"Ela me olhou, quem sabe com sinceridade, e disse: 'Você deve estar sofrendo muito.' 'Não, não estou', menti, num tom que deve ter soado rude, e nele me traí. Ela me lia, eu sentia que ela me lia. Por um instante, pareceu refletir sobre o que ia dizer. 'Está sim', disse ela, 'é que você tem sofrido aos poucos, e quando a gente sofre aos poucos acaba acostumando, achando que é natural.' A frase podia não ser verdadeira, nem boa, mas tinha espírito, tinha brilho, sei lá, tinha aquilo que ela sabia imprimir em tudo, mesmo nas coisas banais. Então eu não disse mais nada porque podia ser que ela tivesse razão. Então ela deu um passo à frente e ficou muito perto de mim, tão perto que senti pela primeira vez seu hálito de tutti frutti, ainda que ela não estivesse mascando chiclete. Foi um movimento tão rápido, e ao mesmo tempo tão delicado, que não tive tempo de evitar: ela me abraçou. Eu não contava com isso, era um gesto que revelava uma falta de pudor e de continência que eu não tinha. Em seu lugar, não teria feito aquilo. Nossa mãe nunca teria feito aquilo. Em nossa casa, ninguém teria feito aquilo. Ela não apenas me abraçou, ela fez isso de uma maneira inequívoca, a sensação era de que me envolvia com todo o corpo, de um modo que os místicos devem chamar de comunhão, ou qualquer coisa assim. E eu comecei a chorar. Chorei como quem tem sido avaro. Chorei como quem tem ferido passarinhos. Chorei como quem tem enterrado cadáveres no porão. Do abraço de pêsames ficou a impressão definitiva do seu corpo..."
(Do romance Vila Vermelho, publicado pela Editora Record.)
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