domingo, 19 de fevereiro de 2012
Memória da Major Quedinho
Passei trinta e dois anos no Estadão e não é de estranhar que ainda hoje, duas décadas depois de ter saído do jornal, eu sonhe que ainda estou trabalhando lá. E, curiosamente (talvez uma astúcia do cérebro para fazer sentir-me jovem), nos sonhos estou quase sempre no prédio antigo, na rua Major Quedinho, e não no atual, na Caetano Álvares. Entre tantas recordações que me vêm está a do relógio no topo e, no térreo, além da visão das impressoras, cujo trabalho era acompanhado sempre por uma centena de pessoas que se postavam na Martins Fontes, havia o letreiro luminoso que divulgava notícias internacionais transmitidas pelas agências. As pessoas ficavam de olhos fixos nas letras que podiam a qualquer momento dar conta de acontecimentos capazes de mudar dramaticamente a situação em alguma parte do mundo - terremotos, inundações, deposição de governos. Especialmente na década de 60 - eu trabalhava na seção de revisão, no quarto andar -, o jornal foi alvo quase diário de atentados ou ameaças de todo tipo. Numa noite dessa época, a suspeita de que uma carga explosiva havia sido colocada no prédio fez com que uma equipe antibomba fosse chamada para realizar uma busca. O prédio foi esvaziado e os funcionários, assim como o público, ficaram do lado de fora, tensos. A entrada do jornal foi cercada por um notável aparato policial. Do lado de dentro, tão nervosos quanto o público e os funcionários que aguardavam o desfecho de tudo, havia soldados com metralhadoras apontadas para a porta, como se temessem uma invasão de algum grupo terrorista. Eu, misturado ao público e aos funcionários, vi aproximar-se, estouvado e cheio de livros, como sempre, o revisor e poeta Oswaldo de Camargo - que foi, aliás, quem me indicou ao chefe da revisão, Nelson Lima Neto. Camargo - ou Camarguinho, como era chamado - não notou nada de estranho naquela aglomeração, me deu um oi e caminhou resoluto na direção da porta. Não percebeu que ela estava fechada e, na pressa em que ia, bateu estrepitosamente com a cabeça no vidro. Eu, que a esta altura estava a dez passos dele, tentando explicar-lhe o que estava acontecendo, vi crispar-se o rosto de um dos soldados ali dentro. Constrangido e ferido num braço pelo vidro, Camarguinho, tão esbaforidamente quanto chegara, saiu correndo, pegou um táxi e foi para um pronto-socorro. Quando, uma hora depois, já com a situação no prédio serenada, ele voltou, estava com um curativo no braço e parecia ainda se perguntar o que afinal acontecera. E logo estava, assim como os outros, caçando vírgulas e crases.
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