho uma vida discreta
e se sou louco
como queria o poeta
sou mas só um pouco.

"Transgressões", de Mario Benedetti

"Todo mandato é minucioso
e cruel
eu gosto
das frugais transgressões

por exemplo inventar o bom
amor
aprender
nos corpos e em seu corpo

ouvir a noite e não dizer
amém
traçar
cada um o mapa de sua audácia

mesmo que nos esqueçamos
de esquecer
é certo
que a recordação nos esquece

obedecer cegamente deixa
cego
crescemos
somente na ousadia

só quando transgrido alguma
ordem
o futuro
se torna respirável

todo mandato é minucioso
e cruel
eu gosto
das frugais transgressões."

(Do livro Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicado pela Record.)

domingo, 19 de outubro de 2014

Caçamba

Se o amor leva jeito de ser um desses cujas marcas você não poderá mostrar daqui a dois anos, melhor deixá-lo já. Não se exigem sonetos nem quadrinhas laudatórias, mas que haja ao menos um papel rabiscado, mesmo que com erro de português: ti amo.

Sinônimos

Quando não falo mal da vida, falo mal do amor. É o preço que pagam certos sinônimos.

Ouropéis

Amor é uma dessas baboseiras às quais damos tanto valor que acabam se tornando coisas sérias

Soneto da mútua compaixão (versão final)

Talvez um dia saibamos
O que de fato ocorreu
Com o afeto que alimentamos
E tão depressa morreu.

Jamais nós nos explicamos
Como foi que aconteceu,
Onde foi que nós erramos,
Se a culpada és tu ou eu.

Aquele amor declarado
E tantas vezes jurado
Terá sido só ficção?

Se foi, é hora de assumir
E de nunca mais mentir.
Tenhamo-nos compaixão.

Cotação do dia

Uma lacuna, uma angústia, uma perda. Continuo onde há quatro anos me disseram que ela ia passar. Já se tornou um gato velho o gatinho que lhe trouxe de presente.

Despeito

Quando Mario Quintana saía, de manhã, os passarinhos falavam mal dele.

O Altair

Pena eu não poder, quando ouço os passarinhos lá fora, distinguir qual deles canta. Como gostaria de dizer: olha o Fagundes, olha o Lino, olha o Nico. Talvez seja melhor assim: não saber que não canta mais o Altair, porque morreu.

Soneto do amor esmoler (versão final)

É triste o tempo em que o amor
Esquece a origem divina,
A mão estende na esquina
E esmola sem pundonor.

Pede por Deus, por favor,
À mulher feita, à menina,
Uma porção pequenina
De simpatia ou calor.

E a quem lhe nega atenção
Encara com brusquidão
E ameaça as chagas mostrar -

Pretexto que ele sempre usa
E do qual até abusa
No ofício de pedinchar.

Soneto do dia depois do qual nenhum outro haverá (versão final)

No dia que nos tocar,
Saibamos agradecer
O que pudemos viver
E de nada nos queixar.

Na hora de os olhos fechar,
Possamos enaltecer
O que eles puderam ver:
O céu, os barcos, o mar.

Se alguém, contudo, trouxer
Em um recado bonito
O adeus daquela mulher

Que tanto amamos outrora,
Cuspamos nesse maldito
E o botemos para fora.

Empáfia

O best-seller é o déspota da literatura. Empurra os outros livros na estante, faz chacota deles e pensa que cada Monsieur M ou Mademoiselle N de uma página qualquer, das suas seiscentas, são mais importantes que Ana Karênina ou Madame Bovary.

Sombra

Em cada ficção, a morte deve estar sempre presente, como está na vida. O leitor precisa senti-la em cada passo, ainda que seja um momento em que o personagem A vai simplesmente atravessar a rua.

Gole

Tomamos um gole. Soubemos que maior ventura jamais seria provada pelos nossos lábios. Conservamos o gosto enquanto pudemos. Ficamos ali, como se, ficando, pudéssemos travar o tempo. Passou-se uma hora, duas. Chegou a noite, densa, mas não nos importava mais olhar para o rio. Sabíamos que era outro, já. Mesmo assim, bebemos outro gole. E foi como nos disseram que seria. Era água, só água.

Ídolos

Yukio Mishima, Raul Pompeia, Stefan Zweig, Robin Williams.

Pechisbeques

O pior tipo de poeta é aquele que adorna a beleza com tantas bijuterias que a transforma numa caipirona velha vestida como puta para um jantar beneficente.

Miragem

Lábios esquivos, quimera, doçura imerecida, inalcançável tesouro, como parecia sempre impossível cada beijo antes, e inacreditável depois.

Recaída

O amor é aquele assunto desagradável e cabuloso ao qual nós sempre queremos voltar.

"Síndrome", de Mario Benedetti

"Ainda tenho quase todos meus dentes
quase todos meus cabelos e pouquíssimos brancos
posso fazer e desfazer o amor
subir uma escada de dois em dois
e correr quarenta metros atrás do ônibus
ou seja que não deveria sentir-me velho
mas o grave problema é que antes
não reparava nesses detalhes."

(Do livro Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Record.)

sábado, 18 de outubro de 2014

Cotação da noite (2)

Seguir na tarefa de editar o amor, mantendo só as boas passagens e melhorando-as. Deixá-lo ridículo, infantil, risível, como ele foi tantas vezes e deveria ter continuado a ser.

Cotação da noite

Novamente pegar a história do amor e expurgá-la. Cada vez ela fica melhor, como uma dessas novelas adolescentes. Foi assim, é, foi assim, tenho certeza, eu digo à minha consciência quando ela se põe a resmungar.

Soneto dos dias em que buscas o amor (versão final)

Que tristes são esses dias
Em que sais buscando o amor
E voltas com o dissabor
De vires com as mãos vazias.

Que tristes as ironias
Que com todo o despudor
Te lançam seja onde for,
Além de outras vilanias.

Até quem por quem sofreste
E por quem quase morreste
Te olha com sumo desdém.

E pensar que é só por ela
Que manténs a vida e aquela
Tênue esperança também.

Misericórdia

Por um defeito do pintor ou da tinta, o homem com a espingarda, na tela, envelhece. Talvez a lebre se salve.

... se lhe parece

Conforme seja o seu gosto,
Ou o seu modo de ver,
Morrer é um modo suposto
De continuar a viver.

... queijo queijo

Podes ser puro, ético, honesto. Isso é contigo. Se fores romancista, porém, não contamines teus personagens com essas virtudes. Nada mais insosso que hagiografias disfarçadas.

Babão

O amor é o bobo da aldeia.
Vive de boca aberta,
não para dizer a palavra certa,
mas para lamber a lua cheia.

São Paulo, sábado, 9h

Na pracinha, vinte manifestantes olhando feio para o céu e clamando: "Chove, filho da puta!"

Ídolos

Ernest Hemingway, Van Gogh, Virginia Woolf, Marilyn Monroe.

Assim

Nós nos encontraríamos e nos sentaríamos a uma mesinha. Sem um beijinho, sem um abraço, sem um oi (as palavras nos cansaram tanto, e já não confiamos em nenhuma...). Teríamos combinado que seriam irrevogavelmente dez minutos. Pediríamos o protocolar cafezinho com pão de queijo. Nos olharíamos finalmente como deveríamos ter nos olhado sempre. Não perguntaríamos nada de nós. Só nos olharíamos, olharíamos. Dez minutos para nos olharmos e guardarmos para sempre nossos rostos no nosso melhor dia. Depois nos iríamos, sem um beijinho, sem um abraço, sem um até mais. Jamais nos veríamos. E eu não precisaria de mais nada para me reconciliar com a vida e com a ideia de que nem tudo que se diz com a voz da paixão é mentira.

