sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Reminiscência

Correu que a mais linda garota do bairro havia sido beijada por um garoto que era, tecnicamente, quase de outro bairro. Os detalhes foram se avolumando. Creio que havia mais criatividade neles - uma criatividade a serviço da autoflagelação - do que verdade. Cada um de nós, meninos ultrajados por aquele forasteiro, ia acrescentando alguma hipótese à cena. Às vezes perguntávamos ao presumível dom-juan se cada uma delas correspondia ao que acontecera. Ele, ladino, apenas sorria, como alguém que detivesse um conhecimento que é dado só a um, em um milhão. Tanto alvoroço por um beijo?, perguntarão vocês, como eu também hoje me pergunto. A verdade é que não pensávamos em nada além disso e, reinventando a cena, substituíamos os lábios dele pelos nossos, mas era sempre amargo o gosto. O beijo era a conquista máxima, definitiva, a transgressão suprema. Até hoje, quando penso na garota beijando o garoto forasteiro, sei que essa foi a primeira grande desilusão de minha vida. Na época, eu daria meu mais precioso bem - minha bicicleta Philips - para ter sido aquele garoto. Ela há muito se foi, e ele também imagino que sim. Quem sabe não tenham se beijado nunca, e a maior felicidade que gozaram terá sido, então, um delírio de meia dúzia de ressentidos garotos do Jardim da Saúde. A infância nos marca de forma indelével. Houve depois outros beijos que eu imaginei. Outros eram os protagonistas, mas o espírito da recordação era o mesmo: machucar-me. Machuquei-me muito, já adulto. Posso dizer que minha vida sentimental foi uma repetição do drama da infância: beijos ansiados, beijos não dados. Não existe, para mim, maturidade. A contabilidade amorosa dará sempre maior valor aos beijos que não passaram da intolerável expectativa. Ah, doce pássaro da juventude, cantas ainda na última curva do caminho!

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