Deus me deu uma tristeza
Que qualquer poeta em ouro transformaria.
Deus não me deu o dom da poesia.
sexta-feira, 31 de maio de 2019
Qual deles é o escritor
Frases de efeito costumam ser confundidas com alta literatura. Escritor não é o trapezista em seu malogrado salto triplo. Nem é quem, embaixo, tenta em vão socorrê-lo. Escritor é aquele que no dia seguinte, com um balde, água e sabão, retira as manchas de sangue porque à noite, com um novo trapezista, o espetáculo vai continuar, com plateia dobrada.
Da arte de desembuchar
Se você diz que é escritor, recebe aqueles olhares: quem esse sujeito pensa que é, o Shakespeare? Se você diz que escreve, perguntam se você quer dizer que é escritor. Se você modestamente concorda, vem aquela observação: por que você não disse logo?
O fascínio pelos balangandãs
O jovem, quando tem a pretensão de ser escritor, é tentado a confundir arte com artifício e, como está na maravilhosa fase da descoberta de palavras, procura usá-las todas nos seus textos, tenham elas cabimento ou não. E os textos se carregam de festas feéricas, colheitas opíparas, estrelas iridescentes. E aproximar-se vira apropinquar-se, dificultar se torna obstaculizar, alimento saboroso transforma-se em iguaria, ambrosia ou - !!! - cibo. Depois dessa época em que vê a literatura como uma árvore de Natal e a enfeita com os mais exóticos penduricalhos, o candidato a escritor começará a notar, se tiver bom-senso, que o caminho é o inverso: despir a árvore dos balangandãs.
quinta-feira, 30 de maio de 2019
Empreendedorismo
Formaram uma associação
e transformaram o vício solitário
num exercício comunitário.
e transformaram o vício solitário
num exercício comunitário.
terça-feira, 28 de maio de 2019
Sem censura
Às vezes gostaria que minha tristeza fosse espalhafatosa como a menina que vi hoje chorando na rua. Que ela se descabelasse, se arranhasse e que no seu rosto não se pudesse distinguir entre ranho e lágrimas. Ao diabo com esta tristeza cheia de lencinhos e não me toques.
Livrai-nos das tentações
Dos truques que encantam o jovem escritor, o mais fascinante talvez seja a aliteração. O novato entra em êxtase quando consegue fazer uma frágil folha farfalhar ou a lânguida lua lançar seu pálido brilho no lago. O sentido importa menos do que o efeito. A onomatopeia melodiosa faz o aspirante a escritor sorrir como se lhe tivessem atribuído o Nobel. Com o tempo ele irá descobrindo que uma das mais sérias tarefas de um escritor é fechar os olhos para essas bijuterias. Os bibelôs devem ser varridos das estantes da literatura - e também metáforas ruinzinhas como esta.
segunda-feira, 27 de maio de 2019
Viver e morrer (versão definitiva)
Tão fácil é compreender,
Será preciso explicar?
Viver é um modo de ser,
Morrer é um modo de estar.
Será preciso explicar?
Viver é um modo de ser,
Morrer é um modo de estar.
Gôndola
Além do tradicional chocolate com nozes, está fazendo sucesso o poema concretista com sabor de morango e pistache.
domingo, 26 de maio de 2019
A dificuldade
O que mais trabalho dá num poema concretista é a fase do projeto e seleção de materiais.
Fã
São Tomé apreciaria a poesia concretista. Gostaria de apalpá-la, fazer-lhe carinhos, dizer-lhe oi, bochechudinha.
Defesa do consumidor
Comenta-se, nos bastidores, que os ressentidos poetas românticos pretendem acelerar a aprovação do projeto que só permite a comercialização de produtos concretistas depois de devidamente certificados pelo Crea.
Aquela pergunta
Acreditarem que você é um escritor tem alguns inconvenientes. Um deles são os convites para palestras. Nestas, uma pergunta que sempre se faz é: por que você decidiu ser escritor? Numa justificável tentativa de parecer mais interessante do que é, em cinquenta palestras o escritor dá cinquenta respostas, como se falasse por cinquenta escritores. Na quinquagésima primeira, talvez ele tenha a tentação de dizer simplesmente: decidi ser escritor porque desde a infância sou um mentiroso. Se for um ficcionista, é provável que essa seja considerada a melhor das justificativas - pelo menos até a quinquagésima segunda palestra.
Há tanto tempo já
Foi há muito tempo. Eu era humilde, como hoje. Não me distinguia em nada, embora me considerasse, como agora, poeta. Assim como a de hoje, era obscura minha vida. E, assim como nesta, apaixonei-me absurdamente por uma rainha. Afortunadamente favorecido por um deus benigno, eu, o mais insignificante dos lacaios do palácio, era em certas noites introduzido na alcova real, e, pela madrugada adentro, em tons que a paixão me ditava, murmurava minha alteza, minha majestade, minha rainha, e ouvia, em resposta: poeta, meu poeta, poeta.
Sobre o poeta
Um poeta não é um político, não é um professor, não é um filósofo. De um poeta não convém esperar pronunciamentos nem verdades. Um poeta não só deve ter o direito de cometer erros, mas deve ser estimulado a cometê-los. Um poeta pode tentar mil vezes a melhor forma de definir uma estrela. Haverá maneira mais adequada de transformar uma estrela em mil e uma? Ou de encontrar enfim a definição única de estrela, aquela que há milênios se busca em nome da perfeição absoluta da beleza?
sexta-feira, 24 de maio de 2019
O ritual
Para atenuar a tristeza de sua vida de velho, pensou hoje em retomar um ritual da adolescência. Mas não lembra mais se a mão das loiras é a direita ou a outra.
quinta-feira, 23 de maio de 2019
Cançãozinha de ninar
Toda manhã ela, nua, abre a janela, boceja um pouco e volta para a cama. Deixa que o sol por uns momentos doure seus cabelos e os sedosos pelos entre as coxas. Com a mão esquerda nos cabelos e a direita na seda encaracolada, continua a bocejar, com um langor que vai se transformando numa cançãozinha feita só de sons, sem palavras, que a leva a cochilar mais um pouco, sorrindo.
