quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Soneto da paz dos últimos dias

Os últimos dias são
Aqueles em que sem pressa
Vamos cobrar a promessa
De paz e de redenção.

Já longe está o verão
E nos apraz andar nessa
Trilha onde o inverno começa
E se aquieta o coração.

Tudo é tão plácido agora,
Tão diferente de outrora,
Tão lento e confortador,

Que já mentira parecem
Os dias, que já se esquecem,
De presunção e clamor.


"Numa carruagem de comboio", de Robert Louis Stevenson

"Mais rápido do que as fadas, mais rápido do que as bruxas,
Pontes e casas, sebes e regatos;
Movendo-se como as tropas num campo de batalha,
Os cavalos e o gado cruzam os prados:
O cenário das colinas e planícies
Desaparece através da chuva;
E novamente, num abrir e fechar de olhos,
Coloridas estações apitam quando passamos.

Eis uma criança que trepa
Pelas trepadeiras;
Eis um vagabundo que contempla;
Eis o grande verde das margaridas!
Eis a carroça que vai pela estrada
Pesadamente com o homem e a carga;
Eis um moinho aqui e ali um rio:
Tudo é como um clarão e para sempre desaparece!"

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Saudade

Às vezes gostaria de fazer a ela perguntas como "O que você pensa das fotos de Vivian Maier?". É uma das coisas que perdi.

Calafrio

Quando, num livro de terror, uma exclamação encontra outra, as duas ficam com os cabelos em pé.

Stop (para Marcelo Mirisola)

Ia escrever a história de uma mariposa que me apareceu agora à noite em casa, mas desisti em nome do decoro literário quando logo na primeira frase surgiu o verbo revolutear.

SOS

Chamado, o serviço de reparos descobriu que o vazamento de água na casa tinha origem na estante, mais precisamente na área da poesia da era romântica, e era provocado pelas reticências no final dos versos, que, mal rosqueadas, deixavam escoar, cada uma, trezentos pingos ao invés de três.

Nada a ver

Prosódia é um nome horroroso que deram a um conjunto de coisas bonitas como tom, timbre, som, intensidade e ritmo.

Letra

A primeira vez que li a palavra prepúcio, pensei que se tratasse de uma autoridade eclesiástica. Se me perdoarem o lambdacismo, foi uma glande falha.

Na mão

Ele nunca beijou a mão dela, quando podia. Lastima-se por isso. Se o tivesse feito, talvez hoje ela, esteja onde estiver, sentisse uma coceguinha reminiscente e sorrisse, sussurrando: ah, aquele sujeito, que maluquinho ele era, às vezes chego a ter saudade.

De um a quatro

Ele abriu o coração para ela cedo demais. Já na primeira ou na segunda vez ela o conhecia inteiramente. Na terceira e na quarta vez ela já sentia tédio. Não houve quinta vez.

Mario Quintana

Fazer poesia era, para Mario Quintana, um ato natural. Consistia simplesmente em respirar com uma caneta na mão.

Lógica

Não foi certamente um italiano quem idealizou o criado-mudo.

Sinopse

Sou um velho que se deixou enganar por um menino. Isso aconteceu há mais de seis décadas, mas lembro que ele se chamava Raul, também, e me fez acreditar que meu destino era a literatura.

Seis versos de Friedrich Hölderlin

"Por que se calam também os antigos e sacros teatros?
Por que não se anima a dança ritual?
Por que é que um Deus não marca, como outrora, a fronte do homem,
Não imprime o seu selo, como dantes, naquele que escolheu?
Talvez ele próprio tenha vindo e assumido forma humana
E tenha consumado e encerrado, consolador, a festa celeste."

(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Soneto do perdão imerecido

Quem se mostrará clemente,
Quem nos dará o perdão,
Se ainda este sangue inocente
Nos escorre pela mão?

Quem nos será complacente,
Quem nos terá compaixão,
Se agimos tão torpemente,
Sem lógica e sem razão?

Pedimos o amor, clamamos
Por ele e, quando o tivemos,
Depois de usá-lo o matamos.

Quem irá nos compreender
Depois do que nós fizemos?
Quem irá nos absolver?

Um poema de Robert Louis Stevenson

"Conheces o rio que há perto de Grez,
Esse rio profundo e claro?
Entre os lírios das suas margens,
O velho rio ainda corre
E desce das represas geladas.

Velho como o famoso Reno,
Corre claro e rápido,
Corre sem se deter por campos e cidades,
Do Sul ao Norte, sobe e desce,
Do passado para o presente.

O meu amor nasceu junto a ele;
E agora, embora ao longe,
O meu solitário espírito ouve o murmúrio
Da água à volta dos pilares
Da ponte de Grez.

Possa o meu amor conservar em vida,
Para sempre, semelhante paz;
Que esse amor nunca envelheça
Mas, claro e puro como um manancial,
Seja abençoado pela graça."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Soneto de todas as juras

O que de pior o amor tem
É que aquelas suas juras
Nunca está certo ninguém
Se são puras ou perjuras.

Têm sempre aparência igual
E não se pode saber
Se são do tipo banal
Ou nelas se pode crer.

Podia ser diferente,
Podia ser simplesmente
Que existisse algum lugar

Em que as promessas sentidas,
Bem como aquelas fingidas,
Pudessem todas vingar.

Conforto

Jogaram o gato dentro da caçamba e, por uma dessas ironias que os escritores costumam atribuir ao destino, ele caiu esparramado numa poltrona tão velha e morta quanto ele.

Dois tancas de Takuboku Ishikawa

"Naquele braço, a marca do meu beijo,
inalcançável
pedra branca preciosa."

                   ***
"Deitado de bruços na duna
com um passado distante
a dor do meu primeiro amor."

(De Tankas, tradução de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicação da Roswitha Kempf Editores.)

domingo, 27 de dezembro de 2015

Cotação do dia

O suicida está sempre devendo alguma coisa - justamente a essencial.

Lembrança

Tão promíscua ela era que, quando ele lhe beijava o ventre, era como se estivesse lambendo mãos salgadas de marinheiros.

Trivial

Um dia te lembrarás
De alguma coisa que fiz,
E é claro que tu rirás,
Como sempre de mim ris.

Soneto da lógica que há no sofrimento

Em tudo há sempre um sentido,
Um nexo, um significado,
Às vezes subentendido,
Às vezes explicitado.

Um grito da alma, um gemido,
Um choro descontrolado,
Tudo deve ser ouvido
E nada menosprezado.

Tudo, se observarmos bem,
É sempre lógico e tem
A sua razão de ser.

Se as desgraças nos consomem,
Não nos espantemos. O homem
Nasceu para padecer.

Um poema de Robert Louis Stevenson

"Longe, no mar, há uma ilha
Onde o crepúsculo
É uma alameda de agitadas palmeiras
Desenhadas no sol.
E ao longo da costa e dos seus recifes
Ondas azuis reluzem e desfazem-se.
Aí irei, parece-me,
Quando tudo estiver terminado.

Não tenho nenhum castelo em Espanha,
Nenhuma ilha no pensamento,,
Aonde voltar e partir outra vez
Quando a vida me castigar.
Ergue-te, indolente alma! Procura longe daqui
O nosso bosque na montanha,
Ou aproxima-te da ilha encantada,
Chega à baía que desejaste."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim.)

sábado, 26 de dezembro de 2015

Pecado

Com o tempo a arte, em mim, foi se transformando cada vez mais em culpa e cada vez menos em redenção.

Alívio

Perdeu tudo que de melhor possuiu. Abençoa-se porque jamais quis ter um cachorro, ou um passarinho. Não suportaria vê-los morrer. A fé, a esperança e o amor não uivam nem piam aflitamente quando agonizam.

Continha

Talvez um beijo, talvez
Mais um (por que não?) depois.
E logo após esses dois
Mais um para somar três.

Fraque

É um escritor clássico. Nunca introduz um pardal em um texto, se puder fazer voar nele uma cotovia.

"Skerrymore: a comparação", de Robert Louis Stevenson

"Aqui está tudo cheio de sol, e quando a indolente gaivota
Roça a superfície verde da erva, a sua asa
Desfolha rosas; aqui se constrói a casa
Com argila moldada por artistas e
Pinheiros cortados tão fino
Que até os garotos os podiam quebrar. Mas aí
Em granito eterno da ilha viva
E em puro ferro, ergue-se uma torre
Que dos alicerces úmidos até à sua coroa
De cintilante vidro, se impõe, batida pelos ventos,
Imóvel, imortal, eminente."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Soneto dos nossos momentos finais

Nós temos algum tempo ainda
Enquanto o sol lentamente
Faz sua rota descendente
E enquanto o dia não finda.

São os momentos finais.
Se falar ainda queremos,
Que então agora falemos,
Porque depois nunca mais.

Depois de usar-nos, o amor,
Nosso adorado senhor,
Cansado de nos usar,

Dirá o que a todos diz:
"Boa sorte, seja feliz",
E nos mandará pastar.


Mario Quintana

Mario Quintana me faz pensar num menino de uns dez ou onze anos, possivelmente um prodigioso violinista chinês, que, no fim de um admirável concerto, depois de se curvar reverentemente uma, duas, dez vezes para agradecer os aplausos, reassume seu direito à infância e às travessuras e, sob um oh de espanto, exibe escandalosamente a língua ao público e conclui com uma aparatosa banana.

A causa

Perguntarão de que morremos.
Alguém responderá baixinho,
por pudor. Mas
um desses inconvenientes
presentes em todo lugar
dirá, quase a gritar:
É mesmo? Não acredito.
Então foi por amor
que se matou esse cretino?

Cançãozinha

Houve um tempo
em que pensavas em mim
com sentimento

Houve um tempo
em que pensavas em mim
todo o tempo

Houve um tempo
em que mesmo quando não era
era sempre primavera.

Uma frase de Balzac

"Não existe paixão que não se torne um pouco desonesta com o decorrer do tempo."

(De Ferragus, tradução de William Lagos, edição da L&PM.)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Natal (para o Gianluca, a Nicole, a Bia, a Duda e o cachorro chamado Cisquinho)

Um passarinho bobo
começou a cantar
e os outros todos
vieram acompanhar

Cantaram toda a manhã
a tarde inteira
até o fim do dia

Quando se cansaram
perguntaram ao passarinho tolo
a razão daquela cantoria

Ele disse hoje é Natal
hoje é alegria
e todos esqueceram a fadiga
e recomeçaram a cantar.

Moção

Para declarar minha alegria
não há quorum
nem nunca haverá
per omnia saecula saeculorum.

Um poema de Robert Louis Stevenson

"Os meus olhos estavam dispostos a conhecer-te, e o meu coração
A amar-te. Fui teu imediatamente
Por inteiro, para sempre, teu
Honradamente, com pura intenção,
Com excessivo amor e alegre cuidado:
Assim fui, assim sou, assim serei.
Conheci a tua generosidade, a tua verdade, conheci-te
E aos piedosos companheiros: ouvi-te falar
Com adequadas palpitações. Sobre a corrente,
Profunda, rápida e clara, os lírios flutuavam; os peixes
Corriam através das sombras. Aí, tu e eu
Líamos a Bondade nos nossos olhos e assim nos unimos."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Vida passada

Não me importaria ter sido um rei ou um lacaio, um escritor famoso ou um personagem secundário. Me bastaria ter sido, ter morrido, estar longe destes dias que parecem nascer apenas para atormentar a alma, como um urubu comendo sem pressa as vísceras de um cordeiro ainda não inteiramente morto.

Um trecho de "Ferragus", de Balzac

"Essa mulher lhe parecia realmente digna de inspirar um desses amores platônicos, que surgem como flores brotadas de ruínas sanguinolentas através da história violenta da Idade Média; digna de ser secretamente a inspiradora de todas as ações heroicas de um jovem oficial; um amor tão elevado e tão puro quanto o céu de um azul imaculado; um amor sem esperança, mas que nos prende firmemente, porque é o amor que não nos pode enganar, nem iludir; um amor cheio de gozos reprimidos, sobretudo nessa idade em que o coração é mais cheio de ardor, a imaginação mais aguçada e os olhos de um homem percebem o mundo à sua volta da forma mais clara."

(Tradução de William Lagos, publicação da L&PM.)

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Impedimento

Considero-me cada dia mais indigno de lidar com a poesia, como se fosse um velho leproso cuidando de uma roseira.

Antídoto

Reler Dostoiévski, sempre que tivermos novamente a impressão de ver ouro em nossas frases.

Hábito

Com o tempo, você se habitua às suas derrotas e passa a ter até alguma estima por elas, como se fossem um bando de gatinhos aleijados.

Obrigação

Morrer é o mínimo que um fracassado decente pode fazer.

Um poema de Robert Louis Stevenson

"Os infinitos céus resplandecentes
Brilhavam, e vi na noite
Incontáveis e angelicais estrelas
Derramando mágoa e luz.

Vi-as na sua lonjura celestial,
Mudas, brilhantes, mortas,
E as ociosas estrelas da noite
Mais amadas do que o pão.

Noite após noite na minha dor
Contemplei as estrelas sobre o mar,
Até que, no meio das trevas,
Uma estrela desceu até mim."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)


segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Jurássicos

Um soneto, fora aqueles três ou quatro de Camões, aqueles dois ou três de Shakespeare, aqueles dois do Vinícius e aquele único do Bocage, são o que  são: um monte de penduricalhos luminosos em catorze galhos, como uma árvore de Natal na sala de uma associação de caridade, com as bexigas ostentando o nome dos benfeitores.