Velho

Até os orelhões deram de enganar o poeta velho. Quando ele começa a contá-las, à noite, elas se multiplicam, se dividem, se mesclam, se confundem, e morrem de rir. Como é cruel o riso de uma ovelha.

Como o amor deve ser

O amor tem de ser como um abraço de sucuri: único, fatal. Deve estraçalhar os ossos e fazer saltar fora o coração - e a alma, se houver.

Certos dias

Há dias em que o amor, mais generoso, nos dá quatro ou cinco deliciosas chibatadas a mais, antes de nos soprar as costas.

O amor, aquele cansaço

O amor parece aqueles cursos longos, de anos e anos, em que no final nos negam o diploma. Isso depois de todo o cansaço de tentar conhecer a amada ou o amado, de saber se ele ou ela gosta de verde ou azul, se ama ou se detesta Woody Allen, de lembrar se seu aniversário é em setembro ou agosto. Melhor entrar num bar noturno, com o nome talvez de Copacabana, encontrar uma dançarina chamada Lola, descobrir que mediante um agradinho ela pode depois do show se mostrar melhor a você num motel, incluindo uma tatuagem de L num lugar que você talvez imagine - e ir.

Cotação do dia

Hoje você não reconheceria aquele que você matou de amor. Estou bem pior.

Época

Nessa época, a do amor, você estava aprendendo uma linguagem semelhante à da poesia. Você se esqueceu de tudo. Restaram o caderno e as garatujas.

Ardilosa

A poesia sempre dá um jeito de nos pegar desprevenidos. É infatigável, meticulosa, e usa truques sujos, como fazer surgir à nossa frente, um menino cego diante de um arco-íris.

De cara

O que logo notei em você foram sua boca e seus dentes. Imaginei, já naquele instante, as palavras com que ela me feriria e os sulcos que eles abririam em minha carne.

Quase dez

Dizem que somos uma seita. Não sei. Somos sete, raramente oito ou nove. Acreditamos na beleza e a cultuamos. Alguns nos chamam de poetas.

Estrepe

Se o amor não cutucar, não fustigar, não chicotear, não lanhar, melhor que nem apareça.

Em vão

Você se previne, não lê poemas, não compra romances, não vai ver certos filmes. Tudo corre bem até que, numa tarde de primavera, a brisa lhe traz a voz de Charles Aznavour. Pronto, você está perdido.

Carona

Dê uma chance à poesia em sua vida, mas prepare-se. Com ela costuma vir o amor.

Soneto dos olhos que fechados ainda veem

Eu fecho os olhos em vão.
Com tantos rogos rogados,
Não me ajudou ainda a mão
A conservá-los fechados.

Quem dera tê-los lacrados,
Imersos na escuridão,
Já que, da vida cansados,
Dela não querem visão.

Quem dera mortos estarem
Para nunca mais olharem
Para o que não devem ver.

Que mortos sempre ficassem
E que nunca mais olhassem
Para os que os fazem morrer.

De Martha Medeiros sobre as celebridades

"Celebridade, que poderia ser uma palavra definidora de alguém notável, passou a designar qualquer um. E qualquer um fazendo revelações constrangedoras e vulgares, desfrutando de uma fama meteórica e provocando um deslumbramento patético nos simples mortais. Aquela ali é a Ariadna? É a Geisy? Uma é a transexual que ficou uma semana na casa do Big Brother, a outra foi discriminada por usar minissaia na faculdade, é o currículo profissional delas. Causam o mesmo alvoroço que Demi Moore e Ashton Kutcher, que por sua vez causam o mesmo frisson que o pai do Michael Jackson, que é tão famoso quanto o blogueiro que surgiu ontem no YouTube. Se Lúcifer saísse do inferno para dar uma banda por aqui, teria mesa cativa no Fasano,
    Ao perdermos os critérios de quem realmente merece destaque, só o que se destaca é nossa pobreza cultural."

(Do livro Feliz por nada, publicado pela L&PM.)

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Cento e trinta e quatro

O amor é um desses tropeções que a gente quer dar bem lá em cima, no primeiro degrau de uma escada de cento e trinta e quatro.

Isso aí

Estou com você. Se o amor fosse um pouco mais certinho, um pouco menos enrolado e um tantinho mais maneiro, não ia ter graça nenhuma.

Bobeira

Não ter guardado nem uma lasquinha de unha dela. E tive tantas, espetadas no corpo.

Pregos

O amor jamais será um sinônimo de paz e conforto. O amor haverá de ser sempre uma cama de faquir.

Soneto do que deves ao amor defunto

Que não te poupem as dores
E nem a melancolia,
Se o amor passado tu fores
Rememorar algum dia.

Mas não lhe ofereças flores,
Porque ele as rejeitaria,
Há orgulhosos amores,
Mais do que se suporia.

Se tu não te importares
E meu conselho aceitares,
Serei contigo bem franco.

Como o mataste menino,
Nada de preces nem hino.
Dá-lhe só um caixão branco.

Soneto que exalta o choro civilizado

Se nós tivéssemos sido
O que para nós sonhamos,
Qual seria hoje o sentido
Das lágrimas que choramos?

Desde que nos associamos
Temos tão forte investido
E, por mais que nós façamos,
Só perdas temos colhido.

Se tudo fosse propício
Como pareceu no início,
Seria bem diferente.

É assim. Glória ao vencedor
E que chore o perdedor,
Mas chore decentemente.

Um poema de Verlaine para Rimbaud

"Que Anjo duro assim me estorva
entre os ombros, enquanto
eu alço voo ao Paraíso? (...)

Tu, o Ciumento, que me acenaste,
ora, eis-me aqui, eis-me aqui, eu todo!
Rumo a ti rastejo, ainda indigno!
Monta em minhas costas e tripudia!"

(Extraído do livro Rimbaud - A vida dupla de um rebelde, de Edmund White, tradução de Marcos Bagno.)


Ídolos

Sylvia Plath, Ana Cristina César, Florbela Espanca, Antero de Quental, Werther.

A pergunta

Um dia talvez nos reencontremos. Provavelmente eu não conseguirei falar. Saiba desde já, então, a pergunta que tenho a fazer: por quê?

Cotação do dia (2)

Fechemos os ouvidos aos boatos e os olhos às evidências. Talvez o amor não tenha morrido.

Cotação do dia

Nesta altura do campeonato, morrer deixou de ser uma hipótese e já tem todo o jeito de ser a solução.

Conspiração

Quem ama a poesia só admite essa fraqueza a outro amante da poesia, e quase sempre em voz baixa, no escuro.

Soneto em que se investiga a falência do amor

Depois de tantos ardis,
De tão grandes falcatruas
Tanto minhas quanto tuas,
De tantas manobras vis,

Depois dos golpes que demos
Até o amor arruinar,
É tempo já de explicar
Tudo aquilo que fizemos.

No dia da acareação,
Como nos comportaremos?
Nisso tu pensaste, já?

Imploraremos perdão?
O que ao amor nós diremos?
E o amor, acreditará?


3x4

Quem vê o rosto do amor não acredita que seu maior prazer seja esfolar cordeiros.

"Amor de tarde", de Mario Benedetti

"É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer 'e aí?' e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono."

