terça-feira, 31 de março de 2015

20h08

Hora de fechar a loja. Já há uns três dias não sei por que a abro. Ela já não tem sentido. Seus cadernos, lápis e canetas foram preparados para receber o toque dos dedos do amor. Jamais o receberão.

Acordo

Para falar a verdade,
Não precisas adorar-me.
Podes apenas amar-me,
Mas com exclusividade.

Como?

Curioso como a expressão ficar a ver navios quer dizer não ver navio nenhum.

Atenuante

O poema pode ser ruim. Mas não será irremediavelmente ruim se tiver certa música, ainda que seja a música emprestada pelo leitor.

ABL

Vi um pombo tão encasacado, tão cioso do seu porte e de sua dignidade, que só poderia estar indo tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Pensei o que diria dele Mario Quintana, que entendia desses passarões, e a cara que faria.

Método

Ajeito meticulosamente as Bics e os blocos (sabe-se lá quais estarão mais inspirados) e, antes de começar, abro um pouco mais a janela, talvez para um verso especial, talvez para um pássaro desgarrado.

Na moral

Politicamente correto, o vento vai apagando todos os fósforos do fumante frustrado e, depois de cada sopro, resmunga, eufemístico: criatura tola.

Palinódia

Por serem feiosas, certas palavras ficam muito tempo fora de circulação. Algumas se resignam, outras aguardam o glorioso momento de dar a volta por cima. Não foi que Gonçalves Dias escreveu um belíssimo poema no qual pedia perdão à amada, e não é que lhe deu o título de Palinódia?

Dever

Para fingir que tinha algo importante a fazer, perguntava que horas eram a todos os que passavam. Um dia deram-lhe um relógio, e ele perdeu o encanto de não ter nada para fazer. O tempo agora parecia ser dele, e incomodava-o desperdiçá-lo.

Mario Quintana

Por serem feiosas, certas palavras ficam muito tempo fora de circulação. Algumas se resignam, outras aguardam o glorioso momento de dar a volta por cima. Não foi que Gonçalves Dias fez um belíssimo poema no qual pedia desculpas à amada, e não é que lhe deu o título de Palinódia?

Vã sabedoria

Saber sinônimos para quê? Para chamar o corpão da amada de corpanzil?

(Insan)idade

Com o tempo ele, pouco a pouco,
Foi se portando com jeito
E agora tem o direito
De ser velho e também louco.

Glória

Foi só depois de ser atropelado e morrer com uma Bic e seu bloquinho nas mãos que começou a ser reconhecido como poeta.

Cereja

No próximo aniversário
Lhe mandarei, eu prometo,
Um peixe azul, um aquário,
Um bem-te-vi e um soneto.

Nosso senhor

O amor é aquele verdugo
Que, mesmo paga a fiança,
De nos ferir não se cansa
E não nos livra do jugo.

Cuidado

Não digas que és um gênio. Acabam acreditando. O conceito de gênio anda tão barateado...

Emily Dickinson

Emily Dickinson, como se sabe, não existiu. Era como uma fada de livro antigo. Os poemas que até hoje lhe são atribuídos foram escritos por uma fada de livro antigo.

Mario Quintana

O receio de não encontrar no Céu a beleza dos céus de Porto Alegre retardou um bocado a subida de Mario Quintana.

Mario Quintana

Penso em Mario Quintana como se fosse um homem parado numa esquina de Porto Alegre, cortando e distribuindo fatias de sol. Fininhas, naturalmente, que são as mais deliciosas.

Lady Di (para Liberato Vieira da Cunha e Silvia Galant François)

Se fosse outra lady - Laura ou Elisabeth -, nós a chamaríamos de lady Laura ou lady Elisabeth. Mas, tão doce era lady Diana, tão nossa amiga, que logo começamos a chamá-la de a lady Diana, antepondo-lhe um artigo. Depois lhe comemos três letras do já curtíssimo nome e ela passou a ser a lady Di. Aí ela já estava acostumada.

Mario Quintana

O cotidiano era o território em que Mario Quintana travava suas batalhas. Depois delas, podiam encontrar-se algumas pétalas esparramadas e às vezes uma borboleta voando, meio perdida, sobre elas. Nada que ele, com um retoque no último verso, não conseguisse arranjar.

Diagnóstico

Eu era um tipo tranquilo,
Gostava de maionese,
Assobiava a Polonaise,
E fazia isto, isso e aquilo.

De repente, percebi,
Por tudo que tenho feito,
Que o diagnóstico perfeito
É só um: enlouqueci.

Então desconto me dê
Se às vezes derrapo um pouco,
Porque afinal louco é louco
E eu sou louco de A a Z.

Carpe diem

Com asma ou taquicardia,
Com crupe ou com sinusite,
Com catapora ou bronquite,
Levante e desfrute o dia.

Homens fora

A crase é um acontecimento exclusivamente feminino. O gênero masculino fica na porta, barrado, com exceção feita ao astucioso àquele.

Os protagonistas

Sou capaz de ler um livro três vezes e, se alguém me perguntar, não saberei dizer se o protagonista no final se casou ou entrou na marinha. Os personagens que me atraem são as frases, o modo com que o autor as constrói, enfim, o estilo. Se um adjetivo não se dá bem com um substantivo, a falha fica na minha cabeça e não há o que esse adjetivo possa fazer para melhorar seu conceito - nem acrobacias nem desfalques na bolsa.

Caso de polícia

Certos sonetos são tão nefandos que só se descobre a sua autoria depois de muita investigação, interrogatório e, às vezes, até tortura.

Futuro

Depois que a mulher do tarô previu um homem mais maduro na sua vida, ela começou a sonhar, noite após noite, com um velhote que não tinha, porém, os olhos verdes apontados na profecia e, para discordar mais um pouco dela, vinha sempre não numa limusine, mas numa bicicleta, e calçava um par de deploráveis galochas.

segunda-feira, 30 de março de 2015

To be

Se ser, ou não, é a questão,
Eu, por mim, preferiria
O écran à filosofia,
Ser Brad Pitt e não Platão.

Conselho

Erasmo, o sábio holandês,
Merece a fama que tem.
Buscou fazer tudo bem
E fez bem tudo que fez.

Ao povo de Roterdã
Dizia: "Quem quer ser louco
Não espere nem um pouco.
Nem mesmo até amanhã."

Compostura

Quando eu estiver morto, nada mais me fará rir - nem amorosas cócegas na planta do pé.

Frankenstein

Pobre Frankenstein. Não teve mãe que lhe apertasse as bochechas e o chamasse de meu monstrinho querido.

Mario Quintana

Mario Quintana foi um londrino que nasceu em Alegrete e viveu em Porto Alegre.

Mario Quintana

Em Mario Quintana, tudo caía bem. Até a galhofa assumia um ar de nobreza, como as espirituosas frases de Oscar Wilde.

Mario Quintana

Se Mario Quintana morasse no Rio, teria descoberto, bem antes que Tom e Vinicius, a garota de Ipanema.

18h50

Fechar a loja, com o máximo estardalhaço que a porta baixada possa oferecer. Talvez o amor acorde e ressurja do papel picado e das cinzas.

Rima

Rimar lírios com delírios é, além de pobreza poética, uma puta sacanagem com os lírios.

Vida

"E Fulano, tem notícias?"
"Fulano morreu."
"Ah."

O Mago

Paulo Coelho é um desses milagres que só os leitores podem operar.

RSVP

Talvez seja agora o tempo
De tomarmos um café,
Com umas torradas, até,
Se não houver contratempo.

Não somos os mesmos mais,
O amor já não nos acossa
E esse encontro talvez possa
Ser melhor do que os demais.

Talvez possamos achar
Um modo de não brigar
E concordarmos, no fim,

Que foi tão tolo perder
Tantas chances de beber
Cafés gostosos assim.

O que parece

A palavra baboseira me faz pensar num velho babando em cima de convidados um soneto de sua autoria.

Capitu (I)

Machado de Assis chegou ao céu, e a primeira pergunta de Deus foi: afinal, Joaquim Maria, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

Capitu (II)

Se Capitu não traiu Bentinho, foi uma grande maldade do velho Machado.

Mario Quintana

Quintana tinha aversão
Ao falsamente retórico,
À estúpida presunção
E ao tolamente gongórico.

Dúvida (cruel)

Se escrever não é a coisa mais importante da vida, acho que dissipei a minha.

Monalisa

Às vezes penso que o mistério da Monalisa está nos olhos de quem a contempla. Como quem diz: uma obra assim famosa há de ter algo de... algo de... misterioso.

Mario Quintana

Em Mario Quintana havia
Meia pitada de humor,
Uma pitada de amor
E duas de poesia.

Falha

Se eu te tivesse apanhado,
Se eu te tivesse mordido,
Terias esse ar enjoado
De fruto mal resolvido?

Cinzinha

Um gato neste sofá
Mais do que me bastaria.
Melhor que um gato não há
Nem haverá companhia.

Enigma

Às vezes uma nova era,
Às vezes só desapontos.
Quem sabe o que nos espera
Logo depois dos dois-pontos?

Soneto da bela indiferente

Talvez gostes de saber
Que o sol passou por aqui,
Perguntou muito por ti
E pediu pra te dizer

Que não sejas presunçosa
E jamais achar-te queiras
Mais bela que as cerejeiras
Ou tão bela quanto as rosas.

Rogando tua piedade,
Disse que já tem idade
E outras belas conheceu,

Mas que esnobá-lo ninguém
Jamais ousou assim, nem
A Julieta de Romeu.

Haicai

COSSACO
Depois de uma esbórnia,
Tirou a roupa, surtou,
Cantou ótchi tchórnia.

Haicai

LINGUAGEM
Deixado na areia,
Um risco, um traço, um rabisco
Sob a maré cheia.

Haicai

ACASO
Garrafa no mar,
Que norte, que vento ou sorte
Irão te levar?

domingo, 29 de março de 2015

Apito

Sentir que os dias já vão,
Sem clemências ou piedades,
Chegando à prorrogação
E às cinco penalidades.

Contágio

Que o homem nasceu bonzinho
E a sociedade o estragou
É um argumento fraquinho
Do ingênuo do Rousseau.

Metamorfose

Heráclito era asseado,
Outro igual não existiu.
Tomava banho adoidado,
Mas nunca no mesmo rio.

Gênero

Quando Buffon decretou que o estilo é o homem, não imaginava que seria desmentido por Clarice Lispector.

Aqueles três pontinhos

As reticências, num poema, às vezes não indicam nada além da preguiça de quem o escreveu.

19h48

Fechar a loja sem dizer nada. Falar o quê? Era o amor que nos exigia palavras. Depois que o picamos todo e queimamos, a mudez há de ser a nossa sina.

A voz

A voz dela era grave, imperativa, áspera, como se curtida em álcool e tabaco. Arrepiava-lhe a nuca. Ele às vezes imaginava, atônito, que poderia ter se apaixonado por um marinheiro, se este tivesse chegado antes.

Astral (haicai)

Saiu, não viu nada.
Andou sem rumo, voltou.
Tinha a alma nublada.

Existencialista

Não é bem filosofia,
Mas eu vi Sartre beijar
Diante da Sorbonne, um dia,
Simone de Beauvoir.

Vítima ideal

Ao amor agrada lidar com poetas. Chamam de doces as chibatadas que levam, queixam-se sempre de que são poucas e aspiram a morrer delas cem vezes, para que cem vezes possam agradecer a morte ao amor.

Kafkiana

Ele nunca descobriu
Do que o tinham acusado.
Levado ao júri, mentiu
E se declarou culpado.

Ser ou não ser

O ponto e vírgula está quase extinto. Paga o  preço de nunca ter sido nem ponto nem vírgula.

Das flores

Havemos de continuar falando de flores. Se vergonha sentirmos, será porque, embora há tanto tempo façamos isso, não chegamos nunca perto de sua essência. Quando falamos de mulheres, ocorre o mesmo.

Esquisito

O poeta é aquele tipo que só faz jus à fama de esquisito quando se atrapalha e, em vez de tirar um soneto do bolso, deixa escapar uma algazarra de passarinhos.

Em tempo

Um dia ainda hei de saber o que é que a baiana tem (ou pelo menos o que é que a baiana tinha).

Roteiro

Morrer de amor é uma dessas tristezas que podem ser o melhor capítulo final de uma vida.

Sabedoria

Certos velhotes falam de amor com a mesma autossuficiência com que dizem que vai chover ou não, depois de consultar seus calos.

Non bis in idem

Dar a vida inteira ao amor seria uma hipótese que ele consideraria, se já não a tivesse dado, tão inutilmente.

Mario Quintana

Posso imaginar o menino Mario Quintana fazendo mil travessuras, menos a de sair com um estilingue caçando passarinhos.

A frase

Às vezes pensa no que poderia ter dito para impedir a morte do amor. E faz mentalmente frases longas, concatenadas, plenas de lógica. Se tivesse dito uma delas... Mas como poderia ter dito, se diante da amada, por anos e anos, mal conseguia balbuciar o oi inicial e o tchau final, hipnotizado sempre pela voz com que ela o atava ao seu feitiço, assim como viria a atar, ai dele, tantos outros depois?