Tática

Ele a beijará muito, ele a beijará mais, embora depois de cada beijo, como agora, ela se recuse ainda com maior intensidade a lhe conceder algo mais que isso. Ele a beijará muito, ele a beijará mais, até que o último beijo acalme sua espasmódica luxúria.

Mormaço

Toda vez que ele diz amor, as outras palavras da frase assumem uma mornidão ébria, como a das tardes em que as gaivotas cochilam voando sobre o mar.

Brisa

Quando ele lhe sopra os pelinhos ruivos, ela sempre fecha os olhos. Ele então sopra mais levemente, mais espaçadamente, como se não soprasse, para que ela só desperte do êxtase depois de ser toda consumida por ele.

Canto

O amor é um cordeiro triturado por uma sucuri. Quanto mais ela o aperta, mais convincente se torna seu canto.

Forma

Por quê e para quê são perguntas que a arte nunca deveria fazer. Ocupar-se com o como deveria ser sua única e legítima preocupação.

Odisseu

A modernidade
é a pátria da celeridade

O que para ulisses
foi uma odisseia foi um
passeio para leopold bloom.

Um poema de Robert Louis Stevenson

"Aos amigos em casa, aos solitários, aos admirados, aos perdidos,
Aos idosos cordiais, aos jovens adoráveis, a maio,
O belo, ao amado dezembro,
Aos do horizonte azul das minhas ilhas verdes,
Aos dos cumes longínquos eu,
O que não esquece, tudo isto dedico."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 20 de dezembro de 2015

Dedução

Encontrando a estante molhada na letra V, não custei a descobrir o culpado: Vinte mil léguas submarinas.

A verdade

Nem posso dizer que escrevo porque não sei fazer outra coisa. Sei por acaso escrever?

Menu

Para poupar Machado, Flaubert e Virginia Woolf, intercalei na estante, para as traças, manuais de gastronomia.

Pacto

Tenho com a beleza um compromisso que ela faz questão de não reconhecer.

Soberba

Incomoda-me a desfaçatez com que os defuntos, mesmo os de primeiro grau, costumam nos ignorar.

Cotação do dia

Ele julga ser alguém que, tendo ido visitar um parente no cemitério em 2010, jamais encontrou o portão de saída.

Epifania

A beleza há de ser como uma fulguração súbita e única, um momento que absolva toda a treva anterior e justifique toda a treva futura.

Gato (para a Nicole, a Duda e o Gianluca)

Um gato é como um arco-íris. Nada lhe deve em beleza, acomoda-se melhor num sofá ou no colo e tem a vantagem de saber miar.

"Eu, a quem Apolo visitou", de Robert Louis Stevenson

"Eu, a quem Apolo visitou,
Ou fingiu visitar, agora, ao acabar o meu dia,
Anseio o repouso; não conhecer
O cansaço das mudanças, não ver
As incomensuráveis areias dos séculos
Beberem a embranquiçada tinta, nem ouvir o alto som
Da tumultuosa música das gerações."

(De Poemas, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Revista Rubem

Hoje, falo de certos fatos cotidianos, como morrer (www.rubem.wordpress.com).

Conduta

A pior indignidade que podemos cometer é a de querermos domar os desvarios do coração, estabelecer um ritmo civilizado para eles, tentar pacificá-los. Eles devem sacudir as frases, cortá-las, sangrá-las impiedosamente, encharcá-las de baba e desespero.

Há no amor romântico certos arrebatamentos que, como febres da alma, nos atormentam até a loucura e aos quais, depois que nos consumiram até o último poro, nós, covardemente, para parecermos maduros, chamamos de tolices, como os outros os chamam.

sábado, 19 de dezembro de 2015

Três trechos de Malcolm Lowry

"E é assim que às vezes penso em mim mesmo, como num grande explorador que descobriu uma terra extraordinária da qual nunca mais ele consegue voltar para transmitir seu conhecimento ao mundo: e o nome dassa terra é inferno."

                                                                   ***

Acho que conheço bastante o sofrimento físico. Mas o pior de tudo é isso, sentir a própria alma morrendo. Talvez porque hoje à noite minha alma realmente morreu é que sinto neste momento alguma coisa parecida com a paz."

                                                                   ***

"Tenho deliberadamente lutado contra o meu amor por você. Não ousei sucumbir a ele. Agarrei-me a cada galho ou raiz que me servissem de apoio para atravessar sozinho esse abismo em minha vida, mas não posso mais continuar me enganando. Para sobreviver, preciso de sua ajuda. Senão, mais cedo ou mais tarde vou cair. Ah, se ao menos você tivesse me deixado na memoria uma razão qualquer para odiá-la, porque assim afinal um pensamento doce a seu respeito nunca me atingiria nesse lugar horrível!"

(De À sombra do vulcão, tradução de Leonardo Fróes, edição da L&PM.)

Priscylliana

Lila, Camila,
Fátima, Conceição,
enigmas do meu coração.

Lucila, Ludmila,
se vos chamásseis Priscylla
seríeis não uma rima,
seríeis uma solução.

Abuso

Já chamaram Fernando Pessoa de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Mas, francamente, chamá-lo de ortônimo...

Cidade maravilhosa

Enquanto eu decidia
se sou pacifista
ou belicista
uma bala perdida
foi encontrada
numa unidade pacificadora
simetricamente alojada
na testa de uma
renomada pesquisadora.

Predestinação

Assim como, quando ouvimos um passarinho, sabemos que foi para cantar que ele nasceu, basta ouvirmos um verso, um só, de um poeta como Mario Quintana para sabermos que a ele não haveremos de pedir nada além da poesia.

Coluna um

Quem escolheria ser Deus, se pudesse ser Shakespeare?

Caminho

Fora da poesia, só existem salvações prosaicas.

Manoel, Mario, Wislawa

Manoel de Barros, Mario Quintana e Wislawa Szymborska são três desses poetas que, incluídos na categoria dos simples, dão a impressão de se limitarem a recolher a poesia. Não se jactam dela, não a reivindicam, e quase se desculpam por havê-la recolhido.

Omar Khayyam

"Lua sempre a brilhar, lua do meu prazer,
No céu raiou de novo, oh lua, o teu clarão!
Quantas vezes depois hás de procurar ver
Khayyam neste jardim, porém em vão! em vão!"

(De Rubaiyat, tradução de Jamil Almansur Haddad, edição da Biblioteca Universal Popular S.A.)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O ponto

O homem admitiu que a única coisa que lhe faltou na vida foi o amor. E - não sei se por um impulso de retórica ou de maldade - eu lhe disse que então lhe faltou tudo.

O que vale

Enquanto nos atormentamos para descobrir os motivos pelos quais escrevemos, deixamos passar despercebido o pássaro que bica nossa janela, pedindo abrigo contra o frio e as pedras.

Sinal

Os que morrerão pelo amor são facilmente reconhecíveis pelo seu sorriso resignado, no qual brilha sempre uma inexplicável alegria.

Questão de valor

O amor nos leva a passear pelo parque. Generoso, deixa que procuremos as ervas que tanto bem fazem ao nosso estômago. Permite que reguemos as outras e corramos em vão atrás dos passarinhos. Depois dessa meia hora diária, conduz-nos de volta para casa. Sabemos que, a partir do momento em que entramos, será inútil tentarmos recobrar sua atenção. O amor sabe quanto vale. E sabe quanto valemos nós: meia hora diária.

Um quarteto de Friedrich Hölderlin

"Os meus pêssegos amadurecem, surpreendem-me as flores,
O arbusto carregado de rosas é quase tão magnífico como as árvores.
A minha cerejeira entretanto encheu-se de frutos maduros;
E os próprios ramos põem-se ao alcance da mão para a colheita."

(Do livro Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Mario Quintana

Em Mario Quintana, mesmo o que não era poesia disfarçava muito bem.

Única

Minha bela, nunca te banhes duas vezes no mesmo rio, para que a nenhum deles ocorra a tentação de se presumir mar.

Honra

No peito
de onde aos borbotões
o sangue se esvaiu
ele hoje sente
pulsando triunfalmente
como condecorações
os ferimentos
que em mais do que pretérito tempo
o amor lhe infligiu.

Um trecho de Arthur Schopenhauer

"Todo medíocre procura mascarar o estilo que lhe é próprio e natural. Isso o obriga, antes de tudo, a renunciar a toda ingenuidade, o que faz com que esta continue a ser o privilégio dos espíritos superiores, dotados de sentimento por si mesmos e que, portanto, agem com segurança."

(Do livro Sobre o ofício de escrever, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, edição da Martins Fontes.)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Defesa

Termos buscado sempre a beleza é uma alegação vaga, mas como nos sentimos bem ao apresentá-la. Chegamos a acreditar nela e, se não parecesse estranho, nos aplaudiríamos com entusiasmo e agradeceríamos com um gesto reverente.

Pompa

A velhice veio. Não podendo trazer a sabedoria, trouxe a presunção, que se manifesta sempre depois de um pigarro cheio de solenidade, como se fosse a passagem mais grave de uma sinfonia.

No pátio

Um dia ainda ganho o nobel
ele diz enquanto napoleão
evocando as batalhas vencidas
e não recordando
se foram quarenta e duas
ou setenta e três
decide fechar a conta
em cento e noventa e três.

Um trecho de Malcolm Lowri

"Olhou bem para as nuvens: escuros e velozes cavalos que se avolumavam no céu. Uma negra tempestade que rebentava fora da estação! Assim também era o amor, pensou; o amor que vinha tarde demais. Só que a ele não sucedia a bonança, como quando a fragrância do crepúsculo ou a tardia luz do sol e a umidade retornavam à terra surpreendida. M. Laruelle apressou ainda mais seus passos. Mesmo que um tal amor cegasse, emudecesse, enlouquecesse, matasse uma pessoa - seu destino não seria alterado pelo seu símile. Tonnerre de dieu... Dizer como era o amor que vinha tarde demais não saciava a sede."

(De À sombra do vulcão, tradução de Leonardo Fróes, edição da L&PM.)

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Happy end

Ir entrando no mar
ir avançando
até o ponto
em que voltar
seja uma palavra
que nem as ondas conheçam
nem nós queiramos pronunciar.

15 de dezembro

Gostaria que hoje fosse 15 de dezembro de, vejamos, 2030. Pensando melhor, 15 de dezembro de 2035. A rude raça polonesa, tão ineficaz em tantas coisas, é conhecida por sua incômoda longevidade.

Cena

Talvez porque fosse verde, sobre o tapete pendurado no varal foi que pousou a borboleta, enquanto os girassóis, no canteiro, suspiravam sua decepção amarela.

Gigolô

Se você a lisonjeia
para pagar só meia
numa crestomatia
ou pelo privilégio
de figurar num florilégio
ou numa antologia
você não merece respirar
o ar que respira a poesia.

Uma estrofe de W.B. Yeats

"Oh, sábios que estais no sagrado fogo de Deus
Qual dourado mosaico sobre um muro,
Vinde desse fogo sagrado, roda que gira,
E sede os mestres do meu canto, da minha alma.
Devorai este meu coração; doente de desejo
E atado a um animal agonizante
Ele não sabe o que é; juntai-me
Ao artifício da eternidade."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Soneto do sobrevivente do amor

Morreu hoje outro de nós.
Era de um grupo pioneiro,
O segundo, ou o primeiro,
O meu grupo veio após.

Nós somos poucos, agora,
E nossa crença no amor,
Nosso supremo senhor,
Arrefece de hora em hora.

Nós éramos jovens quando
Chegamos a este porão
Onde hoje estamos mofando.

Um de cada dois morreu
E até agora o amor não
Nos deu o que prometeu.

Soneto da terna vassalagem

O amor também me encantou
E também eu quis cantá-lo.
Ele meu canto aceitou
E eu me tornei seu vassalo.

Como adorá-lo me honrou!
Como me fez bem louvá-lo!
Minha alma não se fartou
De amá-lo, de celebrá-lo.

Mas ele um dia, enfadado,
Livrou-me do amável jugo,
Dizendo-me adeus, é o fim.

Partido, despedaçado,
Me lembro ainda do verdugo,
Mas se lembra ele de mim?

Uma estrofe de S.T. Coleridge

"E eu fiz algo infernal, que traz
Desgraça e que horroriza;
Todos gritavam 'mataste a ave
Que fez bulir a brisa.
Ah, miserável! Matar a ave
Que fez bulir a brisa!'"

(De A balada do velho marinheiro, tradução de Alípio Correia de Franca Neto, publicação da Ateliê Editorial.)

domingo, 13 de dezembro de 2015

Soneto da beleza inefável

Beleza pura, sem par,
Beleza etérea, intangível,
Esplêndida, imarcescível,
Como vos vou celebrar?

Pode alguém, ao escutar
Esta voz quase inaudível,
Imaginar ser possível
Ela vos representar?

Beleza única, essencial,
Sem semelhante ou igual
No vosso modo de ser,

Jamais falar de vós, creio,
Há de ser o melhor meio
Para vos enaltecer.


A corda

Alguns momentos antes, ainda receava falhar. Suando frio, lembrou-se dos fracassos que sempre tivera com as gravatas. Não podia, como antigamente, pedir auxílio.

