Fenômeno

Hoje não mais. Mas em melhores tempos era comum um lenço transformar-se em passarinho quando puxado do bolso pela mão de um poeta.

Quadrinha

O amor tem sido mesquinho
Como uma agiota escolada.
Sempre que peço um pouquinho
Nunca me dá mais que nada.

Requisitos

Escrever uma biografia exige trabalho e pesquisa. Para uma autobiografia se requer apenas a memória e, quando ela falhar, uma boa imaginação.

Futuro

Quando me puserem a de morto, que me sirva a carapuça.

Hoje na revista Rubem

Publico hoje na revista Rubem algumas frases  que certamente não modificarão o mundo.
https://rubem.wordpress.com/2019/12/29/para-consumo-imediato-raul-drewnick/

Suores

Ainda hoje, algumas noites, eriça-me e exaure-me a lembrança de certas palavras mornas e molhadas, como ai, amor, mais, que a condessa introduzia em minha boca com a língua escorregadia.

Tarefas

Desde o primeiro dia em que me teve como servo, a condessa deixou claro que espatifar um bule ou quebrar um prato seriam faltas menores se comparadas com as falhas que eu pudesse cometer quando chamado, nas ausências do conde, a compartilhar com ela a cama e as meticulosas práticas de sua inesgotável luxúria.

Evolução

Fatos são fatos:
os vira-latas
viraram todos fura-sacos.

Metamorfose

As redes sociais nos transformaram. Antes
Nós achávamos ter o direito
E hoje n[ós achamos ter o dever
De julgar nossos semelhantes.

Definição

Corre-corre são duas pressas unidas por um tracinho.

Charminho

Então como se um dia
tivesse mesmo sabido
ele se põe a chorar
e a se condoer:
depois de seis décadas
não sabe mais escrever.

Como

Me lembro de ti numa boa
de como me chamavas
de como me atraías
de como dizias te como
como se fosses uma leoa
de como me mordias
de como me arranhavas
de como me devoravas
e de como depois
tuas patas lambias
como as leoas
lambem suas crias.

Ele

Deve ter ido para o céu. Poeta, morreu jovem, sem tempo de ser possuído pela lúbrica tentação dos sonetos.

Alívio

Não precisarmos dizer nada é uma bênção quase sempre tardia.

Opção

Se o que você pretende conseguir com a literatura é um diploma de bom escritor, é melhor entrar para um grupo de escoteiros.

Grandeza

Foi um homem imponente. Morto e homenageado, sua estátua parecia a de um pigmeu.

Reforço de imagem

Era bem visível o que o rapaz era, com os dois passarinhos que faziam questão de voejar e cantar em torno dele e o aroma de flor que exalava, mas mesmo assim ele me estendeu o cartão: Fulano de Tal, poeta.

Virtude

Sou um desses homens cujo maior talento está no exagero com que avaliam suas próprias qualidades.

Historinha de Estocolmo

No meio do caminho
que a Estocolmo
me conduzia
oh Júpiter oh Zeus
acabou-se a fantasia:
primeiro o primeiro
segundo o segundo
terceiro o terceiro
e assim por diante
sempre avante
estouraram todos
os quatro pneus.

Nem tanto

Um livro de autoajuda pode auxiliá-lo a se tornar leve. Mas, se você quiser voar, procure instruções com um passarinho.

Hipótese

Se um homem de oitenta anos insiste em falar dos seus pecados, principalmente os carnais, é muito mais provável que esteja querendo reconhecimento do que pedindo absolvição.

Identidade

No fim, o velho escritor não se lembrava mais nem de quem era William Shakespeare nem de que, por escolha própria, fazia muitos anos que William Shakespeare era ele.

In medio virtus

Que possamos ser moderados em tudo, até em nossa pureza.

Assim seja

Que os amigos nos amem pelos nossos olhos verdes e sejam condescendentes com a nossa literatura.

Norma

Escrever cada vez menos - e pedir perdão, mesmo assim.

Hoje na revista Rubem

Falo de sexo - ou daquilo que dele me ficou na memória.
https://rubem.wordpress.com/2019/12/15/sexo-e-talvez-afins-raul-drewnick/

Vocação

Era menino e já adepto da sacanagem.
Nas aulas de português - que desfaçatez -
amava os vícios de linguagem.

Voz

É uma dessas mulheres que, se dizem o nome de um homem, fazem qualquer Zeca da Mata transformar-se em Joseph Charles Dubois.

Sinopse

Foi um escritor mais perseverante do que os seus leitores.

Também

A literatura pode ser extremamente cansativa. Perguntem aos leitores.

Preciosidade

Da noite de amor, mantém entre os dedos cuidadosos um fio loiro encaracolado que, subtraído com astúcia, será levado como tesouro até o outro extremo da cidade e guardado em sua estante, no meio de um livro de poesia.

Enfeites

Só escreva bonito se não puder escrever de outro jeito.

Manifesto sentimental

Adeus para as que me detestem
e também para as que me amem:
libertas quae sera tamen.

História

Por muito tempo a poesia foi definida como a arte de versejar.

Fenômeno

Hoje não mais. Mas em melhores tempos era comum um lenço transformar-se em passarinho quando puxado do bolso pela mão de um poeta.

Dupla ação

As duas maiores habilidades de qualquer poeta romântico eram apaixonar-se por uma virgem e morrer por ela.

Boa fase

Confiava-se mais nos poetas quando seu único assunto era o amor.

Soneto da dupla natureza do amor

Que o amor seja, desde o início,
Desde o primeiro momento,
À nossa vontade atento
E aos nossos sonhos propício.

Que ele, para nosso agrado,
Tenha dupla natureza
E seja nossa pureza
E também nosso pecado.

Que sobre ou sob nós se deite
Com fome do nosso pão
E sede do nosso leite.

E possa, ao se levantar,
Deixar tão boa impressão
Quanto nos deu ao chegar.

Soneto do instrumento e da voz

Do amor sejamos cativos
Pelo tempo que pudermos,
Enquanto forças tivermos,
Enquanto estivermos vivos.

Louvar sua majestade
E sua soberania
Possa ser nossa alegria
E sempre nossa vontade..

Que possamos sempre nós
Ser dele instrumento e voz
Enquanto um e outra valerem

E enquanto forem assim
Possam os dois até o fim,
Gozar a glória de serem.

Ressalva

Conhecer-se a si mesmo é essencial. Pena que seja tão maçante.

Proporções

A vida nos vem
com lazeres e agravos:
para cada bem
dois encargos
para cada prazer
dois fardos
para cada bem-te-vi
dois xororós
e dois leonardos.

Prêmio etário

Aos 81 anos, o poeta publicou um livro que  levou um crítico a considerá-lo a maior revelação da década. Mérito dos poemas e do revisor que na orelha deixou passar 18 por 81.

Mão alheia

Num poema perfeito, a melhor parte há de ser fruto do acaso ou inequivocamente obra de mão superior, para que o poeta não seja tomado pela presunção.

Currículo

São poetas de duas castas:
os românticos preferem humanas,
os concretistas amam exatas.

Consoantes

De hombridade muitas espécies há.
A umas falta o "b"; a outras, o "d";
Da minha desprendeu-se o "h".

Vivendo e aprendendo

O plural de mil é mis
descobri agorinha
numa fake news.

Trivindade

Quando chamarmos por Deus,
aproveitemos e chamemos
também por Júpiter e por Zeus.

O sinal

Quando garota, o único indício de que poderia transformar-se numa mulher fatal era o modo com que fechava os olhos ao pronunciar palavras como delícia e tesouro.

A glória, afinal

Se não estivesse morto, como lhe agradaria ver-se protagonista do velório, com o melhor terno de sua vida ornado por flores.

Honra ao mérito

Admiro os autores de telenovelas. Como não reverenciar quem mata um personagem e é capaz de, ouvindo o lamento de milhões de espectadores, ressuscitá-lo inteiro, sem faltar um único pelo de seu peito exuberante como uma floresta tropical?

Líder

Sempre foi um poeta com preocupações sociais. Aos dezoito anos, já propunha uma campanha de desagravo às rimas pobres.

Poetas (para Mariana Ianelli e Silvana Guimarães)

Há os que garimpam no lixo
um pedaço de pão
e há os que não
os que na poltrona macia
bordam sonetos de antologia.

Uns e outros

Há defuntos vistosos, midiáticos. E há defuntos que são o que são.

Adendos

O chato tem sempre alguma palavra mais a dizer, além da última.

Escoteiro

Um chato pode não fazer alguém desistir do suicídio, mas não há dúvida de que tentará.

Aposta

Se alguém chagar a um velório e começar a sacudir o defunto gritando acorda Nicanor, acorda, podem apostar que se trata de um chato.

Disposição

Um chato dispõe sempre de tempo para nos contar de novo uma piada. Principalmente se não tivermos gostado dela.

A dela

A dela
era tímida
pequenina
como se de boneca
como se de menina -
caixinha de tesouro envolta
em finos fios de ouro.

Bar, 3 e 40

"Você é a Sara, não é?"
"É a segunda vez que você me pergunta."
"E o que foi que você respondeu na primeira vez?"
"Que não."
"Acho que me esqueci, então. Quer um cigarro?"
"Eu já disse que não fumo."
"Me desculpa. Fui mal, Sara."

Hoje na revista Rubem

Ofereço algumas pechinchas.
https://rubem.wordpress.com/2019/12/01/balcao-de-saldos-raul-drewnick/

Periferia (p/ Silvana Guimarães)

Nas horas matinais
enquanto ainda dormem
os fiscais da saúde pública
e cochilam os gramaticais
a kombi que mal anda
e a kombi que anda mal
anunciam na periferia
uma bandeja de ovos grande
por dez real.

Êxtase

O velhote diz que agora anda com uma garota doce, supimpa, deliciosa, e seu rosto se ilumina como se fosse todo formado por papilas gustativas.

Sucesso

Você soube plantar o seu presente,
ninguém mais do que você merecia.

Hoje quem lhe daria
o carro zero
a casa com piscina?

Você prosperou
quem diria
desde aquele tempo
em que você não tinha
todo esse senso comercial
mas já aqueles peitos
aquelas coxas
e aquela bundinha.

Filantropo

É um humanista completo:
tem até
um desafeto predileto.

Sobrevivência

O escritor é Scherazade contando histórias ao leitor. A cada passagem, uma pergunta temerosa: está gostando?, alguma sugestão?, quer que eu continue, sultão?

Osso do ofício

Quando chegava à casa de Neruda, o carteiro arfava: era o peso dos gongorismos.