Beleza

As caixinhas de lápis de cor me parecem a mais simpática forma de embalar um arco-íris.

Capitulação

Calou-se. Achou ter coragem
De ficar assim, calado,
Se não viesse uma mensagem.
Achou, mas estava errado.

Haicai

As flores murcharam
E não sei mais onde estão
As mãos que as plantaram.

Na medida

Um dia, amiga, talvez
Descubras que em ti penso,
Suave, porém firme e intenso,
Todos os dias do mês.

Coerência

Um dia após ter falado
Que o homem é lobo do homem,
Hobbes acabou jantado
Por um voraz lobisomem.

Haicai

No bico trazia
O sol fresco do arrebol
E as cores do dia.

A pergunta

Depois que tudo aprendeu
(Desde as mais simples teorias
Às grandes filosofias),
Perguntou: "E quem sou eu?"

Filosofia de vida

Pensava, estudava, lia.
E, buscando para o mundo
Um sentido mais profundo,
Suas forças consumia.

Um dia (bendito dia!),
Irritou-se e renegou
Descartes, Platão, Foucault,
Toda a vã filosofia.

Amanhã

Na segunda ficou doente
E pensou: saro amanhã.
Mas na terça, de repente,
Morreu de febre terçã.

www.rubem.wordpress.com

Hoje, uma crônica toda estilhaçada, como os mil pedaços de um coração partido.

Haicai

O vento buscou
Mensagens entre as ramagens.
Nenhuma encontrou.

Métodos

Quando Xantipa queria
Se fazer de farmacêutica,
Sócrates, com ironia,
Mandava-a fazer maiêutica.

Caminhos

Os gregos filosofavam
Mas eram meio frenéticos:
Andavam (e como andavam!)
Para ser peripatéticos.

Convicção

Kant, o sisudo alemão,
Era mesmo um linha-dura.
Não topava embromação:
"Comigo, só razão pura!"

Aquele parente

O amor às vezes é como aquele parente do interior que vem passar uns dias conosco, para um tratamento médico de emergência, e vai ficando, ficando. Quando perguntamos, descobrimos que ele se apaixonou pela médica e optou por um tratamento mais convencional e mais longo.

"O trágico dilema", de Mario Quintana

"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro."

(De Caderno H, publicado pela Editora Globo.)

sábado, 28 de março de 2015

23h10

Hora de ir fechando. Amanhã começarei a saber como me sinto. A última de onze pastas foi picada, queimada e exterminada. Decepcionei-me. Não gemeu, não berrou. Resignou-se, como as demais. Seu conteúdo talvez não fosse tão precioso quanto acreditei no início. Talvez o amor não seja importante, afinal. Ou quem sabe eu nunca tenha tido sensibilidade para avaliá-lo.

E agora?

O assassino chegou. Ele
Invade a casa e me vê.
Se jogo a garrafa nele,
Depois vou beber o quê?

Pesadelo

Confesso que estou cabreiro.
Sonhei que você corria
E escalpelada pedia:
"Prendam o cabeleireiro!"

Nas últimas

Estou com tamanha gripe,
Tão débil, tão sem saúde,
Que é só me carimbar "rip"
E me enfiar no ataúde.

Baixas calorias

Em pé diante do balcão,
Sócrates pediu: "Eu quero
Uma Cicuta, mas não
Da normal. Ou light ou zero."

Newton e a maçã

Quando Newton, acertado
Pela maçã e ferido,
Com o cocuruto partido
Ao hospital foi levado,
O doutor, sem acuidade,
O ferimento observou
E, parvo, sentenciou:
"Não há qualquer gravidade."

Paris é uma festa

Na noite de inverno, Alice,
Olhando Gertrude, disse:
"Por que desde ontem, pipocas,
Tu não me beijas nem toklas?"

Cruzes!!!

Estando na biblioteca,
Eu peguei um livro e, mein
Gott, vi a foto da cueca
De dona Gertrude Stein.

Regressão

Para sondar meu passado,
Tentei uma regressão
E descobri, espantado:
Fui égua do Napoleão!

Vida passada

Querendo saber de mim,
Fiz hoje uma regressão
E descobri, com emoção:
Fui avô do Rin Tin Tin.

Soneto da amante de papelarias

Eu tenho uma amiga que acha
O máximo da alegria
Comprar na papelaria
Canetas, lápis, borracha.

Os sentimentos mais ternos
Só pode em mim inspirar
Quem à loja vai comprar
Folhas A4 e cadernos.

Isso tudo a faz feliz,
Mas o que ela nunca diz,
Por um infantil pudor,

É que vai principalmente
Pelo prazer inocente
De comprar lápis de cor.

Memória (versão final)

É, agora que acabou,
É, agora que está findo,
Penso em tudo que passou
E choro porque foi lindo.

Certeza

Mas agora, dia a dia,
Sei que sofro e sofrerei
A terrível nostalgia
Daquilo que não terei.

Hem?

Ficamos então como antes,
Trocando nossas mensagens,
Nossas diárias parolagens,
Amigos porém distantes?

A razão

O que ele nunca lhe perdoou não foram os encontros que ela marcava um mês antes e desmarcava vinte e nove dias depois, nem os livros ruins que ela lhe indicava, nem a mania de achar azuis seus olhos verdes. A gota-d'água foi ela jamais haver elogiado nenhuma das chaves de ouro dos sonetos que, em febre, ele fazia para ela nas noites de insônia.

Progresso

Ela vivia recomendando a ele que não fosse tão autodestrutivo, que não se castigasse com termos tão cruéis. Uma tarde, viu que a campanha começava a funcionar. Perguntou-lhe como andava a gripe, e ele respondeu que dera uma bela melhorada.

Etiqueta

Dizer obrigado pelo amor que se recebeu é pouco, mas deve se dizer.

A verdade

Quando começaram a se corresponder, ele achou que ela derrapava na ortografia. Aos poucos percebeu que ela simplesmente escrevia rápido, para se livrar logo da obrigação de lhe responder.

Ela

Ela era emburrada e chata. Ele, com sua afeição pelos advérbios, a achava admiravelmente emburrada e deliciosamente chata.

Mario Quintana

Nos momentos em que não era homem ou passarinho, Mario Quintana por certo gostaria de ser um menino desses que repentinamente se apaixonam pela professora do quarto ano e desandam a escrever poemas.

Joguinho

Perguntei-lhe se queria ser minha namorada. Ela nem chegou a considerar. Disse: já passei dessa fase. Isso foi há muito tempo. E até hoje eu imagino que gostaria de, no escurinho do cinema, deixar que ela furtasse minhas pipocas todas, e furtar uma dela, uma só, naturalmente uma que ela estivesse mordiscando deleitosamente, com os olhos na tela.

Fácil

Tenho inveja das pessoas simples. Se a felicidade não está no bolso delas, ou na bolsa, é porque a esqueceram em casa.

Reacreditar

Gosto de pensar no amor como se ele fosse um gato que eu não tivesse merecido e que, arranhando minha porta para entrar, certa manhã, me houvesse feito reacreditar na existência de Deus.

Sempre

Ao amor deve caber sempre a última palavra, mesmo quando essa palavra for adeus.

Completude

Afeto é um sentimento
que é sempre
só meio
e que só fica completo
quando um meio
encontra
seu meio perfeito
no amigo dileto.

Se...

Se houvéssemos conversado,
Se houvéssemos nos ouvido,
Se tivesses me perdoado,
Se tivesses me entendido.

Se houvesses acreditado
No que admiti comovido,
Se eu não tivesse hesitado
Em me presumir querido.

Se eu fosse mais atirado,
Se eu não me houvesse escondido
E se me tivesses dado
O tempo certo e devido.

Talvez houvesses mudado
Meu destino e permitido
Que o sonho, agora gorado,
Tivesse em nós florescido.

Mario Quintana

Uma das especialidades de Mario Quintana, talvez a mais notável, era lembrar às pessoas que a maior alegria dos lábios não é transmitir palavras. É sorrir.

Campainha

Desculpe, amiga, mas venho
Agora de mão vazia.
Nada, nenhuma alegria,
Nem uma flor, nada tenho.

Trago apenas, redobrada,
Aquela afeição antiga,
Aquela palavra amiga,
E a alma, a ti ofertada.

Soneto de sua alteza, o amor (versão final)

O amor é o rei da cilada.
De todos sempre faz pouco,
Finge-se de tolo e louco,
De um e de outro não tem nada.

Nos segue pela calçada,
E quem faz ouvido mouco
Para o seu latido rouco
De cadela abandonada?

Prende-se a nós como um vício,
Invade nosso edifício,
Sobe pelo elevador,

Escolhe o melhor sofá
E logo tudo será
Dele - sua alteza, o amor.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Te

Te sinto em mim
No caos, na calma,
És folha, palma,
Início, fim.
Te sinto assim,
Te sinto na alma.

Astúcia

Um plano infalível tramo:
Te mando um ovo de Páscoa,
Um cartão, e neste tasco a
Declaração: olha, eu te amo.

Laia

Tu gostas de homens grosseiros,
Desses que após a função
Conservam ainda o tesão
E traçam teus travesseiros.

21h06

Fechar a loja, com uma certeza: ela nunca deveria ter sido aberta. Quem negocia amor comete a pior das simonias. Eu o venho expondo aqui, como mercadoria, e até as moscas já começam a lhe negar respeito. Hoje um velhote apalpou a seda do amor com aquele olhar de volúpia que os homens grosseiros não perdem nem no túmulo. Ah, amor, deverias ser um segredo de dois corações, talvez de um só.

O tempo

Chegará o tempo
não mais de se abster
o tempo em que o pecado
será não colher.

Mario Quintana

Entre um tabu antipático e uma convenção metida a besta, Mario Quintana não hesitava: desancava o tabu e a convenção.

Mario Quintana

Quintana era iconoclástico.
Às vezes humor londrino
Como o de Oscar Wilde, fino,
Às vezes humor sarcástico.

Pastas

Que tolos nós fomos enquanto estivemos sob o domínio do amor. Quantas declarações extravagantes, quantos poeminhas metidos a epopeias, quantas hipérboles de um real a dúzia. Ah, como fomos tolos. Ah, por que não fomos mais tolos ainda, enquanto podíamos?

Aquele único

O amor é aquele acontecimento único e irrepetível em nossa vida, aquele cometa que, setenta anos depois, nos deixa ainda boquiabertos olhando para o ponto em que ele miraculosamente passou.

Avião

Uma turbulência, apenas.
Não o mergulho fatal
Nem o abençoado final
De nossas dores e penas.

Parte I

Os melhores capítulos são sempre os primeiros. A mocinha, ainda pura, sonha com o príncipe e não sabe ainda que, quando ele vier, terá perdido a virilidade e o direito ao trono, e até seu cavalo branco terá mau hálito.

Paranoia

É um escritor tão paranoico que julga haver contra ele um complô dos advérbios de negação e das conjunções adversativas.

Gato (in)comum (para a Tuca Kors)

Eu, para os devidos fins,
Quero um gato ser, comum,
Ou quem sabe um melhor, um
Gato de Aldemir Martins.

Aristogato (para a Moema Kuyumjian)

Maior beleza não há,
E nem maior à vontade,
E nem maior majestade,
Que a de um gato num sofá.

Discrição

O amor deveria
ser como um gato
sofrer sem um ai
morrer sem um miau.

Gaveta

Dos papéis arquivados
sobe um gemido

Um verso hermético
há muito tempo guardado
só agora
descobre o seu sentido.

Nem Sigmund

Os irmãos Karamázovi eram de fazer fugir para a Sibéria qualquer psicanalista.

Coerência

O metro do poeta minimalista tem noventa centímetros.

Poeminha em "i"

Falei por mim e por ti,
Eu perguntei, respondi,
Por isso é que estás aí,
Por isso é que estou aqui.

O que basta

Com uma esperança frustrada
E um pouquinho de poesia,
Não preciso de mais nada,
Já dou conta do meu dia.

Ao velho estilo

Não sei se é arte, ou se não.
Se for, deve ser passada,
Ridícula, ultrapassada:
Faço-a só com o coração.

"Velhos & moços", de Mario Quintana

"A presunção - tão desculpável e divertida nos moços - é o mais certo sinal de burrice nos velhos. O verdadeiro fruto da árvore do conhecimento é a simplicidade."

(De Caderno H, publicado pela Editora Globo.)

Mando...

... um sorriso que há de fazer cócegas em você, até que também o seu sorriso se mostre. O sol, traquinas hoje, me propõe que mande também um trocadilho que achei meio fracote mas que, vindo de quem vem, há de ser respeitado: ele insiste para que eu lhe diga que ele lhe envia o mais belo dos seus... solrisos. Às vezes a vida parece suportável, mesmo quando o amor é um monte de papéis picados no meio da sala.

Soneto do adeus (versão final)

Por ti, amor, eu sofri.
Comi a tua comida,
Bebi a tua bebida,
De tuas sobras vivi.

Talhei meu sangue por ti,
Te dei em total medida
Minha alma, meu corpo, a vida,
E o que não dei te devi.

Todos os meus pensamentos,
Todos os meus sentimentos
Tornaram-se teus, só teus.