(De Antologia poética, tradução de Julio Luís Gehlen, publicação da Editora Record.)


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Haicai (para Mariana Ianelli)

A gota que cai
Na folha instiga a uma escolha
De tela ou de haicai.

Enrique Vila-Matas

Vira-latas
há tantos

Vila-Matas
só um.

O único

O amor impossível é o único. Fora disso, o que há é a carne e suas bem-sucedidas ou malogradas tentativas de entretenimento.

Cautela

Nunca diz às mulheres que a habilidade nos seus dedos, sempre enaltecida por elas, vem de contar notas no banco. Acha que não seria romântico.

Rosa dos ventos

Nos lábios dos marinheiros estavam teu nome e vestígios da ávida passagem deles pela tua oferecida tatuagem.

Soneto do tempo findo

Não há mais tempo nenhum
Para um soneto supino
De feitio alexandrino
E nem para um mais comum.

Devendo ficarei o hino
De concepção incomum
Que prometi a ti, num
Dia longe, dezembrino.

Sinto muito, minha amiga,
Mas essa dívida antiga
Não a poderei pagar.

Morrendo em lenta agonia,
Não mais que um luxo seria
Eu me pôr a versejar.

Xícara

Engatadas por artimanhas amorosas, as duas moscas se descuidam do rumo e, antes de morrer na xícara fumegante, zumbem ainda num êxtase de sexo e chocolate açucarado.

Palma

Minha mão retém na palma memórias imaginadas de ti e, nos dias de aflição, as imprime naquela parte do meu corpo que jamais te tocou.

Tipos

Há quem sacuda os bagos ao rezar, antes de dormir, e há quem arrote ouvindo Chopin.

Modo de ver

Como punição supina
O Amor os fez beber urina.
Alguns acharam um pouco humilhante,
Alguns acharam que não.

Cotação da tarde

Logo os poemas de amor começam a feder na gaveta. Rosas falsas, frutas podres, vermes mexendo-se preguiçosamente entre as silabas.

Soneto que louva o poder do amor

A um homem nada mais cabe
Senão fazer o que deve
E o que a razão lhe prescreve:
Não o que quer; o que sabe.

Não deve ser presunçoso
E achar que será possível,
Mesmo que seja impossível,
Sair sempre vitorioso.

Mais forte que o homem é o amor,
Capaz de tudo o que for.
Ele, sim, pode fazer

Um pobre sentir-se nobre,
Um rico sentir-se pobre,
Um morto querer viver.

Soneto das lembranças levemente melhoradas

Vivemos para lembrar,
Tudo é para nós passado.
O novo não tem lugar,
O futuro está vedado.

Nos resta agora ficar
Em nosso sofá amado
E as recordações puxar,
Entre dormindo e acordado.

Às vezes, nesse exercício,
Exageramos no vício
De tudo nosso exaltar.

É uma forma interessante
De tornar menos maçante
O jogo de recordar.

Dentro de nós

Dentro de nós há uma corda, uma nota, um som que só o violino tocado pelo arco certo despertará.

Todas

No dia em que você abrir todas as janelas para a poesia, descobrirá quantas palavras tem o vento para lhe dizer.

Cotação do dia

Morrer já estaria de bom tamanho.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Moita

 O dedo médio jamais revelará aos outros a vertigem da umidade salina.

Meia-noite

Ainda às vezes o sexo, lobo estropiado, se põe a uivar como na juventude e enche a cama de suor, insônia e aflição.

Termômetro

Parece um menino quando se põe a dizer nomes de mulher e, a cada um deles, espera a cotação da braguilha.

Procon

Se o amor não te enlouquece, podes crer que se trata de uma imitação.

Juntos e ofegantes

Apostar corrida com o amor, como se fôssemos dois cãezinhos brincalhões cujo objetivo não fosse vencer, mas chegar juntos e ofegantes.

O problema

O problema do amor começa quando ele passa a ter bunda, coxas, seios e um nome.

Troias

No início há sempre uma bunda. Depois é que surgem a guerra e os soldados.

Gatinho

Eu era assim. Se ela se queixasse de um respingo de molho na blusa, lá estava eu a lambê-la, até apagá-lo. Gatinho, ela me chamava.

Ainda não

Agora, assim que o sentam no sofá ele dorme. A respiração já está inaudível e às vezes alguém vem vê-lo, esperançoso. Quem sabe. Mas não, ele ainda vive.

Mosca

Deixam a tevê ligada a tarde toda, só para ele. Mas o que ele gosta de observar são os voos da mosca pela sala. De vez em quando ela pousa no seu colo, como um gato interesseiro. Não sabe quantos dias uma mosca vive. Gostaria que essa fosse a mesma que ele segue encantado há uma semana. Afeiçoou-se a ela.

Números

A avó anda se atrapalhando nas contas. Hoje finalmente achou a caixa em que guarda as estrelas que vem colecionando desde a primeira, que apanhou quando tinha seis anos. Ela chegara a suspeitar da nova empregada, mas ao abrir a caixa havia trinta e sete, em vez de trinta e seis. Uma delas lhe pareceu estranha, bem mais jovem que as outras, uma filhotinha. Quando a terá colhido? Ah, agora se lembra: no sonho da véspera.

Um poema de Eugenio Montale

"O que de mim soubeste
não foi mais que a aparência,
a túnica que reveste
nossa humana aventura.

E talvez além do pano
o azul tranquilo estivesse;
tapava o claro céu
um simples sigilo.

Ou era de fato a estapafúrdia
mudança de minha vida,
o abrir-se de uma terra
incendiada que jamais verei.

Restou assim esta casca
minha real substância;
o fogo que não se amortece
para mim chamou-se: ignorância.

Se divisas uma sombra, não é
sombra - mas eu próprio.
Pudesse arrancá-la de mim
e te ofereceria de presente."

(Do livro Poesias, tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti, publicado pela Record.)

Cotação do dia (3)

O avô distingue-se dos móveis da sala porque de vez em quando ainda fala e pede um café.

Cotação do dia (2)

Respirar com moderação, se bem que fosse glorioso morrer com os pulmões obstruídos por pétalas.

Cotação do dia

Disfarçar a corcunda, andar (ou algo parecido) e tentar não morrer ainda. Talvez no caminho um texto se abra, como uma flor.

Manhã

Hora de sair para o sol, como se não fôssemos um navio velho, e fingir que ouvimos ainda as gaivotas e as vemos rabiscando o caderno azul.

Soneto de como estão hoje aquelas juras

Estão agora prescritas
As juras todas de amor
Que com febre e com fervor
Um dia nos foram ditas.

Sobre elas paira a tristeza
De tudo quanto gorou
Depois que se proclamou
Com tanto viço e firmeza.

Nós nos lembramos de tudo,
Das frases, do conteúdo,
Do jeito como as disseram.

Tão puras nos pareceram,
Tão fundo nos comoveram,
E tão mentirosas eram.

"Gato num apartamento vazio", de Wislawa Szymborska

"Morrer - isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.

Ouvem-se passos na escada
mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.

Ago aqui não começa
na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.

Cada armário foi vasculhado.
As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.

Espera só ele voltar,
espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho,
sobre patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Cotação da noite (2)

Minha vida não vale um haicai de Bashô.

Acessório

Quem se queixa das lágrimas não entendeu o espírito do amor.

Gotas

O micro devia ter um monitor que, nas mensagens de amor, ficasse molhado como o papel das velhas cartas.