A mão do Diabo
Certas noites, a evocação mais demorada de um nome ou de uma imagem faz com que fervilhe em seu corpo uma inquietação salina e uma insinuação de mormaço no ar. Quando ele não está disposto a ceder, mantém a mão no bolso, encarcerada, e pensa em prados, em nuvens, em montanhas distantes. Mas, se também na língua há uma rememoração de sal, ele sucumbe e é posto novamente diante do inferno de que lhe falaram na infância. E a mão do Diabo o leva outra vez ao paraíso.
Trégua
Quando ele e ela se abraçam, nus, o quarto é tomado por uma irritação que logo chega à exasperação. É como inimigos que se tratam nos vinte minutos em que a cama chega a mudar de lugar, com as estocadas dele e as respostas dela, e o criado-mudo cai de pernas para o ar. Não se falam depois, por um bom tempo. Se dissessem algo, seriam certamente palavras que proclamassem a vitória de um, ou de outro. A atmosfera animal começa a se romper só quando ela reergue o criado-mudo, apanha um cigarro, o acende, dá meia dúzia de tragadas fundas e o coloca nos lábios dele, em cujo rosto os traços de humanidade vão se recompondo, assim como os dela.
Ainda o sexo
Há um gozo vocabular, uma interpenetração de substantivos e adjetivos que atormenta os sentidos, que os espicaça, que os aguça quase até a loucura. O sexo na página 36 de um romance infla ainda a braguilha, mesmo depois de tantas vezes relida, e a mão direita não se cansou de pousar sobre o tecido inquieto, enquanto a esquerda se fixa no livro, para que o vento não ouse virar suas folhas.
Sobre o espaço
Nas noites em que ela não pode vir, ele se deita sobre o espaço que ela costuma ocupar na cama, e aos gemidos da madeira fustigada vai respondendo com os seus, que a ausência torna mais veementes.
Garota com chiclete no escritório
- Olha, faz tempo que eu quero dizer uma coisa. Eu até já disse, mas você finge que não ouve.
- Também, você fala com esse chiclete na boca, fica fazendo bolas, como é que eu vou compreender? O que você quer falar?
- Que eu não sou criança. Sei de mais coisas do que você pensa. Entendeu agora?
- Eu não sou sonso. Só que tenho juízo. O que você quer?
- Você é que escolhe. Podemos começar com um beijo.
- Vem aqui, então. Já já o patrão volta.
- Jogo o chiclete fora?
- Huumm. Não. Pode deixar. Quero pedir uma coisa.
- O que você quiser.
- Senta aqui no meu colo. Você acha que consegue estourar uma bola dentro da minha boca?
- Também, você fala com esse chiclete na boca, fica fazendo bolas, como é que eu vou compreender? O que você quer falar?
- Que eu não sou criança. Sei de mais coisas do que você pensa. Entendeu agora?
- Eu não sou sonso. Só que tenho juízo. O que você quer?
- Você é que escolhe. Podemos começar com um beijo.
- Vem aqui, então. Já já o patrão volta.
- Jogo o chiclete fora?
- Huumm. Não. Pode deixar. Quero pedir uma coisa.
- O que você quiser.
- Senta aqui no meu colo. Você acha que consegue estourar uma bola dentro da minha boca?
As trilhas de sal
As duas se lamberam inteiras. Uma hora e meia. Ofegam agora, vencidas pelo gozo. Este é o momento em que agradecem: minha cachorra. E retribuem o agradecimento: minha cachorrinha. Levantam-se. Vão para a cozinha. Uma abre a geladeira, puxa um suco. A outra pega dois copos e os põe na mesa. Eles não chegarão a ser usados hoje. Uma teve uma ideia. O suco volta para a geladeira e os copos são substituídos por dois pires, enchidos de água e postos no chão. É uma coisa nova no ritual, nascida de improviso. As duas, nuas ainda, se agacham e se põem a lambiscar a água. Renasce nelas a excitação, e já não lambem os pires. Deitadas no piso azulejado, refazem as trilhas de sal.
Vampira jovem
Porque a presume virgem, impõe-se o suplício de se introduzir nela devagar. Assim. A pontinha da ponta, só a pontinha. Concentra-se, segura-se. Um pouco mais. A ponta escorrega, palpitante, desliza para baixo. Agora um milímetro, um centímetro mais. Isso. Mais um centímetro, um e meio, dois. Ah. Um indesejável princípio de gozo aflui à ponta, já quase toda enterrada ali de onde agora nem a vontade de Deus a tirará enquanto ele, mordido pela mulher no pescoço, na orelha, na boca, não a castigar como deve ser castigada uma vampira jovem que, para incitá-lo a enterrar-se mais, se põe a gemer nomes de homens, como se conhecesse todos, de A a Z.
Reprodutor
Sonha que é um reprodutor, um soberbo cavalo posto diante de uma égua que com seus relinchos antegozosos derruba os frutos das árvores quando ele a espeta com seu ferro. Aprofunda-se, enfia-se todo, derrama-se inteiro dentro dela e quando, com os olhos turvados pelo prazer, se desenterra dolorosamente e finca os cascos dianteiros na terra, não vê mais a égua. Uma mulher belissimamente nua lhe sorri e em suas coxas espuma o leite que ele acabou de verter. Nesse instante, ele sabe que já teve esse sonho e passa a esperar que ela lhe diga palavras carinhosas, lhe afague o focinho, lhe dê tapinhas na garupa e lhe traga a forragem que mereceu.