Mortos os tempos felizes,
Já que adeus tu não me dizes
Por nós dois eu digo adeus.

Tocaia

Jamais te olhar, jamais ter
A sensação, ruim e boa,
De um cervo assustado ser,
Optado por uma leoa.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Puberdade

Chega um momento
em que se deve
chamar a poesia
e lhe dizer francamente
como a um garoto
se diria
que está na hora de crescer.

19h33

Fechar a loja. As gavetas já estão quase vazias. Da grande batalha do amor, dos diálogos, dos monólogos, dos apelos desesperados e das recusas inesperadas, restam só algumas mensagens, em pastas agora de bem menor volume. Mais dois dias e tudo estará acabado - picado e queimado. Não tenho ideia, ainda, mas não me parece que eu vá ressurgir das cinzas.

Tão perto

Chegaram perto de um lugar, de um ponto que, se não era ainda a felicidade, estava tão próximo dela que dali, provavelmente, poderiam chamá-la e ela talvez pudesse ouvi-los. Estiveram perto desse ponto e não souberam que tinham estado ali senão depois, muito depois. Agora, todos os dias, desde o instante em que acordam, tentam reencontrar aquele caminho, mas é como se estivessem naquela brincadeira de criança e, caminhando em todas as direções, perguntassem: está quente, está frio? E está sempre frio, muito frio.

Se eu fosse um gato

Se eu fosse um gato, te arranharia toda vez que deixasses de olhar para mim. Te arranharia muito, sempre, até o dia em que percebesse que não olhar para mim tivesse se tornado um pretexto teu para merecer meus arranhões. Desse dia em diante, seria necessário que eu, para não tornar monótono nosso jogo amoroso, encontrasse outra forma de te castigar - talvez me aninhando em tua axila mais sensível e, com a língua de aspereza imune a qualquer leite matinal, começando a te fazer cócegas até que me jogasses longe, para que, enquanto eu não voltasse, recuperasses o fôlego para uma nova sessão de cócegas.

Desenho

Ele olhava para a mão com que ela fazia rabiscos num guardanapo de papel e imaginava que prodígio veria surgir daquela vez: se uma árvore, se um barco, se um menino corado como aqueles das antigas embalagens de chocolate, se um rosto de mulher. Se fosse um rosto de mulher, ele gostaria que fosse como o daquela que à sua frente desenhava no guardanapo.

Memória (segunda edição)

Que eu possa mais uma vez
Em uma tarde tranquila
Rever a tua mochila
E a tua blusa xadrez.

Lembrança

Carrego minha tristeza como se tivesse nos braços, debaixo de chuva e frio, um gatinho muito branco, muito belo e muito morto.

Recuerdo (segunda edição)

O tempo flui, mas que importa?
Por um ardil da memória
Aquela manhã de glória
Morreu, mas não está morta.

Sacada (versão final)

Nas horas longas, sombrias,
Da noite e da madrugada,
Lembro de ti, minha amada,
Extinto sol dos meus dias.

E vou então à sacada
E olhando as estrelas frias
Te chamo e, em mil agonias,
Te abraço, abraçando nada.

Perfeição

É preciso enterrar o amor, mas de tal forma e tão profundamente que jamais ele possa, numa manhã de primavera, despontar em nosso caminho sob a aparência de flor.

SP

Deus anda descuidando tanto dos cachorros e gatos que pôs nesta cidade que o prefeito prometeu ir intimá-lo pessoalmente, assim que descobrir seu endereço.

Já pensaram?

Se os poetas morressem tantas vezes quantas ameaçam, não haveria mais espaço para os vivos no mundo.

Mãe

Se minha mãe estivesse viva, teria te convencido de que sempre fui um bom menino e de que não devias me negar um brinquedinho tão simples e bobo como é o amor.

Ainda

Posso andar, ainda. O amor me proibiu de colher flores, mas posso ir vê-las no jardim, sentir seu aroma, e aspirá-lo como se aspirasse a suprema delícia da vida.

Morte

No momento final, que haja pelo menos duas testemunhas, para ficar claro que vamos contra a nossa vontade.

Liliane

Por não ter espelho, a primavera, quando se quer ver inteira, contempla meticulosamente Liliane Machado.

Mario Quintana

Deixar Quintana nervoso
Da maneira mais simplória
Era empregar o horroroso
Estória em lugar de história.

Malefícios do diálogo e do café

Tantos bons poetas, talvez grandes até, se os editores não tivessem tantas reuniões diárias e não tomassem tanto café.

Trecho de carta

Bateu-me uma vontade grande de lhe escrever algo bem simples, bem leve, esfiapento, fiaposo, sem peso e, quem sabe, sem nenhum significado, alguma coisa dessas que uma criança quer escrever, embora ainda não saiba. Gostaria que esta fosse a melhor de todas as mensagens já enviadas por mim a você, e eu a dirijo à menina que certamente você ainda acolhe no peito como uma boneca e talvez seja, abençoada e merecidamente, a sua melhor parte. Mando-lhe isto que não sei definir e que, porém, gostaria que fosse alguma coisa na qual você sentisse meu afeto (e que fosse o mais tolo e o mais boboca dos afetos). Mando-lhe como um cumprimento matinal isto, que soaria bem se soasse como o mais singelo, o mais tímido e o mais desajeitado de todos os ois.

Trecho de carta

Se estiver disposta, e se achar que mereço, mande-me uma resposta, ainda brevíssima, que eu a recolherei aqui com a mão em concha, como se fosse água da fonte.

Trecho de carta

Se eu deixei se mostrar excessivamente pernóstico neste bilhete o que possa haver de escritor em mim, releve, por favor. Eu gostaria de ser uma pessoa para você, uma pessoa que você pudesse lembrar sempre com um sorriso e dizer: ah, aquele Raul...

Trecho de carta

Te escrevo agora que, tendo aparecido o sol, as palavras, douradas por ele, parecem pêssegos. Espero que gostes de pêssegos. Se não gostares, podes dá-los a algum garoto que encontres aí pelo Central Park ou guardá-los por esta noite, para que deixem no teu quarto seu aroma. Amanhã podes deixá-los na rota dos passarinhos ou dos esquilos. Os esquilos não sei, mas os passarinhos talvez assobiem, em tua homenagem, o tico-tico no fubá.

Liliane

Quando o sol e Liliane Machado se encontram, não é fácil dizer quem sorri primeiro.

Marketing

Quando eu morrer, pode me despachar com a camisa do Corinthians. Chego lá e já vou fazendo propaganda.

Estranhos

Em termos de confusão,
A maior que me ocorreu
Foi me ver no espelho, e não
Ver no rosto o rosto meu.

Inquietação

Descobriu que há um componente sexual no afeto que tem pala amada. É uma novidade, coisa bem recente, mas ele já se culpa. Sente-se como um roteirista que, contratado para refazer um filme, começa a mudar tudo logo na primeira cena: o garoto ainda ajuda o cego a atravessar a rua, mas aproveita para tirar-lhe dinheiro do bolso.

Tão macia

Ter a mão tão macia para ti que, quando eu a passar em teus cabelos, penses que é o vento outra vez brincando de desmanchá-los.

Manhã

Apesar do sol, que manhã triste esta, doente, daquelas em que nos romances antigos o vento chorava no ombro dos ciprestes... Manhã daquelas nas quais as famílias internavam o parente maluco no sanatório, sabendo que dali ele jamais sairia. Manhã como as tantas em que tantos tiveram a coragem enfim de abrir a gaveta e tirar bem lá do fundo o revólver. Mas os passarinhos cantam. A eles não ensinaram a lição da tristeza e eles cantam, cantam ainda, já na boca do gato faminto.

Cotação do dia

Hora de recolher as tralhas, enfiá-las no saco e pegar a condução de volta para casa. Ninguém gostou dos nossos relógios descartáveis, com um mês de garantia, todos chineses ou legítimos paraguaios. Não gostaram das nossas camisas tipo Gil Gomes, perguntaram se não tínhamos aquelas do Xico Sá. Mexeram em toda a mercadoria, apalparam tudo, amassaram, amarfanharam tudo. Um homem chegou a provar uma das camisas, perguntou à mulher se estava bonito e, no fim, jogou-a (a camisa) de volta ao monte. Nos sovacos ficou o encantador aroma do seu desodorante e um pelão bem comprido que uma macumbeira gostaria de ter nas mãos. Assim como o Drummond, perdemos o bonde e a esperança, e a foto 3x4 de nossa alma revela só um fundo branco.

Creche

Mãe atarefada, a Morte pede à Vida que cuide bem de nós. Assim que puder, virá nos buscar.

Três frases de Mario Quintana

"CAMUFLAGEM  -  A esperança é um urubu pintado de verde."

"AH!  -  Ah! jamais ter necessidade de pronunciar essa interjeição..."

"ÓPERA  -  'Diz isso cantando!' Lembram-se disso? A Ópera levou esse ditado a sério."

(Do livro Caderno H, publicado pela Editora Globo.)

quarta-feira, 25 de março de 2015

19h25

Cedo, ainda, para fechar a loja. Mas, se o amor viesse, o que poderia dizer que fosse diferente daquilo que ontem e hoje tirei de tantas pastas, piquei e queimei?

2017, na Cultura (versão final)

Te reconhecerei logo
porque enroscado
em teus cabelos
um fiapo de sol
entrará na galeria

Teu rosto será o mesmo
como se o tempo
não tivesse corrido
e o meu será
o mesmo também
dez anos em cinco
envelhecido

Talvez eu finja não te ver
talvez sejas tu que finjas
talvez finjamos os dois
(tantos anos depois
quem é obrigado a se reconhecer?)

Mas talvez sorriamos
e quem sabe tenhamos
cinco minutos ao menos
e um cafezinho tomemos
como se o tempo
não tivesse corrido
e estivéssemos ainda
naquele dia de dezembro
daquele ano tão passado
e tão transcorrido.

Tarde demais

Querida menina, chegaste tarde demais. És um sol matutino, e seria justo que eu a recebesse como os pássaros acolhem a aurora. Mas eu, encolhido de frio, já estava fechando as janelas da tarde, e o canto com que te saudei foi o de uma ave rouca e agourenta.

Chama-me mais forte

Amor, às vezes penso que me chamas, paro e vejo que é só o vento na roseira. Se me chamares, chama-me forte, amor, ainda que a rosa caia e se despetale.

Imaginar e viver

Continuo achando que imaginar é melhor que viver. Sei que é um defeito de formação, uma anomalia que cultivo há muito tempo. Continuo pensando num mundo ideal  - e este "ideal", aqui, não tem nenhum sentido virtuoso, mas deve ser entendido apenas como é: ideal significa, no caso, uma transformação, uma deformação até. Sylvia Plath atormentava-se por imaginar que, enquanto ela dava um cochilo, o mundo lá fora desandava (e desandar, para ela, queria dizer andar prosaicamente, o que ela considerava o pior dos horrores). Persisto, embora essa persistência seja quase uma presunção, um ato de soberba, na disposição de ter uma visão própria (ou uma sensação própria) do mundo.

Sonho

Eu era um gato pequeno, tinha um pelinho cinza e macio, miava como se fosse recém-nascido e era alegre, mas fingia ser triste e doente, porque assim afofavas o canto do teu travesseiro e me deixavas dormir ao teu lado.

Dos artistas

Creio que o trabalho dos artistas seja se livrarem das várias camadas de "conhecimento" que lhes foram impostas e partirem para a própria definição das coisas, que de preferência será a menos definidora e definitiva possível. Por isso, acho que uma arte explicativa ou designativa pode ser o pior tipo de arte. Isso talvez explique a preferência que tenho pelos impressionistas.

Segredos

Já deves ter percebido que às vezes sou falso. Por exemplo, quando escrevo, como agora, que teus cabelos são tão dourados quanto o sol, bem sentes que eu, se não minto, exagero. Mas, por favor, não digas nada ao sol. Que seja um segredo teu e meu, que ele jamais desconfie de nada e continue se achando digno da comparação. Não contes nada ao mar, tampouco. Que ele pense ter exatamente a cor dos teus olhos e acredite nisso por toda a eternidade.

Emboscada

Importa agora saber
Quem fez ao amor o aceno,
Quem pôs no copo o veneno,
Qual de nós o fez morrer?

Silvia

Silvia François, como Boal,
Sempre teve o melhor pé,
E às vezes os dois, até,
Na agitação cultural.

Aprendizado

O amor tem lances de manual de guerrilha. Por exemplo: nos ensina a rastejar.

Mario Quintana

Assobiando uma canção,
Quintana era o passarinho
Que conseguia sozinho
Fazer surgir o verão.

Reconhecimento

A Morte não faz favor
Quando em seu site garante
Que é e será sempre o amor
O seu melhor despachante.

Lacuna

Abomino o humorismo, gostaria de ser trágico todo o tempo, mas não fui abençoado com essa graça.