Cotação da noite

Ontem, tanto som, tanta fúria. Agora, um corpo aderido ao sofá, olhando a tevê. De vez em quando alguém, de má vontade, vem secar-lhe a baba.

Frugalidade

Humilde
minha alma
pediu pão só
e água

Negaram-lhe a água
e por um princípio
de equidade
e de proporção
recusaram-lhe também o pão.

Pitagórico

Matemático
não sabe como
de modo prático
fazer um ménage à trois
com quatro.

Por quê?

Por que
em nome de Jesus
ninguém me esfola
ninguém me degola
ninguém me mata
ninguém me abduz?

Soneto das cores que tivemos (versão final)

Já fomos verdes. Nossa verdidão
Com tamanho verdor reverdecia
Que às vezes já nem real nos parecia,
Mas mero fruto da imaginação.

Já fomos de ouro. E nossa cor então
Tão forte e tão esplêndida luzia
Que disparate eu não cometeria
Se a equiparasse às chamas de um vulcão.

Já fomos vivos, já tivemos flores,
Fomos casa de ariscos beija-flores,
Honras de que a memória nunca esquece.

Mas hoje é o cinza-escuro a cor que temos,
Já não brilhamos mais, anoitecemos,
Enquanto a solidão amadurece.

"Elogio dos sonhos", de Wislawa Szymborska

"Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.

Falo grego fluente
e não só com os vivos.

Dirijo um carro
que me obedece.

Tenho talento,
escrevo grandes poemas.

Escuto vozes
não menos que os veneráveis santos.

Vocês se espantariam
com minha performance ao piano.

Flutuo no ar como se deve
isto é, sozinha.

Ao cair do telhado
desço de manso na relva.

Respiro sem problema
debaixo d'água.

Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.

Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer.

Assim que começa a guerra
me viro do melhor lado.

Sou, mas não tenho que ser
filha da minha época.

Faz alguns anos
vi dois sóis.

E anteontem um pinguim,
com toda a clareza."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

Cotação do dia

Assim como ocorre no frio com os cobertores da caridade, deveria haver um acervo de memórias felizes posto à disposição de quem não tem nenhuma.

Menção honrosa

Se vocês me acham um sujeito carente, é uma boa aposta. Uma tarde eu fiquei esperando o amor na Vergueiro. Foram três horas, no fim das quais me contentei com um pingo de chuva.

Lacuna

Se eu não falar de amor, não é que eu sinta que falta alguma coisa. Sinto que falta tudo.

Pateta

Nada como aquele amor inacreditavelmente tolo, que vê um castelo em cada casa e uma princesa em cada janela.

As lágrimas

Deixem que riam do amor. E estejamos sempre prontos para lhe dar as lágrimas que lhe negarem.

Identidade

Já somos tão um, meu sofá e eu, que quando me dói o braço nunca sei bem se é o dele ou o meu o braço que doeu.

Embrulhadinho

O amor é aquele ladrão para quem deixamos dinheiro esparramado pela sala e um sanduíche coberto com guardanapo na cozinha.

Alvo

Temos um acordo com as setas do amor: elas podem tentar mil vezes, até acertar. E, se quiserem acertar melhor, podem tentar mais mil.

Sempre lá fora

Não consigo imaginar o amor numa sala com lareira, com um gato no colo. O amor é sempre aquele pedinte sob chuva e frio, diante de uma casa sem campainha.

Quatro versos de Friedrich Hölderlin

"Assim é o homem; quando o bem lhe chega e até um Deus cuida dele
Enchendo-o de dons, não o reconhece e não quer saber.
Tem, antes, que sofrer; depois, quando nomeia o que ama,
Nada pode impedir que as palavras surjam como flores."

(Do livro Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicado pela Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mercado

O escritor se queixa. Seu livro teve duzentos e trinta e três mil leitores a menos que a nova Lei do Inquilinato.

Irreparável

Wislawa, Wislawa, ter sido seu coetâneo, quase seu patrício, e nunca tê-la visto nem falado com você. Dispensaria todas as outras maravilhas do mundo.

Cotação da noite

Zero, nada, traço. E a consciência de que jamais mereci mais que isso: zero, nada, traço.

Soneto do amor e do sexo

O amor é muito covarde.
Quer sempre esquentar o jogo,
Porém assim que arde o fogo
Finge não notar que ele arde.

E depois que o incêndio pega
E tudo põe-se a queimar,
O amor insiste em negar
E, contra a evidência, nega.

O sexo é mais consequente.
Tomado pela paixão,
Queima desvairadamente.

Mas ao contrário do amor
Ele não recua, não
Rejeita a chama e o fulgor.

Termos

Que adianta tantos sabermos
Se é um conhecimento vão?
De tantos milhões de termos,
Valem só o sim e o não.

Soneto do réu contumaz

Dos que subvertem a paz,
O amor é sempre pioneiro,
O amor é sempre o primeiro,
O amor é réu contumaz.

Com que entusiasmo ele faz
Seu trabalho costumeiro
E como é exato e certeiro
O desassossego que traz.

Mas sempre, no tribunal,
Se isenta de todo mal,
E nisso há certa razão.

Instados a pronunciar-se
Se dele querem vingar-se,
Todos sempre dizem não.

Bem a calhar

Estarmos vivos é sorte.
Que cara íamos mostrar
Se assim não fosse, e se a morte
Viesse em casa nos buscar?

SOS

Um pouco de poesia, para matar a sede da alma. Um pingo, uma gota, uma lágrima.

Clube (para Wislawa Szymborska)

Um dia nosso clube de poesia terá seis ou sete sócios. Precisaremos comprar então quatro ou cinco cadeiras.

Gosma

Se me aproximo, logo se desvencilham de mim: "Poesia? Amor? Ai, que porre!"

Agenda

Precisando de umas aulas da Martha Medeiros.

Uns (e os outros)

Os amores bem-comportados vão para os álbuns de fotos. Os outros, os que geralmente contam, vão para arquivos protegidos pelas mais inimagináveis senhas.

Um poema de Emily Dickinson

"Moro na possibilidade,
Casa mais bela que a prosa,
Com muito mais janelas
E bem melhor, pelas portas

De aposentos inacessíveis,
Como são, para o olhar, os cedros,
E tendo por forro perene
Os telhados do céu.

Visitantes - só os melhores;
Por ocupação, só isto:
Abrir amplamente minhas mãos estreitas
Para agarrar o paraíso."

(De Poemas escolhidos, tradução de Ivo Bender, publicação da L&PM.)

Cotação do dia (5)

A convicção de que Werther demorou talvez um pouco demais para se decidir, mas estava certo.

Conceito

O amor é aquela fraqueza de espírito que devemos estimular com todas as forças da nossa alma.

Artista

Que bela é a palavra artista. Como eu gostaria de merecê-la.

Validade

"Shakespeare? Não leio mais, já foi o tempo", ele disse, como se tivesse na não a embalagem de um produto vencido.

Cotação do dia (4)

Se tivéssemos sete vidas, como os gatos, nós as daríamos todas ao amor, mesmo que ele não as quisesse.

Cotação do dia (3)

Confessemos: dizemos que não, mas gostamos do amor bem piegas, choroso, infantil.

Cotação do dia (2)

Quem, podendo ter o amor como carrasco, irá escolher outro?

Diário

Não pode dizer que vive.
Caminha com seus pés fracos,
Junta aqui e ali seus cacos,
Dorme, acorda, sobrevive.

Questão de data

Perguntam-lhe se receia
A morte, e ele diz que não.
Morreu já faz tempo e anseia
Só pela confirmação.

