"Em Madame Bovary, destaca-se, sob vários aspectos, o narrador. É ele uma confluência de vários narradores, submetidos ao já clássico 'princípio da impessoalidade' de Flaubert. Esse narrador manifesta um interesse tão particular pelo detalhe, pelo acontecimento mínimo, e com tanta descentração, que não é impertinente associar seu trabalho ao do etnógrafo, pela apreensão, o mais minuciosamente possível, de um objeto, um ritual, uma cerimônia. São bem conhecidos os calepins de Flaubert, autênticos cadernos de etnógrafo, em que o romancista buscava fixar o que via, com voluntária isenção. Em Madame Bovary, as ocorrências, que se encaminham muitas vezes para o anódino, fixam-se por uma proliferação de imagens. A densidade descritiva remete à sugestão do 'nada' flaubertiano, aquele 'nada' que é a insipidez própria da vida burguesa. Em boa medida, compreendemos o que os personagens possam estar sentindo por via de elementos perceptivos, lateralmente. O dado romanesco deriva de um olhar sensível à diferença e ao contraste; no trabalho de textualização, o narrador exercita vários olhares, através dos quais explora mais amplamente a sociedade em transformação."
(De "O abajur de Ema: narração e estetização em Madame Bovary", extraído do livro de ensaios Como fumaça erguidos, publicado pela Premius Editora.)
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