No velório, um primo despeitado aproximou-se do defunto e, com a fluência adquirida na juventude com um curso numa universidade londrina, comentou: the right man in the right place.
sexta-feira, 29 de abril de 2022
quarta-feira, 27 de abril de 2022
terça-feira, 26 de abril de 2022
Soneto da época dourada
Foi a época da magia.
Em festas alucinantes
E em orgias delirantes
A vida se oferecia.
O mundo todo explodia
Em cores extravagantes
E tudo, como nunca antes,
Pulsava, ardia, fervia.
Nada era tédio ou torpor,
Nada monótono, nada,
Naquela época dourada.
Tudo era fogo e fulgor.
Viver não era esta melda
No tempo de Scott e Zelda.
domingo, 24 de abril de 2022
A descoberta
Só nos seus últimos dias, contrariando uma crença que alimentara desde a juventude, o velho pareceu notar que o sol brilhava também para outros homens. Foi logo depois dessa descoberta que ele se trancou definitivamente em casa, por onde, como uma virgem ludibriada, perambulava murmurando: traidor, traidor, traidor.
sábado, 23 de abril de 2022
Folguedo (para Thales Guaracy)
Não sei por que sou desastrado assim.
Toda vez que nós dois lá no parquinho
Brincamos de bandido e de mocinho,
Mister Parkinson mata-me no fim.
quinta-feira, 21 de abril de 2022
Troca noturna
Depois de uma noite de tempestade, dona Amara foi ao quintal e lastimou-se ao encontrar, onde até a véspera havia uma rosa na roseira, uma estrela derrubada pela feroz ventania.
Rol
Chato de velório é aquele que, se a viúva se dispuser a ouvi-lo, revelará a ela em quinze minutos, com precisão matemática, os nomes das amantes do defunto e até, em dois, três ou quatro casos, seus apelidos.
Contra a raça dos ingratos
O principal argumento dos que não simpatizam com defuntos é o de que a inamovível apatia deles, por mais concorrido que seja o velório, se deve muito mais à sua má vontade e à sua ingratidão do que à sua falta de experiência.
Inteireza
Somos tu e eu
a cada instante mais nós
em essência e em demasia:
cada dia eu mais sandeu
e tu, cada vez mais sandia.
terça-feira, 19 de abril de 2022
Da surdez dos deuses
Nunca mais hei de aos deuses recorrer.
Roguei auxílio a todos, um por um,
Não me atendeu, não me acudiu nenhum.
Negaram-se, mandaram-me morrer.
segunda-feira, 18 de abril de 2022
Soneto de quanto sabe o vassalo de seu senhor
Amor, meu doce tirano,
Sob teu domínio me deixo,
Dos teus grilhões não me queixo
E do teu jugo me ufano.
Amor, meu amo, meu rei,
Deixa que em tua masmorra
Eu esteja, eu viva e eu morra
E sempre grato serei.
Eu sei bem, e tu também
Há tanto és já sabedor,
Que não preciso lembrá-lo,
Que não existe ninguém
Que saiba mais do senhor
Do que sabe seu vassalo.
domingo, 17 de abril de 2022
Hoje na revista Rubem
https://rubem.wordpress.com/2022/04/17/miudezas-para-espairecer-raul-drewnick/
sexta-feira, 15 de abril de 2022
Soneto de quanto é sagaz nosso senhor
Não há no mundo ninguém
Que tenha sequer metade
De toda a sagacidade
Que nosso amado amo tem.
A nós, para o nosso bem
E a nossa felicidade,
Sempre o melhor deseja e há de
Dar-nos o que nos convém.
O que tem para nos dar
Nosso querido senhor
Às vezes é tão doído
Que o podíamos culpar,
Mas não culpamos. O amor
É um déspota esclarecido.
quinta-feira, 14 de abril de 2022
De acervos e encalhes
Acho curiosa uma nomenclatura usada nos catálogos de artistas plásticos. Quando se trata de obras não vendidas, diz-se que pertencem ao acervo do autor. No caso de escritores, não há eufemismos: são encalhes, mesmo. Tenho em meu arquivo pelo menos duas dezenas de livros desse tipo, entre coletâneas de contos a novelas juvenis. Bem verdade é que jamais me empenhei seriamente em torná-los viáveis. A maior parte deles não saiu de casa uma vez sequer.
Poesia na hora errada
O mais severo dos meus mestres foi meu professor de química no curo clássico (que corresponderia hoje ao curso de humanas). Ele era major e mantinha a disciplina com zelo castrense. Numa prova mensal eu, desconhecendo a resposta para uma das questões, fui tentado a fazer uma gracinha e respondi em versos: Sobre este assunto nada sei,/Por isso estou desapontado./Porém meus livros folhearei/Para ficar bem-informado. Assim que entreguei a prova, fui tomado por um pavor que se estendeu até o dia, na semana seguinte, em que o professor daria as notas. Quando esse dia chegou, eu tremi no momento em que ele chamou meu nome. Fiquei esperando o castigo que na certa viria. Porém ele, com um inesperadíssimo sorriso, disse que não me tiraria ponto nenhum pela quadrinha estropiada. Mas me recomendou que, dali em diante, em suas aulas, deixasse de lado a poesia e me concentrasse no estudo da química. Este caso está contado no meu livro Ricardinho, o grande, um dos oito que publiquei na série Vaga-Lume, da Editora Ática, e que de 1994 até agora atingiram (concedam um instante de imodéstia a quem vive se apequenando) meio milhão de exemplares vendidos.
O sonho
Sonhou que um vento noturno, vindo do leste, punha um haicai em cada galho de sua ameixeira e que os vizinhos, invejosos, a derrubavam com seus machados. De manhã, ao acordar, viu que a ameixeira estava viva, mas o vento havia esparramado todas as ameixas pelo quintal.
terça-feira, 12 de abril de 2022
Soneto dos meus passeios pelo parque
Não quero hoje, nem devo, me queixar.