Metamorfose

Um deslize vocabular
faz voar
uma uva pássara.

Do ramo

É um poeta de sorte. Hoje à tarde, assim que abriu o guarda-chuva, notou que nele se enroscara um arco-íris.

O senão

Não sou desses que criticam a obra de Deus. Só tenho uma queixa, de natureza futebolística: acho que Ele exagerou no verde.

Subterfúgio

No quarto ou quinto dia de seu impulso criador, desgostoso com alguns detalhes, Deus pensou se não seria conveniente apresentar-se sob um pseudônimo.

Desmentido

Apesar do que eles mesmos dizem, não há na Bíblia nenhuma passagem que atribua aos parnasianos a propriedade das estrelas.

Perfil

O que se pode dizer de Deus como artista é que tinha certa mania de grandeza.

Como seria

Imaginaram se Deus, com todo aquele talento, houvesse contado com a colaboração de um homem, como teria ficado melhor sua obra?

Catálogo

Deus, como artista,
foi o que foi:
um primitivista.

Revistas

Na adolescência
ele se gastava sempre assim:
começava com Ava
e acabava com Marilyn.

Travessura

O vento arteiro
espeta a borboleta
no espinheiro.

Preferências

Era  um programa de tevê no  qual três atores falavam sobre sexo. Tinham dado opinião já sobre diversos itens, quando o apresentador pediu que em poucas palavras definissem como se sentiam em relação ao sadismo e ao masoquismo. Um deles se disse moderadamente sádico; outro, orgulhosamente masoquista; o terceiro abominou os dois ismos e, com uma piscada marota, classificou-se sexualmente como independente e ambidestro.

O visitante

Lembra-se dele
de sua língua coceguenta
daquele seu jeito
de seu fetiche
de como ficava
meses sem aparecer
e de repente chegava
e dizia sempre
não se incomode com nada querida
não se preocupe comigo
vim só dar uma passada
e uma boa lambida
na flor da sua barriga
no meio do seu umbigo.

Hoje na revista Rubem

Contra gatos não há argumentos.

https://rubem.wordpress.com/2019/11/17/gatos-e-algo-mais-raul-drewnick/

Mantra

Diga quintana uma vez
diga duas
e antes de dizer três
voará diante de você
um passarinho
como se tivesse sido invocado
e encomendado a são longuinho.

Soneto de louvor ao nosso amo

Do amor sejamos cativos
Em tudo quanto pudermos
Enquanto força tivermos
E nos mantivermos vivos.

Que sempre nós o louvemos
E que em qualquer ocasião
Com clara e plena efusão
Seus servos nos declaremos.

Que ele viver nos conceda
Sob suas garras de seda,
Sob suas mãos de senhor.

E, se quiser nos matar,
Somente honra há de nos dar
Sermos mortos pelo amor.

Conceito

Amor é só um modo de ver as coisas. Talvez o melhor de todos, se você for suficientemente tolo.

Cotação do dia

Perdi todo meu know-how:
ontem não escrevia muito bem,
hoje escrevo muito mal.

Férias

Livre enfim das obrigações e das etiquetas de toda sua vida de homem, ele se assume como defunto e recebe os parentes e amigos pachorrentamente deitado.

Questão etária

Depois dos oitenta anos, continuar escrevendo é um fenômeno muito mais médico que literário.

Relações

Já de longa data
sou para mim
persona non grata.

Estratégia

Diga sempre que a literatura é para você um ideal. Cite os grandes que morreram por ela. E, ao citá-los, deixe que a melancolia tome conta do seu rosto. Se sorrir, que seja um desses sorrisos com os quais a morte costuma anunciar sua proximidade. Resumindo: seja dramático. Às vezes é mais fácil conquistar o leitor pedindo-lhe comiseração do que amor.

Ontem, na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2019/11/03/curtas-para-nao-cansar-raul-drewnick/

Ideal

No sonho do parnasiano, seus sonetos eram cisnes que cantavam como rouxinóis.

Agrados

Antes de ser vencido pelo sono, ouviu ainda o anestesista dizer que ficasse tranquilo e o cirurgião confirmar que tudo daria certo. Encantou-se com as amabilidades, e mais encantado ficaria se soubesse que dali a algumas horas mereceria flores.

Maneira de ver

Você pode achar ridículo morrer de amor. Não é a minha opinião.

Imaginário

No teu momento derradeiro
passarão todos os filmes
menos aquele em que
anita ekberg puxa do sutiã o seio
e te chama de meu bebê.

Mérito

No Dia de Finados
somos todos
precocemente homenageados.

Requisito

Qualquer mulher digna de destroçar um homem deveria ter ao menos um pouco de Zelda.

Antes de Gutemberg

Como dói:
no tempo de lady Godiva
não havia "Playboy".

Norma

Suicídio não é para principiantes.

No parque

Ela disse que só se fosse daquele jeito, e ele lambe a seda e mordisca, embaixo dela, a ponta pulsante do sutiã.

Perfil poético aos 81

Dizia-se poeta
e embora lhe faltasse
talvez um monóculo
quem sabe um cavanhaque
tinha certo jeito
e algumas quadrinhas
umas bobas
outras sonsas
todas tolinhas.

Confissão

O que mais me incomoda não é não ter sido o escritor que sempre quis ser. É ter levado tanto tempo para não ser.

Sonetinho da rainha famélica

Os lábios dela beijou
E, por ser o que convinha,
Outros nomes descartou
E chamou-a de rainha.

Depois, murmurando minha,
Minha, minha, lhe ofertou
A vida toda que tinha
E ser só dela jurou.

Talvez nisso ainda estivesse
Se a mulher não lhe dissesse:
Fala menos e me come,

Meu lacaio rechonchudo,
Tira a roupa e vem com tudo,
Tua rainha tem fome.

De Haruki Murakami

"De certa forma eu sentia a consciência pesada pelo simples fato de ser eu mesmo."
(Do romance Norwegian Wood, tradução de Jefferson José Ferreira, editora Objetiva.)

Soneto de como me dei ao amor

Acreditei no amor como se crê
Que em tudo deve haver algo maior,
Algo bem mais profundo e bem melhor
Do que cada um de nós intui ou vê.

Acreditei no amor, e acreditei
Nele como em nenhuma crença mais,
Nem as comuns e nem as primordiais,
Jamais na vida eu acreditarei.

Desde o primeiro dia em que eu o vi,
Com toda a minha fé me submeti
E dei-lhe tudo que lhe pude dar.

Aquilo tudo que lhe tenho dado
Retribuiu-me ele com solene enfado.
Quem sou para ele em mim acreditar?

A plenos pulmões

Quando eu escrevia crônicas, parecia um político em campanha. Cumprimentava os postes do meu bairro, conversava com as árvores, assobiava para os cachorros. É o que há de melhor em ser cronista: essa camaradagem com tudo, essa impressão de que nem sempre a literatura precisa ser a tia que, para não manchar a pele, evita expor-se ao sol.

Mario e Manoel

No escritório de poesia Quintana & Barros, quando depois do almoço os sócios tiravam meia hora para um cochilo, era como se dois passarinhos cantassem para ninar o silêncio.

Atitude (para Jiro Takahashi)

Um haicai não se busca. Um haicai se aceita, como uma graça.

Fé

O velho poeta acredita ainda
em quartetos
em tercetos
no ouro puro
dos versos finais
e na ressurreição triunfal dos sonetos.

22/10

Porque de vós recebi
O que outros me têm negado,
Digo-vos gracias, merci,
Amigos, muito obrigado.

Jamais um homem chinfrim
E de valor tão precário
Foi homenageado assim
No dia do aniversário.

Divagações vespertinas da condessa

A condessa e eu estávamos no jardim. Era uma dessas tardes em que o vento morno assedia as flores soprando-lhes obscenidades. À distância que me impunha minha condição de servo, eu, sentado numa ponta de banco, observava a condessa, que, na outra extremidade, como se estivesse com um bloco e uma caneta nas mãos, murmurava palavras, parecendo organizar uma agenda: às três, as unhas; às quatro, o cabelo; agora... Ela interrompeu a frase e suspirou, como se o vento lhe houvesse sugerido alguma coisa. Eu virei o rosto escandalosamente para ela e suspirei também, com segundas e terceiras intenções. Ela abriu para mim o melhor dos seus sorrisos irônicos e completou a frase: ... agora uma boa soneca. E, formando com o indicador uma negação: ... sozinha. Os homens são todos uns bodes. Os condes e os lacaios.

Segunda, 21/10

Que segunda-feira feiosa e triste, esta. Assim que abri a janela, perguntei-lhe o que aconteceu. Nada, só me furtaram o sol no caminho. Outra vez? Outra vez, ela sorriu. Pareceu-me resignada. Certas segundas-feiras são tão semelhantes a nós...

Sorte

Se o poeta demorasse um minuto para abrir o guarda-chuva, seu belo crânio parnasiano seria atingido pela multicolorida queda do arco-íris concretista.

Em dois tempos

Para saber se é primavera, o velho poeta agora precisa encontrar primeiro os óculos e, depois, lembrar onde está a folhinha.

Não mais que isso

Tantos tombos lhe deu o amor que hoje, quando lhe perguntam se está novamente apaixonado, ele diz que só um pouquinho e faz um gesto, como se lhe servissem  café e pretendesse mostrar quanto quer de açúcar.

Hoje

O velho poeta vai se esquecendo das coisas. Hoje apontou para o alto (o que é aquilo?). Era o sol.

Conditio sine qua non

Fulano de Tal
emérito romancista
e trocista sem igual
não se cansa de dizer:
aceita morrer, mas só
depois de se tornar imortal.

Hoje na revista Rubem

Falo de vivos e de mortos

https://rubem.wordpress.com/2019/10/20/de-mortos-e-de-vivos-raul-drewnick/

Heroísmo

Aos oitenta, o único e nada glorioso ato de resistência possível é respirar.

Norma

Chatos devem ser fuzilados de madrugada, para não estragarem o café da manhã de ninguém.

Tarefa

Mal ou bem, viver
é tudo que
nos resta fazer.

Carreira

Sou um daqueles que se acostumaram com as menções honrosas. Guardo-as todas - estatuetas, diplomas, certificados. Eu as recebi das mãos de prefeitos, vereadores, professores, gestores de feiras de livros, em uma dezena de lugares. Nenhum se chamava Estocolmo.

O rumo

No final, se algo se mover em nós, que nos mova ainda e sempre no rumo da beleza.