You have the power to hypnotize me (Cole Porter)

És preciosa. Se estou tenso,
Só tu podes acalmar-me,
Porque só tu, amor, tens o
Poder de hipnotizar-me

Das flores

Não te perguntarei das flores que te mandei esta manhã. Tão bem me senti ao enviá-las que me agrada pensar que nisso, no envio, estava já uma felicidade tão plena que pedir algo mais seria desarrazoado. Não te perguntarei delas, embora tenham ido sem bilhete e e assinatura. Creio que imaginarás quem as mandou, assim como elas sabem com certeza que nasceram e cresceram para ser recebidas por ninguém menos que ti.

Hoje

De uns tempos para cá, só o  monitor do micro me declara bem-vindo.

Cinzas

As memórias do amor vão esvaziando as gavetas. Picadas e queimadas, não emitem um ai. Talvez não merecessem ter ocupado por tanto tempo esse espaço. Vamos ver. Faltam algumas cartas ainda, meia dúzia de pastas.

Amor

Ela era um tanto gorda e bastante desengonçada. Ele nunca disse a ela, mas intimamente a chamava de minha cavalona querida.

Proverbioso

As piores soluções e os melhores poemas nascem nas situações de maior desespero.

Luz no fim do túnel

Hoje não está tão descrente na humanidade. Foi assaltado ontem, e o ladrão, além do celular e do dinheiro, fez questão de levar os dois livros que ele tinha acabado de comprar.

Além dos cinco

O amor tem certos sentidos
Que por não serem nomeados
E nem sequer numerados
Acabam despercebidos.

O que é preciso

O poeta deve ter um
Norte todo desnorteado,
Um coração abobado
E juízo pouco, ou nenhum.

Para o adeus

Preparo meus braços para o adeus. Não te preocupes. Eles serão macios, te abraçarão educadamente, não demorarão em teus ombros mais do que cinco segundos, não tentarão nada, nada insinuarão, embora por eles possam correr, eu receio que sim, apelos aflitos para que te apertem, te estreitem, te prendam como deveriam estar te apertando, estreitando e prendendo desde o primeiro abraço que te dei.

Chagas

Aqueles aos quais o amor infligiu suas marcas puseram-se a caminhar no rumo da montanha na qual, diziam, o amor apareceria para mitigar-lhes as dores. Depois de semanas de jornada, chegaram, e lá já estavam, também esperando o amor, outros homens, muitos. Estes disseram que já se encontravam lá fazia anos. À decepção inicial seguiu-se uma comparação - os recém-chegados exibiam suas feridas e examinavam as dos outros. Logo estavam todos sorrindo - os sorrisos mais abertos eram os dos que tinham chagas maiores e mais profundas - e esqueceram-se de que haviam ido ali para diminuí-las ou livrar-se delas.

Consolação

És aquele trecho de calçada que os pés dela pisaram naquela manhã, diante da galeria, e esperas ainda, tantos anos depois, que, dos milhares de passos diariamente dados sobre ti, ao menos dois possam ser novamente aqueles cujo eco ressoa ainda em teu coração reminiscente.

Cultura

E todas as manhãs são e sempre serão aquela em que teus dedos, como um passarinho bicando uma faísca de ouro, puxaram da estante aquele romance de Philip Roth.

Que triste

Que triste é saber que jamais consegui nem conseguirei exprimir isto que mexe em mim quando penso em ti. Isto que não tem encadeamento nem lógica, isto que não é a beleza didaticamente ordenada, mas fragmentos dela, imagens que não são palavras porque, se fossem, alguém poderia cometer o disparate de dizer que apalpou uma estrela ou acariciou um cisne. O que sinto quando penso em ti não é o cisne nem a palavra que o nomeia, não é a estrela nem o que se pretende dizer quando se diz estrela. É o que tu és, e talvez nem seja o que tu és. É o que eu sinto que tu és quando mexes assim comigo.

Se puderes

Se puderes, desenha para mim, um dia, um barco bem pequeno, bem simples, como se o estivesses fazendo não para mim, mas para o menino que eu fui, aquele que se extasiava com as princesas e rainhas dos livros de fadas e jamais pensou que pudesse vir a conhecer alguma igual a ti. Desenha um barco pequeno, do tamanho de minha ambição de outrora, um barco para um ingênuo navegante que acreditava haver no mundo estrelas suficientemente capazes de louvar a beleza de uma mulher, porque ainda não te conhecia.

terça-feira, 24 de março de 2015

21h55

Fechar a loja. A destruição dos arquivos amorosos, inciada ontem, me exaure - e ainda não sei se me faz bem ou mal. Sei que ela irá até o fim. Mais uns cinco ou seis dias. Tantos anos picados e queimados assim...

Passarinho

Desde o dia em que me trouxeste para a tua casa, canto melhor. Quase não tens tempo de olhar para mim, nem mesmo quando repões o alpiste e a água. Não importa. Canto para ti, só para ti, e se outra mão vier me alimentar não cantarei nunca mais.

Flor

Espanta-me ainda o teu amor, como se fosse uma rosa que, subitamente surgida entre as pedras de um jardim, retivesse para sempre o dono em casa, temeroso de que, tão subitamente quanto apareceu, ela se fosse, arrebatada talvez por um convite malicioso do vento. Olho para a rosa, e em qualquer brisa vejo um disfarce do vento. Como anteontem, como ontem, não sairei de casa.

Que dói

Vou te dizer que dói, dói muito, dói faz tempo e dói cada vez mais. Podes me considerar cético, mas vou te dizer que não creio quando alguém comenta que tudo, até o amor, tende a se esvair aos poucos. Sei que o amor não se esvairá. Sei também que não deveria estar te dizendo isto tudo, eu havia prometido que não. Se digo, é para compartilhar com alguém esta dor, que me rói todo por dentro. Se digo, é também - talvez principalmente - para te aconselhar que, se um dia amares, nunca acredites que o amor se esvai. Se o amor se esvai, se o amor pode se esvair, tudo está perdido no mundo.

As duas

No começo
quando eram duas garotinhas
dividiam o lanche
toma aí meu queijo
dá aqui teu presunto
e mordiscavam
mordiscavam

Depois que se descobriram
duas passarinhas
não levavam
mais lanche
e durante o recreio
se bicavam
se bicavam.

Queima de arquivo

Destruo a história do amor,
Carta a carta, pasta a pasta,
Com persistência, rigor
E fúria de iconoclasta.

Proporção

Deixei uns bons anos de minha vida contigo. Tu me deixaste uns preciosos minutos da tua.

Nunca?

Nunca pensaste que talvez sejas como eu te vejo? Nunca te ocorreu que eu posso ter estado todo o tempo certo sobre a tua grandeza? Nunca imaginaste que eu, que há tanto tempo venho perseguindo a beleza ideal, possa ter recebido a graça de enfim encontrá-la?

Texto e pretexto

Não, tu não és um pretexto
Que eu use para a poesia.
Tu és o que diz o texto
E o que sem ti não diria.

Papelada

Vou pondo as coisas em ordem.
A morte é muito exigente
E nem sequer toca a gente
Se estivermos em desordem.

Mudança

Devo logo descobrir
Para mim melhor assunto.
Quem há de querer ouvir
Falar de amor um defunto?

Garrote

Maluco mesmo, de hospício,
É quem não teve jamais
No amor o seu maior vício
E no seu corpo os sinais.

Saudade

Tive ternura e também
A mais boboca meiguice.
Como se enquadrava bem
No amor a minha tolice.

Carimbo

Já não podemos dispor
Das virtudes ou defeitos.
Desgraçadamente o amor
Já produziu seus efeitos.

Bom, boa, boa

Não me dás um bom-dia. Nem um boa-tarde. Nem um boa-noite. Como devo ser desprezível, para não merecê-los. E como devo tornar-me ainda mais abjeto, quando os peço assim.

Infâmia

Não há como acreditar,
Não há nem como supor,
Que possa alguém se esmerar
Em cartas falsas de amor.

Mario Quintana

Entre mim e Mario Quintana há certas convergências que vou descobrindo espantado, diariamente, como um cego tateando o rosto de um irmão gêmeo.

Liliane

Liliane Machado é uma dessas belezas que nascem de um feliz acerto entre o sol e os outros ingredientes da manhã.

Silvia

Em Silvia Galant François há a melhor espécie de agitação: a cultural.

Mario Quintana

O melhor Quintana que há,
O gozador, o impudente,
O cáustico, o irreverente,
Está no Caderno H.

Tradição

Sou antigo, de uma antiguidade dessas que ainda acham que a principal obrigação de um poeta é sofrer.

Rumo

O amor não tem rumo certo,
O amor trilha trilhas curvas
E afoga-se em águas turvas.
O amor nunca será perto.

Bom dia

Eu te cumprimento
com sem-jeiteza
e atrapalhação
como se hoje fosse
o primeiro dia da Terra
e como se tu fosses
o primeiro murmúrio da beleza
a primeira criatura
de toda a Criação.

Chué

Sou dado a retumbâncias e, quando falo de você, exagero nos tambores e nos metais. Essa ostentação pode fazê-la pensar que é um jeito meu de disfarçar a pobreza do conteúdo. Você estará certa se pensar assim. O amor que você me inspira é tão mal servido por minhas palavras...

Quintinha

Há muito não tenho escolha.
Tu não me vieste colher
E eu nada posso fazer
Senão ficar e torcer
Para que a morte me colha.

Servidão humana

Não sei se é triste ou alegre a servidão humana. Ela existe e quem a leva no coração simplesmente não pode excluí-la. Das servidões humanas, a do amor é a mais profunda e intensa. Ninguém precisa dizer, a quem padece essa servidão, que talvez haja algo vexatório nela. Quem a traz na alma não vê humilhação em amar alguém até a adoração. Doença? Inconveniência? É servidão, só, é estar-se cativo e saber que, mesmo se deixarem a porta aberta, não se dará um passo para fora. Quem sabe da servidão por amor são só os seus servos. E eles não pedem benevolência. Na verdade, não pedem nada. Querem apenas dizer que, gostem dela ou não, não podem (não querem) libertar-se. Dizerem-se escravos é o que os move todos os dias, desde que surge o sol.

Quarenta graus

Tu colocarás a mão em minha testa e ela queimará com a minha febre. Me dirás pobrezinho, ardes por mim? E eu direi que sim, que sim, como se não soubesses. E perguntarás o que podes fazer por mim, como se não soubesses.

Demônios

Boa noite. Fervi no fogo de todos os demônios, tenho em mim as marcas do teu chicote, sinto-me cavalo teu e mastigo a relva que me oferece a tua mão. Tu me cavalgas há tanto tempo que tenho o contorno de certa parte do teu corpo desenhado em meu lombo. Relincho educadamente, para que me açoites somente quando chegarmos ao lugar em que a sombra das árvores nos esconderá e tu já serás menos senhora, e eu menos cavalo. Nesse lugar, abrandarás o chicote e eu relincharei como relincham os cavalos no clímax do cio.

Búfalos

Começo a te sorver devagar, minha fonte. Mas tua água depressa se transforma em vinho, enlouquece minhas veias e põe fogo nelas de tal forma que eu deliro a cada gole, e quero beber-te inteira, minha fonte, e quero saciar-me e quero secar-te como se tivesses sido bebida por uma centena de sequiosos búfalos, minha fonte.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Cantiga de ninar

Ser uma folha
uma flor
em teus cabelos pousar
em teu trigo embrenhar-me
ali ficar escondido
e quando o sol se for
anoitecer contigo
adormecer contigo
ouvindo a brisa ninar
sussurrantemente o trigal.

Consciência

A literatura é um vício do qual procuro me absolver com falsas alegações de qualidade.

20h59

Fechar a loja, fechá-la já. Recolher o que restou das cartas hoje rasgadas e queimadas. A tarefa toda consumirá ainda uns dez dias. Só depois saberei se estou livre ou ainda mais algemado, com a agravante da culpa. Maldito seja quem pica e queima palavras de amor.

Centauro

Venho encarnando cada vez melhor o personagem do "velho no sofá". Penso em mim e me vejo como um centauro: a parte de baixo, sofá; a de cima, ruínas de um homem.

Beijo

Mando-lhe um beijo, que você fará o favor de receber ali onde os seus cabelos recebem também os beijos da brisa, que é muito melhor poeta que eu, e o quente carinho do sol, amante mais apto.

Talvez

Saber que você provavelmente lerá isso me dá uma dessas satisfações tolas que, no fundo, são a melhor espécie de satisfação.

O papel certo

Não me censures, não digas que eu sou reles quando me apequeno. Quem exalta alguém deve estar abaixo do exaltado.

Pequenez

Como você me faz parecer pequeno, como eu precisaria fazer mais para comovê-la.

Ideologia

Sou um intransigente defensor da ideologia do sofrimento. Para vivê-la plenamente, é sempre bem-vindo um empurrãozinho do amor, naquela sua única forma criativa: a da recusa.

Nota

Os leitores notarão, já hoje e em pelo menos mais uns dez ou doze dias, que alguns textos aqui publicados nesse período parecerão frases de cartas. São. São partes da correspondência que mantive por cinco anos com Priscylla Mariuszka Moskevitch e que, depois de muito anunciar e recuar, comecei hoje enfim, pelo bem de minha saúde, a reler, com um horrível prazer, e a queimar, com uma indizível dor. Rasga-me o coração fazê-lo, mas há situações que, embora tendo algo de literário, são eminentemente pessoais. O que devo dizer, em nome da justiça, é que, relendo essa correspondência, ficou claro, mais do que nunca, que, apesar das queixas que as cartas revelam, foi um episódio que me fez crescer como homem e me devolveu à poesia. Dizer que estou grato a Priscylla por isso é formal demais. Ela sabe que eu jamais poderei agradecer a ela como ela merece. Que Deus a abençoe.