Seu dedo
Como um passarinho bem filhote, obediente às advertências da mãe e cauteloso nas primeiras bicadas, seu dedo não pesa sobre os finos pelos. Fica ali. Se tivesse pulmões, não respiraria. Ele espera. Mais um pouco. Começa a pesar agora sobre os fios sedosos, como se fosse outro fio sedoso. Pousa de leve, bem de leve, sobre o ponto que a penugem protege. Apenas quando sente na ponta a umidade morna ele entra devagar, quase não entrando, como se fosse um pássaro experiente. Mas, se tivesse pulmões, cantaria agora, e esvoaçaria temerariamente, como se fosse um filhote.
Vermelho amarelado e crepitante
Tinha uns olhos dúbios, castanhos, de especialista em práticas de alcova. Às quatro da manhã, nos ambientes enfumaçados, quando cessava o som da derradeira música e ele saía para a madrugada, seus olhos eram já de um vermelho amarelado e crepitante como o das fogueiras. As mulheres todas o seguiam, deixando no ar um cheiro viscoso e úmido de desejo. Ao chegarem à sua casa, notando seus cascos, elas gemiam de prazer adivinhado e apalpavam seu rabo pontudo e pulsante, enquanto ele, para espicaçar-lhes o desejo, adiava o instante de mostrar-se inteiro.
quarta-feira, 22 de maio de 2019
O melhor Natal
Dos natais, o que lhe deixou um gosto mais entranhado é um que às vezes, nesta época, lhe traz de volta o sabor dos figos, das tâmaras, do champanhe bebido nos lábios da anfitriã.
Que seja a luxúria
Se precisarmos escolher um pecado, um só, que seja o da desbragada luxúria. Íncubos, súcubos, coxas, fendas, líquidos, ramagens, fios de ouro que persistam em nossa boca como fiapos de cana. Convulsões, estremecimentos, desfalecimentos, mortes gloriosas entre palavras murmuradas ou gritadas, gozos longos e doloridos, saliva grossa como esperma, e uma palavra, vinda da boca em chamas de um anjo de Lúcifer, incitando: mais, mais, mais.
O ritmo certo
Intercala direita e esquerda, enquanto a imaginação vai despindo a mulher do dia e fazendo-a dizer, com os lábios rubros, que o ama e que vai marcar seu corpo de batom, desde a boca até o ponto em que a direita e a esquerda fizeram despontar uma rijeza que espera o momento de ser chamada de coisinha gostosa para se acabar em contorções.
Técnica
Gostaria de lhe cravar os dentes na nuca, como viu o gato fazer com a gata, e de sacudi-la toda, para que, quando ela se entregasse, fosse dócil como uma presa extenuada pela luta.
Ainda ontem
Na cama, recorda a época em que, em vez de com água rala, regava com leite morno a relva jovem e dourada.
Ai, ah, mais
Enquanto seu corpo sobe e desce, ele vai tentando descobrir a fórmula. Diz ah, ai, mais, diz ai, ah, mais, diz mais ah, mais ai, mais. Diz outras coisas, geme, implora, sucumbe gloriosamente, mas ainda não se revelou a ele o mistério do moto-perpétuo.
Até que as palavras se digam
A ternura não é o momento em que as sementes começam a ser lançadas. São os outros momentos, todos os outros que o antecedem, sobretudo aqueles em que as sementes, por exigência do gozo, tardam a escorrer, retendo-se na ponta até que as palavras de amor se digam entrecortadamente.
Pelo nome certo
Quando ele ainda está só pensando, pensa em tocar-lhe os seios. Quando os toca, toca em mamas, peitos. Enquanto os ordenha, ordenha tetas. E, ao ordenhá-las, sente afluir nelas, e nele, o perturbador leite que só o amor sabe engendrar.
Dedo a dedo
Como um cego, faz descer a mão pelas costas, chega à cintura e escorrega devagar pela encosta. No topo, a mão se detém, entre o gozo e o temor de resvalar pelo desfiladeiro. Como um cego, aventura-se cautelosamente, dedo a dedo.
Como se
Acordar agarrado a ela, como um náufrago à tábua de salvação. E beijar a madeira com volúpia, como se as horas de sol marítimo houvessem cozinhado meus miolos.
Sobre um cavalo bravio
O máximo de ousadia a que chega é imaginar a ponta da língua tocando a ponta da língua dela. Não dá sequência à cena, nunca consegue. É tomado por uma agitação, por uma febre que o faz tremer e suar e, sentado na poltrona, segura-se para não ser derrubado pelos solavancos do corpo, que sobe e desce como se estivesse sobre um cavalo bravio.
Relembrando Pável
Tem agora só uma aspiração sexual: lamber-lhe a nuca. Na adolescência leu uma passagem assim num livro cujo protagonista, Pável, um camponês, seduziu sua senhora, e a lembrança da leitura, feita às escondidas, o persegue como uma promessa não cumprida. Lamber-lhe a nuca com língua áspera, como a de Pável, e, se tiver tanta sorte quanto ele, conquistar o fruto da doce entrega e ver-se deitado sobre as duas corcovas mornas e aristocráticas, explorando aos poucos o desfiladeiro acolhedor e palpitante - tudo como no livro. Faltará o cheiro agudo do feno, que até hoje emana da página 231, mas ele bem poderá enganar as narinas com a imaginação, fazendo-as aspirar os pelos do tapete amarelo.