Soneto da mentirosa

Vamos agora supor
Que lhe pedissem, um dia,
Que provasse o seu amor,
Que provas você daria?

Julgo que você diria
Com todo o seu despudor
Que tudo, e até mais, faria,
Por ser ele seu senhor.

Se disso alguém duvidasse
E talvez lhe perguntasse:
Tudo mesmo? Até morrer?

Sei que você certamente
Mentiria novamente,
Por ser seu modo de ser.

Fidelidade

Minha mãe quando viu
o primeiro galã francês
exclamou vade retro
amo os filmes da metro.

Autorretrato físico

Na minha idade o fácil
é sinônimo de difícil -
não me move combustível fóssil
nem me impulsiona energia físsil.

Nostalgia

Sonetos, ah sonetos, essas garrafas ainda lançadas ao mar, como no tempo em que existia a esperança.

Nobel

De Peter Handke, conhecendo  praticamente só o simpático lado futebolístico, eu achava que, futebol por futebol, escolheria para o meu time Camus. E, literatura por literatura, também.

O nome dela

Esta noite lembrou como se chamava aquela garota que, desconfiando de sua fidelidade, o chamava ora de sem-vergonho ora de cafajesto. Era Alê - "com chapeuzinho no ê", como ela lhe explicou no primeiro dia.

Como antes

Às vezes uma palavra ainda lhe faz ferver o corpo. Hoje no jornal uma delas -- sexo - despertou nele uma sensação semelhante à das noites em que, adolescente, suando frio na cama, receava estar sendo possuído pelo Diabo..

Amores raiz (para Ana Farrah Baunilha e Silvana Guimarães)

Que saudades ele tem
de suas musas da periferia:
daquela moreninha que de tesão o chamava
e o bigode lhe mordiscava
na vila maria
e daquela italianinha do belém
que as mãos no seu ombro punha
dizia meu bem ah meu bem
e lhe espremia os cravos à unha.

A confirmar

Dois de meus autopresumidos talentos dependem de comprovação: escrever algo que preste e morrer romanticamente.

Façanha

Fui além da Taprobana
no tempo em que era menos velho
e a Terra ainda não era plana.

O pacto

Posso queixar-me da literatura? O pacto de glória que ela fez não foi comigo, foi com um menino de doze anos, mais tolo que os da sua idade, pelo que lembro.

Definição

O haicai é uma forma aprimorada de silêncio.

No álbum de uma aniversariante

Talvez, daqui a alguns anos, você volte a ler estas linhas. Talvez você sorria como hoje. E talvez, lendo meu nome, você suspire como agora: ah, Raul.

No álbum de uma aniversariante

Faça de conta que desenhei aqui uma flor. E finja que ela é digna de você, apesar de feita por estas mãos desajeitadas que até hoje não aprenderam a lidar com as palavras.

Má fase

Não se sabe com exatidão a década em que os autores de sonetos passaram a ser considerados responsáveis por eles.

Perfeição

O poeta concretista
conclui seu poema e manda:
levanta-te e anda.

Lírica periférica

Nada como uma musa suburbana
mais bela que a mais bela
mordendo devagarinho uma banana
na janela do sobradinho.

Na língua do "p"

Pe-ô pe-pô pe-é pe--tá pe-não pe-viu pe-quem pe-ô  pe-man pe-dou pe-à  pe-pu pe-tá pe-que pe-ô pe-pa- pe-riu.

Happening

Para inaugurar sua obra-prima -
um prédio de vinte andares -
o poeta concretista convidou seus pares
e saltou do vigésimo andar
de ponta-cabeça na piscina.

Aptidão

Dos pesquisadores do IBGE
não sei vocês, mas eu penso
que não se pode exigir
nada além de um bom censo.

Morte dupla

Numa tarde em que ela me usou mais do que de hábito, queixei-me à condessa: "Isso vai acabar me matando." Ela, atirando-se de novo como loba em cima de mim, riu: "Isso o quê?"

O efeito

Os pecados do sexo, quando bem narrados, despertam imediatamente outro: o da inveja.

Na língua do "l"

A luxúria é uma loira longilínea de hábitos lambedores.

Contraste

Poetas são esses tipos que fazem sonetos para musas pálidas porque não têm coragem de, vendo uma rechonchuda filha de Eva na rua, alongar as vogais  num grito daqueles de derrubar viadutos: gostooosaaa.

Hierarquia

O sonetão de antologia
esnoba a quadrinha amadora:
você não se enxerga não, guria?

Outrora

Saudável era tudo,
até o que me afligia:
minha hipocondria pulava corda
e cabriolava minha tanatofobia.

Hoje na revista Rubem

Falo de três celebridades: Deus, Adão e Eva.

https://rubem.wordpress.com/2019/10/06/deus-adao-e-eva-raul-drewnick/

O texto

Ele encostou o queixo na nuca da mulher.
Ela riu: que coceguinha.
Ele disse: acho melhor você tirar.
Ela respondeu: eu tiro, então.
Ele comentou: ótimo, estava só atrapalhando.
Ela concordou: é verdade.
Ele sugeriu: agora desligue isso e vamos dormir.
(Assim, suprimida a vírgula, o casal de revisores foi para a cama.)

Equívoco

Quando o rei todo pimpão
com a roupa nova em folhinha
se exibiu para a apreciação da rainha
ela os olhos fechou
e enrubesceu -
com essa aí foi que você chegou
no dia em que nasceu.

Megafone

A voz da razão
que há muito não se pronunciava
voltou hoje com seu furgão
para reproclamar
que melhor pamonha não há
que a de Piracicaba.

Pistas

Para distinguir um provérbio, deve-se identificar sua sabedoria - o que nem sempre é fácil - ou sentir o cheiro de naftalina que todos exalam.

No álbum de uma aniversariante

Se for escrever só o essencial, não se esqueça das rosas.

Megalomania

A mania de grandeza comumente apontada nos escritores é hoje mais do que evidente. Além daquilo que sempre fizeram, eles estão editando, revisando, divulgando e custeando os próprios livros.

Idade áurea

A literatura já foi bem mais fascinante em outras épocas, como aquela na qual, antes de serem considerados incapazes de fazê-la, os candidatos tinham o direito de passar ao menos cinco anos em Paris.

Namoradinhos

Mais um beijo assim e eu morro, gemeu a menina de treze anos, romanticamente. O garoto de catorze beijou-a então tantas vezes quantas permitiu seu fôlego. Vendo-a ainda viva, censurou sua falta de palavra. Ela o incentivou: você não vai desanimar, vai?

As voluntárias

Sonha com mulheres elegantemente vestidas que lhe pedem contribuição para uma instituição de caridade e repentinamente começam a se despir sensualmente . Escolha uma, sugerem, e ele assiste ansioso ao coletivo desnudamento. Cada uma delas está envolta em mil e um véus e nenhum deles parece disposto a desprender-se do formoso corpo que envolve. Ele admira uma, deseja outra, adivinha numa terceira algo mais exótico que nas anteriores, consome-se antecipadamente. Naturalmente acorda e no quarto não há nenhuma das mulheres. Sorri, resignado. Se fosse um sonho realmente mau, elas teriam tido tempo de deixar em sua mão a inscrição de sócio colaborador de algum asilo de velhotes.

Pesquisa

Ninguém me perguntou nada, mas, se me permitissem escolher o pecado que me levará ao inferno, seria certamente o da luxúria, de preferência com agravantes.

Poeminha besta

Minha amiga
recordando hoje
o que eu fazia contigo
quando éramos amigos
gozei de novo
os beijos todos que te dei
e até os que não
como aqueles que premeditei
dar em teu umbigo
e naquela outra parte de ti
que não mencionarei.

Patrimônio

Nem males mais nem bens.
Nada a dizer
É agora o que tens.

Conhecimento de materiais

Depois de descrever em minúcias a prodigiosa gostosura que tinha acabado de ver no metrô, o poeta concretista resumiu: de repente, parece que eu tinha uma viga de ferro no meio das pernas.

Cena final

A echarpe dançou ainda pela última vez em torno do pescoço de Isadora.

In medio virtus

É um casal equilibrado. De manhã, fala a linguagem do afeto. À tarde, o idioma do amor. À noite, a língua do sexo.

Laissez-faire

Se o cérebro insiste em arrastá-lo para bandalheiras, ora, quem é você para contrariá-lo?

Trunfo

Coçando a barbicha, o cafajeste do bairro dizia, não tão enigmaticamente quanto pensava e desdenhando aquela outra parte do corpo geralmente citada, que ela era seu maior patrimônio sexual.

Desconfiança

Na terceira noite, desconfiando de certas maneiras do fantasma, a viúva perguntou: é você, Gurgel?

Magia

Um nome de mulher, dito com o timbre certo na noite apropriada, pode eriçar os pelos do escuro.

Maneira de ser

Livros policiais caem em domínio público em decúbito dorsal.

Manual

Sou fácil de manusear, quando me mexem por amor.

O desejo

E houve aquela grávida meio sem noção que certa madrugada exigiu que o marido fosse comprar um chá da Pérsia.

As perdas

No dia em que se descobriram e se juraram namoradas, elas lastimaram as sedas que haviam negado aos dedos e o sal de que haviam privado os lábios nos dois anos de prosaica amizade.

Voo falho

Na tarde em que morreu o velho poeta, os parentes escolhiam o terno com que seria sepultado, quando de um deles escapou o que poderia ser um pombo, se houvesse justiça no mundo, mas era um maço de cigarros Minister, possivelmente da década de 1970.

O certo

Fazia meses já que o velho poeta não escrevia, quando lhe perguntaram se estava doente. Doente eu estava antes, respondeu.

RD no parque

Que lastimável cenário:
A decadente poesia
Flanando na companhia
Do poetastro octogenário.

A seu modo

Pediram-lhe um haicai, e o concretista fez uma caixinha de fósforos de cor.

Contraindicações

Na maioria das novelas ditas eróticas, tem-se a impressão de que o sexo é uma atividade recomendável só para atletas de alta resistência, preferivelmente maratonistas ou alpinistas.

Exceção

As novelas eróticas parecem ter como objetivo desmentir o princípio da física segundo o qual dois corpos não podem ocupar simultaneamente o mesmo espaço. De resto, são só detalhes que podem resumir-se num verbo: encaixar.

De Emil Mihai Cioran

"A negação nunca sai do raciocínio mas sim de algo obscuro e antigo. Os argumentos vêm depois, para a justificar e apoiar. Todo não surge do sangue."