Item derradeiro

Tem, como todos, uma lista de coisas que pretende fazer - antes de morrer, naturalmente. Uma delas, que exige certa competência e coragem, talvez o mate.

Cotação do dia

Alguém que ainda não foi avisado de que morreu em dezembro de 2009.

Agora que

Agora que o amor não mais o atormenta e não o persegue como um vira-lata sarnento, ele chegou a pensar em cuidar da vida. Descobriu que não tem nada do que cuidar.

Segunda do plural

Naquele dia em que ouvi
Aquelas coisas amáveis,
Éreis vós mesma que vi
Ou vós ali não estáveis?

A literatura me mostra a língua

Palavras, tanta esperança
Eu pus em vós. Minha voz
Esperou tudo de vós...
Que tolo eu fui, que criança.

Na medida certa

Agora que meus dedos já não podem aspirar a façanhas maiores, talvez os deixes ficar um instante em teus cabelos, garimpando ouro.

Adiantamento

De quem lhe oferece bonanças, faça questão de receber antes as tempestades. Há castelos tão chatos e príncipes tão enfadonhos.

Tarde

Se eu tivesse tempo, ainda, gostaria de aprender a escrever. Ah, esses conceitos de autoajuda, essa baboseira de querer é poder. Tenho querido há sessenta anos.

Fama

É fácil jogar a culpa no amor, com a fama que ele tem e sua cara de mordomo de Agatha Christie, trazendo na bandeja do chá um facão capaz de degolar num golpe dez cordeiros.

Vida

Saber que tudo é somente
Uma ilusão, um momento,
E, antes que fujam com o vento,
Vivê-los intensamente.

Ferida

Recordando o que vivi,
Me sangra e esfola o tormento
E morro em cada momento
Em que me lembro de ti.

Menos o último

Um dia na vida de um homem é igual a todos, menos o último.

"Sob uma estrela pequenina", de Wislawa Szymborska

"Me desculpe o acaso por chamá-lo necessidade.
Me desculpe a necessidade se ainda assim me engano.
Que a felicidade não se ofenda por tomá-la como minha.
Que os mortos me perdoem por luzirem fracamente na memória.
Me desculpe o tempo pelo tanto de mundo ignorado por segundo.
Me desculpe o amor antigo por sentir o novo como primeiro.
Me perdoem, guerras distantes, por trazer flores para casa.
Me perdoem, feridas abertas, por espetar o dedo.
Me desculpem os que clamam das profundezas pelo disco de minuetos.
Me desculpe a gente nas estações pelo sono das cinco da manhã.
Sinto muito, esperança açulada, se às vezes me rio.
Sinto muito, desertos, se não lhes levo uma colher de água.
E você, falcão, há anos o mesmo, na mesma gaiola,
fitando sem movimento sempre o mesmo ponto,
me absolva, mesmo se você for um pássaro empalhado.
Me desculpe a árvore cortada pelas quatro pernas da mesa.
Me desculpem as grandes perguntas pelas respostas pequenas.
Verdade, não me dê excessiva atenção.
Seriedade, me mostre magnanimidade.
Ature, segredo do ser, se eu puxo o fio das suas vestes.
Não me acuse, alma, por tê-la raramente.
Me desculpe tudo, por não poder estar em toda parte.
Me desculpem todos, por não saber ser cada um e cada uma.
Sei que, enquanto viver, nada me justifica
já que barro o caminho para mim mesma.
Não me julgue má, fala, por tomar emprestado palavras patéticas,
e depois me esforçar para fazê-las parecer leves."

(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

domingo, 12 de outubro de 2014

Sic

Morrer deveria ser
Assim como se deitar,
Todo o passado esquecer,
Fechar os olhos, sonhar.

Sapequices da poesia

A prosa deixa-se moldar com mais facilidade. A poesia tem sempre, mesmo nos mestres, certo espírito de rebeldia. Ela deixa o poeta ir à frente e vai todo o tempo fazendo caretas e torcendo para ele tropeçar.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Setembro é quando brotam o branco e o carmesim. Eu, que nunca antes tive um jardim de azaleias, descubro essa felicidade nova como a abelha do poema de Emily Dickinson que entra na flor e se perde em bálsamo. A memória dos livros se mistura à memória das casas..."

(Da crônica "Setembro é quando rebentam o branco e o carmesim", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.

Detalhe

"Eu acho que a família devia ter pedido para cortar."
"Cortar o quê?"
"O bigode. Não pega bem pra defunto."

Cotação do dia (4)

"Dizem que ele foi poeta."
"Ah, é? Não tem cara. Mas não deve ter sido importante. Tem tão pouca flor."

Cotação do dia (3)

Não ouvirei o comentário do motorista furibundo: "Deviam fazer enterros só depois das dez da noite."

www.rubem.wordpress.com

No texto de hoje, falo de algo nem tão novo assim: briguinhas entre nora e sogra.

Sabor

Quem há que, tendo provado
O mel nos lábios do amor
E o sal no ventre dourado,
Possa olvidar seu sabor?

Cotação do dia (2)

Ter sempre um recado para ti, e jamais poder dá-lo.

Cotação do dia

Alguém que será levado um dia por um carro preto.

Soneto do amor mentiroso

Há quem nos minta somente
Pelo prazer de iludir,
Pelo prazer de mentir,
Desinteressadamente.

Mentir é, para essa gente,
Uma forma de fugir
A esse tédio de existir
Que nos mata lentamente.

Mentem com tal despudor,
Sobre seu fictício amor,
Que nele nos fazem crer

De modo tão passional
Que não senti-lo tal qual
Nos faz querermos morrer.

Arenga

Durante alguns segundos, antes de abrir os olhos, ainda hoje ele é tentado a ouvir o velho discurso vazio das manhãs.

Paisagem

O que ele vê do sol, agora, é um reflexo no armário ou no criado-mudo, no quarto onde é sempre inverno.

Às vezes, ainda

Os domingos ainda vem chamá-lo às vezes, mas sobem a escada silenciosos e param diante da porta do seu quarto de doente.

"Agradecimento", de Wislawa Szymborska

"Devo muito
aos que não amo.

O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.

A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.

Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo,
o que o amor nunca perdoaria.

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.

As viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.

E quando nos separam
sete colinas e ridos
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.

É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque móvel.

Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.

"Não lhes devo nada" -
diria o amor
sobre essa questão aberta."

(Do livro Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)

sábado, 11 de outubro de 2014

Fim

As paixões acabam em ressentimento e ódio. As que assim não terminam não merecem o nome.

5.4 na Richter

O amor há de ser como um furacão: chegar, fustigar, destruir, arrasar. Não é amor aquele que se constrói em cotidianos e leva vinte anos para morrer. Isso é afeto, é brisa, sopro com que o vento ajeita o penteado das árvores no parque.

Quarentena

Ele e ela empurraram o amor para debaixo do tapete. Meses depois, quando foram fazer uma limpeza, nenhum dos dois mais sabia o que era aquilo.

Sábado

Que apoteótico fracasso
É o da comunicação:
Aécio e Dilma têm espaço;
Fernando Pessoa, não.

Garantia

Morrer é a única certeza de que algo em nosso futuro vai mudar.

