quinta-feira, 17 de junho de 2010
Lírica (108) - Satélite
Se estiveres à janela e um raio de sol te roçar os lábios, eu te asseguro, ainda que a poesia me tente a dizê-lo, que não sou eu. Não sou ousado. E, se uma nuvem flutuar sobre ti, não esperes que seja eu e que tenha uma gota sequer para a tua sede. Sou pouco, sou parco, sou contido. Talvez me aches na parede ou no chão, tão discreto quanto uma sombra. Ou talvez me encontres, quando fores calçar os sapatos, embaixo de um deles - um cisco de pó que te acompanhou até a tua casa. Não tenho força, não tenho peso, não tenho voz - e, se a tivesse, ela já estaria gasta pelo prazer de decantar os teus encantos. Sou algo que podes esquecer, mas que não te esquece, algo que gravita em torno de ti e cuja amorosa obediência não convém que exaltes ou menciones, porque diriam só poder ter sido urdida na tua imaginação tal criatura, que ninguém, nem mesmo tu vês, a não ser naqueles teus raros momentos de descuido ou de generosidade.
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