Que você um dia...

... possa me dizer adeus. Um adeus que não seja arrancado a fórceps, como o cumprimento de uma formalidade. Um adeus, só. Um segundo para escrevê-lo, um instante. Preciso dele - ainda que você o arranque a fórceps, como o cumprimento de uma formalidade. Um adeus, só. Um segundo só, um instante para escrevê-lo, outro para enviá-lo. Um adeus.

Mariuszka e Super Ígor

Num dia frio, como hoje, eu nos imagino na neve, fugindo de um urso que se apaixonou por você e quer levá-la para a gruta. Você me pede que a socorra, embora o urso seja bem mais apresentável e simpático do que eu, e eu a atendo. Você me agradece, beijando-me como nunca, e nesse instante eu sou seu Super Ígor ou seu Super Bóris, como primeiro você me chamar.

Se nunca

Se nunca puseste a mão na testa de um homem tomado pela febre do amor, cala-te.

Das alegrias

As alegrias simples estão ao alcance de todos, até eu posso almejá-las. Às grandes eu já renunciei.

Categoria social

Meus textos são tristes como os filhos dos carvoeiros de Charles Dickens.

Ainda ontem

Bom tempo foi aquele em que me imaginava um gato ensaiando a escala de minha asma no colo de Priscylla Mariuszka Moskevitch.

Revisão

Hoje tenho vergonha da minha ternura tão desavergonhada, que ficava te puxando pela saia, como um gatinho rejeitado.

Paixão

Eu não precisaria de sexo para triturar-te os ossos, todos. Seria capaz disso com a força de minha alma apaixonada.

Silvia

Se tenho algo em comum com Mario Quintana é o afeto por Silvia Galant François.

Choque de gestão

Ando precisando de uma auditoria independente para avaliar meus versos. Os olhos com os quais os vejo são ainda os olhos de minha mãe.

Conceito

Um só
nunca fica a sós

Sempre é preciso dois -
nós.

Olhos falsos

Desde o primeiro dia
minha alma desconfiou
do teu olhar

Ele sempre me dizia
cuidado
senão te como

De lá para cá
tenho me esmerado
para parecer apetecível
comível

Tenho esperado
desesperado
reesperado
e como!

Priscylla

O que eu sentia, ao ver Priscylla, era uma inquietação que em poucos instantes ensaiava assumir ares de êxtase.

Liliane

Liliane Machado tem a timidez das estrelas jovens. Mostra-se pouco, brilha sem querer ofuscar.

A fonte de Mario Quintana

Aquela fonte na qual
Mario Quintana bebia
E parecia normal,,
Era a fonte da poesia.

Realimentação

Os mortos, os quase mortos e os que se desencantaram com o amor são os que mantêm funcionando os sebos.

Bandido

Manteve a tristeza em cativeiro e afeiçoou-se tanto a ela que recusou todas as propostas de resgate.

Kama Sutra - DCXXX (versão final)

Sentiu-se tão fraco, tão covarde diante da mulher que o examinava com olhos de luxúria, que no cérebro não se formaram imagens voluptuosas, nem itinerários de língua e boca, nem entrelaçamentos de corpo, mas só uma lembrança muito antiga e triste na qual ele, menino, ardia de febre e excitação pela antecipada culpa de furtar no colégio o lápis de uma menina que lhe declarava amor com os olhos fechados e o estojo aberto.

Assistencialismo

Cada um de nós deveria receber uma cesta básica cheia de arcos-íris.

Do time

Deus é tão desleixado que às vezes penso se ele não é um poeta.

Musa

Não acredito que haja para um poeta nada mais fecundo que um diálogo diário com a tristeza.

Pureza

O ideal seria olharmos a beleza com os olhos dos nossos cinco ou seis anos - quando nem ela nem nós tínhamos um pingo de premeditação ou malícia.

Tristeza

Entrou-me pela janela esta manhã uma tristeza aguda, como se o vento estivesse sendo dedilhado por Chopin.

A razão de viver

Se há algum sentido na vida, creio que ele deverá ser buscado mais na beleza que na verdade.

Fardão

Gaba-se aquele poeta de academia: "Entendem-me cada vez menos. Começo enfim a me tornar um clássico."

domingo, 22 de março de 2015

Hora de fechar

Que estupidez ter aberto a loja num domingo. Como pude imaginar que o amor não teria outra coisa a fazer e viria ver se sobrou algum caderno que eu não haja enchido de louvores a ele?

Razão de ser

Espero que esta coisa pela qual há tantos anos me empenho e me mato possa um dia ser considerada literatura.

Proporção

Quando se avalia tudo,
Há de ser sempre a poesia
Dois por cento de conteúdo
E o resto pura magia.

Tolice

Só podemos ser tolos, sempre enfiados em casa, acreditando que um dia conseguiremos domar as palavras.

Vocação

Aqueles que aspiram à glória literária mostram, com essa loucura, que estão no ofício certo.

Estorvos

O ruim de lidar com tolos
É que, depois de acolhê-los,
Se não queremos mais vê-los,
Não temos nunca onde pô-los.

Escritores

Acredito mais nos que escrevem por prazer, principalmente naqueles em que o prazer tem profundas raízes no masoquismo.

Conduta

Escrevo, escrevo. Escrever
Não é um hobby, é um suplício,
Uma compulsão, um vício,
É meu modo de viver.

Obstinação

Como tolas colegiais,
Os beijos que não se deram
Na mesma esquina ainda esperam,
Há cinco anos já, ou mais.

Itens

Se um poeta não tiver um bom estoque de nomes de mulher e de flor, talvez seja caso de a fiscalização ir multá-lo na lojinha.

Confissão

Você tem razão, minha querida. Eu só penso em escrever. Se você cair durinha agora, aqui na minha frente, a primeira coisa em que pensarei não será em chamar uma ambulância, mas em escrever uma bela elegia.

Fernanda

O nome de Fernanda Lima há de ser dito sempre com comedimento, se estivermos em um jardim. Todos sabemos como são ciumentas as rosas.

Liliane

Em Liliane Machado há sinais que a ligam indesmentivelmente à eterna linhagem da beleza.

Priscylla

Priscylla Mariuszka Moskevitch era um desses acontecimentos que apenas raríssimas tardes propiciavam, como a inesperada floração de um arco-íris.

O passarinho em Quintana

O melhor, em Mario Quintana, não era ele ter um espírito de passarinho. Era ele ter um espírito de passarinho novo, de passarinho filhote.

As duas faces da poesia

A poesia pode ser solene, mas não todo o tempo. Os leitores sempre esperam dela alguma graça, certo bom humor, e até um bocadinho de brejeirice. Mario Quintana sabia dosar bem esses ingredientes.

Divagando em torno de Mario Quintana

Mario Quintana dizia que o importante não era acreditarmos em Deus, era Deus acreditar em nós. Penso que Deus acredita em nós, sim, com as imagináveis ressalvas de quem conhece muito bem os defeitos de fabricação.

Clássico

Gabava-se hoje, no café da manhã, aquele poeta de academia: "Cada dia me entendem menos. Começo enfim a me tornar um clássico."

Liliane Machado

Em Liliane Machado há,
Se um olhar de artista a vê,
A beleza inteira, do A
Até o longínquo Z.

Más-línguas

Há quem diga que Deus fez o homem nas coxas.

sábado, 21 de março de 2015

19h42

Fechar isto aqui, fechar antes que os cadernos comecem a me cobrar poemas em homenagem a quem não quer recebê-los.

Roleta

Não somos nada, não temos
Nada. Em nós quem apostar
Irá se decepcionar.
Não, nós jamais venceremos.

Adiamento

Com redobrado fervor
A morte espera por ti.
Sobreviveste ao amor
E derrotaste o Big C.

Represálias

Estamos rindo de quê?
Você escarnece de mim,
Eu retribuo a você,
E o amor ri de nós, no fim.

Obsessão

Vale a pena nos recusarmos assim à vida e ao sol? Quem queremos ser? Shakespeare? Se tivéssemos sido Shakespeare, já teríamos sido.

Poesia

Como um mendigo que expõe as feridas aos passantes, exibimos nossos versos. Todo dia precisamos retocar o sangue, reforçá-lo, e torcer para que a mosca não pare de esvoaçar sobre o nosso ganha-pão.

Causa

Quando nós, sem compaixão,
Deixamos o amor murchar,
Começamos a aceitar
A morte no coração.

Condimento

Todo ato sexual deveria ser persuadido de que será o último.

Cotação

Não melhoraremos
nem com a morte
nem mesmo após

Até nós
já desistimos de nós.

Vocação

Na própria palavra concupiscência há algo de inquietantemente sórdido, de deliciosamente escabroso.

Logística

A cama há de ter espaço para que nela se esparramem os cento e quarenta e quatro pegajosos tentáculos da luxúria.

As palavras tristes

As palavras tristes são as que mais semelhança têm com os gatos. Chegam sabendo que para elas sempre haverá um lugar no sofá. Podemos resistir um pouco, mas só até o momento em que se põem a miar e a contar o que sofreram lá fora.

Tipos

Ladrão, sicário, assaltante,
Nós podemos tudo ser,
Se soubermos escolher
E formos vis o bastante.

O quê?

Se nós excluirmos o amor,
Que coisa mais há de ser
Capaz de nos convencer
De que a vida tem valor?

Parceiro

Me dói um pouco aqui, ali me dói bastante.
Terei a minha cota sempre garantida.
Em cada passo que ainda me couber na vida
O amor é e será meu fiel acompanhante.

Candidatos

Um fez uma petição,
O outro fez um escarcéu.
Esse um não foi para o céu,
E aquele outro também não.

O ideal

Não tenho mais muito tempo, nem para escrever nem para nada mais. Mas pretendo usá-lo todo, gastá-lo inteiramente com a literatura, embora receie, no final de tudo, descobrir que esse ideal, acalentado durante a vida toda, terá sido, pelos resultados, nada mais que um hobby.

Quem

Quem há de dar-me consolo?
O amor escolhe os ladinos,
O amor exclui os mofinos,
E eu fui tão tolo, ah, tão tolo.

sexta-feira, 20 de março de 2015

19h19

Fechar a loja. É cedo, ainda? Ir acostumando os fregueses aos horários mais disparatados, para que, no dia do fechamento definitivo, não estranhem - ou estranhem pouco.

No avião

Perguntei pela beleza,
Disseram que estava ao lado.
Olhei e tive a certeza:
Era Liliane Machado.

Lista

Há sim desastres morais,
Há sim desgostos profundos,
Há sim fracassos rotundos,
Há sim tristezas mortais.

Fardão

Que malfadada é a poesia.
Ainda hoje infelizmente há
Quem a venda por um chá.
Aos diabos com a Academia.

Opção

Se eu houvesse me dedicado a plantar batatas em vez de me entregar tresloucadamente a sonhos poéticos, teria tido tempo de falir pelo menos vinte vezes.

Bloquinho

Um poeta não há de querer ser formador de opinião. Melhor será anotar o que têm a dizer as árvores, a brisa e os passarinhos.

Opinião

Falo por mim. Um suspiro de Mario Quintana vale por uma catedral de João Cabral de Melo Neto.

Argh!!!

Quando ouço falarem de engenharia do poema, fico feliz com a minha ignorância.

Soneto da lojinha de poemas

Mantenho a loja de poemas
Com a convicção de quem sabe
Que nela só o simples cabe,
Nada de ordens nem de lemas.

São comezinhos meus temas,
Nada que em tratado acabe,
Que derrube ou que desabe,
Nem teorias nem sistemas.

Falo de pássaros, flor,
E não escondo que o amor
É o meu assunto dileto.

Não sei calcular, construir.
Quem quer isso vá ouvir
João Cabral de Melo Neto.

Cotação do dia

As mulheres logo percebem que não passo de um menino e, em vez de figurinhas ou pirulitos, me dão para beber a água amarga que guardam em suas fontes.

Sexto sentido

Por conhecê-las bem, afasta-se das pessoas no inevitável momento em que começam a falar de amor.

Caldeirão

Às sextas-feiras elas faziam uma infusão com folhas bem picadas de algum conto de Cortázar e, preparando-se para o êxtase que viria quando a tomassem, abriam as grandes janelas para compartilhá-lo com os pássaros noturnos. Conhecedores do ritual, estes chegavam sem receio dos três gatos, um de cada feiticeira, por saberem que eram pássaros também, disfarçados, e logo se juntariam ao canto em que se celebrava sempre o predomínio das trevas sobre a luz e sua definitiva vitória.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Mérito

Seja do jeito que for,
Se de mim um cisco só
For poupado pelo pó,
Que seja o cisco do amor.

Soneto de como cantarei o amor

Hei de cantar ternamente
Não a volúpia do amor,
Seu vício, seu despudor,
Mas a sua face decente.

