"Comemos a vida alheia para viver.
A falecida costeleta com o refinado repolho.
O cardápio é um necrológio.
Mesmo as melhores pessoas
precisam morder, digerir algo morto,
para que seus corações sensíveis
não parem de bater.
Mesmo os poetas mais líricos.
Mesmo os ascetas mais severos
mastigam e engolem algo
que, afinal, crescia.
Acho difícil conciliar isso com os bons deuses.
Talvez credulamente,
talvez ingenuamente
deram à natureza todo o poder sobre o mundo.
E é ela, louca, que nos impõe a fome,
e ali onde há fome,
fim da inocência.
À fome logo se juntam os sentidos:
o paladar, o olfato, o tato e a visão,
pois importam quais iguarias
e em quais pratos.
Até a audição participa
no que sucede,
pois à mesa não raro rolam conversas alegres."
(Do livro Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras.)
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