De Emil Mihai Cioran

"Se existe um que deve tudo a Bach, é Deus."

Soneto de como o amor nos mantém

Meio mortos, meio vivos,
Conforme sua vontade,
O amor, nossa majestade,
Vai nos mantendo cativos.

Assim nos agrada ser.
Por ele, só, nós vivemos,
Por ele, só, nós morremos,
Que mais podemos querer?

Ele nos segue, nos persegue,
Como putinha nos trata,
De gozo quer nos matar.

Porém assim que consegue
E de carícias nos mata
Já quer nos ressuscitar.

Vida nova

O velho na academia
estende-se de costas,
estica-se de frente,
move as pernas,
exercita os braços,
respira ruidosamente.
Abençoada fisioterapia:
em apenas um mês
parece que já fez três.
Sente-se melhor:
ainda tudo lhe dói,
mas agora geme
com muito mais energia
do que antes gemia.

Sedução

Quando me queria para os seus brinquedos de cama, a condessa lambia o "r" antes de dizer meu nome.

Hoje na revista Rubem

Falo da loira do Diabo

https://rubem.wordpress.com/2019/09/22/a-loira-do-diabo-raul-drewnick/

Soneto do amor inadequado

O amor, na idade madura,
É, mais que glória, tormento,
Mais que paixão, sofrimento,
E, mais que bênção, tortura.

Quem há de o amor respeitar
Se o velhote que o proclama
Não tem mais a antiga chama
Nem como a recuperar?

Que tudo em seu tempo ocorra
E tudo que um dia morra
Jamais possa reviver.

O amor tolices aceita
Mas a velhice rejeita
E assim há de sempre ser.

Perfil

Quero-quero são duas vontades unidas por um hífen e movidas por duas asas.

Quadrinha do candidato a defunto

Se não lhe agrada viver,
Na forma e no conteúdo,
Morrer talvez seja tudo
Que você possa fazer.

Efeitos especiais

Numa frase, bem no meio dela,
ratimbum! como um tiro de canhão
explodiu uma onomatopeia.

Característica

Houve tempo em que, mais do que pela métrica e pelas rimas, os poetas se distinguiam pelo cavanhaque.

Amores antigos

Embora digam que não, os poetas acabam dando preferência às tristezas da infância. Choram mais a bola estourada pelo caminhão aos oito anos do que o motel desmarcado na última hora pela balconista do shopping aos vinte.

À tarde, no quintal

Colhendo-as no pé, as duas vão enfiando as amoras uma na boca da outra e as devoram devorando-se, pelve apertada contra pelve e lábios que, já nenhuma sabendo de quem são, se mordem com uma fúria roxa.

Joguinho de sofá

Aconteceu assim:
me chama de gostosa
ela implorou
sentando-se no colo dele.
Não - ele negou -
e ela se mexeu
e se remexeu.
E agora?
Agora sim - ele gemeu -
agooora siiim -
ele admitiu o que negara antes
com vogais deliciosamente pingantes.

De médico

A molecona, já versada na brincadeira, fica nua e pergunta ao inocente guri: você trouxe o bisturi?

Pecado

Acredito que a luxúria seja o maior dos pecados. É menos um ponto de vista do que uma exaltação.

Quadrinha das duas raparigas

No escuro as duas se dão
E para vencer o medo
Uma diz à outra meu Pedro
E a outra responde meu João.

As duas

Em público
oi amiga
se dizem
oi querida
se beijam
como se beijam irmãs

à noite
meu amor
se emaranham
meu tesão
se contorcem
em danças pagãs.

A perder de vista

Seria ótimo se o estilo, assim como a casa própria, pudesse ser adquirido com uma pequena entrada e cento e oitenta prestações mensais.

Compulsão

Os parnasianos não podiam ver um passarinho, que logo o engaiolavam num soneto.

Resposta ao item 4

Não sou dado a filosofias.O que tenho de mais profundo é esta tristeza.

O prazer do conhecimento

Depois que João lhe mostrou o que era braguilha, a encantada Maria nunca mais lhe deu sossego. A todo instante avançava a mão: qual é mesmo o nome disto aqui?

Ainda que

A poesia deve ser pura, mesmo que seja como aquela veterana rameira que se gabava de nunca ter se deitado com homens em dias santos.

Metamorfose

Chamava-se Aki. Modesto a vida inteira, depois de morto tornou-se pleonástico. Seu epitáfio dizia: Aki jaz aqui.

Classificado no jornal "O Parnasiano"

Vendo produto prático. Cortador de sílabas automático.

Simpatia

Era um fantasma comunicativo.
Ficou na casa um mês
E quando foi embora
Até o papagaio falava inglês.

Qualidade

Fantasmas ingleses -
Não todos, mas a maioria -
Têm três séculos de garantia.

Funções

A tarefa mais excitante que cabe à sua mão esquerda é coçar a orelha daquele lado.

Periferia

Enquanto um filósofo
se aflige com os problemas
do amanhã e outro
com as questões do nunca mais
a kombi anuncia
a verdade do dia
uma cartela de ovos
por doze reais.

1994

Romário, tendo no nome Roma e Rio, deu a Roma o martírio e ao Rio o delírio.

Gala

Uma honraria
ainda que municipal
e o velho poeta
se põe a pinotear
como um potro
que ganhou uma espiga
e em frases entusiásticas
agradece às autoridades
civis, militares
e eclesiásticas.

No meio do caminho

Decifra-me, a pedra desafiou Drummond,
e o poeta disse: espere um pouco,
que eu vou chamar o Champollion.

Assunto

Melhor falar de defuntos que de chatos. Não há risco de retribuições nem de represálias.

O velho poeta no sofá

As janelas continuam abertas.
Um minuto atrás
havia tempo ainda
para um poema.
Agora não mais.
A morte deitou-se
sobre o velho poeta
e lhe diz ao ouvido
coisas que nenhuma brisa
que nenhum poema
jamais lhe dirá.

Pesquisa

Existe algo mais démodé que a palavra démodé?

De bons princípios

Era um fantasma estranho. Logo na primeira semana, fez um acerto com o casal de idosos dono do apartamento e se instalou no quarto da empregada pelo tempo necessário para seduzi-la, engravidá-la e desaparecer.

Reforma urbana

Era por aqui que as caravanas passavam, informou o homem, apontando o cemitério municipal de cães.

Epigramatista

Com essas frases curtas
se você um dia chegar ao parnaso
será com três séculos de atraso.

Curriculum vitae

Em mim não venham procurar
verdades ou certezas.
Sou um escritor
de armarinhos,
de miudezas.
Meu templo é meu bazar.

Traço de caráter

Um chato pode eventualmente não insistir, mas jamais desiste.

Cavalheirismo

O chato verdadeiramente atencioso sempre pergunta se nossa irmã continua com aquela bunda toda.

Praga

Os chatos não têm remédio. Só tendem a aprimorar-se.

Furacão

Todo chato poderia vir acompanhado de ventos de cento e vinte quilômetros por hora, desde que o levassem.

O máximo

Todo chato tem o inato e imprescritível dom do perfeccionismo.

Exemplo

Frase típica de um chato: o senhor pode repetir a pergunta?

Música

O refrão, como se sabe, é invenção de um chato talentoso.

Gramática

Chato redundante é um pleonasmo.

Tecla

A repetição, num chato, não é uma falha; é uma peculiaridade.

Perfil

Os chatos são geralmente longevos.

À moda da casa

Um chato, quando dá de ser poeta, costuma se especializar em odes e epopeias.

Vezes dois

E há aquele chato que nunca vai a lugar algum sem o irmão gêmeo.

Similaridade

Pela lógica, deve-se depreender que a mão esquerda de um chato é tão suada e escorregadia quanto a direita.

Uma emprestadinha

Chato é aquele tipo que nos pede o lenço emprestado para uma assoadinha.

Opinião

Acha que, de vez em quando, alguém poderia olhá-lo como se ele não estivesse morto e pudesse, mesmo no escuro, levado pela mão certa, entrar esperançosamente num quarto.

Até

O gato não perde a aristocracia nem quando remexe areia.

Caso de perguntar

Com a inflação a dez ponto zero
quanto terá custado
a reforma de Lutero?

Cotações

Por um bom soneto
não daria a alma
como outrora
mas metade.

Dores (para Silvana Guimarães)

No hipocondríaco
dói tudo que ele tem
o pé a mão
e até o que não
lhe dói também.

Tema para reflexão

Aos oitenta, se você se lembrar ainda dos ideais de sua juventude, talvez seja mais um desses casos de nostalgia ou de falta de maturidade.

Coincidência

Alguém dizer-se poeta já deu melhor resultado em outras épocas - especialmente naquelas em que havia poesia.

Os diretores

Imagino Ava Gardner com um copo na mão, mexendo languidamente as pedrinhas de gelo com o mindinho da outra, e penso que, se ela não fez isso em nenhum dos seus filmes, caramba, onde os diretores de Hollywood estavam com a cabeça?

Se

Com que classe as musas antigas fingiam não notar, no meio dos sonetos cheios de jardins e flores, aqueles bichos cabeludos carregados de terceiras intenções.

Questão de estoque

Se o meu lirismo não estivesse tão em falta, eu talvez o usasse para louvar, digamos, Scarlett Johansson como louvei outrora Marilyn Monroe.

Compromisso

Preciso parar de ter pena de mim. Faz trinta anos que comecei com isso, e já nem lembro por quê.

Marca

Meia hora depois, ele sente ainda o morango que a loira longilínea lhe imprimiu nos lábios enquanto os subjugava com a boca plena de escorregadio batom.

Técnica

No fim de sua primeira noite de sexo com a loira longilínea, o elogio que ele recebeu dela foi: ninguém lambe um umbigo melhor do que você, pelo menos neste quarteirão.

Corinthians

O Corinthians é um estado de espírito, o melhor de todos.

A opinião

Rápida como uma gazela, a loira longilínea o levou até o quarto. Entre beijos, disse para dentro da sua boca: o que você está achando? Estou achando que é um sonho, ele respondeu, com a língua mordida. E acordou.

Empurrãozinho

Quando a carne não se mostra suficientemente fraca, nós damos uma forcinha.

Busílis

A literatura consiste, no fundo, em juntar palavras com certa lógica. Esse é que é o problema.

Detalhe

Não acredito, rapaz.
Me disseram que Sócrates
Tomava cicuta sem gás.

Deve/haver

Sou um poeta com espírito de vereador. Presto contas quase diárias dos meus atos e dos meus desbaratos líricos, na pretensão de ter leitores.