Da poesia

Gosto de relacionar a poesia antes ao acaso e à sorte que à persistência. A beleza é um dom, não uma conquista.

Mario Quintana

Quando eu era adolescente, depois de ler Drummond e Vinícius, sonhei ser um dia semelhante a eles. Pensava então que ninguém pudesse igualá-los. Não conhecia ainda Mario Quintana.

"No parque", de Georg Trakl

"Caminhando outra vez no velho parque,
Oh silêncio de flores amarelas e vermelhas!
Vocês também choram, bons deuses,
E o brilho outonal do olmeiro.
No lago azulado ergue-se imóvel
O junco, e à noite emudece o melro.
Oh! Então inclina tu também a fronte
Ante o mármore em ruínas dos ancestrais."

( Do livro De profundis, tradução de Claudia Cavalcanti, edição da Iluminuras.)

sábado, 12 de dezembro de 2015

Artistas

Vivemos de aplausos.
Não venha quem
não vier para nos louvar.

Tocamos tambor
fazemos nossos filhos dançar.

Eles são estouvados
desajeitados
estropiados como nós.

Mas nós dançamos com eles
e juntamos à deles
nossa lastimável voz.

Passamos o chapéu depois
é verdade
mas é só formalidade.

Fiquem todos à vontade.
Nos damos por bem pagos
com um aplauso ou dois.

Esperança

Talvez a morte não seja tão feia quanto dizem, assim como a vida não é tão bela quanto disseram.

Estranhezas matinais

Ao acordar de manhã, a viúva Seixas estranhou ver o segundo travesseiro em pé. Apalpando-o, achou-o mais quente que o dela. Olhou para o criado-mudo. Por um momento esperou ver ali o cinzeiro do marido, como se fosse possível. Fazia um mês que ele estava morto. Ela se levantou e, indo para o banho, irritou-se porque o chuveiro estava pingando. "Norberto, quando você vai aprender a fechar isso?", ela perguntou, mas era tão absurda a pergunta que ela riu. Depois do banho ela, descendo para a sala, olhou para o sofá como havia um mês não fazia. Na cozinha, ficou também olhando para tudo, como se ali houvesse alguma coisa a mais, ou a menos. Fez o café, tomou um gole, balançou a cabeça: "Você ia reclamar, Norberto. Coloquei pó demais, de novo." Esperou um pouco pela resposta, mas Norberto sempre havia sido generoso com suas pequenas falhas.

Um trecho de Arthur Schopenhauer

"Quem escreve de maneira afetada assemelha-se a quem se enche de enfeites para não ser confundido e misturado com a plebe; um perigo que o gentleman não corre, mesmo nos piores trajes."

(Do livro Sobre o ofício do escritor, tradução de Luiz Sérgio Repa e Eduardo Brandão, edição da Martins Fontes.)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Da delicadeza do amor

O amor há de ser sempre delicado. Que nós, até no dia derradeiro, possamos exibir no rosto morto algo que se assemelhe ao menos um pouco a um sorriso. Que as marcas de sofrimento, se houver, fiquem por conta da alma e de sua discrição.

No jardim

Ela disse o nome do amado no jardim e por um instante as sílabas, flutuando, misturaram-se às pétalas, amorosas palavras da confissão que o vento ia extraindo das tímidas margaridas.

Mario Quintana

Diante de tudo que observava, Mario Quintana tinha sempre uma atitude: se aquilo não era ainda, ele encontrava um jeito de transformá-lo em poesia.

Plantio

Enterraram-nos
a nós e aos
nossos instintos daninhos.

Que esperam que nasça?
Flores ou só espinhos?

Cotação do dia

Talvez os dedos da Morte não sejam tão frios quanto os de tantas amadas.

Quatro versos de Friedrich Hölderlin

"Mas para que este tempo em declínio não nos escape,
Como aos que se julgam sábios, já vou ao teu encontro,
Até aos limites dos campos, onde as águas azuis
Circundam a minha amada terra natal e a ilha do rio."

(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Reflexão do dia

Adão e Eva, hoje, viveriam num paraíso fiscal.

Mario Quintana

Jamais ocorreu a Mario Quintana lastimar-se por ter, na principal resolução de sua vida, tomado a decisão prontamente, sem querer sequer saber se havia outra opção além da poesia.

Diálogo

Conversar com flores e estrelas não é proeza para um poeta maduro. É algo que ele, se não fez quando menino, talvez possa pairar como uma dúvida sobre a autenticidade de sua vocação.

Via láctea

Fechar os olhos para o céu noturno e soprar para o alto teu nome. Depois, ir reabrindo-os aos poucos e ter o amoroso discernimento de ver, entre todas as estrelas, aquela na qual, por seu brilho único, sentirei a palpitação leitosa de tuas vogais e de tuas consoantes.

Seis versos de W.B. Yeats

"E declaro a minha fé:
Rio-me do pensamento de Plotino
E grito na cara de Platão,
A morte e a vida não existiam
Até o homem tudo inventar,
Tudo conceber."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Cotação do dia

Se o amor merece ir à puta que o pariu, não usemos eufemismos.

Guia-SP

Enquanto na vila mariana
domingos de morais dorme
no brás rangel pestana.

Haicai (para o Xico Sá)

A velhice é feia.
Louvor só faço se for
À velhice alheia.

O amor em seu tempo final

Chegou o tempo.
Despido de todo o som
e de toda a fúria
o amor é como
um velhote
caminhando por um parque.

Dói-lhe tudo no corpo:
as feridas
as chagas
as cicatrizes
e ele a cada passo
ergue os braços
e profere maldições.

Mas visto de longe
ele dá a impressão
de ser um cidadão
de cabelos brancos
dizendo palavras amáveis
aos passarinhos do parque.

Um trecho de Dietrich Schwanitz

"É evidente que não existe um modelo real para Laura, contrariamente à Beatriz de Dante; por outro lado, ela é representada de forma mais real do que as figuras angelicais dos trovadores ou de Dante. Os poemas dirigidos a Laura estabelecem o conflito que se apresentará em poetas líricos posteriores: o amado quer ser ouvido, mas sabe que, se o for, sua poesia sofrerá."

(Do livro Cultura geral, tradução de Beatriz Silke Rose, Eurides Avance de Souza e Inês Antonia Lobhauer, publicação da Martins Fontes.)

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Cotação do dia

Espero que leias diariamente o que escrevo sobre ti. Se  sorrires daquele jeito, como costumavas fazer, absolverei teu desdém.

Confissão

"Por que você sofre assim? Não quer me contar?", ela perguntou, segurando-me as mãos. Se ela as pusesse sobre o meu coração, ele confessaria tudo, a cada um dos seus dedos.

Síndrome (para Rosa Matos)

Nunca sei, ao despertar,
Se estou aqui ou ali,
Se estou vivo ou sou zumbi.
Se alguém souber, é o Cotard.

Amor (para Liberato Vieira da Cunha)

Sentiu uma dor tão grande, tão aguda, que era como se um violino estivesse agonizando em seu peito.

Contrassenso

Que eu não esteja com a cabeça muito boa é algo que talvez se entenda facilmente em alguém que se presume poeta. Mas que também o tronco e os membros se revelem fracos e quebradiços é já castigo demais.

Metamorfose

Por uma semana os bem-te-vis da rua triste de periferia cantaram seu canto mais especial. Como resultado desse proselitismo, hoje os homens, os meninos e até as mulheres entremeiam palavras com assobios, quando param para conversar.

Ela

Tão mais formosa ela está hoje que a brisa e a quaresmeira do parque, em breve conluio, resolvem atirar-lhe uma flor, como se ela fosse uma rainha e a bicicleta fosse sua carruagem.

Soneto da subalternidade (para Jorge Cláudio Ribeiro e Silvia Galant François)

Estamos sempre por perto.
Nós somos aquele que
Nunca (todo mundo vê)
Caminha com o passo certo.

Quem quer nossa companhia?
Ninguém deseja nos ver.
Nada sabemos fazer,
Qual é nossa serventia?

Nós sempre por perto estamos,
Mas sem atuar, sem agir.
Nós somente acompanhamos

E só sabemos errar:
Chorar se nos mandam rir,
Rir se nos mandam chorar.

Um poema de Ren Yu (século XIII)

"As montanhas e os rios. Tanto a beleza
Preenche assim os anos
E tropas vêm do Este
E as de Oeste, borrachas.
Pescadores, os da floresta. Falam: - O que desce e sobe.
Sou um homem lhano dos Plainos do Centro e para
O Palácio do Unicórnio certamente não vai meu retrato."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Soneto da mudez da morte

E de repente você,
Sem nem saber a razão,
Vale tanto quanto se
Fosse um morto no caixão.

Você se move, ergue a mão,
Pergunta a todos: por quê?
Mas alguém responde? Não.
Todos emudecem, e

Devagar vão se afastando,
E não se importam nem quando
Você, sozinho na sala,

Se desespera, se agita,
E chama todos, e grita.
Um homem morto não fala.

Norma

Devemos evitar escrever sempre o trivial. Mas, principalmente, devemos eximir-nos de perseguir em cada frase o extraordinário.

Cotação do dia

Estar morto é uma percepção que até os vivos menos sensíveis costumam ter.

Ardil

Mesmo sem caneta, sair sempre com o bloquinho. Talvez sobre ele caia uma lágrima de bem-te-vi.

"Herança", de Mariana Ianelli

"Não escolhemos voltar, ter as mãos
E os pés desatados, feito Lázaro,
O milagre do riso no fundo de um espelho
Onde se foram misturar pavor e náusea.

Outra vez e a cada passo às cegas,
Os filodendros até a porta de entrada,
Voltamos e a nossa maior fortuna
É um rescaldo de violentas tempestades."

(Do livro O amor e depois, publicação da Iluminuras.)

domingo, 6 de dezembro de 2015

A voz do dono

Amo essa mulher. Como não amaria? Ela me deu três filhas, todas maravilhosas como a mãe. Que sorte vão ter os maridos delas.

Guia-SP

A chuva peca
se não cai
na frei caneca.

Teclas

Tenho falado tanto de minha pequenez, de minha inaptidão e de minha ojeriza à vida que alguém pode pensar que me orgulho delas.

Situação

Sou um defunto, já, e ainda não aprendi a fazer versos.

Soneto do que não deve nos inspirar

Nada que não seja dor,
Nada que não sofrimento,
Que não aflição, tormento,
Que não derrota e rancor.

Nada que não nos maltrate,
Nada que não nos trespasse,
Não nos mutile, espedace,
Não nos aleije nem mate.

Nada que em nós poderia
Ser visto como ilusão
Ou então como a alegria

Estúpida de viver,
Jamais qualquer atenção
De nós há de merecer.

Se

Se tens aí em tua rua - quem sabe em teu quintal - uma dessas árvores grandes e saudáveis, pergunta-lhe se aceitaria estender um galho amável para o meu pescoço.

Cotação do dia

Velho demais até para lançar maldições. As palavras se embaralham na saliva e o rancor fica na alma.

Guia-SP

Com um descontinho
a 25 de março rapidinho
sai por 21.

www.rubem.wordpress.com

Hoje, na revista Rubem, falo daquilo para que fui feito: coisas, coisinhas, nada além.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Me pegou sem aviso o desejo de disparar-lhe uma carta romântica e suspirosa e desesperançada, toda traçada em excelente caligrafia, numa folha pautada, como quem escreve para uma perdida deusa, repentinamente evadida do passado mais que perfeito."

(Da crônica "Folhas pautadas", extraída do livro O silêncio do mundo, publicação da AGE Editora.)

sábado, 5 de dezembro de 2015

Dindim dim dim dim dom

João Gilberto é aquele cantor que, segundo alguns críticos, perdeu a voz logo no início da carreira.

Per aspera ad astram

Minha próxima tentativa de tornar-me famoso será compor um rap para aniversariantes: o rapbirthdayforyou.

Cotação do dia (2)

Só percebeu que estava morto quando começou a sentir cheiro de defunto.

Guia-SP

Passar todos os sinais
o verde o amarelo e o vermelho
na prudente de morais.

Cotação do dia

Se Deus me livrar do rancor, escreverei sobre o quê?

Guia-SP

Entrar com o ônibus
do corinthians
na rua das palmeiras.

Guia-SP

Na greve dos transportes
sair da sé
e ir até o tatuapé.

Guia-SP

Contradições da vida:
na barata ribeiro
uma fábrica de inseticida.

Guia-SP

Processos de separação
deveriam correr todos
na rua da abolição.

Guia-SP

Em que hora
o sol deve se pôr
na rua aurora?

Guia-SP

Na josé do patrocínio
deveriam morar apenas
ricaços e mecenas.

Tiragem

Certas mulheres são como alguns livros: não deveriam passar da primeira impressão.

Assim e assim

Por capricho da zombeteira raça dos antônimos, a mulher de nossa vida pode ser a mulher de nossa morte.

Dom Juan

Tinha a agenda amorosa sempre lotada, mas nunca se recusava a fazer um encaixe.

Guia-SP

Não há pior contrassenso
do que morrer
na asdrúbal do nascimento.

Guia-SP

Ir de óculos não precisa
quem passa
pela boa vista

Guia-SP

Na ascendino reis
qualquer mediocridade
assume um ar de majestade.