Lástima

O amor nos escolheu mal.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Raramente concede entrevistas este ermitão chamado Antonio Lobo Antunes. Não vai a lançamentos, não aparece, não promove seus livros. Uma vez, convidado a encerrar um congresso de medicina, não hesitou em frustrar as expectativas declarando que 'esperar que um escritor diga coisas interessantes é o mesmo que esperar de um acrobata que ande aos saltos mortais na rua'. Por muito que soe antipático, e com isso prove a outra face da fama, Lobo Antunes não participa da indústria do espetáculo por uma razão muito simples, talvez por isso mesmo incômoda, elementar feito água. Lobo Antunes não aparece porque, sendo escritor, está a escrever. Porque o tempo é curto para o que de melhor ele tem a fazer, e está fazendo - diante do papel, não dos microfones."

(Da crônica "Para aqueles a quem os dias são um sopro", do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)

Anarquia (2)

Alguém nos deu esta manhã, certamente não para gastarmos os olhos com pesquisas eleitorais.

Anarquia

Ah, nesta manhã esquecer os rancores cívico-eleitorais e aspirar com vontade o ar, para absorver o que pudermos desse azul.

A felicidade

A maioria ama a rotina. Aceitaram desde cedo um conceito de felicidade e temem modificá-lo. Vivem mostrando fotos: olha como eu estou bem aqui, e aqui, e aqui. E olham para nós, para ver se estamos mesmo olhando. Receiam sair, um passo que seja, do passado. Têm borboletas entre as páginas dos romances favoritos.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Companheiros

Meu sofá e eu somos, cada vez mais, um ser só. Já quase não saio. Prefiro ficar com ele. Cochilamos os dois, aconchegados. O mundo é o mundo, sempre lá fora.

Aí...

Enquanto dependeu só de si mesmo, o amor floresceu. Depois, nós entramos na história.

Escrever com a alma

Não sei de ninguém que, no Brasil, esteja escrevendo tão bem quanto Mariana Ianelli. Quando digo escrever bem não quero dizer escrever certinho, de acordo com a gramática e os padrões literários. Quero dizer escrever com alma. Com toda ela, como Mariana.

Drama

Todos nós ansiamos pelo drama. Gostaríamos de ser personagens daqueles romances em que nada se alcança sem tormentos. A paz há de vir, desde que venha apenas no fim. Bonança sem tempestade não nos agrada. Iremos para o palácio e viveremos felizes para sempre, sim, mas só no último parágrafo.

Dívida

Morrer de amor é uma dessas coisas que ainda não consegui fazer.

O Nobel

Não li nada de Patrick Modiano. Ouvi algumas referências a ele, e só. Foi uma surpresa. Tomara que haja tempo ainda de conhecê-lo. Estou lendo o mais recente Coetzee, A infância de Jesus. Como nos seus outros livros, acho notável a simplicidade. Nada de truques, de arquiteturas, de artimanhas vocabulares. Tudo simples, linear, direto. Um dos últimos contadores de histórias. E como ele as conta bem.

Cotação do dia (2)

Não fizemos nada, nada realizamos. Mas toda manhã nos olhamos condescendentemente no espelho. Somos nossos cúmplices.

Cotação do dia

O tempo nos cobra. O que fizemos? Esquecemos dos nossos ideais? E nós dizemos: ah, aquilo? Eram só bobagens de menino.

Literatura

Logo a terra sufocará nossas palavras. Não farão falta, nunca fizeram. Que elas não poluam o solo, que não façam murchar as flores e apodrecer os frutos.

Desde passarinho

"Amo a poesia", dizia Mario Quintana, "desde que me conheço por passarinho."

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Sinal verde

Se o assunto for o amor, confie no coração. Arrebente-se nos rochedos e depois jogue toda a culpa nele. Isso é ser racional.

E

E chegar a um lugar tão belo que ali só pode ser a casa da Poesia.

Desmesuradamente incomensurável

Ao amor convém ser desmedido. Deve-se amar sempre ao máximo e achar-se que nunca se ama o suficiente.

Cotação da noite

Uma inquietação que minha idade me impede de chamar de amor.

Abençoada

Hora de ir para o sofá, atrair o sono com balinhas e torcer para que no sonho todos os ventos conduzam a Pasárgada.

Sinopse

Se eu tivesse podido ao menos ser um escritor, perdoaria o desprezível ser humano que sou.

Imperdoável

Não ter morrido naquele dia foi um erro vital.

Circunstância

Às vezes, morrer é a melhor razão para se estar vivo.

Espertalhão

Houve um tempo em que, tendo a vida toda pela frente, eu a trocaria pela ventura de escrever um livro imortal. Hoje, oferecer o que tenho de vida, ainda que fosse por um romancezinho comum, seria pura patifaria.

Soneto daquela nossa louca alegria

Aquela louca alegria
Tão tola e destrambelhada
Que nós vivemos um dia
Hoje parece inventada.

Quem de nós dois suporia
Naquela época dourada
Que aquilo tudo daria
Em nada mais do que nada?

Se agora eu fosse lembrar
O que chegaste a falar
Nesse tempo de paixão,

E o que eu a ti disse, amor,
Quem ouvir, seja quem for,
Dirá: quanta embromação!

Exclusividade

Estar morto é uma sensação que só um vivo poderia narrar.

Droga

Continuar respirando é um desses vícios que mantemos pelo resto da vida.

Sobre a beleza de certos nomes

O poeta Manuel Bandeira, andando uma tarde pelo Rio, encantou-se com o nome de um bar: Península Tavares. Entrou e perguntou ao atendente no balcão o porquê daquela escolha. "Bem", respondeu o homem, "península eu, a bem dizer, não sei o que é, mas me pareceu bonito. Tavares sou eu, ao seu dispor." Também eu, às vezes, sou tomado de fascínio pelo nome de um estabelecimento comercial. De onde menos se espera vem a poesia. Hoje no meu caminho para o médico vi um: Armarinhos Fernando.

Cotação do dia

Pelo ultrassom, o adjetivo que me caberia hoje seria ateromatoso.

Ser

À rosa tanto faz
eu vê-la
ou não vê-la

Eu não preciso dizê-la
a rosa se diz.

Marinha

Quando a luz da sala se apaga, as ondas da tela se aquietam, o veleiro cochila e as duas gaivotas interrompem o voo e dormem suspensas sobre o mar.

Um trecho de Mariana Ianelli

"Nada perdemos de sensatez no gosto pela fábula, de realismo no prazer da metáfora, apenas saímos da condição de miséria para a qual nos arrasta a falta de magia. A dança de Salomé continua a nos dizer o mesmo que nos diz a vida, todos os dias, que, afinal, mais cedo ou mais tarde, sempre perdemos a cabeça. Assim dizem os escritores nos seus devaneios, nos seus rodopios."

(Do livro Breves anotações sobre um tigre, publicado pela Ardotempo.)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Cotação do dia (4)

No meu pesadelo você bebe água direto numa jarra imensa, engasga, gorgoleja,  bochecha, gargareja. Imploro um gole. E você me diz que prefere se afogar.

Cotação da tarde (3)

Recusar adeus a um morituro é pior do que negar-lhe água.

Cotação da tarde (2)

Uma antevisão de hospitais, macas, transfusões, e médicos dizendo que bobagem, o senhor é tão moço.

Cotação da tarde

Uma nostalgia de navio que pela última vez atravessa o poente ensolarado e entra na definitiva treva.

Literatura, estágio final

Um esforço cada dia maior, para escrever frases que parecem pulseirinhas de artesanato.

Primas

É tolice querer explicar as grandes obras simplesmente pelas palavras e ideias que as compõem.

Barraquinha

Amor, por favor, me esquece,
Deixa de me perturbar.
Quem os teus ardis conhece
Jamais irá te comprar.