Suas majestades

Já disse - e repito aqui: arrependo-me de não ter, desde o início, escolhido os gatos como assunto único.

Num bonde, na Pauliceia

Sonhei que estava num bonde. Admirava a paisagem, os homens com seus ternos, as mulheres com suas saias. Da rua, gritaram: bom dia, poeta. Alguém, do bonde, respondeu: bom dia. Era Mário de Andrade.

Pressa

Vanguardista é quem
em qualquer tempo procura estar
sempre à frente do seu tempo.

Ponto fraco

Dizia Ivan Lessa que Nova York
é uma Sã Paulo que deu certo.
Pena que não seja mais perto.

Contabilidade

Após tanto Nobel falho,
Sem contar os Jabutis,
Coloco os pingos nos is:
Sei hoje quanto não valho.

Um dia após outro

Como as coisas mudam. Na última  vez em que nos vimos, eu lhe disse que estava precisando de uma bengala, lembra? Hoje estou precisando de duas.

Supimpa

Sou um produto moderno. Todos se afeiçoam a mim tão rapidamente quanto me descartam.

O melhor

O melhor que podem dizer de si os poetas é que se dedicam a cultivar a beleza. Pode haver mais digna tarefa?

Seu nome, por favor?

Lutamos em vão. Não nos levaram a sério Perceberam logo que não éramos Shakespeare.

Sursum corda

Olhemos para o alto, enquanto podemos. Chegará o dia em que não veremos nem as flores em nosso peito nem a mosca pousada em nosso nariz.

Certidão

Sou uma tristeza gerada por um polonês e uma polonesa num dia de 1938, em São Paulo.

A retórica

A retórica, se lhe dão trela, não é um adorno colocado num elefante. É o elefante.

Hoje na revista Rubem

Jogo tudo para o alto.

https://rubem.wordpress.com/2019/09/08/jogando-tudo-para-o-alto-raul-drewnick/

Culpas

Você já deve ter ouvido dizerem o que andam fazendo minhas mãos. Não as censure. Culpe-se a si mesma e à falta de generosidade de seu corpo.

Birthday

Nicole, pensei em mandar-lhe de presente o meu mais lindo gato, mas não tenho nenhum. Imagine, então, um bem bonito, um que você gostaria de ter e que você pudesse me emprestar quando eu estivesse triste.

Espelho

Olhar-me no lago
mil vezes se preciso
até achar-me narciso.

Procuração

Dizemos falar em nome da literatura, naturalmente. Embora ela, naturalmente, não confirme.

Ressalva

Conhecer-nos a nós mesmos pode ser uma experiência interessante, desde que não nos peçam para dar nota depois.

Frase

De um parente rancoroso a um defunto, no velório: me chama de fracassado agora.

Por assim dizer

Otimistas, mesmo, eram os parentes daquele multibilionário monegasco que, ao se despedirem dele no funeral, garantiam: ele está indo para um lugar muito melhor.

A falha

As musas eram belas, gentis, primorosas. Seriam perfeitas, se tivessem bocejado sempre que seus olhos eram comparados a estrelas e seus cabelos a cascatas.

99,99%

Hoje, praticamente não há senão impressões digitais.

Lobo

Quando diz representar o amor, o sexo, pelo menos na primeira vez, oculta as garras e retrai os dentes.

Natureza do ser

Ao menor rumor, ainda que do silêncio, o haicai se recolhe todo à sua significância.

Ana Luisa Peluffo

Ana Luisa Peluffo
tuas tetas escapavam
esplêndidas do sutiã
como dois pássaros
e pousavam alvoroçadas
na mão do menino
que aprendia os pecados da carne.

Fases

Aos oitenta eu gostaria
de fazer o que fazia
quando tinha quarenta
e queria ser poeta:
andar de bicicleta.

A verdade

Não cheguei a ser um poeta. Fui no máximo um versejador aplicado - talvez aplicado demais.

Soneto de Carla e sua amiga

Ora rápida, ora lenta,
Murmurando o nome à amiga,
Hoje com a mão ela tenta
Recompor a cena antiga.

Foi há muito tempo já:
As duas, de pilequinho,
Rolando sobre o sofá,
Brincavam de dar beijinho.

A cada beijo que davam
As bocas se perguntavam:
Qual é o teu nome, paixão?

Agora, embora sozinha,
Ela diz Carla, Carlinha,
E qual é o teu, meu tesão?

Honra ao mérito

Era uma dessas preposições corriqueiras, que passam despercebidas na frase. Não esmoreceu. Continuou a fazer-se presente quando solicitada. Com os preciosos conselhos dos livros de autoajuda, atingiu o reconhecimento máximo concedido às preposições: o Prêmio Segundo Trás Mediante.

Registros

Na primeira vez em que seu nome apareceu no jornal, o crítico elogiou seu livro e o chamou de uma promissora voz da literatura brasileira. Ele sorriu. Na segunda, um mês depois, ele encabeçava a lista dos falecidos na véspera: Fulano de Tal, 77 anos.

Sentença

Aos olhos da nova crítica, os sonetos não são feitos nem escritos; são cometidos.

Abstinência

Sua campanha de reabilitação moral vem dando certo: já há mais de um ano ninguém lhe pergunta se ainda faz sonetos.

Atitude

Tenhamos a humildade de reconhecer: o inferno são os outros.

"Aliás"

Suplementos podem, sim, ser obras-primas. Como o "Aliás" do Estadão, hoje.

Retórica

Se fracassar, fracasse retumbantemente. Não economize um advérbio que pode agradar tanto aos que torcem contra você.

Mau sinal

Notando pela terceira noite seguida a ausência do cisne, a lua receou serem verdadeiros os rumores de que, abandonado por todos, o poeta parnasiano não tinha mais dinheiro nem para  comer.

Dosimetria

Em tese, todos os sonetos são no mínimo culposos.

Fiscalização

A exclamação se eriça
se inteiriça
se posta como um poste
no meio da frase
e (alto lá)
exige o crachá.

O que ela é

Ela pode até me processar, mas digo aqui com todas as letras: a Xuxa é um palíndromo.

Soneto das duas amigas

Quando se lembra da amiga
Amada mais do que amada
Naquela época dourada
Já muito mais do que antiga,

Ela na cama se estende
Onde as duas se deitavam
E docemente se amavam
E a mão entre as coxas prende.

Febril, um nome murmura
Enquanto com a mão procura
De novo aquele prazer

Com o qual ela dia a dia
Gostosamente morria
E que hoje a faz renascer.

A diferença

Quando eu era menino, diziam-me que eu tinha certo jeito para escrever. Talvez tivesse. O que nunca tive, acho, foi o jeito certo.

O adjetivo e o advérbio

Quando o velhote falava da mulher que mais havia amado, mencionava suas coxas formidáveis (era esse o adjetivo que usava) e suspirava então, e em seguida se desculpava por estar se referindo tão inadequadamente (esse era o advérbio) a alguém que tinha morrido três décadas atrás.

Rodízio

Que lastimáveis são certos velhos quando se põem a falar de amor, com os olhos lúbricos e a saliva aflorando aos lábios, como se estivessem numa churrascaria diante de um pernil.

Na medida

O que dois tolos melhor fazem é compartilhar o amor.

Soneto de Antônio Pinto

O seu nome é Antônio Pinto
Mas, se eu disser que seu nome
Foi sempre o seu sobrenome
Podem confiar que não minto.

Ele ainda era um menininho
E quem com ele convivia
Ou a ele se referia
Chamava-o Pinto ou Pintinho.

Na adolescência também
Jamais se soube de alguém
Que não o chamasse assim.

Dúvida não houve ou há:
Pinto foi, Pinto será,
Como tem sido, até o fim.

Soneto do ingênuo sofredor

Pensou que em todos doía
Com tão intenso furor,
E a mesma impiedade, a dor
Que em si mesmo doer soía.

Se o amor tão fundo o afligia,
Como podia supor
Que outro qualquer sofredor
Menos que ele sofreria?

Jovem, ele imaginava
Que alguém, se de amor chorava,
Não poderia fingir.

Com o tempo, muito aprendeu
E hoje, assim como tu e eu,
Já sabe também mentir.

Soneto do velho beijoqueiro

Deu-lhe dois beijos. Depois,
Porque lhe agradou demais,
Deu-lhe doze, vinte e dois,
E lhe daria até mais,

Se, após beijar e beijar,
Seu corpo, já incendiado,
Não se pusesse a clamar
Por outro tipo de agrado.

Ela disse isso ao parceiro,
Um belo tipo faceiro
Se bem que em anos entrado.

Por se saber incapaz,
Ele deu dois passos atrás
E se escusou: obrigado.

Dó de peito

Um minuto antes de desabarem as torres
ouviram-se vozes: eram os três tenores.

Maneira de ver

Ora, desdenhareis, mais um soneto?
E eu vos responderei que não,
Que são só dois quartetos e dois tercetos.

Conhecimento de causa

Um soneto sem rimas, dizia o poeta Volkov Rimanov, seria como um filhote de passarinho morrendo de frio debaixo de chuva.

Errata

Não é verdade que o papa João XXIII excomungou os sonetistas. Isso já já havia acontecido décadas antes.

Clemência

Quando no terceto final
ele se ajoelhou e pediu piedade,
o crítico se condoeu:
era um soneto de meia-idade.

Campanha

Só falta dizerem aos meninos que sonetos mordem.

Confissão

Sou lerdo, confesso.
Só agora, aos oitenta,
Me afeta a crise dos setenta.

Soneto da promoção de dormitórios

Esta é a história de Bóris,
A quem, para bem rimar,
O acaso fez encontrar
A bela manequim Dóris.

Foi rápido. Só a olhar
Um dia no mappin stores
Bastou-lhe para a julgar
A melhor entre as melhores.

Deitada sobre um colchão,
Ela era a peça de um show,
De uma grande promoção.

Insano como é quem ama,
Ele os sapatos tirou
E esparramou-se na cama.

Compromisso

Hora de romper os grilhões.
Fazer sonetos nunca mais.
Já não bastam os de Camões
E os de Vinicius de Moraes?

Hoje na revista Rubem

Algumas frases que bem poderiam ser literárias.

https://rubem.wordpress.com/2019/08/25/frases-no-saldao-raul-drewnick/

Culpados

O problema do soneto são os sonetistas e quem os detesta.

Cracterísticas

É um poeta que lê seus poemas tediosos com voz tonitruante. A mulher é feiosa e raquítica, mas dizem que tem pelo menos um motivo para se considerar venturosa. É surda.