Um comentário de Dietrich Schwanitz

"O autor da epopeia grega foi Homero. O autor da Bíblia foi Deus. Ambos são conhecidos como escritores mitológicos: Homero não podia ver; Deus não podia ser visto - era proibido fazer um retrato dele."

(Do livro Cultura geral - Tudo o que se deve saber, tradução de Beatriz Silke Rose, Eurides Avance de Souza e Inês Antonia Lohbauer, edição da WMF Martins Fontes.)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

No muro

Quem tem a direita
e para alguma eventualidade
também a canhota
só passa necessidade
se for idiota.

Soneto de quem sofreu as misérias do amor

Ele mesmo é quem me diz:
Foi o rei das marafonas.
Teve uma infância infeliz,
Sem primas, aias ou donas.

Cada um escolhe seu deus.
Uns se submetem a Pã,
Outros se curvam a Zeus.
Menino, ele quis Onã.

Depois, por sua fealdade,
Desfrutou amor somente
Por dinheiro ou caridade.

Isso é o que ele conta a mim,
Pausada, tranquilamente,
Desde o início até o fim.

Guia-SP

Uma iniquidade
prender alguém
na praça da liberdade.

Guia-SP

A quem importa
se na rua direita caminha
um homem de perna torta?

Guia-SP

Ela gira a bolsinha
vazia de ouro
na rua do viradouro.

Mago

O amor é ladino.
Faz qualquer sanfona
Soar como violino.

Guia-SP

Encontrou um amor na rua da glória
e o perdeu
na ladeira da memória.

Soneto do júbilo que o amor nos traz (p/ Priscylla Mariuszka Moskevitch)

A um homem que ao amor se submeteu
E vê no inferno as bênçãos do paraíso,
Não perguntem jamais por seu juízo
Pois já há muito tempo ele o perdeu.

Sabe muito bem disso quem, como eu,
Desprezando qualquer cautela e aviso,
Logo ao primeiro olhar, vago, indeciso,
O amor como senhor reconheceu.

Todos me dizem que ele é meu algoz,
Mas como pode ser, se sua voz
Acende em mim a chama da ternura,

Se são doces as suas chibatadas
E se estas minhas costas flageladas
Regozijam-se com sua tortura?

Resumo

O que aconteceu foi simples: não soubemos lidar com o amor. Disseram-nos que ele não era venenoso nem mordia.

Um pensamento de Cioran

"Somos todos impostores que nos suportamos uns aos outros. Quem não aceitasse mentir sentiria a terra fugir sob seus pés: estamos biologicamente obrigados ao falso."

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Pris

Nada como o amor para transformar um bom homem num péssimo poeta.

Cotação do dia

Houve um tempo - curtíssimo - no qual, para saber o que era amor, eu não precisava consultar a memória nem o dicionário.

Bésame mucho

Dançavam. Descalça, ela subiu nos sapatos dele e, bebida por beijos que o bolero ia tornando a cada instante mais cálidos, deixou-se conduzir para o quarto com um vagar que ao mesmo tempo adiava e antecipava o mútuo prazer.

Projeto

Gostaria de ser um cavalo, jovem o bastante para galopar alegremente, relinchar poeticamente e ir deixando no caminho preciosas pepitas verdes.

Espelho

Não sei de nada. Sei de mim. Certamente não tudo, mas o suficiente para ter, de mim, a pior das opiniões.

Mario Quintana

Diante de um sabiá, Mario Quintana não cantava, para não constrangê-lo.

Frida na oferta

O livro de J.M.G. Le Clézio sobre Frida Kahlo é enfadonho como um texto da Wikipedia e oportunista como um manualzinho de autoajuda. Deprimente, para um Nobel.

Guia-SP

Barbeiro arrojado
tem uma barbearia
na nestor pestana
e outra na heitor penteado.

Opção

Morrer é uma dessas atitudes que só tomamos se quisermos.

Reconstrução

Um homem há de saber
se recriar
se reconstruir
se erguer
sobre as cinzas
da própria vida
para estar
se não altaneiro
ao menos inteiro
tanto quanto
se pode ser
tanto quanto
se pode ficar
na sua hora de morrer.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Mas o que quero dos livros é algo diverso e único. É essa essência fugidia e rara a que chamam beleza."

(Da crônica "O livro roubado", extraída do livro O silêncio do mundo, publicado pela AGE Editora.)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Guia-SP

Que faz Nothmann
aquele alemão
rondando a são joão?

Guia-SP

Um copo e o bêbado
perde o paradeiro
na brigantônio luisandeiro.

Guia-SP

A chuva começa aqui
no paraná
prossegue no pi
e só acaba ali
na barão de
paranapiacaba.

Maneiras

A um passarinho novo, se queres fazê-lo cantar, basta que lhe dês alpiste. A um pássaro velho, melhor será se lhe disseres palavras amáveis.

A flor

Porque a mereces, te mandarei todas as manhãs esta flor espinhenta e rancorosa. Tu ajudaste a cultivá-la, com teu desdém cerimonioso e sempre presente. Não a rejeites agora.

Ao que tudo indica

A partir de hoje serei um homem morto, para o que há de mais importante na vida. A única coisa que poderia me salvar não me salvará.

Tresvariar

Às vezes o amor precisa se descabelar e gritar do alto da torre, como uma monja louca, para se fazer entender.

Soneto do tempo da bem-aventurança

Hoje podes viver serenamente.
O amor se foi e, quando o amor se vai,
Tudo o que nós pensamos ser se esvai
E murcha e morre inapelavelmente.

O que foi, foi outrora, antigamente,
Num tempo que a memória agora trai,
Num ontem em que havia flores, ai!,
Que jamais conheceram o presente.

Daquilo nada mais te diz respeito,
Outro hoje é o coração que tens no peito,
E aquelas horas não são mais esta hora.

Estás vazio enfim, nada te prende,
Em ti nada mais pede nem pretende.
Tu já podes morrer em paz agora.

Sursum corda

Levantem os corações.
Que eles nas estrelas toquem
E que mudanças provoquem
No roteiro dos aviões.

São Paulo

Costumeiramente
depois da tempestade
vem a enchente.

Pris

Foi bonito, talvez.

Pris

Som e fúria. Significado?

Terceirização

Dizer que o inferno são os outros é a mais perfeita modalidade de terceirização que conheço. Contam que foi Sartre quem a criou. Acredito mais num advogado.

Palavras ao vento

Faço este blog para quem?
Há seis anos já, a fio,
Critico, poeto, elogio,
Não me responde ninguém.

Visão

Para um homem movido pela insanidade amorosa, parece que os moinhos de vento são gigantes que esparramam flores pelo ar.

De J.M.G. Le Clézio sobre Frida Kahlo

"É em grande parte a Frida que Diego deve o amor carnal que sente pelo mundo que o cerca. Alguma coisa da dor intensa de sua mulher penetrou nele, transformou-o, uniu-o àquela experiência sobre-humana . O 'monstruoso bebê' de que falava Élie Faure aos amigos parisienses tornou-se o verdadeiro filho de Frida, que, seguidamente, ela põe no mundo e que prolonga sua própria existência."

(De Diego e Frida, tradução de Vera Lúcia dos Reis, publicação da Editora Record.)

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Boa noite

Dizer boa noite com toda a honestidade que, se não se revelou hoje, jamais se revelará.

Ao que tudo indica

A partir de amanhã serei um homem morto, para o que há de mais importante na vida.

O jeito

Às vezes o amor precisa se descabelar e gritar do alto da torre, como uma monja louca, para se fazer entender.

Obviedades

Por que obviedades como o amor são tão difíceis de entender?

Bloquear

Bloquear é a versão moderna da cusparada no rosto.

Amanhã

Amanhã será um desses dias em que melhor seria estar morto. Outrora, 2 de dezembro foi importante para mim. Só para mim.

Alternativa

Se ela ao menos tivesse me viciado no seu fumo, já que não consegui viciá-la no meu amor.

Pergunta (2)

O que diremos a quem nos matou? Que foi uma bênção termos tido tão gentil carrasco? E quem acreditará na voz de um defunto?

Pergunta

Quem mente para os filhos, por que irá dizer a verdade aos outros, a não ser que sejam aqueles indispensáveis amiguinhos de cama?

Cotação de amanhã

Com que cara aparecerei amanhã aqui? Quantos ainda me acreditarão honesto? E quantos rirão de meu rosto velho, que ainda não aprendeu a ter compostura?

Pris

Se conseguíssemos puxar o coração pela garganta e colocá-lo em cima da mesa, ou da cama, diriam ou ai que nojo ou perguntariam: todo teu amor é só esse?

Pris

Quem há de se incomodar com o amor e suas sequelas, se tudo fica sempre bem melhor no horário das novelas?

Pris

Vai chegando a meia-noite e me sinto como alguém que, participando de um reality show, exibiu, para ser o vencedor, as chagas do amor no peito. Em minhas mãos tenho ainda a deslealdade e a mentira do mercurocromo.

Pris

Imagino que não terei nada mais a dizer amanhã. Seria injusto para a minha alma, depois que a escancarei hoje como o bolso de um homem acusado de furto, numa praça.

Pris

E um dia se descobre que a poesia era só uma visão juvenil sobre algo que se pensou ser amor, e a morte já seria não um alívio, mas uma decisão tardia e sem sentido, como um quarto ato.

Pris

Lavei a alma, e ela me parece tão triste agora, assim vazia.

Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch gostaria de ter tudo que de maravilhoso sempre apontei nela, desde que fosse outro quem o dissesse.

Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch não estimularia ninguém a saltar de um viaduto. Mas sei que nunca tentaria me dissuadir.

Pris

Não vou negar: Priscylla Mariuszka Moskevitch às vezes tinha lances de adorável titia. Certa ocasião ela me convidou a acompanhá-la em uma viagem a Mumbai. Depois que consultei o despachante e convenci minha espantada família, ela, levada certamente por seus bons princípios, retirou o convite.

Pris

A causa de minha desgraça foi Priscylla Mariuszka Moskevitch querer ser uma pessoa legal e mentir, se preciso, para manter essa fama. Por que ela não me disse logo que eu era velho demais, tolo demais, pouco homem demais, para ela?

Pris

O problema de Priscylla Mariuszka Moskevitch foi o de achar encantadora, desde cedo, a ideia de não ser aristocrata. Se não houvesse se rebelado contra a própria situação, não conheceria tantos tipos insignificantes que, iguais a mim, conheceu. Teria dito, logo ao primeiro sanfoneiro ou abigeatário: "Ora, vai procurar tua turma!"

Pris

Nas vezes em que acorda, de madrugada, Priscylla Mariuszka Moskevitch não vai fazer pipi, como as donas de casa. Procura retomar o sonho no ponto em que dava, num copo cheio, sal a um homem sedento chamado por acaso Raul.

Sarjeta

Quando começamos a lançar cusparadas às estrelas que por tanto tempo cultivamos com o mais precioso leite de nossa alma, não estamos entrando no caminho da abjeção. Já o atingimos.

Pris

Depois de tantas insanas confissões, amanhã estarei mais doente que agora. E me sentirei ridículo. Mas que hoje a alma seja revelada, como um câncer no reto.

Pris

Talvez num dia bem distante eu consiga pronunciar o nome de Priscylla Mariuszka Moskevitch sem que minha boca espume como a de um cachorro louco.

Pris

Há um momento em que se deve dizer: maldita, perniciosa, desgraçada - mesmo que estejamos nos dirigindo a alguém tão aparentemente doce como Priscylla Mariuszka Moskevitch.

Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch conseguiu acordar o que hoje tenho de pior: o sentimento de inferioridade, o ódio e o desejo de desforra.

Pris

A oportunidade de conhecer Priscylla Mariuszka Moskevitch, vista pelos meus olhos de hoje, foi para mim como ingressar ao mesmo tempo num curso de formação de poetas, num de aprimoramento de dementes e num de preparação de suicidas. Não me tornei poeta, mas vejo boas perspectivas nos outros dois cursos.

Pris

Que diabo pode ter levado Priscylla Mariuszka Moskevitch a dedicar cinco anos de sua vida à tarefa de enlouquecer um homem tão inexpressivo quanto eu? Frida enlouqueceu Diego, Zelda enlouqueceu Scott.

Doce Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch é o tipo de pessoa capaz de, encontrando uma pulga na blusa, imediatamente sair acusando um cachorro.

Prislovska

Para minha saúde, teria sido uma bênção descobrir, cinco anos atrás, que Priscylla Mariuszka Moskevitch ronca como um general russo encharcado de vodca.

Pris

Falei tanto de Priscylla Mariuszka Moskevitch, de sua satânica crueldade, e no entanto minha alma está ainda completamente envenenada.

Pris

Tudo que Priscylla Mariuszka Moskevitch pode dizer de mim é que sou louco. Ela sabe por quê.

Pris

Triste é o dia em que tu tens de dizer, para ti e para o mundo, que Priscylla Mariuszka Moskevitch é o nome da mais amaldiçoada, falsa e cruel das criaturas, e que és um idiota por não haveres percebido isso desde a primeira vez.

Pris

Faltou-me, a mim e à minha saúde mental, ver não a Priscylla Mariuszka Moskevitch que idealizei com a minha tola poesia, mas aquela que toda manhã acorda depois de babar no travesseiro.

Pris

Se sabes quem é Priscylla Mariuszka Moskevitch, se a conheces, afasta-te já, ou vai com ela ao inferno.