A voz que lhe exige sexo
Nos sonhos, a voz dela é ainda mais grave, semelhante à de Billie Holiday, uma mistura diabólica de gim, de cigarro e de lascívia, e tem um tom quase marcial quando lhe ordena que se deite sobre ela e a faça gozar. Quando ela diz o nome dele, já nos rituais do sexo, o "r" soa como um "rrr" de Edith Piaf.
Do que se ufanam os velhotes
O erotismo é a última bazófia de um velho. Ao contrário do que se costuma fazer, não se recomenda a psicanálise nem o exorcismo. Deve-se deixar que conte suas proezas, com atenção apenas a um detalhe: se a fantasia dele o fizer misturar na mesma frase mais de duas mulheres, convém ter à mão aquele remediozinho usado em emergências como bacanais.
terça-feira, 21 de maio de 2019
Fulgor
Os dedos dele voltaram dela com um fio úmido que acendeu subitamente um brilho fulvo na escuridão do quarto.
Taturana
A voz dela eriça nele um desejo que clama por satisfação e se contorce como uma taturana à qual se ateou fogo.
Morango na pele
É de morango o batom que ela sempre passa antes de começarem. Desde a primeira vez, ele a beija até sentir o batom aderir aos seus próprios lábios, e então percorre todo o corpo dela, renovando em cada centímetro de pele o gosto doce que aos poucos vai ganhando perturbadores toques de sal.
Só aí
Quando não aguenta mais e começa a estremecer sobre ela, só aí ele procura sua boca com a dele e diz para dentro dela palavras que o ritmo do prazer entrecorta, antes que as salivas misturadas as afoguem, deixando apenas sílabas soltas que dizem ai, ai, ai, como um último pedido de socorro.
Como ele a beijaria
Ele a beijaria como se ela fosse não uma imagem sagrada, mas a representação dessa imagem na memória. Nos seus lábios ficaria não o gosto de uma boca beijada, mas o daquela boca que ele imaginou beijar num dia que nunca chegou nem chegará.
Espumante e impetuoso
Quando ela começa a se mover embaixo do seu corpo, ele sente que mais uma vez não conseguirá ir devagar, que novamente se deixará arrastar pela urgência, como um riacho transformado em rio impetuoso e saltando convulsivamente uma, cinco, uma centena de pedras até se derramar em espuma e cachoeira.
Temor reverencial
Aspirou seus cabelos e havia neles um olor tão místico que ele pensou por um momento se deitar-se sobre ela não seria um ato de heresia.
O sol por testemunha
Fechei a janela, para evitar olhos indiscretos. Deitada na cama, tua esplêndida nudez brilhou como se no último instante o sol da tarde tivesse conseguido se esgueirar para dentro do quarto.
Movimentos finais
Morrer tentando ainda cavar um túnel pelo qual possa se evadir a tristeza. Morrer no meio de convulsões venturosas, ou no fim delas, apaziguado.
Alquimia
Furtou dela esta noite um pelinho fulvo com o qual pretende iniciar uma alquimia que ambiciona imensidões de trigais. Já quase pode vê-los, acariciados pela brisa reverente. A brisa é ele. Soprará dia e noite, com zelos de amante.
A gota na ponta
Quando pensa nela, uma umidade morna vai se espalhando devagar pelo seu corpo. Começa pela mão, justamente pelo dedo que por ser o pai dos outros deveria ser um pouco mais recatado e não lhes dar exemplo de tão inflamada luxúria. Ele tenta, mas a memória prevalece e na sua ponta, embora não haja nenhuma, uma gota lateja.
Pretexto
Proclamando-se perfeccionista, obtém das mulheres repetições gozosas por elas negadas a outros. Seja qual tiver sido seu desempenho, diz sempre: posso fazer melhor.
Aviso
Cautela com os que te procuram dizendo que são ineptos na arte dos beijos. Já depois do primeiro, ou antes do quarto, são os que mais mestres se mostram no ofício de morder.
Um trecho de Paul Theroux
"Pois, quando se vive tempo suficiente, vê-se de tudo, e, caso se continue a viver, tudo acontece de novo, exatamente igual, até as mulheres - principalmente as mulheres."
(De A suíte elefanta, tradução de Fernanda Abreu, publicado pela Alfaguara)
(De A suíte elefanta, tradução de Fernanda Abreu, publicado pela Alfaguara)
Ai, morte
Quando sente vir à superfície a primeira gota, sabe que nada o impedirá de exaurir todas. Nem a morte. Se estrebuchar, estrebuchará de prazer, e talvez diga, com a voz transtornada de gozo: ai, morte, ai, minha querida, ai, minha vida, ai.
Orgulho
Os lábios dela têm gosto de pecado, de cigarro que se tenta dissimular com hortelã. O resto de seu corpo não se envergonha de ser salgado.
Rosas de amor
Ela mostra à médica as duas rosas que lhe nasceram ontem, uma em cada nádega, e que ela atribui à mente romântica do seu amado, um poeta, incansável nas homenagens que faz à sua beleza.
Quem engoliu o quê
As recordações do amor, assim como tudo mais agora, lhe vêm envoltas em névoa. Os olhos da memória estão cansados como os do rosto. Hoje se recordou das tardes em que, no cinema, ele e a namoradinha (nem sempre a mesma) se revezavam no jogo de, entre beijos, irem fazendo o chiclete mudar de boca. Lembra-se de um dia de beijos especialmente excitantes, em que ele (ou ela) acabou engolindo o chiclete. A dúvida o faz sentir-se falso. Também não se lembra mais do nome da garota.