Hei de cantar docemente
Sua timidez, seu rubor,
Seu recato, seu pudor,
Não a sua carne impudente.

Hei de passar, ao cantá-lo,
A convicção de que falo
De um anjo, de um querubim.

Saberá, quem me escutar,
Que nele é que fui buscar
O que há de mais puro em mim.

Metamorfose

Se no escuro sentes
cheiro de carne jovem
teu sorriso imediatamente
se transforma em dentes.

Facebook

Ao invés de mal-rimar
Juvenil com céu de anil,
Eu vou posar e alterar
A foto do meu perfil.

Poetas

Nós, seres tão delicados,
Morreremos com certeza
E seremos sepultados
Com toda a delicadeza.

Crueldade

A pior usura é manter um passarinho só para si, engaiolado num quarto permanentemente tomado pela treva, e só acender a luz um minuto por noite, para que ele, durante esses sessenta segundos, gorjeie com vigor, como se estivesse saudando o sol.

Soneto do homem e do amor que o sustenta

Agora ele passa os dias
Lendo com seu olhar terno
Naquele velho caderno
As tristezas e alegrias.

Lê risos, lê agonias,
A estação vernal, o inverno,
Lê o céu e lê o inferno
Naquelas páginas frias.

Na capa ele se esmerou
E em forte azul desenhou
Com letras grandes: AMOR.

O amor sustento lhe dá
E sustento lhe dará,
Enquanto vivo ele for.

Ela

Não te preocupes com a morte

Não a superestimes
nem a desdenhes

Ela sabe teu endereço
e se não souber
um inimigo teu lhe dirá

No dia certo
tão certo quanto
a noite sucede ao dia
ela virá.

Mario Quintana

Desde o dia em que comecei a falar de Mario Quintana, os passarinhos passaram a me procurar para conversar sobre o sol e as flores.

Modus moriendi

Enquanto eu me mato assim
achando que escrever
é viver
dostoiévski e shakespeare
que já tiveram o bom-senso
de morrer
morrem outra vez
de tanto rir de mim.

Fernanda Lima

Fernanda Lima seria
Sempre a principal fração,
E o melhor verso, se não
Fosse ela toda a poesia.

Interrogações

Tu já escreveste demais,
Não é hora de desistir?
O que mais vais produzir?
Uns sonetinhos a mais?

Soberba

Escrever tanto, todos os dias, vai me parecendo ser uma atitude de extrema presunção. Quem eu quero ser? Shakespeare? Dostoiévski?

A abjeção, em Dostoiévski

Os personagens de Dostoiévski, com seus atos de abjeção, parecem estar sempre provocando a intervenção divina. É como se a todo instante dissessem: "Se estou errado, vem dizer-me. Só acredito na pureza se Tu mesmo a declarares a mim." Também Antero de Quental, numa noite de terrível tempestade, entre raios e trovões, exortou Deus a provar que existia: "Mata-me, mata-me!"

Chantagem

Se vocês não gostam dos meus sonetos, vocês não gostam de mim.

quarta-feira, 18 de março de 2015

17h49

Fechar isto aqui, deixar que na obscuridade os cadernos, os lápis e as canetas conversem sem o constrangimento do meu olhar sisudo. Certamente farão poemas melhores que os meus, mais alegres - ou menos tristes. Sinto-me, dia a dia, um portador de péssimos astrais. O que têm os outros com a minha inaptidão para tudo? Boa noite.

Morrer

Morrer é o que nós fazemos
Quando o amor vêm entregar
E no cesto em que o acolhemos
Nós o atiramos ao mar.

Soneto de como me fazes mal

Me fazes mal quando deixas
Teu celular desligado
E eu tento desesperado
Fazer-te ouvir minhas queixas.

Me fazes mal quando dizes
Que desde que me aceitaste
Muitas coisas desfrutaste,
Mas jamais dias felizes.

Me fazes mal, muito mal,
Quando perguntas o que eu
Quero de ti afinal.

Que pode querer alguém
Que há muito tempo morreu
E amor suplicar-te vem?

Juiz

Quando recontar a história,
O amor dará sempre jeitos
De nos lançar os defeitos
E se atribuir toda a glória.

Menos

Falta de visão, a minha.
Vi no amor um cavaleiro,
Um invencível guerreiro,
E o amor é um merda, um bostinha.

Soneto da garganta inútil

Nós só sabemos de nós
Com pleno conhecimento
Quando nos chega o momento
Em que não temos mais voz.

É sempre assim: o tormento,
A dor, a aflição atroz,
E o nome do nosso algoz
Tendem ao esquecimento.

O amor nos fere e flagela,
Nos mata, nos escalpela
E, se vamos acusá-lo,

Não podemos, não adianta.
Já tanto falha a garganta
Que não podemos nomeá-lo.

Laissez passer

Deixemos tudo passar.
Que tola essa presunção
De em tudo pormos a mão,
De tudo modificar.

Segunda chance

Se olhares bem para mim
Verás que sou mesmo tonto,
Mas me darás um desconto.
Eu não sou tão tonto assim.

Porvir

E chegarão os dias em que, se alguém olhar para nós, ainda que só por piedade, será um acontecimento. E voltaremos a acreditar em Deus.

Se

Se Dostoiévski me pusesse
na mão a machadinha
a primeira cabeça que eu cortaria
seria a minha.

8h38

Hora de ir trocar os livros no Centro Cultural. Que a Carmen e a Sandra puxem, de alguma estante, um livro que me fascine como a primeira vez que li Saroyan ou Pessoa. Há muito me abandonou a pureza. Isso é o pior que pode ocorrer a um homem: perder a pureza.

Estilo

Faço quase tudo como os outros poetas. Com uma diferença: sempre um pouquinho pior.

Ronda

Zelosa de suas estrelas, a lua segue o poeta, atenta à mão com a qual ele saca seus sonetos.

terça-feira, 17 de março de 2015

Lição em "er"

Quando eu irei aprender
Que só nasci para ser,
Que devo apenas viver,
Que é um luxo tolo escrever?

17h45

Fechar a loja enquanto ainda um fiapo de sol se esgueira pela calçada. À noite a tristeza fica bem pior. Agora à tarde um gato entrou e quis deitar-se em cima de uns cadernos. Queixou-se quando o enxotei. Não sabia dos meus motivos. Conheci um homem que num dia como este, aparentemente prosaico, deixou entrar o amor em seu coração, e foi a desgraça de sua vida.

Astúcia

Após ir por mar e mar
E aportar em porto e porto,
Cansado de ir e chegar,
Finjo-me agora de morto.

Tarde demais

Morri no instante preciso
Em que vieram avisar
Que não iam aceitar
Mais mortos no paraíso.

Opção

Quando lhe calha apostar
Num casal inadequado,
Se no fim tudo gorar
O amor é acaso o culpado?

Placas

Algumas vezes, já com
Meio caminho vencido,
Vem o amor, não acha bom
E modifica o sentido.

Soneto da desforra que pode haver na morte

Quando estiveres sofrendo,
Não deixes ninguém notar,
Nem vás ninguém perturbar
Dizendo que ai, está doendo.

Quando estiveres morrendo,
Que possas manter esse ar
De quem nasceu para estar
De todos escarnecendo.

No instante da extrema-unção,
Que digas ai, que emoção,
Nunca estive tão feliz.

E, no dia derradeiro,
Que não te queixes do cheiro
Do algodão no teu nariz.

Soneto do que o amor nos preceitua

A cada dia mais somos
O que o amor nos determina:
Morremos, nos decompomos,
Cavamos nossa ruína.

Em capítulos ou tomos
Ele ensinou e ainda ensina
Sempre o que de pior fomos,
E diz que essa é nossa sina.

Não ousamos contrariá-lo,
É o senhor, nós o vassalo,
Soubemos já desde o início.

E ele, querendo ser fiel
Ao seu mesquinho papel,
Nos joga no precipício.


1900 e nada

Havia um improvável piano no sobradinho, e tardes em que as mãos da menina, depois de terem penteado as bonecas, dedilhavam valsas para adormecê-las.

Na rua

"Seu Raul?"
"Sim, olá."
"O poeta?"
"Aí já vou ficar devendo."

Silvia (para Silvia Galant François)

Por entre as vogais amar
Mais do que as outras sempre o "a",
Quando Silvia ia chamar
Quintana piava Silviá.

9h01

Pendurar um aviso qualquer e fechar a loja. Sair por aí, a esmo. Se houver no caminho placas indicando o rumo do amor, pegar o sentido contrário.

Prestação de contas

O que diremos, no fim, a todos os nossos suicídios malogrados? Que desculpas lhes daremos, com nossas cansadas palavras de mortos-vivos?

Soneto em cujos versos se entrega a vida

Ó tu, que sabes de mim
Mais do que eu sei, eu preciso
Repetir-te que agonizo
Por me tratares assim?

Ó tu, meu começo e fim,
Inferno meu, meu paraíso,
Minha loucura e meu juízo,
Não sabes por que hoje vim?

Ah, sabes, deves saber,
Não te preciso dizer
Que vim entregar-te a vida.

Ela não me vale nada
Sem ti, ó minha adorada,
Sem ti, ó minha querida.

Luxúria

A luxúria é abominável, mas só nos outros e quando não nos tem como objeto.

Uma frase de Rainer Maria Rilke

"Não existe prisão pior do que o medo de causar dor a quem nos ama."

(Do livro Cartas do poeta sobre a vida, tradução de Milton Camargo Mota, publicado pela Martins Fontes.)

segunda-feira, 16 de março de 2015

Fernanda Lima

Fernanda Lima, lindo pássaro, quisera ter um céu incontrastavelmente azul e abri-lo para os teus voos.

20h33

Fechar a loja, antes que a gorada visita do amor tenha tempo de crescer ainda mais na alma aflita e nós sejamos tentados a amaldiçoá-lo, quando o que gostaríamos de fazer seria puxá-lo ao colo, como se fosse um gato, borrar de lágrimas o cinza do seu pelo e perguntar-lhe por onde andou, nesses tantos dias em que a morte se insinuou em nós como nosso único alívio e salvação.

Os outros e eu

Foi no cativeiro do amor que aprendi a cantar. Devíamos, os outros e eu, acordá-lo toda manhã com nossos mais belos gorjeios. Foram anos assim. Envelhecemos, os outros e eu, e, quando nosso canto já não lhe agradava, o amor vendeu-nos para o dono deste circo. Você, que nos ouve agora, e os outros espectadores nos perdoem se do antigo brilho podemos mostrar só nossos cantos hoje tristes e nossas gaiolas antigamente douradas.

Mario Quintana

Mario Quintana nutria
Seu passarinho interior
Com um bocadinho de amor
E farelos de poesia.

Tudo, nada

Em tudo quanto vivi,
Em nada tanto fervor
Senti qual senti no amor,
E em nada tanto morri.

Pauta

Eu, mesmo agora, defunto,
Se o amor citado não for,
Me calo. Fora do amor
Não tenho nenhum assunto.

Terceiro ato

O amor é aquele bufão
Que no momento devido
Se assume como bandido
E nos atira ao caixão.

Soneto da amada desbocada

A amada aniversariou
E nesse dia ditoso
Ele, gentil, lhe comprou
Um sabonete cheiroso.

Um mês, ou mais, se passou
E ele, um amante curioso,
Como ela nada falou,
Um dia indagou, curioso:

Você gostou do presente?
A amada, com ar displicente
E um tanto de menoscabo,

Lhe disse: aquele fedido,
Te falo, não tem servido
Nem para limpar meu rabo.


Aniversários

O amor tem sempre um pretexto
E sabe nos ludibriar
Quando quer nos presentear
Com uma serpente num cesto.

CPI

Minha culpa é limitada,
Sou no máximo um coautor,
Somente um sócio do amor
Numa empresa malograda.

Soneto da morte do que nós amamos

O tempo mata o que amamos.
Tudo que nos encantou,
Tudo que nos fascinou,
Está onde não estamos.

Tudo por que nós ansiamos,
E nossa alma desejou,
Tudo chegou e passou,
Nós, somente, aqui ficamos.

Foram sonhos só, e em vão
Esperamos no portão
Pelo qual um dia entraram.

Foram sonhos só, e já
Nem sinal dos passos há
No chão por onde passaram.

Uma reflexão de Rilke

"A revolução significaria para mim uma pura e simples legitimação do homem e do trabalho que ele goste de fazer e domine. Todo programa que não põe esse objetivo em seu fim me parece tão sem perspectiva como qualquer um dos regimes e governos anteriores..."

(Do livro Cartas do poeta sobre a vida, tradução de Milton Camargo Mota, publicação da Martins Fontes.)

domingo, 15 de março de 2015

Alienação

Um debate agora ouvi:
Não seriam as passeatas
No fundo apenas papeatas?
Não sei. Há muito morri.

Classe

Sou um desses homens sérios
Desde cedo destinados
A brilhar nos cemitérios
Em que forem enterrados.