Argh

São abomináveis os acrósticos. Fiz meia dúzia, quando a adolescência me absolvia de todos os pecados. Um deles, escrito sob encomenda de um amigo apaixonado por uma garota do bairro, acabou dando em namoro e casamento. Não sei se os dois foram felizes. Receio que não.

Faces

Querer da literatura viver é uma presunção tão insana quanto deixar-se por ela morrer.

Soneto do prazer rememorado

Se ele se lembra da amada,
Daquela acesa putinha,
De sua boca molhada,
Dos dentes e da linguinha,

E se ele de madrugada
Evoca o rosto, a covinha
E a presunção demasiada
Que havia em sua bundinha,

Seu prazer reminiscente,
Culposo, morno, indecente,
Tem tudo de que precisa.

Cede ao Diabo sua alma
E, deitado sobre a palma
Da mão cuspida, agoniza.

Peça acusatória número tal

Sim, eu fiz sonetos
e até coisas piores
proibidas para menores.

Convicção

Seja ela ou não seja plana
nela deve haver um mar
pelo qual chegarei a taprobana.

O filme

Uma hora antes
da nossa derradeira
um filme passará
de nossa vida inteira.

Todas as cenas
talvez até (imaginou?)
aquelas obscenas que nós
nunca vivemos com Brigitte Bardot.

Opção

Conhece-te a ti mesmo, se tens tempo a perder.

Última chance

Que Deus me acuda.
Tentei já todas as mandingas
e os livrinhos de autoajuda.

Modo de ver

Morrer é uma prerrogativa:
não morre qualquer um,
só morre gente viva.

Tratamento

Tudo parece óbvio agora, como acontece com todos os desastres depois de consumados. Mas durante séculos nós as chamamos de musas, estrelas, gazelas, flores. Elas só eram, e queriam ser, mulheres.

Hora da saudade

Eu sou do tempo em que o Café Caboclo era irmão do Açúcar União.

Compromisso

O menino com quem fiz o pacto eu já não vejo há décadas, mas continuo escrevendo.

Cautela

Que esteja o próximo distante
se sobre sua mulher nosso olhar se puser
ainda que por um instante.

Mérito

Se eu algum brilho tenho
devo-o menos à poesia
do que à minha alopecia.

Soneto dos dedos enganadores

Senhora dos sonhos meus,
Se tens tempo de me ouvir,
Ouve o que te vou pedir:
Castiga esses dedos teus.

As noites em que eles têm
Mil coisas me prometido
Sem terem uma cumprido
São, senhora, mais de cem.

Ontem mesmo eles pegaram
Meus dedos e os apertaram,
Cobrando-lhes submissão.

Porém, quando os meus cederam,
Logo os teus se afastaram,
Rejeitando minha mão.

Soneto da falsa poesia

Se te lembrares um dia
Dos versos que eu te ofertava
E que tolamente achava
Serem profunda poesia,

Tu poderás finalmente -
Sem meus amuos temer
Nem minhas queixas sofrer -
Rir escancaradamente.

Que não te constranja rir.
Não precisarás fingir
Nem precisarás dizer

Que era o Vinicius que amavas
E o Chico que idolatravas
Antes de me conhecer.

Cidade maravilhosa

Sob os olhos do Cristo, com balas perdidas no lombo, agonizando na Maré e no Jacarezinho, o Rio  de Janeiro continua indo.

Praga

As batatas ao vencedor
e o veneno adicionado
a elas pelo nosso rancor.

Jorros

Carlos Zéfiro era um sentimental. Em seus catecismos, choravam não só os olhos dos amantes, mas também as espadas gotejantes.

Errata

Não, quem escreveu As viagens de Guliver não foi Swift Armour.

Questão de gênero

Que curioso foi aquele fantasma francês de bigode que chegou dizendo-me ser Madame Bovary.

Natureza viva

Tão apetitosas começaram a ficar as cerejas que o pincel se pôs a salivar.

Estatuto

O sindicato expulsou aquele fantasma rebelde de hábitos diurnos.

Tradição

Um fantasma suíço 

sempre chega à meia-noite,

nunca além ou aquém disso.

Perfil

Era um fantasma bissexto
que mais sumia
do que aparecia.

1900 e nada

Ah, aqueles apóstrofos d'antanho.

Sic transit

Em 2015 foi a melhor bunda do bairro.
No ano seguinte,
Não ficou nem entre as vinte.

Assalto

O fantasma asmático
de faca na mão
me roubou o xarope de são joão.

Meia-noite

O fantasma disse que se chamava romeu
era mais forte do que eu
e me puxou vem cá julieta.

Relacionamento

Nos últimos tempos
quando falo comigo
noto um mútuo constrangimento.

Seis palavrinhas sobre a vida

Que morrer não seja tão cansativo.

Modernidade

Sem vergonha e sem desdouro
o parnasiano conserta agora os versos
no martelinho de ouro.

"Um churrasco", de Francisco Alvim

"Não foi desmarcado
Ela já estava muito velhinha
e muito doentinha."
(De O metro nenhum", Companhia das Letras.)

Balança comercial

Esse imbróglio com a Argentina pode nos custar carro.

Tal qual

Um gato iraniano é um gato persa. E vice-versa.

Massao

Quando lhes faltou o japonês
os poetas paulistanos aderiram à prosa -
quase todos de uma vez.

Gente boa

Era um morto tão acolhedor que quase lhe pedi que assinasse uma rifa.

Só com RG

Tenho mudado tanto já
que se um dia nos reencontrarmos
minha mãe não me reconhecerá.

Escambo

Tenho oitenta e acredite:
me trocaria por dois de quarenta
desde que um fosse o brad pitt.

45 do segundo tempo

E vós, tágides minhas,
dizei ao Tejo
que estou indo para o brejo.

Galanteio senil

Estou mais morto do que vivo, mas ainda sei dar valor a um bom par de coxas.

Sinônimos (para JiroTakahashi)

Ele disse olhe este haicai é pra você, e ela disse ai que susto, quando o passarinho escapou da mão que o oferecia.

Um soneto que subestima a espécie

Sonetos? Ah, faça-os quem
Não tenha reputação
Ou, tendo-a, dela já não
Se importe em cuidar tão bem.

Possa fazê-los também
Quem, por desastrosa opção,
Julgar que ser um bufão
É papel que lhe convém.

Eu, que os fiz, sei que o alto preço
Pago por eles mereço,
Sem queixa e sem contestações.

Quem, sendo são, pode ousar
O mesmo rumo trilhar
De Shakespeare e Camões?

Escolas

O poeta romântico censura o concretista: não tem vergonha de andar por aí com as mãos sujas de cal? O concretista responde: e você, com esse cheiro de cisne morto na roupa?

Cálculo

O velho viu tão portentosa mulher que duvidou mais uma vez da façanha de Deus. Como poderia ter criado o mundo em seis dias, se apenas no molde daquela formosura era justo considerar que houvesse consumido pelo menos dois?

Sob medida

O poeta procura uma musa na internet: que seja loira, e longilínea o suficiente para inspirar uma ode que ocupe ao menos meia página do suplemento literário.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2019/08/11/pijamas-largos-e-moralismos-raul-drewnick/

Pacto

Fiel a um hábito de infância, escreve ainda aos oitenta, embora nunca mais tenha empinado pipa nem corrido atrás de balão.

Desemprego

O romantismo ainda às vezes, em nome dos bons tempos, vai à casa do poeta pedir-lhe que arranje vaga para um cisne necessitado.

Parque

Temerariamente o pardal
pousa na estátua
do general.

Exercício

Nasci para ser pequeno,
Para ser simples e pouco.
Para ser eu, me apequeno,
Para ser todo, me apouco.

Lance único

Há mortos com os quais simpatizamos logo à primeira vista ou nunca mais.

Soneto do velhote repentinamente aceso

Hoje o velhote acordou
Tão lépido e entusiasmado
Que, surpreendido, pensou:
O que teria mudado?

A mão na calça pousou
E enrubescido, afogueado,
De novo se perguntou:
Tudo teria voltado?

Assim iludido enquanto
Perdura o imprevisto encanto,
Mantém sobre a calça a mão

E com a outra lentamente,
Quase voluptuosamente,
Molha no chá quente o pão.

Soneto da jovem sedenta

Estando nua e sozinha,
Sem nada para fazer,
Ocorreu-lhe se entreter
Em uma brincadeirinha.

Com a imaginação que tinha,
Levou o dedo a beber
Na fonte que fez nascer
Com a mão que ia e que vinha.

Como se fosse chamado,
Logo um príncipe encantado
Apareceu diante dela.

Tinha cara de bebê,
Uma boca lindona e
Muito mais sede do que ela.

A gênese

A ociosidade é a mãe de todos os vícios e o mais tranquilo de todos.

Resumo sintético

Uma vampira frenética
numa atitude dramática
bebeu minha veia humorística.

Soneto dos nomes postiços

Dos poemas todos que fiz,
Em nenhum mais me esmerei
Do que nos que dediquei
A quem chamei de Beatriz.

Nunca na vida fui Dante,
Porém quando a conheci
Como Dante me assumi,
E fui, desse dia em diante.

No início me parecia
Que tudo certo daria,
Mas tudo deu no que deu.

Beatriz disse que era Lia
E qualquer Dante queria,
Desde que nenhum fosse eu.

Cerimonioso

O poeta chapa-branca
chama teta de seio
e bunda de anca.

Progresso

Na última vez você não estava com toda esta bunda.

Tarefa

A expressão atributos físicos tem a pretensão de representar palavras como coxas, seios e bunda.

Classe A

Quem tem bunda vai a Roma, se souber sentá-la no avião certo e na poltrona marcada.

Pitéu

Na aglomeração alguém passou a mão na pudica dona Sara e deixou no ar uma exclamação: ô tesãozinho de bunda magricela.

Provérbio

Tantas vezes foi a bunda ao baile que arranjou marido.

Erro de anatomia

Poeta é quem leva um pontapé na bunda e diz que seu coração foi mortalmente ferido por um espinho de rosa.

Resolução

Então como se a tivesse feito algum dia
declarou que naquele
estava deixando de fazer poesia.

Nomenclatura

O velho gramático observa que o verbo urinar, para ele, está se tornando cada dia mais pronominal.

A pergunta

Gastamos todo o nosso corpo
Em estripulias e esparrelas.
Se tivermos mesmo alma,
O que faremos dela?