Só o zumbido depois
Ela nunca diz uma palavra. Geme, mas pouco. Há um momento, porém, em que ela se retesa, se inteiriça e seus dentes se põem a bater com tanta aflição e urgência que ele, obedecendo ao ritmo imposto por eles, se põe e se retrai, se enfia e se solta, entra e sai, e reentra e ressai, até se derramar em um espasmo que, replicado por ela, prepara o momento em que se ouvirá no quarto apenas o ressonar dos dois e o zumbido pachorrento do ar-condicionado.
Essência
Foi meu dedo médio, o mais versado em geografia, que trouxe aos meus lábios a essência salina do teu golfo. Faz muito tempo, já, mas ainda hoje, quando olho para ele, imagino ouvir o grito de uma gaivota.
segunda-feira, 20 de maio de 2019
Impressão
Minha mão retém na palma a memória imaginada do teu corpo e, nos dias de aflição, a imprime naquela parte do meu corpo que nunca te tocou.
Sucuri
No restaurante, observa a mulher, já beirando a meia-idade, com a mão na coxa do rapaz, quase um adolescente ainda. Ela tem as compridas unhas pintadas com um esmalte rubro que, ele não sabe por quê, o faz pensar numa sucuri aproximando-se de um bezerro. O rapaz parece intimidado, mas não assustado. Sua excitação é visível. Seu receio talvez seja o de ser visto por algum amigo ou amiga com essa mulher que, se não fossem os dedos subindo milímetro a milímetro pela coxa dele, poderia ser sua mãe. O restaurante está vazio agora. Restaram só ele e a mulher com o rapaz. A sucuri apoderou-se da braguilha. O garoto está perdido. Deveria ter pena dele, mas sente crescer uma raiva e um ciúme que o fazem apalpar a própria braguilha. Gostaria que sua mão fosse como a da sucuri, que aperta agora descaradamente o rapaz. Ele, observador, nunca mais se livrará dessa cena. Ela o acompanhará noite após noite, e a mão, cada vez mais afeita ao enredo, o apertará como se a sucuri tivesse sede de leite e o ordenhasse.
Gosta mais quando
Gosta quando ela, com seus gemidos espalhafatosos, que arrepiam os três frades no quadrinho pendurado na cabeceira da cama, lhe pede que não pare. Gosta mais quando para, toma um longo fôlego e vai retardando o recomeço para que ela, agora com miadinhos aflitos de gata, implore que continue, que continue logo, se não quiser vê-la morta e arreganhada.
Passarinho bicando bolacha
Imagina que êxtase gozaria se, como se fossem um garoto e uma menina, ele a convencesse a brincar de passarinho e ela o deixasse espalhar sobre o ventre nu migalhas de bolacha. Ele bicaria com cuidado, para que a ela aquilo não parecesse senão cócegas, depois das quais - esta parte ele não teria combinado com ela - ele iria, com a boca farelenta, saciar a sede um pouco mais abaixo.
Uma suposição de teia
Ele roça os dedos por ela como se tocasse furtivamente a pele da estátua de uma divindade num templo. Sabe a maldição que lhe caberá, mas não se contém. Talvez uma estátua possa ser considerada como um manequim de lojinha de saldos, pensa, para aliviar a consciência. Mesmo assim, avança tímido, como se não avançasse. Nem respira. Sente na mão uma suavidade que quase não sente, como se sob os dedos houvesse uma suposição de teia. Há uma inquietação nos fios, uma aquiescência. Ele deixa a mão pesar um pouco mais. Os fios não a repelem. As divindades também pecam.
Como se
O que mais lhe apraz numa cama é dedilhar. Nas mãos é que sente o prazer mais intenso. É como se tivessem livre-arbítrio. Às vezes, sonha que está com uma mulher e acorda com o frisson dos próprios dedos, que o tocam como se ele tivesse seios e nas entrepernas aqueles lábios que se abrem como uma flor.
Detalhe
Nunca diz às mulheres que a habilidade nos seus dedos, sempre enaltecida por elas, vem de contar notas no banco. Acha que não seria romântico.
De carne morna e de cetim
Sente aquilo que chama de nostalgia do batom. Tem saudade dos lábios que beijou, dos seus inquietantes e propiciatórios sabores artificiais. Neles sentia o doce alvoroço da transgressão, do pecado. Que prazer antecipado era vê-los falar, comer, beber, reter por um instante uma migalha, enquanto se aproximava o momento em que fixaria a boca ali, naquele laranja ou carmim que era como uma areia movediça chamando mais para o fundo, mais para o fundo, prometendo aos sentidos estremecimentos de carne morna e de cetim.
Segurança
No escuro, quem melhor conhece o caminho que leva aos esconderijos do amor são as mãos. Elas não sentem pejo de apalpar, porque para isso foram feitas, e, se têm alguma dúvida, o que dificilmente acontece, sobem às narinas, para consultá-las.
Rendição
Às vezes, como agora, uma gota chega à ponta e parece que o prazer antigo se reproduzirá. O corpo todo, os nervos, os músculos, os poros se excitam. O cérebro se concentra ali onde a gota decide se chamará as outras. Mas ela hesita, vacila, volta, retrai-se, desiste. Por um instante a juventude esteve a ponto de ser recobrada. Chegou a brilhar nos olhos do homem, que agora se estende vencido na cama, busca no criado-mudo o maço de cigarros e o levanta, como um soldado entregando-se ao inimigo.
Mormaço
Na cama ficou um perfume morno e salgado, como se a mulher, que em cada encontro esquece alguma coisa, um livro, um lenço, um batom, tivesse esquecido a mais preciosa de todas.