Pris

Se queres saber de Priscylla Mariuszka Moskevitch, pergunta ao pó.

Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch viu, em mim, alguém sensível o bastante, e idiota o suficiente, para ser a vítima das vinganças que ela acumulou por ser repudiada por tantos homens, alguns ainda mais desprezíveis do que eu.

Nomes

Existem demônios capazes de destruir uma alma. Têm geralmente nomes graciosos, de mulher.

Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch ama os cães. Um homem, para agradar-lhe, há de saber latir verossimilmente, além de desincumbir-se da agradável tarefa de lhe lamber os pés sem tirar o esmalte dos dedos.

Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch teria mais afeição por mim se eu fosse uma cobra, e ela presidisse uma associação de defesa de ofídios.

Pris

Quem não sabe como é o sangue dos lírios, é porque nunca olhou para as mãos de Priscylla Mariuszka Moskevitch.

Pris

Perguntam-me se Priscylla Mariuszka Moskevitch é insana. Insano fui eu.

Pris

Para que Priscylla Mariuszka Moskevitch seja a gata dileta da bruxa, falta só o bigode.

Pris

Em todas as suas mensagens, até nas amorosas, Priscylla Mariuszka Moskevitch revelava a índole daquelas rainhas antigas cujos caprichos consistiam em mordiscar flores ou em mandar executar soldados imberbes.

Pris

Em Priscylla Mariuszka Moskevitch sempre houve algo de demoníaco, que eu jamais quis admitir.

Cotação do dia

Morrer é uma dessas hipóteses em que se deve pensar - porém não muito habitualmente, para não se transformar em obrigação.

Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch não foi uma brincadeira do destino; foi uma imposição.

Cosac

Dizer o quê? Quem se importa?

Soneto dos que devem ser incinerados

Lançar no incinerador
Sem demora toda a malta:
Tanto quem morreu de amor
Quanto quem de sua falta.

Deixar o tempo escorrer,
Deixar o fogo queimar
Quem morreu por amor ter,
Quem por amor lhe faltar.

Incinerar esses tolos
E depois numa urna pô-los,
Para servirem de exemplo

A todos que ainda não sabem
Que já mortos nenhuns cabem
Onde o amor mantém seu templo.

Bizarria

Hoje, quando falo de amor, sinto-me como um sapo tentando lisonjear a lua.

Simpatiquinho

Serás o velhinho do 203, do 304 ou do 405, que gostava de conversar com as enfermeiras e que, coitado, morreu como todas elas imaginavam desde o primeiro dia em que, internado, piscaste para elas e pediste que não se preocupassem, porque o teu era só um probleminha de coração.

Ocaso

Cansada como eu, minha poesia não tem mais a presunção de exprimir as árvores. Já nem consegue erguer os olhos para elas. Limita-se a recolher as folhas caídas e a simular, no seu mortiço amarelo, o esplendor do ouro.

De J.M.G. Le Clézio sobre Frida Kahlo

"Enquanto Diego vive sua vida sensual, enquanto devora todos e todas que se aproximam dele, e continua incansavelmente a cobrir as paredes com sinais e símbolos de uma história que o ultrapassa, Frida sabe que longe de seu sol ela só pode esfriar e descer ao inferno do nada. Ela tenta sobreviver, fugir com Anita Brenner, faz um mad cap flight de avião particular até Nova York, experimenta o flerte insistente com outros homens, deixa que acreditem numa história de experiência lésbica."

(De Diego e Frida, tradução de Vera Lúcia dos Reis, publicação da Editora Record.)

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Mario Quintana

Quando voltava de seus namoricos com as nuvens cor-de-rosa, Mario Quintana trazia nos lábios fiapos de algodão-doce.

Linguagem

No início, eram só as interjeições. Aos poucos foram surgindo os substantivos, adjetivos, pronomes e verbos - e com eles se foi a pureza.

De novo Pris

Priscylla Mariuszka Moskevitch é fruto de uma irrepetível alquimia.

Aparência

Ainda que às vezes não pareça, o amor não é a gaiola; é o pássaro.

Um trecho de Gérard de Nerval

"Amei durante muito tempo uma dama a quem chamarei de Aurélia e que perdi para sempre. Pouco importam as circunstâncias desse evento que devia ter uma influência tão grande em minha vida."

(De Aurélia, tradução de Luís Augusto Contador Borges, edição da Iluminuras.)

domingo, 29 de novembro de 2015

Mario Quintana

Mario Quintana era tão íntimo da beleza que poderia chamá-la de lindezinha ou belezoca, como se ela fosse a gata que realmente era.

A resposta

Se perguntarem o que fazemos, digamos a verdade: que nos dedicamos à poesia. Assim mesmo: que nos dedicamos à poesia. Jamais mencionemos a palavra poeta. Ela costuma ser recebida com um ah, é?

Situação

Sou um homem que perdeu muitas crenças, esqueceu alguns ideais e, se mantém ainda certa esperança, é na visita esporádica da poesia.

Esperança

Um dia ele terá uma revelação. E a poesia então se mostrará simples como a água colhida na fonte pelas mãos de um menino.

Alma

Não pode conceber uma alma jubilosa. A sua é alimentada por infortúnios que, quando grandes, ele lhe dá amorosamente, aos poucos, como se estivesse esfarelando biscoitos para um gato.

Pris (ainda)

Priscylla Mariuszka Moskevitch é um desses platonismos que arrepiam a pele.

Da natureza da poesia

A poesia é arisca. O brilho do sol a intimida. Ela costuma aparecer somente em noites de lua pálida ou sob a vacilante palpitação de um solitário vaga-lume.

Pris

Fiz nascer Priscylla Mariuszka Moskevitch de uma das costelas de minha alma atormentada.

Salvaguarda

Se você entrar na casa do amor
não saia nem se a Morte
apresentar um mandado judicial.

Consciência

Depois de cada uma
dessas trovinhas
que te fazem inflar o peito
e bater as asinhas
pensa em Camões
em Pessoa em Dante
e confessa
porque a verdade é essa:
fora dessa tua confraria
em que os poemas se cozinham
em adulações e banho-maria
és nada mais que um farsante.

Obsessão

Aí ele choramingou: "Quero ser escritor." Repetia uma frase dita seis décadas antes, quando era um menino em cujos olhos havia o brilho de uma esperança cujo malogro ninguém então tinha sido capaz de imaginar.

Seja ou seja

Seja a poesia uma alta expressão do espírito, seja apenas uma forma de entretenimento, eu gostaria de saber fazê-la melhor.

Outra vez

Ultimamente venho sendo sendo surpreendido por gestos que não fazia há muitos anos. Hoje colhi no jardim uma flor e a coloquei num envelope. Peguei a caneta e escrevi, letra por letra, aquele nome que, apesar de todo meu empenho, ainda não consegui esquecer.

Questão de tempo

Nesse dia haverá tanta paz em nosso rosto que, se pudéssemos vê-lo, nos perguntaríamos por que custamos tanto a desapegar-nos da vida e de seus embustes.

Uma frase de Gérard de Nerval

"É um erro crer que a simples presença confirma a amizade. Na amizade, como no amor, é preciso liberdade e confiança. Os animais amam-se de perto, os espíritos de longe."

(De Aurélia, tradução de Luís Augusto Contador Borges, edição da Iluminuras.)

sábado, 28 de novembro de 2015

Foto (acervo do IML)

A corda é a última gravata (e a derradeira bravata) dos desafortunados.

Como antes

Na primeira madrugada, a viúva Seixas receou que fosse um ladrão andando pelo quintal. Agora se acostumou: vira-se de lado e volta ao sono. É só o fantasma do marido dirigindo-se ao quartinho em que por tantos anos dormiu a jovem empregada, hoje com justiça morta.

Circunspecção

O sol só não desce para a Paulista porque não ficaria bem para um senhor tão conhecido e respeitado seguir garotas de cabelos loiros e passear com elas pelas galerias, e descer com elas as escadarias, e ir com elas ao metrô, e acompanhá-las até a zona oeste, e fazer-se substituir pela noite no momento de despedir-se delas com um beijo, no portão.

Clandestino

Ontem à noite, quando ela se enxugou depois do banho, um pingo conseguiu esconder-se entre os seus cabelos, para gozar a suprema delícia de dormir com ela.

Dois parágrafos de Liberato Vieira da Cunha

"Separai uns momentos para recordar o último dia em que vos sentistes feliz, liberta de calendários, descalça numa praia; entregue, nua, a um trecho de música; rendida, na penumbra de um quarto, a lindos, interditos cismares.
      E concedei, Senhora, meio segundo desse claro olhar, volvendo-o, feito por acaso, ao sujeito que finge escrever tudo isto, como se alheio ao universo, como se indiferente à tirania de vosso encanto."

(Da crônica "A dama do celular", do livro O silêncio do mundo, publicado pela AGE Editora.)

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Soneto da inveja que os rejeitados provocam

Gostaria de ser aquele tonto
Que ao amor se entregou inteiramente
E acreditando nele firmemente
Só teve em troca mágoa e desaponto.

Gostaria de ser aquele idiota
Que abandonado pela noiva um dia
Chorou na igreja enquanto o povo ria
Dele e da sua estúpida fatiota.

Gostaria de ter amado mais,
De ter sofrido golpes mais desleais
E, de assim ofendido e escarmentado,

Fazer como aquele outro desgraçado
Que rejeitado pelo amor surtou
E na primeira corda se enforcou.

Sinônimos

Ela já teve três maridos, doze amantes sérios e dezesseis mais ou menos, além de uma trintena de rapazes catalogáveis nas categorias de casos fortuitos ou ocasionais. O amor ao próximo, para ela, sempre foi o amor ao seguinte.

Nem

Nem no último bendito dia escaparemos dos perdigotos lançados junto com as palavras de consolação e os elogios ao irrepreensível desempenho que tivemos enquanto vivos.

Fatalidade

Se soubesse que ia morrer cinco minutos depois de acordar, não teria interrompido sua sonequinha da tarde.

Símile

Saber por que se escreve deveria ser tão óbvio quanto saber por que se respira.

Mario Quintana

Na calada da noite porto-alegrense, naqueles instantes únicos em que até o Guaíba dormia, Mario Quintana conspirava, com a lua e as estrelas, pela causa da poesia.

Jesus, segundo Jorge Luis Borges

"Uma das pessoas mais extraordinárias da história, que além de tudo tinha um modo mítico de pensar. Pensava através de metáforas; nesse sentido seria um dos maiores poetas da humanidade."

(Do livro Dicionário de Borges, de Carlos R. Stortini, tradução de Vera Mourão, edição da Bertrand Brasil.)

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Soneto do rapazinho de aluguel (versão final)

Como te faz mal lembrá-la.
Ah, como ela estava bela,
Sentada junto à janela,
No grande sofá da sala.

Chegaste e foste beijá-la,
E a cada beijo dado ela
Exibia a língua dela
E te mandava chupá-la.

Depois, deitada na cama,
Ela exigiu: "Me ama, me ama."
Mas, quando o sexo acabou,

Ela te mandou embora:
"Nós nos vemos qualquer hora."
Mas nunca mais te chamou.

100%

A um homem nunca se negue
Uma morte que o seduza,
Uma mulher que a produza
Nem um diabo que o carregue.

Cotação do dia

Se você pode morrer por amor, está esperando o quê?

RSVP

Quando eu morrer
não precisas aparecer

Ninguém notará
se tu não fores

Manda um dos teus rapazes
com um macinho de flores.

Circa 2016

Teus futuros escombros
já te pesam sobre os ombros
como um cadáver.

Uma estrofe de W.B. Yeats

"Antes da colina vivia a senhora French, e uma vez
Quando velas e candelabros de prata
Iluminavam o escuro mogno e o vinho,
Um criado que adivinhava sempre
Todos os desejos de tão respeitável dama,
Correu e com as tesouras do jardim
Podou as orelhas de um labrego insolente
E trouxe-as num pratinho coberto."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O trunfo (versão final)

Ela ainda tem a bunda
e sabe que é por ela
que ele ainda
lhe diz palavras amáveis
e tem gestos afáveis
como lhe procurar a chinela
ou lhe preparar o chá

Sabe que é por ela
pela sua bunda
que não será ainda hoje
que ele lhe dirá
minha cara sinto muito
já deu muito certo
mas já não dá

Esse dia virá
mas não hoje
ela tem certeza
mas não já

Quem tem uma bunda assim
pagã não morrerá.

Trajetória

Anteontem num nicho
ontem na caçamba
hoje no lixo.

Decadência

Um meliante
furtou do meu brasão
o leão rampante.

Por que não?

Tudo bem, eu sou pó.
Não quero me eximir.
Mas que pena, que dó,
Não poder ser um pó
Chamado Shakespeare.

Dois versos de Friedrich Hölderlin

"Acaso crês que os deuses em vão abriram
Os pórticos e nos suavizaram o caminho?"

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Revelação

Por anos e anos você pensa que não tem nenhuma importância e de repente descobre que não tem importância nenhuma.

Retrato

Não era bonita
e tinha pelancas
dessas que de um dia
para outro dia aparecem

O que a salvaria
seriam umas boas ancas
se ela as tivesse.

O provedor

Sofrimento sempre houve
e sempre haverá.
O amor é nosso pastor
e nada nos faltará.