18h27

Hora de fechar a lojinha. Poucos a visitaram hoje. Estavam todos por aí, em manifestações. Pensei em retardar um pouco o fechamento, para, quem sabe, receber ainda os fregueses mais assíduos, mas me atacou uma aflição que desde ontem me atormenta. Não quero morrer sem ler de novo Os irmãos Karamázovi. São seiscentas páginas na edição da Aguilar. Nada que assuste um leitor como eu, mas todos sabem como a morte gosta de estragar prazeres.

Balanço

Ela foi justa comigo.
A cada suspiro meu
Um crime me prescreveu
E a cada crime um castigo.

Suspeitos

Ando por volta de cem.
Um dia completo a lista
Que há mais de vinte anos vem
Pedindo o meu analista.

Onde enterraram o amor
A brisa sussurrou te amo,
Uma ave depôs um ramo
E a rima pôs uma flor.

Memória

Mesmo com o pacto quebrado
E os laços todos desfeitos,
Já morto e já sepultado,
O amor produz seus efeitos.

Viagem

Se viver já não seduz,
Chegou a hora de mudar,
Fechar a mala, viajar,
E de ir conhecer Jesus.

Requinte

O amor é civilizado,
O que muito nos consola.
Só após nos haver matado
Pega a faca e nos esfola.

Fernanda Lima

Apaixonar-se por Fernanda Lima é um dos modos de reverenciar a beleza.

Soneto da dama que trabalhava para um senhor

Nós fecharemos a porta
E quando vierem tocar
Mandaremos avisar
Que a dona aqui está morta.

Do que morreu não importa,
Já nem convém indagar.
Parou, só, de respirar,
Não responde a quem a exorta.

O seu nome era Poesia
E dos trabalhos vivia
Que lhe pedia um senhor.

Este há muito já não vem,
Dizem que morreu também
E que se chamava Amor.

Rimas

Rimas são como meninas pulando corda.

www.rubem.wordpress.com

Na crônica de hoje, recolho fiapos de caleidoscópio.

Intransitivo

Afinal, o que é morrer?
Tirando a parte dramática,
Ficando só na gramática,
É um verbo, como viver.

Gênero

Num romance policial
Morrer acidentalmente
Talvez não seja decente
Embora seja normal.

sábado, 14 de março de 2015

21h20

Hora de fechar este melancólico bazar, que vende só farrapos de sonetos e restos de quadrinhas. Não irei a nenhuma manifestação amanhã, como não fui a nenhuma ontem. Alguém gritou o nome de Fernando Pessoa ontem? Alguém o gritará amanhã? Os nomes que gritaram ontem, os nomes que gritarão amanhã não me dizem nada. Insensível? Talvez eu seja. Ou talvez seja sensível demais. Boa noite.

Rotina

Acordamos
levantamos
às seis
escrevemos
das sete à uma
paramos
almoçamos
descansamos
retomamos
escrevemos
das duas às seis
paramos
jantamos
retomamos
das sete à uma
deitamos
descansamos
acordamos
levantamos
retomamos
das sete à uma

Um dia
não levantaremos
às seis
não escreveremos
das sete à uma
não poderemos
não respiraremos
não mais escreveremos
linha alguma

Assim será
e quando for
o mundo não sentirá
diferença nenhuma.

Em quê

Jovens
queríamos ser tudo
fazer tudo
tudo mudar

Éramos jovens
de nada sabíamos
em que mais
podíamos pensar?

O que importa

Se não sabes ainda que sou alguém que se presume poeta, melhor não quereres saber mais nada de mim.

A César

O império ao imperador
E só ao macaco a banana.
Poeta? Menos, por favor,
Poeta é o Drummond, o Quintana.

Presunção

Caminha só e procura desfrutar bem o momento. Daqui a vinte anos, talvez quinze, depois que houver recebido o Nobel, não terá mais essa tranquilidade.

Bailes

Sempre fiquei do lado de fora. Era ali que elogiavam meus bons modos, meu espírito. De dentro vinha o som das canções que instigavam a carne a se unir à carne. Quando o baile acabava, e os casais embriagados de champanhe e prazer ainda insatisfeito começavam a sair, o porteiro olhava para mim como se dissesse: está vendo, esses não têm classe como você.

Na verdade

Menos, menos, por favor,
Peguem comigo mais leve.
Eu não sou um escritor,
Eu sou só alguém que escreve.

De Rainer Maria Rilke sobre a poesia

"Quando escreve poesia, o indivíduo é sempre apoiado e até mesmo arrastado pelo ritmo das coisas externas; pois a cadência lírica é a da natureza: da água, do vento, da noite. Mas, para formar a prosa de modo rítmico, é preciso aprofundar-se em si mesmo e encontrar o ritmo anônimo, variado do sangue. A prosa deve ser construída como uma catedral; ali somos realmente sem nome, sem ambição, sem auxílio: sobre os andaimes, sozinhos com a consciência."

(Do livro Cartas do poeta sobre a vida, tradução de Milton Camargo Mota, publicação da Martins Fontes.)

Panelaços

Abomino manifestações
e de aglomerações
não passo nem perto

Elas exaltam fernandos
nunca o certo
louvam dilmas
exmos. e ilmas.
hildebrandos
prosaicas pessoas
ninguéns e quejandos
bufões de esparrelas
nunca drummond
nunca florbelas.

Soneto de como o amor me exauriu

Ao amor eu me entreguei
Da forma que ele pediu
E quando mais me exigiu
Não hesitei: mais me dei.

Agora há pouco lembrei,
Sentindo-me tão vazio,
Morto de fome e de frio:
Com ele eu jamais regateei.

Por isso é que ele passou
Ontem aqui e zombou
Da minha triste pobreza.

Foi embora sem lembrar
Quanto pôde se fartar
No passado em minha mesa.

Em família

Se literatura
é riqueza
erico é rico
e luis fernando
verissimo
riquíssimo
com certeza.

Panelaços

Abomino manifestações
e de aglomerações
nem passo perto

Exaltam fernandos
nunca o certo
louvam dilmas
exmos. e ilmas.
hildebrando
prosaicas pessoas
ninguéns e quejandos
bufões de esparrelas
nunca drummonds
nunca florbelas.

Em família

Se literatura
é riqueza
erico é rico
e luis fernando
verissimo
riquíssimo
com certeza.

9h51

Hora de dar uma passada pela feira, conversar um bocadinho com as alfaces. São do meu time: tímidas, circunspectas. Tão diferentes dos oferecidos e rubicundos tomates, que desavergonhadamente pedem para ser apalpados.

Real

No teatro do oprimido
o papel preferido
é o do opressor.

Coerência

Na vida há momentos em que, se você não falar da morte, estará sendo desonesto.

Cotação do dia

Certos dias nos parecem mais propícios ao nosso projeto de partir. Nós os olhamos, vemos neles algo que não vimos nos outros, e pensamos: sim, poderia ser hoje.

Alguns

Para alguns, até um pigarro repetido convictamente parece uma música interior.

O certo

Chega o momento de ser
Cordato e não resistir,
Chega a hora de aceitar e ir,
Não há vergonha em morrer.

Amanhã

Hei de morrer bem ordeiro,
Sem me esquivar nem fugir,
Hei de morrer por inteiro,
Sem tugir e sem mugir.

SOS

Cansaço muito, profundo.
Não suporto mais, me enchi,
Não aguento mais o mundo,
Me tirem logo daqui.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Neles

Fico pensando
naqueles tolos
que se ataram
que se algemaram
que para presente
se embrulharam
e ao amor
se presentearam

Sonharam
tudo
tão belo
tudo tão excelente
tudo tão diferente
do que foi no fim

Fico pensando
naqueles tolos
que se angustiaram
que se martirizaram

Fico pensando em mim.

Jamais

Te digo sem menoscabo:
Hoje não mais me enredavas,
Hoje não mais me pegavas.
Não tens mais cara nem rabo.

Último km

Estás no fim da jornada.
Podes agora afirmar
Sem nenhum medo de errar
Que a vida não vale nada.

O defunto futuro

Quando eu morrer, serei outro. Não este que balbucia ainda um nome e ainda sabe vagamente o que é o amor. Já terás calado o que houve de melhor em mim. Estarei mudo como aqueles que conheceram a áspera face da verdade, e nos meus lábios secos não haverá mais que baba.

Do outro lado

Estaremos sempre num lado da avenida, e o amor no outro. Gritaremos para que ele venha até nós. Ele gritará de volta, pedirá que atravessemos. Esperará que nos atrevamos e torcerá para que um, entre aquelas centenas de veículos, de preferência um caminhão, faça o que ele até hoje não conseguiu.

Mil e um

Quando o amor não coubesse mais no peito, o coração deveria explodir em no mínimo mil e um estilhaços. Menos que isso seria considerado tentativa de engodo.

Experiência

O canastrão velho fala dos jovens atores: não sabem beijar, não sabem saltar de paraquedas, não sabem manejar uma metralhadora, não sabem nem matar com verossimilhança.

Hecatombe

Já tantos anos depois,
Eu espero ainda o ritual,
Amolo a pedra lustral
E trago ainda os teus cem bois.

Soneto da impossibilidade de te apaixonares por mim

Foi noutra vida, suponho,
Não nesta, tola e chinfrim,
Que te encantaste por mim,
Noutro mundo, noutro sonho.

Como é que neste, sovina,
Poderia espaço haver
Para alguém me aparecer
Como tu, minha menina?

E como tu poderias,
Por quais artes e magias,
Apaixonar-te ao me ver?

Decerto, minha querida,
Terá sido em outra vida.
Eu sonhei só pode ser.

Agradecimento

Eu disse maravilhosa. Sua mão, como se respondesse por ela, tocou os meus lábios, agradecida, e eu repeti: maravilhosa.

Modus vivendi

Como funciona conhece
E em morrer está absorto:
O mundo só reconhece
Um autor se é autor morto.

Outros tempos

Éramos tímidos
assustadiços

Se alguém
nos dizia poetas
nos amuávamos
protestávamos
o que é isso?

Hoje
bandeiras levantamos
poetas nos proclamamos
berramos nossos versos
ao céu
à terra
ao mar
e ai de quem
não nos escutar.

Krrruella Krrueell

Tenho a convicção de que, se eu lhe levasse o coração, ela o embrulharia no jornal e o atiraria na caçamba.

... é

O amor é um porto inseguro,
O amor é um barco furado,
O amor é um furo intapado,
O amor é um tiro no escuro.

Dieta

Ele está mal, muito mal.
Juízo, pede o doutor,
Mas ele anseia por sal,
Ele tem fome de amor.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Sumo

Como uma fruta ele a descascaria,
Do modo mais certeiro e diligente,
E depois lenta, lenta, lentamente,
Seus gomos, gomo a gomo, comeria.

Soneto da mão urgente

A urgência com que ela punha
A mão entre as minhas pernas
E dizendo frases ternas
Enfiava ali sua unha.

O modo insano com que,
Aberto o último botão,
Movia a apressada mão
E berrava amo você.

A maneira com que arfava,
O jeito com que gemia
E amor, amor sussurrava,

Tudo isso hoje é tão passado,
E tão longínquo esse dia,
Que pensei: terei sonhado?

Desforra

Anda difícil o couro.
Hoje um bando de cordeiros
Matou os quatro açougueiros
E o dono do matadouro.

19h19

Hora de fechar a loja. Hoje andei manuseando alguns arquivos bem antigos, os que sobreviveram ao fogo na semana passada. Deveria tê-los queimado também, com os outros. Vou fazê-lo agora. Não acredito que as folhas gemam, embora eu tenha deixado nelas tantas queixas. Tudo morre, é a lei. Nem o amor está isento, embora estivéssemos dispostos a dar nossa vida pela ressurreição de um só dos seus minutos.

Kama Sutra - DCXLVIII (versão final)

Fazer contigo algo tão puro que tivesses vergonha de contar até à tua amiga mais próxima. Algo que incluísse esparramar pela cama rosas, estrelas e, dependendo da disponibilidade, um arco-íris.

Kama Sutra - DCLI (versão final)

Há noites em que ela usa em si o mindinho. Fecha os olhos e imagina que uma passarinha escolhe nela fios para o ninho e, depois de colhê-los, começa a bicar educadamente os grãos de milho que ela esparramou entre as coxas.

Kama Sutra - DCL (versão final)

Desperta afogueado e segurando ainda aquela parte pontiaguda do seu corpo que usa para procurar ouro nos seus sonhos.

Ali, onde (versão final)

Ali, onde as nádegas dela se alteiam numa correta presunção de beleza, ele julga que seria bem capaz de deixar por toda a eternidade a mão, mesmo que fosse essa com a qual escreve. Como a eternidade parece um artifício meramente literário, ele poderia satisfazer-se com menos, um minuto ou dois, para que essa mão devotada aos versos e às rimas soubesse ao menos uma vez a diferença entre a fantasia e a realidade.

Pacto

A partir do momento - em geral entre os quinze e os vinte anos - em que alguém se decide pela literatura, deve estar pronto para responder por esse compromisso até o último dos seus dias. Não é um compromisso físico, do corpo, é um compromisso espiritual, da alma. E há de ser uma atitude diária diante da vida e do mundo. Não importa se se escreve mal, nem sequer se não se escreve. O escritor deve estar preparado a qualquer instante para a sua obra-prima, que poderá ser uma epopeia em dez cantos ou as três linhas de um haicai.