Coisinha fofa
Quando adolescente, uma contorcionista de circo o impressionou e o encheu de uma ternura e uma inquietação que nunca mais viria a sentir. Ela era alta e, no final do número, reduzia o corpo de tal maneira que diante dos espectadores parecia pouco maior que uma cachorra de tamanho médio. Ele passou a pensar em uma que fosse baixa e, ao se apequenar, se assemelhasse a uma gata. Poderia levá-la no bolso para onde fosse e desdobrá-la quando ela quisesse. Nunca, porém, à noite, quando a aninharia no colo e começaria a beijá-la sem saber se beijava os braços, as pernas ou outras partes que ela camuflasse com seu mágico jogo de se desmontar e remontar-se.
Com a mão na beleza
Falar-lhe de um povo antigo, do século IV ou V a.C., de alguma Mesopotâmia, que, versado na arte da onfalomancia, tivesse também o dom de antever o futuro pela observação e pelo toque dos encaracolados pelos que enfeitam e guardam a entrada do mais precioso tesouro feminino. Interessá-la de tal forma que ela se disponha, como as mulheres daquele tempo, a deixar-se observar nua em horas diversas, sob o sol. Depois de alguns dias, dez pelo menos, quando ela já não fizer perguntas sobre os resultados, continuar a contemplar os fios e a tocá-los. Com a beleza diante dos olhos e das mãos, quem há de se ocupar com o futuro?
Tempo bastante
Ele gostaria de ter a mão presa entre as suas coxas numa noite em que ela, no meio de um prazeroso sono, não se mexesse por três ou quatro horas. Ou duas, pelo menos. Ou uma. Seria o bastante para que em seus dedos se imprimisse o aroma da relva outonal.
E agora?
Ontem, enquanto a possuía, disse-lhe que parecia estar com o mundo nos braços. Não era mentira, mas de certa forma se arrepende. O que dirá hoje, no segundo encontro?
Todos esses gozos
Ainda que odeie as mesóclises, beijar-lhe-ia os lábios, lamber-lhe-ia o céu da boca, para lustrar as estrelas, morder-lhe-ia a atrevida ponta dos mamilos e fá-la-ia dizer-lhe todos os louvores que merecesse por esses e por outros gozos que lhe proporcionasse.
Línguas
Duelam as línguas. Atacam, recuam, avançam de novo, retraem-se e de novo avançam e recuam, e outra vez, outra vez. É o prelúdio, só. O corpo dele e o corpo dela esperam o instante em que um ímpeto comum os juntará. Ali, no ponto em que a junção se completará, há urgência e exasperação. Mas é preciso esperar um pouco ainda, porque as línguas vão tornando sério o brinquedo que as entretém. Tocam-se, investigam-se, provam-se, desafiam-se. Seria já o momento de parar. O prólogo não pode ser epílogo. Mas já não há mais o que as segure nem discipline. Elas tudo subverteram, e é por elas que a junção não se consuma, embora os corpos em convulsão agora cumpram, com perfeição, o ritual do gozo completo.
domingo, 19 de maio de 2019
Talvez ambrosia
Passa os dedos devagar pela glande, pelo prepúcio. Palavras feias, essas. Algum bruxo, por encomenda dos deuses, as criou para que os humanos se abstivessem de tocar as partes que elas designam. Os deuses eram useiros e vezeiros nessas práticas dedilhatórias e as preferiam aos intercursos com as deusas. Ele se lembra de ter lido isso, e sorriria zombeteiramente se a mão já não sentisse na palma a primeira gota do leite que é preciso ordenhar inteiro - o leite que provavelmente seja aquilo que nos livros tem o nome de ambrosia.
O tom certo de pedir
Que mamilos hão de lhe negar leite, se a língua o pedir com a precisão aflita de quem morre de sede de amor?
Prodígio
Pensa que, se a tocasse mais no fundo e na umidade, talvez no escuro seus dedos brilhassem repentinamente, como uma evocação de trigo ou uma cintilação de ouro.
Emergência
Toda vez que pensa nela, precisa ocupar imediatamente as mãos, para que não se ponham a dedilhar os botões da braguilha.
Tal qual uma gata
Molhou o dedo na fonte em que o amor costuma ir beber e, para testar o gosto e a temperatura, lambe-o agora como uma gata lambiscando o pelo de um filhote.
O amor no labirinto
Há situações que são só um café tomado com uma amiga, com a presença facultativa de alguns pãezinhos de queijo. A mente romanesca, porém, jamais se conforma com simplicidades como essa, e se põe a tramar subtramas. De repente, lá está o amor dentro de um labirinto, sem saber por que está ali. Só sabe de uma coisa: ainda que o script ordene, ele se recusará a sair.
Passarinhos
Nem nós dois sabemos o que tanto nossas línguas têm a se dizer quando se tocam com a ponta gotejante de saliva. Certo é que não trocam uma palavra, mas bicam-se como dois sedentos passarinhos.
Dentes, boca
Morder e assoprar, com sua variação (assoprar e morder), é uma das expressões que o atormentam nas madrugadas de solidão e insônia. Nas mãos e nos braços ela se faz presente, quase em carne viva, lembrando-lhe o flagelo e o consolo que certos dentes e certa boca lhe proporcionavam.
Como nasce a poesia
Sempre que descansa a palma da mão naquela tenra relva que aos poucos se umedece, sente um fervor quase religioso. Não é bom com as palavras. Se tivesse intimidade com elas, gostaria de dizer uma porção daquelas frases longas que leu uma vez e que começavam todas com Ó vós. Falaram-lhe que era poesia, e ele tem a intuição, com a palma reverente como se tocasse um objeto sagrado, de que momentos como esses é que a fazem nascer no coração de um homem.
O marujo
Um dia, depois de padecer contínuas traições, ele puxou um fio do meio das coxas dela: "Um dos teus marinheiros esqueceu isto aqui, ó." Ela olhou displicentemente para o pelo encaracolado: "Esse aí é meu." Foi uma grande noite. Ela foi ela, como sempre. Ele foi o marinheiro.