Sobre a juventude

"Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?"

(Friedrich Hölderlin.)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Soneto de como nos vemos agora

Não te importas comigo, e eu
Te vejo como se vê
Alguém que se amou e que
Há muito tempo morreu.

Não sinto mais a paixão,
Nem mais aquela agonia
Que intensamente eu sentia
Com teu "sim" ou com teu "não".

Depois de o melhor gozarmos
E de o pior nós suportarmos,
Venceu-nos a indiferença.

Se eu vivo queres saber?
Se vives eu quero ver?
Nenhum de nós em nós pensa.

Soneto do paraíso perdido

Chegou o tempo em que tudo
Que nos nutria morreu.
Foste a culpada? Fui eu?
Não dizes, e eu fico mudo.

O que podemos dizer?
Por nosso falho juízo
Tivemos o paraíso,
Não o soubemos manter.

Pelo que do amor zombávamos,
Pelo desdém que lhe dávamos
E pelo que o escarnecíamos,

Direito de chorar temos,
Agora que nós vivemos
No inferno que merecíamos?

Messe

O que colhes agora é o outono.
Onde estão as flores, aquelas
Que desprezaste?
O que recolhes agora são folhas,
Não tens mais escolhas.
O que mais merecem
Tuas mãos amarelas?

"Mors-Amor", de Antero de Quental

"Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
De noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor.
E o corcel negro diz: 'Eu sou a Morte!'
Responde o cavaleiro: 'Eu sou o Amor!'"

domingo, 22 de novembro de 2015

Soneto do malfadado blog

O blog está na pior fase e a
Saída será fechá-lo.
Deixaram de visitá-lo
Ucrânia, Angola e Malásia.

A Rússia já me abandona
E o mesmo fará a China.
Na minha cara Argentina
Nem mais me lê Maradona.

Enquanto meu sonho sonha
Com leitores na Polônia
E nos Estados Unidos,

Os leitores da Alemanha,
De Portugal e da Espanha
Já me fecham seus ouvidos.

Soneto das aflições que o amor impõe

Quem se dá todo ao amor
E o resto da vida esquece
Todo infortúnio merece
E a desgraça, e o dissabor.

Quem do amor é devedor
Perde o juízo, enlouquece,
Porque ao amor apetece
Ser da alma e corpo senhor.

Quem com ele se endividar
Haverá de se afligir,
Sofrer e se atormentar,

E se ao amor tudo der
Verá o amor lhe exigir
Também o que não tiver.

Revista Rubem

Hoje falo, como quase sempre, de fragmentos, lascas, ninharias que por acaso fazem parte da vida e às vezes são sua única justificativa (www.rubem.wordpress.com).

"O epitáfio de Swift", de W.B. Yeats

"Swift navegou até ao seu repouso;
Não pode aí a feroz indignação
Lacerar-lhe o peito.
Imita-o se fores capaz,
Entorpecido viajante do mundo;
Ele serviu a liberdade humana."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

sábado, 21 de novembro de 2015

Cotação do dia (4)

Quando declararem amor a você, espere ao menos uns três dias para começar a duvidar.

Cotação do dia (3)

A desculpa que arranjei para não me atirar do viaduto (seria o de Santa Ifigênia, por motivos sentimentais) é a de que ela age assim comigo por me saber masoquista.

Escreviver

Na crônica desta semana, no portal do Estadão, falo de alguns assuntos que costumam causar barracos nas redes sociais (http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/escreviver/criandocasona internet).

Eufemismos (versão final) - Para o Xico Sá

Num mês quente ou num mês frio
Que bom seria se tu
Fosses dar em Katmandu
Ou Portugal de navio.

Aquele

O amor de que vos falo é aquele irrealizável, não aquele que comemora bodas de prata e de ouro com groselha e bolinho de fubá.

Cotação do dia (2)

O mais triste de tudo é ter a certeza de que nunca, nem para os seus dedos nem para os seus dildos, ela murmurou meu nome.

Cotação do dia

Que, quando tocar hoje a pele de seu novo brinquedo amoroso, ela não se lembre de mim. Que eu vá para o inferno levado por meu ciúme, nunca pelo meu rancor.

Soneto de quem censura a amada

Amada, por que te custa
Minha súplica atender
Se é tão fácil entender
Que minha causa é tão justa?

Amada, por que negar
Um beijo, um simples abraço,
Se tudo que tenho ou faço
Somente a ti quero dar?

Amada, por que és mofina?
Querida, por que és sovina?
Não vês como estou sofrendo?

Um olhar teu, um sorriso,
É tudo de que preciso
Para continuar vivendo.

Tesouro

Fio por fio, com a língua amorosa, ele rega a áurea relva que guarda um dos tesouros que ela às vezes lhe oferece.

Mariana Ianelli

Escrever é um dom que Mariana Ianelli e mais alguns poucos têm.

Cartão de visita

Antes de dizer que a ama, ele lambe a orelha dela, para que suas palavras sejam recebidas como devem.

A hora certa

O amor há de ser cobrado à meia-luz, ou luz nenhuma, naqueles instantes em que as longas e mentirosas palavras são substituídas pelos indesmentíveis gemidos.

Parceiras

A demência e a literatura caminham juntas. No meu caso, a demência está sempre alguns passos à frente.

Soneto de como viver sem o amor

Ao amor te escravizaste
De corpo e alma. O que era teu
Inteiro tu lhe entregaste,
E o que foi que o amor te deu?

Fizeste perguntas, tantas,
E o amor não te deu respostas.
Fizeste loucuras, quantas,
Mas o amor te deu as costas.

Com raiva, sem compaixão,
Recusou tua paixão,
Mas por que te preocupares?

Aonde vais, por onde passas,
Há muito vinho nas taças
E putas nos bulevares.

Um trecho de Ubiratan Brasil

"A escrita e a loucura caminham juntas, ainda que por trajetórias tortuosas. As certezas movediças, o humor incerto, o limite frágil, tudo contribui para que alguns escritores alimentem suas obras graças a uma mente totalmente aberta, delirante. Foi o que incentivou figuras tão díspares, como o carioca Rodrigo de Souza Leão, o francês Antonin Artaud e o paulista Renato Pompeu, entre outros, a criarem verdadeiras joias literárias. E também a mineira Maura Lopes Cançado, que escreveu pouco, mas com muita intensidade."

(Extraído do artigo "Carinho e agressão", publicado hoje no Caderno 2 do Estadão.)

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Soneto da inaptidão para o sucesso

Não torçam por mim. Sou fraco,
Não tenho prestígio, história,
Não alcançarei a glória,
Serei sempre nulo, opaco.

Escrito está meu destino
E o que nele foi traçado
Foi meu medíocre passado
E meu futuro mofino.

Não conseguirei mudar
Minha maneira de ser,
Nasci para fracassar.

Ah, não apostem em mim.
Eu sou perito em perder,
Perderei até o fim.

Tardiamente

Restou-lhe a luxúria, e ele se lastima por ter se consumido e definhado com o amor e não haver percebido, tanto tempo atrás, que os brincos e as saias justas sempre foram só uma indicação dos pontos em que a carne deveria ser lambida e mordiscada.

Um trecho de W.B. Yeats

"Oh, sábios que estais no sagrado fogo de Deus
Qual dourado mosaico sobre um muro,
Vinde desse fogo sagrado, roda que gira,
E sede os mestres do meu canto, da minha alma.
Devorai este meu coração; doente de desejo
E atado a um animal agonizante
Ele não sabe o que é; junta-me
Ao artifício da eternidade"

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

18h34

Hora de fechar tudo e ficar por conta do Corinthians. Não serão aceitas ligações de amores recentes nem pretéritos. Danem-se todos (principalmente os pretéritos, aqueles cuja blusa tem nos ombros digitais de marinheiros e proxenetas).

Ardil

Às vezes, quando a possui com a imaginação, simula ser outro, para ver se consegue um agradinho especial.

Poder

Desde menino sabe que qualquer mulher do mundo está ao alcance da sua mão.

Inquietação

Há algum tempo mudou para a madrugada o ritual amoroso oficiado diariamente por sua mão. Ela, dormindo no outro lado da cidade, não sabe por que, lá pelas duas, de umas semanas para cá, acorda inquieta. Ele nunca lhe dirá.

Finesse

Ela se julga a salvo dele. É um cavalheiro e não voltará a importuná-la. Se ela soubesse o que faz sua mão direita agora, e que nome seus lábios suspiram.

Uminha

Sua mão direita está a serviço da memória; a esquerda, da imaginação.

Tesão

Roçar a penugem fulva
Que orna e protege a bainha
Da rameira e da rainha,
Preciosa relva da vulva.

Soneto do amor, esse menino

Sejamos justos. O amor,
Para dizer a verdade,
Não tem a ânsia da crueldade
Nem ganas de malfeitor.

O amor é só um bebê
Que encharca de mijo a cama,
Resmunga, embirra, reclama,
Sem ter quê e nem por quê.

É turrão, abominável.
Nós, entretanto, o julgamos
Tão terno, meigo, adorável.

E, por ser assim gracioso,
Que ele nos mate deixamos,
Por matar-nos tão gostoso...

Segredo

Vós, que toda manhã saudais o sol e exaltais a vida, o que sabeis vós que eu nunca soube?

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Eis aí razão bastante para que só cultives a fé no hoje, no agora, neste momento que flui sem retorno.
Para que só depares esperança neste instante e em cada mínimo prodígio de que se tece: o vento da primavera que invade impressentido teu outono; a dança terminal das andorinhas na luz de junho; o olhar da desconhecida que, provinda de teu futuro, habitou há muito e tão intensamente teu passado."

(Do livro de contos O silêncio do mundo, edição da AGE Editora.)

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Paciência

Não se matem pelo amor. Esperem um pouco, que ele fará isso por vocês.

Época

A situação está mais para sóis depoentes que para sóis poentes.

Mario Quintana

O tempo de Mario Quintana era hoje, e sua estação - com as mudanças levíssimas que de vez em quando ele fazia para conseguir mais sol e mais flores - sempre foi a primavera.

O que será

Um dia talvez me descubram - e então saberei se será a glória ou o frio.

Definição

Situação desesperadora é aquela na qual o mínimo que você pode fazer é dar uma assobiadinha, sair de mansinho e ir morrer ali adiante.

O momento

E chegou o momento em que, tendo o romantismo se esgotado nos beijos iniciais, ele sentiu vontade de ser um daqueles personagens que em certos livros se põem a morder, a arranhar e a desembainhar a espada gotejante.

Cena

Seu rosto não estava num de seus melhores dias, mas ele, suspenso acima dos objetos da sala, era, em sua imponente honestidade de suicida, merecidamente o protagonista.

Manobras

Ela tirou o sutiã devagar e o equilibrou meticulosamente sobre o encosto da cadeira. Também devagar, fez descer a calcinha pelas pernas, pegou-a e colocou-a ao lado do sutiã com solenidade, como se condecorasse um oficial. Na cama, ele esperava o momento em que ela afinal viria e seria castigada por sua morosidade e por sua imitação de lua.

Cotação do dia

Sabe hoje que lucraria se tivesse morrido em qualquer ano antes de 2010.

Manobras

Ela tirou o sutiã devagar e o equilibrou meticulosamente sobre o encosto da cadeira. Também devagar, fez descer a calcinha pelas pernas, pegou-a e colocou-a ao lado do sutiã, como se condecorasse um oficial. Na cama, ele esperava o momento em que ela afinal viria e seria castigada por sua morosidade e por sua imitação de lua.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Há pessoas que observam pássaros, navios, estrelas. A mim coube este banal mister de espiar a vida alheia. Não me entrego a ele por inclinação à curiosidade ou por gosto da bisbilhotice. Me aplico a tão estranho encargo pela razão trivial de que não escrevo apenas ante uma folha de papel em branco, uma tela iluminada de computador. Escrevo em cada hora e segundo, lendo, dirigindo, sonhando, batalhando na dura estiva da sobrevivência."

(Extraído da crônica "Ritual de sedução", do livro O silêncio do mundo, publicação da AGE Editora.)

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Soneto daquele tipo lá

Como vai ser, minha amiga,
Quando chegar a ocasião
E alguém lhe pedir que diga
Como vai o bobalhão?

O bobalhão serei eu.
Você se recordará
De mim, e do jeito meu,
E dirá: "Aquele lá?

Ele está morto e enterrado,
Morreu de amor o coitado,
Morreu chamando por mim."

E isso que dirá você
Será verdade porque
Tudo terá sido assim.

No "face"

Tu sabes
o que eles querem
de verdade
quando nutrem
tua vaidade
quando te curtem
te compartilham

Tu sabes muito bem
minha querida
o que move cada curtida
o que há por trás
de cada compartilhada

Tu sabes muito bem
o que eles querem
mas talvez tu queiras também
minha adorada.

Nós

Eu era tão infantil
você era tão pueril

Uma tarde
espatifamos o mundo
só por brincadeira

Ainda ouço, minha amada,
aquela barulheira
e nossas gargalhadas.

Personagem

Uivando na lua cheia,
Fuçando sempre no lixo,
Comendo bosta de bicho,
O amor é o louco da aldeia.

"Jane, a louca, acerca de Deus", de W.B. Yeats

"Esse amante de uma noite
Chegava quando queria,
Pela aurora partia
Quer eu quisesse ou não;
Os homens chegam, os homens partem:
Tudo permanece em Deus.

