"Começa-se com um indivíduo e, antes de se dar por isso, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou nada. E isto porque somos todos criaturas estranhas, mais estranhas por trás dos nossos rostos e das nossas vozes, do que desejamos que alguém saiba, ou do que nós próprios sabemos. Quando ouço um homem proclamar-se "um tipo mediano, honesto, aberto", fico com a certeza de que tem qualquer anormalidade concreta e talvez terrível, que resolveu esconder - e os seus protestos de que é mediano e honesto e aberto são a maneira de recordar a si próprio a sua conveniência.
Não há tipos nem pluralidade. Há um menino rico e esta é a sua história, não a dos seus irmãos. Toda a minha vida vivi entre os irmãos, mas ele foi o meu amigo. Além disso, se eu escrevesse sobre os irmãos, teria de começar por denunciar todas as mentiras que os pobres têm dito sobre os ricos e que os ricos têm dito de si mesmos - as quais ergueram uma estrutura tão grande que quando pegamos num livro sobre os ricos, um instinto qualquer logo nos prepara para a irrealidade. Até os repórteres da vida, inteligentes e exaltados, tornaram o país dos ricos tão irreal como o país das fadas.
Vou falar-vos acerca dos muito ricos. São diferentes de vós e de mim. Possuem e gozam muito cedo e isso influencia-os, torna-os brandos onde nós somos duros, e cínicos onde somos confiantes, num processo muito difícil de compreender, a não ser que se tenha nascido rico.
Lá no fundo dos seus corações sentem que são melhores do que nós, porque nós tivemos de descobrir sozinhos as compensações e os refúgios da vida. Mesmo quando penetram fundo no nosso mundo ou se afundam em relação a nós, continuam a pensar que são melhores do que nós. São diferentes. A única maneira como posso descrever o jovem Anson Hunter é abordá-lo como se fosse um estranho e manter teimosamente o meu ponto de vista, Se por um momento aceitar o seu, estou perdido - nada tenho para apresentar senão um filme absurdo."
(Do conto "O menino rico", do livro "A década perdida", tradução de M.F. Gonçalves de Azevedo, publicado pela Editorial Estampa.)
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
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