Imortalidade
Tem a impressão, quase a certeza, de que, se pudesse manter os lábios onde estão, e as mãos onde se apoiam, e continuasse subindo e descendo o corpo, e cavando, não morreria nunca. A morte não se atreveria a atingi-lo. Ele mantém os lábios nos lábios dela, as mãos espalmadas na cama, dando base ao corpo que sobe e desce, e cava. Se permanecesse assim, se aguentasse, não morreria. Mas quer morrer agora, agora que o gozo começa ali onde ele, estremecendo, já não consegue cavar tão intensamente quanto cavava.
Brincar mais um pouco
Pedirá que na próxima vez ela deixe que as línguas dos dois brinquem um pouco mais, como crianças, antes de serem chamadas para aquelas tarefas mais sérias das quais as mãos, sozinhas, não dão conta.
Um beijo só
Prometeria deixar um beijo, um só, ali onde as coxas se juntam em seda. Mesmo que ela se arrepiasse depois, e seus gestos e sua respiração denotassem o desejo de permitir alterações no ajuste, ele se manteria firme enquanto pudesse. É um cavalheiro, se bem que às vezes seja traído pela índole suburbana de sua braguilha.
Fetiche
Quando entra no corpo dela, sente não o conforto de quem busca um abrigo, mas o excitante desassossego de uma corça que, indo matar a sede à noite num regato, acha melhor a água se do capim sobe o pressagioso cheiro de urina de um lobo.
Autodidatas
Estão nus e, ajoelhados na cama, abraçam-se. Faz uns momentos que estão assim. Hesitam. Esqueceram-se de algum detalhe e olham ao mesmo tempo para o criado-mudo. Ela estica o braço esquerdo, ele estende o direito, mas não chegam a pegar o livro. O súbito movimento - talvez o abrupto roçar dos joelhos ou quem sabe o balançar dos seios dela ao mexer o braço - acendeu nos dois uma desajeitada urgência que os faz deixar para depois a leitura do Kama Sutra. Com o que já sabem, darão conta daquilo, com um pé nas costas, ele pensa - e precisa concentrar-se, porque a metáfora o leva a se lembrar de algumas das ilustrações do livro de iniciação amorosa e o instiga a rir.
A mulher ideal
Quando pensa na mulher ideal, aquela que colocaria antes de todas as outras num poema e numa cama, prefere as de nádegas grandes e portentosas tetas. Seios que parecem recatados limões e bundinhas tímidas não lhe agradam. Quer uma bunda que, entrando numa sala, faça todo o ar ser absorvido imediatamente num suspiro único pelos homens. E quer tetas que, quando ele estiver nos seus tão comuns períodos de infortúnio, possam receber sua cabeça e suas lágrimas. Tetas que, convenientemente tocadas ou lambidas, não se neguem a esguichar gotas de leite que, se não forem rapidamente bebidas por sua boca, começarão a pingar no assoalho, obrigando um funcionário a sair correndo atrás de um balde e de um esfregão.
Opiniões
Leitores censurando-me por falar de sexo, leitores incitando-me a falar mais. Que barulho podem fazer dez pessoas, se divididas em dois grupos.
sábado, 18 de maio de 2019
Em ataque próprio
Se não fosse uma contradição em termos, eu diria que minha poesia desperta o sono dos leitores.
Entre flores e frutos
Quando, depois de quinze minutos de beijos e apalpações, de avanços e recuos, ela disse que estava toda molhada e levou a mão dele até a orla branca de sua calcinha, ele se tomou de tal ternura que, se não soasse estranho, seria capaz de pedir a ela que continuassem naquilo, que não dessem o passo seguinte. No seu cérebro, embora não fosse poeta, formara-se uma frase: Ficar nas flores, não colher os frutos.
Prova
Que néctar, que mel, que dulçor podem ser assim considerados, se não passaram pelo teste dos teus lábios?
Único
Só o amor tem o dom de aspirar o aroma de uma rosa e relacioná-lo com o cheiro morno das entrepernas e dos seus fios de ouro.
Trovinha
Amor, se não faz sofrer,
Paixão, se não afligir,
Não têm nem razão de ser
Nem motivo de existir.
Paixão, se não afligir,
Não têm nem razão de ser
Nem motivo de existir.
Quarteto à espera de um soneto
Poder voltar quem nos dera
ao tempo em que, sendo ou não,
nós tínhamos a impressão
de ser sempre primavera.
ao tempo em que, sendo ou não,
nós tínhamos a impressão
de ser sempre primavera.
Nome e sobrenome
Com tinta na ponta da língua, escrever em torno do teu umbigo meu nome e, por ele ser curto, pedir desculpas pela megalomania e escrever também o sobrenome cheio de consoantes: João Assumpção.
Justa causa
Pelo que a Shakespeare deu
e a nós não,
é bem o caso, francamente,
de rompermos com Deus
definitivamente.
Dos grandes
Primeiro as formigas se aglomeraram em torno de sua glande. Em seguida, uma a uma, começaram a enfiar-se pela uretra. Ele gemia, esperando que fosse um formigueiro dos grandes.
Doidão
Quando cafunga o sovaco úmido dela, entra num barato que lhe ataranta o corpo todo, menos o ponteiro da bússola, lá embaixo, que mais do que nunca aponta o norte.
A tentativa
Outro dia, quando estava acabando, e queria prolongar o gozo, recuperou na memória um gramado da infância, onde sempre brincava. Estava começando a admirar o verde e a amplidão inabitada quando, inopinadamente, um touro cobriu com fúria uma vaca. Ele e o touro estrebucharam em convulsões.