As bandeiras sufocam o céu;
Os guerreiros marcham;
Cavalos com armaduras relincham
No palco da grande batalha
No estreito desfiladeiro:
Tudo permanece em Deus.

Diante dos seus olhos a casa
Que desde a infância estava
Desabitada, em ruínas,
Iluminou-se de repente
Da porta ao telhado:
Tudo permanece em Deus.

Jack feroz foi meu amante;
Tal como um caminho
Por onde os homens vão
O meu corpo não se queixa
Mas continua a cantar:
Tudo permanece em Deus."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Cotação do dia (2)

Há pessoas que não se importam em nos matar, desde que seja mantido seu ponto de vista.

Jeito

Assim como o amor, algumas flores, quando murcham, se recusam a recuperar o viço, ainda que regadas pelas chuvas mais bonançosas. Só as mãos certas e palavras afetuosas são capazes de fazê-las voltar à vida.

Um trecho de Friedrich Hölderlin

"Apenas a ti, heroína, a tua luz te mantém na luz
E a tua paciência, amável, te mantém no amor;
E nem sequer estás só; estás acompanhada nos teus jogos,
Onde quer que floresças e descanses entre as rosas do ano;
E o próprio Pai te envia ternas canções de embalar
Pelas mãos de musas que respiram suavidade.
Sim, é ela mesma! Ainda vejo diante dos meus olhos a Ateniense,
Em corpo inteiro, pairando e aproximando-se em silêncio, como dantes.
Espírito amável! E tal como da fonte dos teus pensamentos serenos
O teu raio de luz recai, abençoando, sobre os mortais;
Do mesmo modo mo demonstras e dizes, para que eu a outros
O repita, pois também outros há que o não creem,
Que a alegria, mais imortal do que os cuidados e a fúria,
Num dia áureo se tornará por fim quotidiana."

(De Elegias, tradução de Maria Teresa Dias Furtado, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

Cotação do dia

Amanhã serão pó essas pedras com que nos ferimos, mas já terá passado o tempo das rosas.

domingo, 15 de novembro de 2015

Por quê?

Como entender a birra contra crianças que vivem perguntando por quê?, se os filósofos, aqueles adultos metidos a sabichões, não fazem outra coisa?

Cautela

Antes de te pores a testar cordas e premeditar venenos, convém que te conheças a ti mesmo, para não matares a pessoa errada.

"Uma flor entre as páginas", de Mariana Ianelli

"Olhai o jasmim como cresce
Entre o muro lamacento e o telhado,
Como continua a florir no meio dos campos gelados -

Nem o lírio dos Evangelhos
Nem a rosa branca de Rilke
Em todo o seu esplendor se vestiu como um deles."

(De O amor e depois, publicação da Iluminuras.)

sábado, 14 de novembro de 2015

Cotação do dia (3)

Ao pular do viaduto, procurou, com extrema concentração, não pensar nos heróis da sua infância.

Cotação do dia (2)

Antes de saltar de cima da mesa, ainda apertou o laço, como se acertasse uma gravata.

Cotação do dia

Sente-se como um morto que, tendo conhecido  por alguns instantes o lado de lá, e gostado, acorda ensurdecido pelas exclamações de júbilo por sua volta.

Único recurso

Quando os beijos já superavam duas dezenas, e cada um que se acrescentava era mais longo que todos os anteriores, ele imaginou por quanto tempo conseguiria, só com eles, manter ainda em seus braços aquela mulher que começava a arfar como uma triatleta concentrando-se para o esforço final numa prova.

A vantagem

Quando, depois de trocarmos comentários sobre nossas dores, ele acrescentou, como derradeiro trunfo, que a dele era crônica, senti inveja, por ser tão literário seu mal.

!!!!!!

Há exclamações que não temos o direito de conter: com todos os diabos, como escreve o Liberato Vieira da Cunha!

Mario Quintana

Tantos poetas - e, no entanto, é sempre o Quintana que eu pego na estante quando quero saber coisas do amor.

Viciado

Às vezes ele se lastima pelas insinuações eróticas que há em alguns de seus mais puros impulsos. Como este, agora, de recolher com a língua, nos olhos dela, as duas lágrimas com as quais, ao mesmo tempo, ela se despede dele e quer retê-lo.

Mario Quintana

Ser Mario Quintana sempre foi para Mario Quintana a maneira mais simples de ser.

Agora outrora

Como a um sorvete
ele a lambeu
com língua reverente
e unindo passado e presente
com lentidão ritual
lhe parecia ser
um menino que lambia
chocolate
morango
pistache
com primícias de pecado
e sugestões de sal.

Dois parágrafos de Liberato Vieira da Cunha

"Pois, mais do que uma peça teatral, a vida é sonho. Ninguém te devolverá os segundos que extraviaste com dispensáveis pesares, infortúnios descartáveis, sofrimentos vãos.
   E os deuses não te perdoarão, ao bateres às portas do Paraíso, cada minuto em que ignoraste a arte de amar."

(Do livro de crônicas O silêncio do mundo, Editora AGE.)

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Culpa dos adjetivos

Ele a idealizou tanto que, quando ela mostrou ser o que era - uma esplêndida mulher de magníficas tetas, coxas soberbas e uma bunda majestosa, capaz de finalmente empinar o pipiu do Davi de Michelangelo -, ele a achou igual a todas as outras.

Plano B

Por um ideal ou por uma mulher. Gostaria que sua morte tivesse um sentido, algum sentido, qualquer sentido - de preferência grandioso, para compensar sua vida fracassada.

"Tecendo a manhã", de João Cabral de Melo Neto

"Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão."

(De Novas seletas, publicação da Editora Nova Fronteira.)


Cotação do dia (2)

Mostremo-nos como somos: desprezíveis. E, se alguém revelar compaixão por nós, sejamos ainda mais desprezíveis: aceitemos.

Motivos

Se não fossem o amor e a arte, por que resistiríamos à tentação de tantas cordas, tantos venenos, tantos viadutos, e aos mornos beijos da água da banheira em nossos pulsos, suplicando para ser colorida com o nosso sangue?

Cotação do dia

Quando nem a ideia do suicídio o excita mais, está na hora de você mudar alguma coisa na sua vida.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Soneto da falsa concepção de vida

Por mais que a venham louvar
Os poetas epicuristas
E os ingênuos hedonistas,
A vida não é gozar.

O gozo é um instante raro,
Um relâmpago, um clarão,
Um engano, uma exceção,
Pelos quais pagamos caro.

Existe o amor, é verdade,
Mas ele na realidade
Nunca é o que os tolos pensam.

O amor é um desses tormentos
Que fazem, nalguns momentos,
Morrer ser como uma bênção.


Mario Quintana

Aquele sorriso maroto nos lábios de Mario Quintana parecia o de quem estivesse ouvindo piadas picantes de um querubim.

Uma estrofe de W.B. Yeats

"Mais se demora a imaginação
Na mulher ganha ou na mulher perdida?
Se na perdida, admite que te afastaste
De um grande labirinto por orgulho,
Covardia, alguma parva e excessiva sutileza
Ou qualquer coisa que já se chamou consciência;
E que se à memória se recorre, o sol
Entra em eclipse e o dia em extinção."

(De Uma antologia, tradução de José Agostinho Baptista, publicação de Assírio & Alvim, Lisboa.)


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Ouro

Hoje que não mais o digo
Sei que, quando eu o dizia,
O teu nome era poesia
Na garganta de um mendigo.

O sonho

Sempre que sonha, ele volta dos setenta anos para os dezesseis e segue atrás do cheiro morno da rameira para a qual nunca teve dinheiro suficiente. Ele a alcança numa das esquinas sombrias do sonho, mostra-lhe um maço de notas, sobe com ela ao quarto e pela primeira vez lança o leite juvenil dentro do corpo de uma mulher. Quando acorda, conserva ainda por alguns instantes o sorriso de gozo, antes de, como sempre, sentir que está encharcado de mijo.

Aquele

O amor é aquele maltrapilho a quem mandamos uma criada levar rapidamente um pãozinho, para devolver a paz à nossa consciência e o aroma de rosa ao nosso jardim.

Amor

Um dia tu dizes: sim,
Agora acabou. No entanto
Tu disseste isso já tanto
Que hesitas: é mesmo o fim?

Memento

De ninguém que já morreu
Jamais se deve ter dó.
Um morto é um pouco de pó
Que atingiu seu apogeu.

Instinto

Um coração velho encolhe-se e refugia-se mais para o fundo do peito sempre que ouve aproximar-se o caminhão do lixo.

Experiência

Eu que conheço bem
os pecados e os vícios
digo a vocês que o amor
é o malefício dos malefícios.

Soneto do amor soberbo

Também eu já fui incauto
E, encantado pelo amor,
Dele me tornei fiador
E seu mais convicto arauto.

E, por seus olhos traiçoeiros,
Por sua fala enganosa,
Por sua boca de rosa,
Sacrifiquei meus cordeiros.

Calando os orgulhos meus,
Eu o proclamei meu deus
E dei-lhe a alma e o coração.

Com desdém ele me olhou,
Os presentes apalpou
E, soberbo, disse "não".

"Envelhecer", de Mario Quintana

"Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas."

(De Os melhores poemas de Mario Quintana, Global Editora.)

terça-feira, 10 de novembro de 2015

"Alguns gostam de poesia", de Wislawa Szymborska

"Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação."

(Do livro Poemas, tradução de Regina Przybycien, publicado pela Companhia das Letras.)


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Leitura e literatura

Amanhã, terça, às 10h, estarei num bate-papo na Biblioteca Amadeu Amaral, no Jardim da Saúde.

Mario Quintana

Diante das frases de Mario Quintana, tão simples e graciosas, tenho sempre a tentação de compará-lo a um gato muito jovem perseguindo uma bolinha de pingue-pongue astuta e rápida como uma lebre.

www.rubemwordpress.com

Na crônica deste domingo falo de miudezas, essas coisas das quais é feita a vida.

Mario Quintana

Para conquistar corações, arte na qual ninguém o excedia, Mario Quintana usava só um sorriso, que pertencia a dois rostos: ao dele e ao da sua poesia.

Soneto da frase que resume tudo

Chego ao tempo em que toda a minha vida,
Com tudo que de bom nela fruí
E todo o mal que nela padeci,
Pode ser numa frase resumida.

Outros, de mente mais esclarecida,
Quem sabe tenham visto o que não vi.
Eu digo, simplesmente, que vivi,
Da maneira mais simples conhecida.

Nunca fiz mais do que fazer eu pude
E nunca tive uma especial virtude.
Pelo apreço que tenho ainda à verdade,

Eu só tenho a dizer, e lhes direi,
Que sempre tudo quanto cultivei
Nada foi além de mediocridade.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

13h21

Fui entregar as chaves da loja na imobiliária. O dono as pegou e me desejou boa sorte. Agradeci. É tudo que tenho a dizer. Caberia aqui literatura? Era uma loja, só, não uma urna grega.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A palavra

Se amor for a palavra que você tem a dizer, diga-a antes que alguém a diga melhor que você.

Filosofices em torno da loja

16h51. Um senhor, desses que pela aparência mereceriam sempre o título de filósofos, entrou para falar comigo. Claro que começou a conversa perguntando: por quê? Por que estou fechando a loja? Eu respondi genericamente: por uma porção de coisas. E sugeri ter passado  recentemente por um drama pessoal. Ele, certamente um conhecedor das fraquezas humanas, arriscou: a morte de um ser amado? Neguei. Bebida? Neguei. Jogo? Neguei. Mulher?, ele tentou. Eu não disse nada, só sorri (e nesse sorriso ele talvez tenha notado uma acusação de charlatanice). Em qual acontecimento da vida de um homem, venturoso ou catastrófico, não se adivinha a mão de uma mulher?

Tema

Há muito o amor não é mais assunto,
Há muito é um tema já esgotado,
Tão sem sentido e tão desbotado
Como um lírio na mão de um defunto.

Lógica

Por que não hás de chorar, se até a tua musa ri de ti?

Má companhia

Sei finalmente por que sou este ser indigno. Li o pernicioso Lobato na juventude.

Norte

Por rumos certos ou tortos,
Queiramos ou não queiramos,
No fim nós sempre chegamos
À morte, porto dos portos.

Solamente una vez

Por mais belo que seja, e ainda que atinja a perfeição, o suicídio nunca é um sucesso que chegue à segunda edição.

Penúltimos instantes da loja

13h45 - Amanhã à tarde entregarei as  chaves. Sentado aqui, no meio deste vazio, sinto-me como o participante único de um velório antecipado. Há alguns minutos um cachorro parou na calçada e olhou aqui para dentro. Deu um latido cujo significado não entendi e, depois, ergueu a pata e deixou anotada sua presença antes de seguir seu rumo. Terá sido uma homenagem, minha loja querida?

Carreira

Vocacionado para o suicídio, jamais investiu suficientemente nesse talento.

Body and soul

Gostaria de tê-la visto nua, ao menos uma vez. Tem certeza de que acharia perfeito seu corpo, assim como achou dócil sua alma cruel.