Circunstâncias

A literatura policial clássica depende muito do ambiente em que transcorre a ação. Entre um palácio e um apartamento de conjunto habitacional, a escolha é óbvia. Em qual deles se poderá encontrar um mordomo?

Escárnio

Escritor de histórias de detetives, ele é depreciado pelos críticos. Dizem que de policial ele tem só o cachorro.

Anais

Consta que em Pompeia
a temporada dos Três Tenores
durou só uma noite -
justamente a da estreia.

Estocolmo

Vive em Estocolmo ainda aquela mais fria das mulheres que por anos e anos simulou não ver na calçada o chapéu do cego que lhe pedia a moeda do Nobel.

Estocolmo

Depois de três dias seguidos, hoje é meia-noite e não repetiram o trote dizendo que é uma ligação de Estocolmo. Ele já começa a sentir falta.

Estocolmo

Escreve duas páginas e já fica ofegante.
Pergunta aqui, pergunta ali,
E Estocolmo é sempre mais adiante.

Estocolmo

O ônibus para Estocolmo
há vinte anos me deixa aqui
no Largo do Cambuci.

Atenuante

A luxúria não deve ser um sentimento tão atroz. Se até na Bíblia está...

Sinopse

Eu quis ser muito, eu quis ser tudo. Hoje sou apenas um macróbio (se for tanto).

Prática

Termos lidado com a poesia é responsável por algumas de nossas convicções, como a de que mulheres e flores são, sim, sinônimos perfeitos.

MQ

Mario Quintana era um poeta simples, um poeta completo, um poeta poeta.

MQ

Bilac, quando conversava com uma estrela, tratava-a de vós. Quintana, de tu.

MQ

Mario Quintana era um desses poetas venturosos que todo ano, já no primeiro dia, a primavera vai chamar em casa.

MQ

A melhor autobiografia de um passarinho seria aquela que Mario Quintana teria escrito, se não fosse tão modesto.

Cena doméstica

Mãe, o gato me arranhou, queixa-se a menina, mostrando o dedo ferido pelo bibelô estilhaçado.

Números

Dizer que entre os gatos e os sofás há uma espécie de fetiche é quase uma imposição estatística.

Tempo

Era um poeta tão velho que a neve dos seus cabelos tinha já derretido.

Hoje na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2019/07/28/uma-porcao-de-nadas-raul-drewnick/

Uma questão de estilo

Então, no coquetel, o escritor sessentão disse que seu estilo era semelhante ao de Shakespeare e, pegando uma taça de vinho, deu um gole compenetrado, como se estivesse tomando o veneno do terceiro ato.

MQ

Alguma criancice o poeta pode conservar - como a de supor que, embora não saiba voar como Mario Quintana, gorjeia tão bem quanto ele.

MQ

Mario Quintana tinha o que os poetas de verdade têm: um jeito simples de dizer as coisas, como se elas mesmas se narrassem.

MQ

Ler Mario Quintana é ter a impressão de que a poesia  é uma questão só de jeito, como aquele que os passarinhos têm ao voar.

Aprendizes

Musas jovens devem aprender como manusear velhos poetas. Eles são frágeis como bibelôs, embora não admitam.

Promoção

O velho poeta sonha que é o catalogador-geral das estrelas e que concluiu a tarefa.

Ás na manga

Quando lhe dava na telha tornar-se ainda mais irresistível, a condessa falsificava uns erres franceses.

Definição

Morto inadimplente é aquele que deve até o terno com o qual é enterrado.

Dizer ou não

Não lhes digo que até manejando um cotonete a condessa era demoniacamente sensual. Mas também não lhes digo que não.

Alívio

Quando me dizem que em Portugal ainda se usa o trema, abro um sorriso de respeito e saudade.

Falsa sinecura

Quando conto que durante muito tempo sustentei minha família como revisor de textos, há sempre os que me consideram um homem bem-aventurado. São naturalmente os que nunca ouviram falar de homógrafos não homófonos.

Má sorte

Faltou-lhe um amigo para lhe dizer que a literatura talvez não fosse uma boa ideia ou para lhe indicar uma agência de viagens. Não teria consumido cinquenta anos tentando chegar a Estocolmo.

Buffon

Muitos ainda não notaram, mas há muito tempo, já, que na literatura o estilo é a mulher.

Balcão

Quantos escrevinhadores se presumiram fenômenos editoriais e não passaram da primeira impressão.

Hipótese única

Só uma calamitosa falta de pudor vocabular justifica o uso de pundonor e pudicícia.

Pontos de vista

Às vezes eu odiava a condessa. Como no dia em que, antes de me deitar sobre ela, eu a olhei como julgava dever olhar para quem compartilhava um pecado comigo, e ela me disse: relaxa, bebê, isto aqui é só uma brincadeirinha.

MQ

Ah, se eu pudesse ter ainda que só um bocadinho daquilo que que em Mario Quintana havia tanto de passarinho.

MQ

Nunca eu soube de outro poeta que, como Mario Quintana, andasse pela rua dizendo: não, obrigado, hoje não, quem sabe amanhã. Os passarinhos, mal o viam sair de casa, começavam a lhe oferecer canções.

MQ

Que outro poeta, além de Mario Quintana, você acha que ficaria bem com um algodão-doce na mão?

MQ

Encontrei Mario Quintana num sonho. Nós nos demos as mãos. Na minha ele deixou respingos de arco-íris.

Conta

Para muitos basta um apenas.
Eu, pobre de mim, precisarei
De quantos mecenas?

Projeto final

Ir aos arquivos todos (originais de livros infantis, juvenis, de contos) e revisá-los, ou (como dizem os que julgam a literatura uma questão de boniteza) penteá-los. Estando assim todos arrumadinhos como um menino na primeira comunhão, jogá-los fora. No fundo, a literatura não passa disso: a arte de melhorar a aparência e aumentar os méritos de um defunto.

Inovação

De Eva, para Adão: ei, o que é isso, você andou lendo o Carlos Zéfiro?

Empreendedorismo

Se Adão tivesse patenteado o pecado original, seus descendentes não estariam passando fome hoje.

O gemido

Os dois vendedores da livraria ouviram um gemido vindo da estante de poesia. Aproximaram-se e ficaram atentos. Instantes depois o gemido se repetiu. "Dá para acreditar? É este aqui", disse um, puxando um livro. O outro riu: "Antologia de poemas concretos. Como é que pode? Ô cimento chorão!"

Belle époque

Durante muito tempo, o sonho de todo patinho feio era tornar-se um cisne parnasiano.

Lacuna

"Mas que pouca-vergonha é essa? Pensam que isto aqui é um bordel?", exaspera-se dona Dora, atirando o chinelo nos dois passarinhos acasalados no sofá e sentindo mais do que nunca a ausência da finada gata Beijoca.

Lembrança

No velório, a viúva elogia o terno do defunto: "É o que ele usou no casamento. Quarenta e seis anos... Olha aqui, não parece novo? Doze prestações, no Mappin. Lembram do Mappin?"

Mariozinho

Curiosa é a literatura. Mario Quintana - que, assim como seu xará Andrade, foi trezentos e cinquenta, todos notáveis - deve imensa parte da fama a um trocadilho em que dois substantivos, passarão e passarinho, se disfarçam sapecamente de formas verbais.

O motivo

Procurando uma explicação para sua já incômoda longevidade, ocorreu-lhe, com vergonha e tristeza, que fazia vinte  anos que não ia além do primeiro beijo com nenhuma mulher.

Drewnick

Pelo menos na estante, Dostoiévski, Drummond e eu estamos ali, ó.

No alvo

Cinco reimpressões em um mês do seu livro de autoajuda deram ao autor a convicção de que havia abandonado Shakespeare na hora certa.

Ocaso

É um poema concretista velho e empenado que, tendo sido o símbolo de uma época dourada, não tem hoje nada a esperar além das bolas de chumbo da empresa de demolição.

Aculturação

Confessemos. Se uma noite nos lembrarmos de olhar para a lua e notarmos que ela foi toda ocupada por um outdoor do Mc Donald's, nosso impulso será bater palmas. Só uns dez ou quinze segundos depois colocaremos as mãos nos bolsos e começaremos a reunir penosamente os restos de nosso bom-senso.

Musa

Se ainda houvesse musas e eu merecesse uma, ela haveria de ser nordicamente loira e interminavelmente longilínea.

Sóis

Consciente de sua grandeza, o velho poeta parnasiano abre as janelas ao menos duas vezes por semana, e, mesmo assim, como ele diz, só para não perder definitivamente a amizade com o sol.

Lambendo a cria

Sempre que tem um tempinho,
o assassino chato
volta à cena do crime.

Erro de revisão

A incauta beata que na página 19
linha 9
o pirata comeu
na errata virou batata
e tudo se resolveu.

Feitos um para o outro

Sou um desses escritores nascidos para exprimir não o mundo, nem um país, nem uma cidade, mas apenas uma esquina de um bairro obscuro que, envergonhado de sua insignificância, não aspirasse a nada além do esquecimento.

Nem só

Comecei menino. Hoje, tantas décadas depois, tenho uma convicção: a literatura não depende só da persistência.

Fôlego

Num poeta de oitenta anos, os versos tossem de duas em duas sílabas até chegarem à décima segunda, quando chegam.

MQ

Ora, francamente, concederam ao Marquês de Maricá a honraria, e não deram a Mario Quintana, até hoje, o título de Arquiduque de Alegrete.

MQ

Se for imitar o Quintana, imite-o simplesmente, com algum respeito mas sem nenhuma pompa. É assim que ele gostaria.

MQ

O melhor do amor é esperar por ele num banco de parque, lendo um livro do Quintana.

MQ

Ultimamente, certas frases têm me vindo tão espontâneas e espirituosas  que, se não parecesse jactância minha e se não fosse a minha idade, eu poderia achar que me tornei o menino de confiança de Mario Quintana, ao menos para os mais simples recados.

Prontuário

Os personagens de Shakespeare, com exceção dos cavalos, seriam hoje todos tratados com medicamentos de tarja preta.

Inclusão

Ri também quem rir por último, se a piada chegar até lá.

Mesmo que

Numa história policial, até um candelabro merece estar sob vigilância. Quem pode garantir que, instigado pela lei da gravidade, não desabará uma noite na nuca de uma vítima, mesmo que ela seja uma obscura serviçal contratada para o jantar dos lordes?

Dramatis personae

Nas novelas policiais, às vezes há mais mortos do que personagens.

Modelos

Quem me dera ser um daqueles alighieris
de rimas ricamente trabalhadas
a serviço de portentosas mulheres
de majestosas imperatrizes de beatrizes
nunca dantes tão primorosamente decantadas.