Passado é, já, o pior da enfermidade
E posso agora, com tranquilidade,
Talvez a minha vida retomar.
Eu, que nem conseguia mais andar,
Caminho já com certa habilidade,
Agora que, movido por piedade,
Mister Parkinson leva-me a passear.
Tão bem agora eu tenho me sentido
Que nas ruas sou já reconhecido
E no parque já sou uma atração.
Exaltam tudo quanto tento ou faço,
Meu nome gritam sempre, em cada passo,
E me aplaudem a cada tropeção.
(Este soneto, que escrevi hoje, tem um significado especial. É um sinal de que talvez mister Parkinson possa ser vencido. É também uma reafirmação do meu compromisso de viver para os sonetos e por eles. E de sofrer com eles, adoecer com eles e procurar com eles a esperança e a salvação. Agradeço a todos pelo apoio. Persisto.)
Autorretrato
Sou um daqueles patetas
Que, ouvindo uma voz chamar,
Julgaram com Deus falar
E se presumiram poetas.
A última palavra
Na manhã em que o velho escritor entrou em agonia e o padre foi chamado para a extrema-unção, houve um momento em que a família chegou a acreditar numa recuperação milagrosa. O velho, de quem não se ouvia uma palavra fazia semanas, disse apaixonadamente a última de sua vida e, como se receasse que não o tivessem entendido, repetiu-a, mais claramente ainda: Es-to-col-mo.
segunda-feira, 11 de abril de 2022
Gonçalves Dias, o conquistador
Gonçalves Dias, que divide com Castro Alves a glória de maior poeta do romantismo brasileiro, fez fama também como galanteador. Aqui vai um exemplo de como era hábil quando se tratava de conquistar uma mulher. Num baile, ele e outro rapaz, ao mesmo tempo, convidaram uma bela jovem para dançar. Ela, duplamente lisonjeada, hesitou. Gonçalves Dias, então, lhe disse: "Senhora, já que podeis dizer não e dizer sim, dizei sim, mas não a ele, dizei não, mas não a mim." Com quem vocês pensam que ela dançou?
Sonetistas
Sonetos qualquer um faz.
Petrarca os fazia bem,
E Shakespeare, mas ninguém
Como os fazia Luís Vaz.
domingo, 10 de abril de 2022
O tempo certo
Você, jovem que se inicia agora na literatura, deve ser alertado de que um dia ela acabará se tornando uma obsessão. Se demorar muito para isso acontecer, talvez seja caso de você mudar os planos e se dedicar a outra coisa qualquer, dessas que terminam em cômoda aposentadoria e velhice desfrutada à beira-mar.
sábado, 9 de abril de 2022
Soneto do passatempo que fomos para os deuses
Como se deliciavam, como riam
Em seus festins os deuses embriagados,
Brindando-nos com bravos redobrados,
No tempo em que de nós escarneciam.
Ouvindo nossos sonhos tresloucados
E os planos que nos sonhos se nutriam,
Eles se regalavam e diziam:
Como eles podem ser tão engraçados?
Quando a voz da razão enfim ouvimos
E de seguir os planos desistimos
E abandonamos todos nossos sonhos,
Conosco os deuses se decepcionaram
E jamais para as festas nos chamaram:
Como eles podem ser tão enfadonhos?
Loteria poética
Na época de ouro dos sonetos, um deles, um só, bastava para garantir a glória de um poeta. Na história da poesia, são incontáveis os casos de versejadores bisonhos que tinham tudo para permanecer anônimos, se não fossem esses momentos únicos, essa espécie de sorte grande literária, esse formidável acaso. Em qualquer antologia daquele tempo dourado há exemplos desse fenômeno.
Maneiras
Se você está disposto a dizer quem você é, um cantinho de caderno, quatro linhas bastam. Mas, se você quer que saibam quem você pensa ser, que haja no planeta árvores suficientes para servir a tanta grandiosidade.
quinta-feira, 7 de abril de 2022
Aritmética
Sem equívoco nenhum,
Era mulher de requinte.
Dizia que apenas com um,
Quando dormia com vinte.
Descoberta
Descubro, mais do que tardiamente, que nunca fui um artista; fui sempre alguém interessado no artificial e no postiço, um artesão do enfeite. Aquele que põe brincos numa estátua.
Passos
Quando dei meus primeiros passos na poesia, eu me achava movido por um ideal. Era, então, um menino. Depois dos dezoito anos, não pude mais manter a versão, e o nojo foi me comendo por dentro, como um câncer.
quarta-feira, 6 de abril de 2022
Soneto de quem escreve como quem se afoga
Escrevo como quem, no mar nadando,
Numa tarde de sol e calmaria,
De repente vê tudo se alterando
E em noite espessa se mudando o dia.
Escrevo como quem, já se afogando,
Tomado por espasmos de agonia,
Vai no instante final se lamentando
Por tudo que não fez quando podia.
Escrevo como quem, já resignado,
Levanta ao céu o olhar desalentado
E, achando ver nas trevas uma luz,
Rendendo-se definitivamente,
Implora, não com os lábios mas com a mente:
Recolhe-me, recebe-me, Jesus!
segunda-feira, 4 de abril de 2022
Hierarquia
Para o pódio nunca vou,
Não ganho chuvas de flores.
Sou só o que sou, estou
No time dos perdedores.
domingo, 3 de abril de 2022
sábado, 2 de abril de 2022
Faces
Quando de vida se trata,
A morte não é problema.
O que vivemos nos mata,
Morrer faz parte do esquema.