Um trecho de "Os sofrimentos de Werther", de Goethe

"Oh! que fogo devorador me corre nas veias, quando por acaso nossos dedos se tocam, ou quando os nossos pés se encontram por debaixo da mesa! E, apesar de fugir logo com eles, como de um braseiro ardente, uma força secreta me obriga a chegá-los novamente, numa vertigem que se apodera de todos os meus sentidos! E se, a conversar, ela pousa a sua na minha mão, ou, no interesse do diálogo, se aproxima de mim, bafejando-me o rosto com o seu delicioso hálito, parece-me que vou cair aniquilado, como que ferido por um raio... E, Guilherme... se eu ousasse... aquela celestial candura... aquela confiança... Mas não... não... este coração não está assim corrupto! Fraco, sim... fraco é o que ele é, mas essa fraqueza não é corrupção. Carlota é sagrada para mim; todos os meus desejos se calam na sua presença. Junto dela perco toda a consciência de mim próprio... é como se a minha alma se me espalhasse pelos nervos."

(Da coleção Grandes romances universais, tradutor não mencionado, edição da W.M. Jackson.)

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Antepenúltimos gemidos da loja

Hoje, lá pelas quatro e meia, um senhor abrigou-se embaixo do toldo. Olhou para dentro, talvez na esperança de que eu fosse vendedor de capas ou guarda-chuvas (ah, como os homens, apesar de tudo, são crédulos). Vendo tudo vazio, estranhou: "Está esperando entregarem os móveis?" Eu disse que sim, evitando a tentação de lhe contar a verdadeira história. Ele fez mais uma pergunta: "Aqui vai ser o quê?" Eu respondi que vai ser uma loja. "Mas loja do quê?" Menti: "De artigos esportivos." Ele olhou para os três sacos de lixo: "O dono antigo largou tudo isso aí?" Fiz que sim. O homem balançou a cabeça: "Ele tinha cara de doido. Eu nunca entendi o que ele vendia aqui." Antes de ele acenar e sair de volta para a chuva, eu disse: "Eu também não."

Aplicativo

As noites de quarta-feira se tornaram mais excitantes depois que ele mandou tatuar um santo ajoelhado nas costas, ali onde ela o chicoteava gritando: "Geme, filho da puta! Geme!"

Por inteiro

Ela era ruiva também ali, como ele imaginara, e seus dedos, que um minuto antes tinham se enfiado entre as chamas dos cabelos, sentiram, pelo morno contraste, o que Nabokov quisera dizer com a expressão "fogo pálido".

Fiapos

Toda vez que se lembra do umbigo dela, como o viu naquela noite, ergue a língua até o lábio superior. Mas jamais recuperou o gosto que sentiu, e o aroma, naquilo que parecia ter só a aparência de um caroço de pêssego.

Sutiã

Às vezes ele pede à mão que o leve de novo à tarde em que, adolescente, apalpava no cinema o sutiã da namoradinha enquanto a beijava. Chega a sentir um cheiro de balinha misturado com saliva no banheiro e acaba-se num gozo que se exacerba quando a memória traz de volta a voz da garota: "Devagar! Isso. Não. Aperta!"

Pornografia

A pornografia é um erotismo que se cansou de comportar-se bem.

O dedo

Tirou o dedo médio do monte coberto de escura relva. A mulher, que estava com os olhos semicerrados pelo gozo, abriu-os: "O que foi? Não está bom? Continua." Ele trouxe o dedo à boca, suspirou: "Delícia. Você é tão... salgada. Uhm..." Ela agarrou o dedo dele, deu-lhe uma lambida, duas: "Delícia mesmo. Ai, põe ele de novo lá. Põe ele no meu sal."

11h43

Pareciam tantos, os objetos da loja. Reduziram-se a três sacos de lixo de 50 quilos: uma mixórdia de recordações miúdas, de lembranças, de bugigangas, de medíocre história. Que tolice comete quem, em nome do amor, santifica tantas baboseiras. Postos aqui neste canto ao lado da porta, os sacos parecem três soldados vencidos, obrigados a permanecer em pé por um regulamento ao qual juraram obediência, num tempo mais que remoto. Quando eu os colocar fora, hoje à noite, os cachorros não se deterão para cheirá-los. Não erguerão a pata. Nem urina merecem três soldados sobre os quais pesam o vilipêndio e a desonra. Quando forem descarregados no aterro municipal, talvez alguns dos objetos chamem a atenção dos catadores. Um menino talvez pegue um dos livros e resolva ficar com ele, enganado pelo título: Fantasma sai de cena. Pensará ser o relato das aventuras de um herói. E Philip Roth entrará pela primeira vez num barraco de favela. Bem, o que importa dizer é que a loja está vazia. Mas ficarei sentado aqui ainda, com as prateleiras vazias, até sexta-feira. Não me eximirei de um minuto sequer do sofrimento que construí para mim.

Análise literária

A literatura começa a ficar interessante quando você percebe que onde se diz ele (ele pediu um beijo à mulher, ele a viu sorrir) se quer dizer você: você pediu um beijo à mulher, você a viu sorrir, você a beijou impetuosamente, porque os olhos dela lhe ordenavam isso, como os de uma rainha subitamente encantada com o olhar atrevido de um lacaio e com a pulsação de sua braguilha, na qual parecia debater-se um peixe fisgado.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Aos amigos do facebook

Estou saindo do facebook de forma um pouco menos indelicada do que na primeira vez, quando fui abrupto e grosseiro. Para não deixar sem resposta os amigos virtuais e tratá-los como merecem, sem fazer "listinhas" de preferidos, venho passando seis horas diárias lá. Tem sido prazeroso, mas ando extremamente cansado. Sexta eu saio definitivamente. Até lá irei me despedindo, com o carinho que devo a todos. O contato no face é tão direto e "íntimo" que vem me incomodando ver tanta gente boa e honesta ler o que escrevo, comentar os textos comigo (e até elogiá-los), quando me sinto cada vez mais inseguro do que faço e cada dia mais tentado a me considerar um farsante, um homem que se expõe ao máximo, como um pedinte sentimental. Isso não é literatura, é chantagem emocional, é matéria para psicanálise. Aproveito esta palavra (psicanálise) para fazer constar que, assim como na primeira vez, minha saída tem relação com o ingresso, no face, de pessoas que acendem meus mais desencontrados sentimentos e acabam me levando, sempre, à paranoia e à depressão. Uma delas, em especial, me tornou irremediavelmente insano e doente, com uma campanha de desmantelamento psicológico que dura já cinco anos, com tréguas que são também instrumentos de tortura. A ela concedo todos os méritos pela crueldade que tão eficazmente soube usar comigo. Deveria dizer-lhe o nome, para que outros não sejam destruídos, embora certas destruições possam ser consideradas doces por tolos como eu. Tentarei ir curando este homem frágil para buscar em mim alguma coisa que possa ainda, quem sabe, servir a alguém, se bem que apenas como entretenimento. Talvez escreva ainda para este blog, esporadicamente. Gostaria que fossem textos capazes de me levar a uma maturidade que eu já deveria ter atingido. Aqui eu posso ser mais digno. Tenho no máximo cem leitores por dia; no face eram (ou serão até sexta-feira, quando eu me afastar) 1.700 amigos - e por serem isso, amigos, usei-os em benefício de meu ego, dando piruetas e cambalhotas em troca de mimos e aplausos. Sinto muito.

11h21

Comecei a recolher os objetos na loja. A sempre tola emoção torna o ritmo lento. Preciso acelerá-lo. Devo ver, enfim, o que qualquer homem sensato veria: o amor é uma balela, e bizarros são seus objetos. Até sexta tudo estará terminado e chamarei a caçamba. Obrigado a quem visitou a loja e a quem manifestou o desejo de visitá-la. Já não vale a pena, agora. Quem se interessa em olhar para uma pilha de lixo? Quem acreditará que, remexendo-a, possa encontrar algo mais que boboquices às quais um cretino deu um valor exagerado, ligando-as ao amor? Sexta voltarei a me fechar ao mundo, como convém a quem não sabe lidar com ele. Fiz isso uma vez, há alguns anos, mas recaí na tentação de me exibir. Continuarei dando vazão a minhas sandices por aqui, talvez, ou nem isso. Será um registro que fará sentido só para mim. Nada mais de curtir, compartilhar, comentar. Desisti de fazer-me entender. Jamais consegui mostrar-me como queria ser visto pelas pessoas às quais mais me interessava expor-me. Se continuar escrevendo (crônicas ou contos), me refugiarei na comodidade da terceira pessoa. A primeira pessoa, aquela pela qual se exprime a alma, morreu de cansaço e incapacidade.

Malévola

A glória literária
é uma cortesã
que te nega hoje
o que te recusará amanhã.

Rotação

O mundo não gira todo o tempo em torno do egocentrista. Só dezesseis horas por dia, já abstraídas as oito regulamentares de sono.

De Mario Sergio Conti para Ivan Lessa

"21/11/00
Preclaro Ivan,
não aguento mais ouvir falar de poesia. Sobretudo das suas poesias. Mudo o papo para um tema definitivamente másculo: balé.
Botei paletó e gravata e fui ao balé. De táxi, pois o tempo urgia. Na rua Xavier de Toledo, entre a Biblioteca Mário de Andrade e a ladeira da Memória, o trânsito encaralhou de vez. Disse ao chofer que iria o resto do caminho a pé. Ele me olhou como se tivesse dito que iria me atirar da amurada da ladeira da Memória. Vaticinou que não chegaria vivo ao teatro. Fiz ouvidos de mercador e desci do carro, depois de pagar-lhe o preço da corrida. Gritei: 'Olha o rapa!' e, qual o mar Negro ante o cajado de Moisés em Exodus, o oceano humano se abriu e passei, célere, antes que se fechasse novamente. Sentamos na quinta fileira.. O espetáculo era A rota da seda. Achei-o deslumbrante. Não existe nada mais lindo do que corpos femininos em movimento. E que corpos."

(Do livro Eles foram para Petrópolis, correspondência entre Conti e Lessa, publicado pela Companhia das Letras.)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Soneto do que não se deve negar a um morto

Quem a um morto há de negar,
Mesmo a um sem eira nem beira,
A visita derradeira
Ou aquele último olhar?

Quem, mesmo a um morto sem classe,
Compaixão recusaria
E a presença negaria
Se a ocasião se apresentasse?

Quem agiria assim, quem?
Diríamos que ninguém.
No entanto, certos defuntos

Não há quem queira tocá-los
E nem sequer mencioná-los,
Como indigestos assuntos.

Resolução

Ontem à noite, sem conseguir dormir, cheguei à decisão que há muito deveria ter tomado: até domingo fecharei para sempre a loja. Há já um interessado em alugá-la, e, se bem que eu imagine quanto trabalho e sofrimento me dará reunir todos os meus objetos amorosos, não voltarei atrás. Farei tudo com calma. Não posso pegá-los aos montes e enfiá-los em sacos. Hei de examinar novamente um por um, cada qual com a merecida reverência. Que destino terá a maior parte deles já está resolvido, também. Eu os atirarei ao fogo. Os poucos que sobrarem serão os que me farão companhia em casa até o dia derradeiro, que me parece estar próximo. Se mantiver a lucidez até o fim, é provável que  me faça queimar também, com essas memórias - se não julgar indevido, como julgo agora, misturar meu corpo impuro e inútil a fragmentos de alma.

Soneto do nosso amo, o amor

Ele é o nosso pior vício.
Já desde o primeiro olhar,
O primeiro toque, o início,
Se empenha em  nos ensinar

Que só para conhecê-lo
É que viemos a nascer
E que só em entretê-lo
Devemos nos entreter.

Ele nos manda cantar,
Ele nos manda dançar,
E nós cantamos, dançamos.

Se exigir que nos matemos,
Por ele nos mataremos,
Como os servos pelos amos.

Eles (nós)

Há seres humanos mais malignos e destrutivos que a lepra, a peste, o câncer e as guerras. Quem melhor do que nós para saber disso? Eles são nossos semelhantes.

Os que

Os rejeitados pelo amor são devorados pelo ciúme, pela inveja, pelo ressentimento. Vivem sob o signo da mesquinhez e morrem secos, tristes, amargurados. Até a memória que deixam é amaldiçoada.

domingo, 1 de novembro de 2015

Condição

Há mulheres que, quando elevadas à condição de deusas e levadas às estrelas, sentem vertigem e descem correndo para a companhia de basbaques.

Protesto (para o Xico Sá)

Que raiva!
Aumentam os impostos
e cadê lady Godiva?

Cotação do dia

Morrer por amor é algo que se deve fazer logo, imediatamente, enquanto ele merece ser chamado por esse nome.

Internet

Eles te curtem, te comentam, te compartilham, minha cara. Mas não te enganes: querem o mesmo de ti - e não são teus lindos olhos, nem o perfil que alteras diariamente.

Divina

Zelda foi coerente: viveu e morreu maravilhosamente louca.

A causa

Se você pode morrer pelo amor, por que escolherá outra tolice?

12h13

Tenho pensado em mudar-me para a loja. Aos domingos - dias em que abri-la seria quase como pedir que me enfiassem numa camisa de força -, atormenta-me a saudade dos meus objetos queridos, daquele sachê de açúcar que recolhi disfarçadamente, daquele pedacinho de rótulo que ela arrancou de uma garrafa e que peguei como se fosse jogá-lo fora. O amor vive só - e ainda - nessas miudezas que, tocadas, fazem o coração bater como os tambores de mil antropófagos celebrando uma ceia.