Peculiaridades

A literatura erótica tem olhos de fogo e mãos molhadas.

Os verdadeiros

Os cativos do amor queixam-se não do seu chicote, mas da parcimônia com que ele o usa.

Fim de linha

Foi simples, foi assim:
não fui eu que me cansei dela,
foi a poesia que se cansou de mim.

A escolha

Éramos jovens demais, tolos demais, estúpidos demais. Que outras justificativas podemos dar para termos decidido fazer o que, séculos antes, Shakespeare havia feito como ninguém mais conseguiria fazer?

MQ

Em Mario Quintana, o exercício da poesia era tão natural quanto a satisfação de sorrir ou a alegria de voar.

MQ

Em quase todas as fotos de Mario Quintana, sinto nele a vontade de dar uma piscada e dizer: se quiser me levar a sério, fique à vontade, mas não exagere.

MQ

Fazer poesia era, para Mario Quintana, um ato natural. Consistia simplesmente em respirar com uma caneta na mão.

MQ

Mario Quintana não tinha, por si só, o dom de fazer surgir o sol. Mas sempre dava uma ajudazinha.

Cantiguinha

Rezar não resolve nada,
Não encontra eco ou guarida.
Ou vem a morte matada
Ou vem a morte morrida.

Saudável

Porcarias não como mais.
Até o veneno que tomo
Tem vitaminas e sais minerais.

À moda do Mario

Aqueles figurões
São uns escrevinhões.
Eu escrevinho.

MQ

Quando viam o menino Mario Quintana, os bem-te-vis mudavam o canto: olha eu aqui, olha eu aqui, olha eu aqui.

MQ

Se Mario Quintana passasse acenando numa nuvem, a pergunta seria: quem carregava quem?

MQ

Até a palavra ambos parece menos desengonçada quando se refere  a Mario Quintana e Manoel de Barros.

MQ

Se você quer investir em poesia, Quintana & Barros é a melhor companhia.

MQ

Se Mario Quintana e a poesia tinham um pacto, era desses que se acertam com um olhar e um sorriso.

100%

Frase perfeita é aquela que, mal a escrevemos, parece plágio de Shakespeare.

Soneto das prerrogativas do amor

Amor, quem há de salvar-nos,
Quem há de nos resgatar
Do fundo escuro do mar,
Se quiseres afogar-nos?

Amor, quem há de livrar-nos,
Quem vai ao fogo rogar
Que as chamas venha abrandar,
Se tu quiseres matar-nos?

Não seremos nós, amor.
Deve o servo resistir
À vontade do senhor?

Podes fazer-nos sofrer,
Nos supliciar, afligir,
Podes fazer-nos morrer.

Resumo

Com sua lança certeira
Dom Quixote aniquilou
Toda a indústria moageira.

Tudo ele

O amor pode sempre resolver, mesmo quando é ele mesmo o problema.

A raiz do mal

Aos dezoito anos ele começou a ser visto em más companhias. A família foi alertada, mas ninguém sabia o que eram sonetos.

Carreira

Fazer sonetos teria sido o pior dos seus pecados, se na meia-idade ele não houvesse migrado para a prosa.

Futuro

Se o amor já toma todas as horas do seu dia, o que será então quando ele começar a doer?

Na esquina

Xi, menina, cuidado,
diz a cachorrinha à companheira:
aquele poodle de nariz gelado
vem subindo a ladeira.

Em pele alheia

E, porque escrevia uma história não exatamente autobiográfica, deixou o protagonista passar a noite com a mulher do chefe do tráfico de cocaína, permitindo até que ele dormisse pachorrentamente na cama do casal depois das quatro horas de formidável amor.

A doce recompensa da culpa

Uma vez, desgostosa com o jardineiro, a condessa me contou que frequentemente pensava em chicotear a criadagem, como o pai costumava fazer. Ela não era dada a compreender certas sutilezas, mas nesse dia creio que notou a esperança que havia em meus olhos.

Uns e todo o resto

Há duas espécies  de sonetos: os de Camões e os que não merecem o nome.

MQ

Não sei quando o menino Mario Quintana viu seu primeiro arco-íris. Gostaria de ter presenciado o agradecido encanto com que os dois se olharam.

MQ

Imagino Mario Quintana e Manoel de Barros como dois meninos que, maçados com a grandiloquência de sons da orquestra, puxam na plateia suas gaitinhas de boca e fazem o tico-tico bicar todo o fubá.

MQ

Alguns poetas se movem como se a poesia fosse um sapato novo, dois números menor. Mario Quintana sempre caminhou como se usasse sandálias nas ocasiões mais solenes e estivesse descalço em todas as demais.

MQ

Era bonito quando o minuano parava de rugir, se assumia como passarinho e ia comer alpiste na mão de Mario Quintana.

Arena

Corinthians, quanta desgraça.
Estão nos cobrando com juros
O estádio que era de graça.

MQ

Se estrelas se plantam, esse deve ser o atual trabalho de Mario Quintana, lá em cima.

MQ

O simples, em Mario Quintana, não era um detalhe ou um acessório. Não era uma modéstia, uma humildade da alma. Era a própria alma, na qual ele ia buscar as flores, os pássaros e as estrelas.

A frieza dos números

Para evitar sofrimentos, desde o início vem encarando a literatura como passatempo. Parece ter dado certo. Estava com dezoito anos quando tomou a decisão. Hoje tem oitenta.

Dever de fiel

A fidelidade ao Corinthians há de ser canina: latir, se preciso; morder, se inevitável.

No lugar errado

O que eu estou fazendo aqui?, perguntou-se o poeta, tentando ver algo de Estocolmo na paisagem suburbana da Vila Guarani.

Sobre a língua da condessa

A condessa não era muito de piadas ou gracejos. Quando os fazia, eram invariavelmente infantis. Como na tarde em que, depois de me mostrar a língua, perguntou: o que você acha dela? Feiosa, eu respondi, para provocá-la. É mesmo?, sorriu a condessa: à noite eu vou pedir a opinião do conde.

Hoje, na revista Rubem

https://rubem.wordpress.com/2019/07/14/ah-estocolmo-raul-drewnick/

Verônica Sabino

Amo em ti, cara Verônica,
Esse teu "n" antes do "i"
E esse chapeuzinho aí
Na tua sílaba tônica.

E amo também cada hino
A que dás, de dó em dó,
O encanto que é teu só, só
Teu, Verônica Sabino.

Economia

Quando descobriram que pipoca vem do milho, acabou a alegria do pipoqueiro.

Profecia

Quando menino, diziam-me que eu iria longe. Estavam errados. Tudo que andei ainda não me deixou em Estocolmo.

Norte-sul

A vida mudando vai
Conforme cada estação.
E a morte? Ah, a morte não.
Essa da moda não sai.

Erro contábil

E há aqueles que lançam na coluna de perdas terem sido joguetes do amor, como se houvesse melhor forma de alguém ser manuseado.

Sinopse

Fazendo um resumo de minhas relações com o amor, arrependo-me hoje apenas de ter sido só aquele pouco que fui, e não aquele inteiramente, apaixonadamente, escandalosamente tolo que poderia ter sido.

Bicho-papão

Dois diminutivos brigavam para decidir qual deles era o mais gracioso, quando o gramático avisou: oi, gatinho, ei,cachorrinho, ou vocês se comportam ou eu chamo já a crase.

O ideal

Fui tolo. Quem fixasse por dez segundos os olhos nas partes mais carnudas da condessa saberia que ela não precisava de um poeta romântico, mas de um prosador realista.

Suplício

Ver a condessa mordiscando biscoitos talvez fosse suportável, se ela recolhesse as migalhas dos lábios com uma língua menos minuciosa e se nos seus olhos não houvesse aquela chama que induzia a todos os pecados.

Possessão

Chegava a ser diabólico o poder da condessa sobre mim. Ela o usava em todas as situações. Como, por exemplo, quando comia azeitonas e cuspia indolentemente num pratinho os caroços que, ela sabia, logo estariam em minhas mãos e em minha boca febril.

Novato em apuros

É a primeira vez que você faz isso, não é?, perguntava a condessa quando me submetia a algum novo exercício amoroso. Eu dizia que não, mas era sempre desmentido pelo rubor que imediatamente me incendiava o rosto.

O substituto

Isso é tudo que você tem hoje pra mim?, perguntou a condessa e, já escorregando com o corpo nu para fora da cama, me avisou: então vou ter que procurar um amigo. Fui picado por uma ponta de receio (teria o conde voltado da viagem?) e outra de ciúme (teria a condessa outro amante, além de mim?).Ela abriu então o criado-mudo e sorriu: ah, aqui está você, fujãozinho.

Lembrança

Viu na revista a foto de uma mulher deliciosa e lembrou-se de outra, também magnífica. Estava sozinho, mas, como se fosse um menino vigiado, apagou a luz e deu o primeiro beijo na página colorida.

Mais um pouco da condessa

A condessa me dava a impressão de procurar em mim não os habituais prazeres do sexo, mas uma daquelas satisfações físicas proporcionadas pela ginástica. Já no fim da primeira noite, enquanto eu saía da cama, ela iniciava, com seu adorável ventre, uma série de abdominais.

Queridinho

Meu passarinho, meu passarinho, começou a dizer a condessa entre beijos cada vez mais profundos e molhados, e eu já quase me sentia orgulhoso, quando ela, dizendo novamente meu passarinho, meu passarinho, fez a mão descer sobre mim até onde estava o real objeto de sua insólita ternura.

O amigo ausente

O gato morreu há uma semana, mas o sol se demora ainda na poltrona, como todas as tardes, e espera que ele surja repentinamente de algum canto da sala e se atire sobre ele com aquelas garras brincalhonas.

Decadência

Quando o secretário de Cultura da cidadezinha, depois de mostrar aos três tenores o teatro em que no dia seguinte se apresentariam, perguntou o que tinham achado, eles improvisaram um trecho de ária e olharam para o teto. "Parece que aguenta", sorriu o mais robusto deles, confirmando uma suspeita do secretário: não havia mais Pavarottis.

O rumo

Então, em 1917, a poesia descobriu que era melhor deixar de olhar para o sol e as estrelas e seguir os passos de J. Alfred Prufrock.

Questão de memória

Nos bate-papos com os jovens alunos em colégios, quando lhe perguntam o que pensa do amor, o velho poeta diz que já teve melhor opinião sobre ele - em 1992 ou 1993 - e sorri amargamente.