Pênalti

"Um pênalti, meu Deus, olha aí, um pênalti! Ô número 3, tira logo esse bicho de dentro da área."

Rede social

Eu fingiria que não sou eu, tu fingirias não seres tu, e desta vez nos falaríamos como deveríamos ter feito.

Imunidade

Bem-aventurado é o leitor que consegue manter a vida inteira um intenso interesse e contato com a literatura sem se deixar levar pela tentação de ser escritor.

Ai, doce

Ai, doce obsessão querida,
Me deixa os dias fruir,
Me deixa à noite dormir,
Me deixa viver a vida.

Capítulo final

Não haverá alegrias,
Já todas mortas estão.
Machucam todos os dias
E sempre machucarão.

Fila

Eu estou doente, não vês?
Espero apenas que venha
Do céu ou do inferno a senha
Dizendo que é minha vez.

Um trecho de Jean Wyllis

"Homofobia é o nome que se dá ao medo, aversão ou ódio irracional que algumas pessoas nutrem em relação a gays, lésbicas, travestis e transexuais. Embora se manifeste muito mais em heterossexuais, a homofobia também está arraigada na alma de muitos homossexuais, o que não é de se espantar, já que estes recebem a mesma formação que transforma certos heterossexuais em homofóbicos."

(Do livro Tempo bom, tempo ruim, publicado pela Editora Paralela.)

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Acalanto

Hora de dizer ao corpo que ele venceu mais um dia. Toda noite eu digo, e toda noite ele finge acreditar.

Erro de digitação (para o Zé Simão)

É aqui que é o departamento de felação premiada?

Relatório

Ao todo, foram dezoito.
Quatro morreram de febre,
Treze comeram biscoito
E um provou gato por lebre.

Esaú

E o amor tornou-se tão chato que ele o trocou por um prato de lentilhas.

Conta

Na história do meu tormento,
Faça-se a conta que for,
Caberão sempre ao amor
Noventa e nove por cento.

Destino

O horóscopo jamais mente,
Ele me ditou a sina.
Mandou-me amar loucamente,
E amar foi minha ruína.

Um trecho de Katherine Mansfield

"Tchekhov errou ao pensar que, se tivesse tido mais tempo, teria escrito mais detalhadamente, teria descrito a chuva, a parteira e o médico tomando chá. A verdade é que se pode colocar num conto apenas uma parte. Algo sempre fica sacrificado. Algo se perde. Tem-se que deixar de lado, sempre, um pouco ou muito daquilo tudo que a gente sabe e deseja usar. Por quê? Não tenho a menor ideia, mas é assim. É sempre uma espécie de corrida em que se tenta conseguir o mais que se possa, antes de desaparecer."

(Do livro Diário & cartas, tradução de Julieta Cupertino, publicado pela Editora Revan.)

Terça

Terça boboca. Sonsa, sonsa. O sol já a convidou três vezes para dar uma volta por aí. E ela: ah, não sei, espera um pouco.

Vergueiro

Hora de ir trocar livros no Centro Cultural. Aquela expectativa enorme. Aí, chego lá e descubro que não saiu nenhum novo do Shakespeare.

Expediente

Aqui, do fundo do poço,
Eu grito salve-me, amor.
E ele: depois, por favor,
Estou em hora de almoço.

Marca registrada

Quando nos dizemos semelhantes a Deus, sabemos do que estamos falando: nós O criamos.

Apogeu

O amor há de ser sempre lembrado pelo melhor de todos os seus momentos. É fácil. São sempre uns dois só, ou três.

Convicção

Sentir nojo de mim mesmo foi algo que aprendi sem muita dificuldade.

No meio, a virtude

Pobres ovelhas. De um lado, o lobo. De outro, o pastor.

De Rosa Montero, sobre Sonia Tolstoi

"Outro caso clamorosamente injusto é o da pobre Sonia Tolstoi, que foi capaz de conviver durante quarenta e oito anos com o energúmeno do Leon Tolstoi, que era um louco feio, um indivíduo insuportável e messiânico, sem dúvida genial, mas também brutal, um reacionário profundo, um machista feroz: 'Sua atitude com as mulheres é de uma obstinada hostilidade. Nada lhe agrada mais do que maltratá-las', disse dele Máximo Gorki. Sem dúvida Tolstoi maltratou Sonia, que, apesar de tudo, o amava. Cuidava dele como uma escrava, suportava seus desprezos e seus insultos, passava a limpo todos os seus escritos (milhares de páginas ilegíveis), aconselhava-o literariamente e o recebia todas as noites em sua cama, engravidou dele dezesseis vezes. Sonia, que era uma grande leitora, tinha certeza de que seu marido era um gênio, e sua convicção adoçava a sua vida, de resto amarga."

(Do livro A louca da casa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, publicado pela Ediouro.)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O nome

Uma noite, no jantar, lembrou-se do nome da sua namorada da adolescência e, ao dizê-lo, as sílabas dele tilintaram no prato. Emocionado, com os olhos úmidos, recolheu os dentes que tinham se soltado da prótese.

Catarina!!!

Agora, quando o velho diz amor,
A mulher ou a filha dedicada
Começam a gritar para a empregada
Que corra e vá pegar o babador.

Amanhã

O amor é aquele farsante de quem há anos estamos pensando em pedir os documentos.

Dívida

Morrer de amor é uma dessas coisas que ainda não consegui fazer.

Cotação do dia

Da boca a baba me escorre.
Não digo nada que preste.
Me roem a praga e a peste.
Mas este corpo não morre.

Soneto de como guardo tua geografia

Tenho na palma da mão
Toda a tua geografia,
O litoral, o sertão,
O relevo, a hidrografia.

Conheço a tua monção,
A área mais quente e a mais fria,
O teu áspero grotão,
A tua relva macia.

Nenhum traço do teu mapa
Da palma da mão me escapa,
Nenhum sinal ou detalhe.

E na memória também
Guardo cada um muito bem,
Caso algo no mapa falhe.

Sándor Márai

Sándor Márai é da linhagem dos obcecados, como Dostoiévski. Tudo nele é sombrio, interior e lancinantemente dramático. Só há lugar para o sofrimento, para a maldade, para a perversão máxima que só os seres humanos conhecem e usam para atormentar outros seres humanos. Alguém, não importa em que página apareça, há de ser destruído por alguém. Felicidade é uma palavra que Márai põe na boca dos tolos. Ler Márai é descobrir a justiça que há nos tormentos sofridos por esses tantos cretinos que apregoam o amor como o supremo bem da vida.

Dica

Não escrever nada. Tudo está em Shakespeare, e o que não está não interessa.

De Ernest Hemingway, sobre Paris

"Se você teve a sorte de viver em Paris, quando jovem, sua presença continuará a acompanhá-lo pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa móvel."

(Do livro Paris é uma festa, tradução de Ênio Silveira, publicado pela Civilização Brasileira.)

domingo, 5 de outubro de 2014

Aquele

O amor é aquele braço que, amputado em 2010, dói ainda em certas madrugadas.

Liberdade

Há bundas cada vez mais autossuficientes, dispostas a emancipar-se do corpo.

Ousadia

Quando perguntei por quê,
O amor quase me matou:
Dispensei todos, você
Foi só o que reclamou.

Terça-feira

Ela ia dizendo para ele agora vou te beijar aqui, e aqui, e aqui. Dizia e beijava, dizia e beijava. O umbigo ficou para o fim, porque ele foi sempre muito coceguento ali.