Bestialógico: Pilatos (versão final)

Diante de uma decisão,
Se a questão for singular,
O mais sensato é deixar
De lado toda razão.

E fazer como Platão
(Ou será que foi Pilatos?):
Desvencilhar-se dos fatos,
Sair e ir lavar a mão.

Eu, para não dar vazão
A que um qualquer me condene,
Digo que noções de higiene
Pilatos tinha, e Platão.

Talião

Já devem ter dito isto. Paciência. Vai ver que fui eu mesmo. O suicídio é a mais legítima das defesas contra a vida.

Cooper

Sou um poeta aeróbio. Sempre escrevo melhor andando. Peripatético já é coisa de maior responsabilidade.

Lógica

Não, as musas não são como os poetas as pintam. Se fossem, para que o mundo precisaria de poetas?

Perversão

Se for o templo do amor,
Sábio é quem lento o extermina.
Que gozo e satisfação
Em cada mínima ruína.

Usura

Escrevo pro gasto, só.
Quem vai querer se esmerar
E a despensa abarrotar,
Se tudo vai para o pó?

São Longuinho

Já nem a rima me acalma.
O que vou fazer não sei.
A casa já revirei,
Onde foi que pus minha alma?

Ciúmes

Os outros três - William, Pablo e Günther - estão ressentidos com ela e até ensaiam uma greve. Todo ano, quando ela embarca para a primavera em Paris, que dildo ela leva? Sempre Pierre. E os deixa nas mãos de empregadas.

Cria

Gostaria também
de um livrinho ter
de delicada
e graciosa poesia
um filhinho meu
bem bochechudinho
para beijar
fotografar
na internet expor
e as curtidas esperar
olhe que doce
veja que amor
(posso compartilhar?)

Gostaria também
de uma cria ter
para afagar
para lamber
e dizer
é minha só minha
(e de quem mais
poderia ser
com essa carinha?)

Linha de montagem

Produzimos poesia
às dúzias
às bacias
às grosas
dez poemas
para cada duas prosas

Se ser poeta
fosse profissão
o governo precisaria
fazer das tripas coração
para pagar
tanta aposentadoria.

Soneto que pergunta o que é poesia

Que os outros digam se nós
Poetamos ou blateramos,
Cantamos ou descantamos,
Se é digna ou não nossa voz.

Que digam sem divagar
Se orgulhar-nos nós devemos
Do ofício que recebemos
Ou  o devemos deixar.

Nós te louvamos, poesia,
Te amamos e proclamamos
Nosso pão de cada dia.

Acertamos, afinal,
Ou será que nós erramos
E és um veneno mortal?

Método

Poesia se recolhe com peneira, sem rejeitar as intromissões douradas do sol.

Visão dupla

À alma imortal e profunda
O amor elogios faz,
E ao puro espírito. Mas
Não tira os olhos da bunda.

Prontidão

A partir do momento - em geral entre os quinze e os vinte anos - em que alguém se decide pela literatura, deve estar pronto para responder por esse compromisso até o último dos seus dias. Não é um compromisso físico, do corpo, é um compromisso espiritual, da alma. E há de ser uma atitude diária diante da vida e do mundo. Não importa se se escreve mal, nem sequer se não se escreve. O escritor deve estar preparado a qualquer instante para a sua obra-prima, que poderá ser uma epopeia em dez cantos ou as três linhas de um haicai.

Soneto da inutilidade de estar vivo

Estarmos vivos é tão
Inútil e irrelevante
Quanto o vento soprar diante
De um jardim de papelão.

Por que vivemos, se não
Viveremos o bastante
Para apreender, num instante,
Qual é da vida a razão?

O que no mundo fazemos?
Isso jamais saberemos,
E nem adianta indagar.

Talvez nos caiba sorrir,
De inquirições desistir
E viver para gozar.

Escritores

Vocês não sabem
mas somos todos escritores

Salvo nossos genitores
ninguém nos leu
ninguém nos conhece
mas é o que acontece
e o que sempre aconteceu
com os escritores

No começo
é sempre assim
mas no fim
quem pode dizer
que não pode acontecer
o que aconteceu
a Shakespeare?

No azul

Se em vez de pássaro fosse um daqueles aviõezinhos que escrevem no céu com fumaça, Mario Quintana rabiscaria diariamente um poema no azul de Porto Alegre.

Para quê?

Tudo isto é tão cansativo.
Tanta esperança plantada,
Tanta esperança gorada,
Sem nem saber por que vivo.

Na dele

Quem morre sabe o que faz.
Se pudéssemos ouvir
O som que produz ao rir
O defunto que ali jaz...

quarta-feira, 11 de março de 2015

19h46

Hora de ir baixando a porta. A única coisa boa que aconteceu não foi aqui dentro: a chuva. No mais, olhei para mim num pequeno espelho que tenho no banheirinho do fundo. Achei-me com cara de morituro. Gostei da palavra e a repeti algumas vezes, como mantra. Foi, como vocês já veem, mais uma esperança frustrada. Boa noite.

Quintana

A traquinagem preferida do menino Mario era voar.

Kama Sutra - DCLXXIV (versão final)

Às dez estarei contigo. Levarei a boca, os lábios, a língua, os dedos. Sabes que mais não tenho.

Mario Quintana e eu (para Silvia Galant François)

Como ao Quintana ocorria
A mim ocorre também
Manifestar-me em poesia
Mas não tanto, nem tão bem.

Do jeito que ele escrevia
Não escreverá ninguém,
Porque só ele conhecia
O que à poesia convém.

Só ele sabia encontrar
O modo de aprimorar
O comum e o comezinho.

Só ele podia fazer
Uma cidade caber
No voo de um passarinho.

Fernanda Lima

Fernanda Lima vive se contendo para ignorar desafios de rosas e reptos de arcos-íris.

Brasão

Aspiro ao sumo
ao centro ao cerne
e me concerne
o suprassumo.

Kama Sutra - DCLXXV (versão final)

Quando ela sorri, ele só lhe vê os dentes. Conhece esse tipo de mulher, cuja língua se revela apenas no quarto, quando a luz se apaga e um corpo se torna enfim uma superfície plenamente explorável.

História

Picuinhas, ciúmes, desdém,
Ressentimentos, engodos.
Não  é que o amor também tem
Seus godos e visigodos?

Negócio fechado

Se for rápido e não doer muito, se escolherem bem o terno e não escolherem mal a gravata, se eu não ficar com cara de corretor de seguros nem de propagandista de produtos, e se não houver na sala nenhuma daquelas mosquinhas que gostam de perturbar mortos, pode ser hoje mesmo

terça-feira, 10 de março de 2015

Identidades

Se Mario Quintana tivesse dois heterônimos, um deles seria Colibri da Silva; o outro, Rouxinol de Sousa.

Lacuna

Talvez o amor não tenha te dado tudo que esperavas porque não lhe mostraste devidamente os ombros e não lhe puseste na mão o chicote. Ah, nunca te disseram como o amor sabe manejá-lo?

Turma

Os passarinhos da rua, em alegre intimidade, quando viam Quintana se alvoroçavam e o acompanhavam chamando: ei, Mario, ei, Mario, ei.

Escala

Ao ensaiar a escala, quando chegava ao sol, Mario Quintana se sacudia e pelo ar espalhava ciscos de luz e farelos de poesia.

Máquina

Se num bom vício
Queres entrar,
Carpe o Fabrício,
Carpe o Nejar.

Soneto da rameira celebrada

Tu, majestosa putana,
De beleza sem igual,
Tu, vaso de porcelana
Numa lojinha de um real.

Tu, minha doce sultana,
Rainha do oral e do anal,
Tu, do sexo soberana,
Antônima de vestal,

Que eu, humilde pecador,
Possa cantar-te o valor
E compreender bem o que és.

E, tendo-te assim louvado,
Eu possa então, ajoelhado,
Beijar-te a planta dos pés.

Kama Sutra - DCLXXXII (versão final)

Ela instilou nele um ciúme tão insano que uma noite, procurando como sempre evidências, ele, encontrando na cama um pedaço de noz, julgou tratar-se do dente postiço de um marinheiro.

Ascensão (versão final)

Como os dedos de um cego, a ponta de sua língua tateia a boca da amada, buscando-lhe o céu e as estrelas.

Ali (versão final)

Ali nas costas dela, onde a cachoeira de cabelos flamejantes termina, começa um território pelo qual a imaginação dele desce devagar, para usufruir mais completamente o instante em que uma elevação repentina o faz segurar o fôlego até que a descida, agora vertiginosa, seja enfim a recompensa para todas as madrugadas de febre e os sonhos mais desvairados.

Sina

Num livro de cem páginas, se eu for o protagonista, serei um bom herói até a página 80. Na 81 já me assaltará a inabalável convicção dos derrotados.

Ato extremo

Que, se for para morrer,
Morramos num mar forâneo,
Após toda a água beber
Do Índico ou Mediterrâneo.

Legítima defesa

O amor é aquela desculpa
Que nos isenta do crime,
Que nos explica e redime,
Que nos  absolve de culpa.

Berloques

As rimas são penduricalhos, brincos, enfeites, colares. Servem só para adornar o corpo do poema. Se brilham mais que ele, estão no corpo errado.

Lembra?

Eu sou aquele que um dia,
Assim como na virtude
E na eterna juventude,
Acreditou na poesia.

Majestade

Se nasceste para tolo,
Podes tranquilo reinar.
Ninguém virá para pô-lo
Em nenhum outro lugar.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Kama Sutra - DCLXXVII (versão final)

Sempre que se lembra de como, avançando centímetro a centímetro, chegou enfim ao suave tufo ruivo e úmido, ele custa a acreditar que o tenha feito mesmo, naquela noite. E, quando afinal se convence, ele, com uma tristeza aguda, começa a se perguntar por que tirou a mão dali, da relva sedosa onde seus dedos, na escuridão do quarto, pareciam tocados pela benevolência do ouro.

Kama Sutra DCLXXV ( versão final)

Quando ela sorri, ele só lhe vê os dentes. Conhece esse tipo de mulher, cuja língua se revela apenas no quarto, quando a luz se apaga e um corpo se torna enfim uma superfície plenamente explorável.

Moda

Roubar, onde e como for,
Virou hoje minigância.
Roubaram-me todo o amor,
Nem abriram sindicância.

Nem nessa hora

Ser queres mesmo morrer,
Que o amor não esteja perto.
Se estiver, pode fazer
Outra vez do certo o incerto.

Premonição

Em mim um sexto sentido,
Quando se trata de amor,
Faz um ruído, um clamor,
Quer ver seu alerta ouvido.

Modéstia

Não gosto de cerimônias fúnebres. Até mesmo à minha, se um dia houver, só comparecerei se oficialmente convocado.

Sobre a poesia

Viver sem poesia é possível. As pedras não precisam dela. Mas como se encantariam se entendessem o que o vento há milênios lhes diz.

Noites russas

Não conheço noites mais profundas, mais intensas que as dos romances russos, especialmente os de Dostoiévski. Elas se estendem sobre a terra tão possessivamente que parece impossível a hipótese de o sol atrever-se a voltar, um dia.

Lembrança

Quando lembro que, no fim,
De quatro ao chão me atirava
E teu amor implorava,
Eu tenho nojo de mim.

Tchekhov

Em Tchekhov, tudo é tão natural que, se um cachorro se puser a discutir filosofia, não soará estranho, mesmo que esteja debatendo com um cavalo.

Seguidinha

Morreu Bandeira, Drummond,
Morreu Quintana também,
E eu mesmo, digo em bom som,
Não me sinto muito bem.

Pena capital

Matar-nos simples seria:
Apenas, por um momento,
Cortar o fornecimento
Da beleza e da poesia.

A senha

Tendo esquecido a senha para abrir o coração, encontrou esperançoso um papel amarrotado, numa calça velha. Mas era só uma lista de compras de 1977 ou 1978, em ordem alfabética, com produtos corriqueiros e um tremendo cacófato: açúcar, alho, batata...

Fervor

Ao céu os versos lançaste
E, com eles, tua oração.
Depois, ingênuo, esperaste
E ainda hoje esperas. Em vão.

Promoção

A alma em pedaços picar
E dá-la toda aos leitores
É algo em que podes pensar
Se um dia poeta tu fores.

Fardões

Seus merdas, seus pedinchões,
Seus ratos de academia,
Seus porcos, seus vendilhões,
Sanguessugas da poesia.

Contas

Poesia, tudo te dei,
Minha infância e juventude,
Depois minha senectude.
Se algo me deste, não sei.

Fogueira

Hoje todas eu queimei
As cartas que tu me enviaste
No tempo em que me enganaste
No tempo em que me enganei.

Preço

Literatura, se a vida
Que te dei não vale nada,
Diz-me então, minha querida,
Que mais queres, adorada?

Roteiro

Sempre uma ânsia, uma ilusão
Que porém não se completa.
Sempre perda, frustração,
Talvez eu não seja poeta.

Repulsa

Quem há de ser tão morfético,
Tão reles e corriqueiro,
Que professe o ofício poético
Por posições ou dinheiro?