Majestade

Algumas bundas movem-se como soberbos transatlânticos.

Cotação do dia

No tempo em que o amor era meu único senhor e dono, eu não ia atrás do circo nem quando ele passava na frente de minha casa.

Conta certa

Falando curto e direto,
Nossas maiores façanhas
Ou estão ainda em projeto
Ou não passam de patranhas.

Equívoco

Aquilo que aconteceu
Acho que não foi comigo,
Acho que não foi contigo.
Não eras tu, não era eu.

Altivez

Certas bundas têm a imponência de um nariz arrebitado.

Acervo

Na sala de troféus do amor, ninguém verá minha cabeça. Não mereci figurar nela.

sábado, 4 de outubro de 2014

Bituca

É triste quando o amor se sente como um cinzeiro no qual o homem que acabou de sair de um dos quartos do puteiro amassa o cigarro.

Quem

Não foi o frio que nos matou. Foi o amor, quando nos chutou para fora na noite nevada.

Que

Que a brisa de repente se amorne e sussurre um recado daquele nosso amor, o único.

Dedões

A maior e mais bela intimidade que o amor me proporcionou foi quando me mostrou suas meias furadas.

Ah...

Era tão belo o amor, com a roupa que vesti nele naquela manhã.

Brrr

Sábado carrancudo, com jeito de inspetor escolar.

Pinceladas

Confesso que, quando convém ao amor, eu corrijo a memória e a retoco escandalosamente.

Credulidade

Às vezes penso que o amor foi exatamente como eu me lembro dele.

Mérito

O amor me deu uma carta de recomendação tão elogiosa que logo fui adotado por uma senhora colecionadora de antiguidades que toda noite, antes de se deitar, me afaga, me beija e suspira.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Bruxaria

Amor, é você que, daí de longe, incita a ameixeira a roçar os dedos na minha janela, aflorando no quarto rumores de noites antigas?

Essencial

Amor, sem ti, que seria
Dos charlatães, dos profetas,
Dos que anseiam por magia,
Dos insanos e dos poetas?

Mas não

Dia, talvez, haverá
Para um aperto de mão.
Contudo para o perdão
Já muito tarde será.

Soneto das pretéritas alegrias

Agora, que aqui estou
Vivendo os últimos dias,
Lembro aquelas alegrias
Que você me propiciou.

E apalpo minhas mãos frias
Que um dia você pegou
E com carinho apertou
Nas suas, mornas e esguias.

Quem dera eu sentir pudesse
De novo aquele calor
Cuja lembrança enternece.

Por ele, minha querida,
Daria seja o que for:
A alma, o coração, a vida.

Presente

Isto, enfia as unhas um pouco mais. Não, não é um relógio. É o meu coração. Podes ficar com ele. É teu.

Cotação do dia (8)

O amor é aquele malfeitor de quem sentimos falta se não o vemos na esquina.

Cotação do dia (7)

Se o amor me estrangulasse com suas mãos de seda.

Cotação do dia (6)

Eleição depois de amanhã, 5 de outubro de 2014, e eu mortificado pelo amor, aquele sentimento erradicado na Idade Média.

Cotação do dia (5)

Agarrei o gigante astutamente disfarçado de moinho e o intimei: "Proclama já a minha Dulcineia rainha da terra ou te quebro os braços."

Cotação do dia (4)

Os que morrem por amor acham-se mártires de uma causa.

Cotação do dia (3)

Cansado de chorar. Se eu soubesse fazer qualquer outra coisa...

Cotação do dia (2)

Não te vanglories. Não me mataste, ainda.

Cotação do dia

A certeza de que deveria ter morrido em certa manhã de dezembro.

Tarefa

Isentos já de ambição
Nós cumpriremos sem glória
E sem brilho nossa história:
Morrer é a nossa missão.

Método

Fechando os olhos de horror,
Me matas como quem mata
Um ser reles, inferior,
Uma mosca, uma barata.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Truque

Morramos bem devagar
Sem jamais dizermos nem
Por que nem sequer por quem,
Para ninguém se gabar.

Soneto que resume o que foi o amor

Foi um amor, nada mais,
Diz ele e, ao se recordar,
Tenta a história transformar
Em fatos todos triviais.

E empenha-se insanamente
Em desdizer e manchar
O que o fazia vibrar
Outrora tão ternamente.

Foi um amor passageiro,
Um vento morno, ligeiro,
Ele se convence, e chora.

Foi tolo, fútil, banal,
Mas não lhe cairia mal
Vivê-lo outra vez agora.

Deixá-las

O passado é a gaveta que se deve manter fechada. Que as pétalas e as folhas soltas de poemas se sintam ainda como se hoje fosse o dia, trinta anos atrás, em que a mão carinhosa, depois de beijá-las, as guardou ali, para que nada as magoasse.

Uma só

Pensar duas vezes foi uma das coisas que andei fazendo na juventude. Hoje, não mais. Uma já me cansa tanto...

Um dia

Um dia dissemos a palavra amor. Faz muito tempo. Vivíamos, então.

Soneto de como posso ainda louvar-te

Para louvar-te como antes,
Com toda aquela paixão,
Não tenho agora senão
Minhas vogais e consoantes.

Eu as escolho vibrantes,
Com elas faço uma canção
E a oferto de coração
Aos teus ouvidos amantes.

Se eu, querida, fosse agora
Abraçar-te como outrora,
Adivinho o teu muxoxo.

Dirias: meu caro amigo,
O que tu queres comigo,
Com esse teu abraço frouxo?

Flerte

A vida já nos evita.
A morte já nos adula.

Amanhã

Na próxima estação
talvez tenhamos os frutos.
Teremos os dentes?

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Oscar Wilde

Oscar Wilde tinha espírito. É dizer pouco dele - e é dizer tudo.

Classificação

Olhem a lista e, por favor, se eu não for o homem mais triste do mundo, não me digam. Venho trabalhando tanto para isso.

Dois haicais de Alice Ruiz

"sem saudade de você
sem saudade de mim
o passado passou enfim"

              ***

"rede ao vento
se torce de saudade
sem você dentro"

(Do livro Haicais - Boa Companhia, organização de Rodolfo Witzig Guttila, publicado pela Companhia das Letras.)

Cotejo

Consulte o seu calendário
E me diga se ele tem
Ou nele falta também
O tal Dezoito Brumário.

Gólgota

Os homens que levam os sentimentos ao extremo da loucura são os que acreditam ter a vocação do martírio.

Pauta

Ter nojo de mim é um dever que jamais me esqueço de cobrar.

Verborragia

Aprender todas as palavras - e depois descobrir que todas elas só servem para exaltar ou lamentar uma única: o amor.

História

O amor já era um item fora de catálogo no tempo em que os livros ainda se chamavam alfarrábios.

Epigrama

Um trabalho literário
Para nobre parecer
Sempre escrito deve ser
Pelo nosso secretário.

Talião

Os enjeitados do amor
Agora plantam feijão
E, como provocação,
Couve sem hífen nem flor.

Soneto do último beijo

Ele a beijou como quem
Há muito tempo sabia
Que nunca mais beijaria
Com tanta paixão ninguém.

Beijou-a assim como nem
Um galã no melhor dia
Beijá-la conseguiria.
Beijou-a bem, muito bem.

Depois, já quase chorando,
Foi aos poucos se afastando,
Sem nem olhar para trás.

Lembra ainda como a beijou,
Lembra ainda como chorou
- E já tanto tempo faz.