Um homem simples
Sou fácil de lidar. Um objeto dócil, desses que vão se tornando raros. Faço o que me mandam, o que querem que eu faça. Posso morder ou lambiscar. Curioso como as damas têm ojeriza a palavras assim. Lambiscar, sorver, sugar. Falsa ojeriza. Arrepiam-se com elas, sentem uma comichão de gozo. Lambisco, sorvo, sugo. Jamais me recuso. Não escolho os lugares por onde passo. Sou obediente. Não sou eu quem geme. Nunca me queixo.
O sinal
Uma delas, buscando sobrepreço, exibia um sinal de bala na perna, resultado (ela dizia) de um duelo entre dois apaixonados seus. Tinha seios já meio murchos, o rosto envelhecido, mas as coxas, principalmente a da marca de bala, eram ainda apetecíveis.
Sedosamente
Ele tem uma fantasia que o faz pensar se numa encarnação anterior não viveu num ambiente aristocrático. Estão nus na cama, ele e uma mulher. Ela é uma condessa; ele, um lacaio. Ela só permite que ele a toque com as mãos enfiadas num par de luvas de branquíssima seda, que ela lhe empresta. Ele a toca, toca, toca. Ela permanece quieta. Parece uma estátua, bela estátua. Até o momento em que, tocada finalmente no ponto exato, ela lhe prende a mão, lhe arranca a luva e se abre para os dedos agora libertos. Com a outra mão, a enluvada, ele acaricia os cabelos dela, seda com seda.
Cultura de cama
Quando percebe que o freguês já está com a primeira gota de gozo bem na pontinha, põe-se a gemer ai pai, ai filho. Leu meia dúzia de páginas de Freud e conhece alguma coisa sobre incesto e a amável complexidade das relações familiares.
O pijama de seda
Hoje ela pôs o pijama de seda. A calça suspende-lhe a bunda, confere-lhe um provocativo ar aristocrático. Quando ela se deita, ele começa a brincar com o elástico, fazendo-o estalar sobre o umbigo dela. Faz quatro, dez vezes. Aí ela se irrita e pergunta se foi por isso que ele a quis na cama. Ele então jura que não, de jeito nenhum, e pede-lhe que o toque ali onde palpita a prova de tudo que afirma. Pede-lhe desculpas, beijando-lhe a boca, mas sem parar de mexer no elástico. Plect, plect. Quando se enfia dentro dela, a brincadeira já o fez ser rancorosamente mordido nos lábios e no pescoço. É gostoso assim, bem melhor. Imagina que ela perceba isso também, mas jamais lhe perguntará. Teme que essas noites esporádicas, as do pijama de seda, se tornem rotina, como aquelas todas em que ela vai para a cama com aquela camisola exótica que a faz parecer uma gueixa anoréxica de puteiro, alimentada com brisa e haicais de Bashô.
Venturas de outrora
Não tem mais a espada. Ela ficou perdida numa aventura outrora, muito outrora, espetada no marco zero de uma puta da aurora ou dos andradas, e faz parte do seu extenso acervo de danos pessoais. Mas ainda hoje, se passa por ele uma daquelas mulheres soberbas como transatlânticos iluminados, ele com discrição, como se espera de um cavalheiro, curva-se e com o dedo médio toca levemente a braguilha, ali onde esteve a fonte de todas as alegrias de sua juventude.
Na segunda vez
Na primeira vez em que ele a chamou de bezerra e lhe bebeu o leite das tetas, ela, aturdida, não soube o que fazer. Deixou-se mamar. Na segunda, quando das tetas ele começou a descer ardilosamente os lábios, ela lhe mijou na cara. Foi nessa vez que ele se enfeitiçou por ela.
Lambisqueiras
As duas se lamberam inteiras. Uma hora e meia. Ofegam agora, vencidas pelo gozo. Esta é a hora em que agradecem: minha cachorra. E retribuem o agradecimento: minha cachorrinha. Levantam-se. Vão para a cozinha. Uma abre a geladeira, puxa um suco. A outra pega dois copos e os põe na mesa. Eles não chegarão a ser usados hoje. Uma teve uma ideia. O suco volta para a geladeira e os copos são substituídos por dois pires, enchidos de água e postos no chão. É uma coisa nova no ritual, nascida de improviso. As duas, nuas ainda, se agacham e se põem a lambiscar a água. Renasce nelas a excitação, e já não lambem os pires. Deitadas no piso azulejado, refazem as trilhas de sal.
Bica-me
Quando estivermos na cama de novo, não me digas palavras carinhosas. Não me chames de nomes doces, não empregues diminutivos. Pareces uma passarinha quando ages assim. Na próxima vez, que uses o bico para bicar-me.
sexta-feira, 17 de maio de 2019
Vampira jovem
Porque a presume virgem, impõe-se o suplício de se introduzir nela devagar. Assim. A pontinha da ponta, só a pontinha. Concentra-se, segura-se. Um pouco mais. A ponta escorrega, palpitante, desliza para baixo. Agora um milímetro, um centímetro mais. Isso. Mais um centímetro, um e meio, dois. Ah. Um indesejável princípio de gozo aflui à ponta, já quase toda enterrada ali de onde agora nem a vontade de Deus a tirará enquanto ele, mordido pela mulher no pescoço, na orelha, na boca, não a castigar como deve ser castigada uma vampira jovem que, para incitá-lo a enterrar-se mais, se põe a gemer nomes de homens, como se conhecesse todos, de A a Z.
Transpiração zero
Um poema pode fazer-se quase só com palavras, como uma puta velha que lê uma revista enquanto o adolescente de primeira cópula estrebucha sobre ela.
Especialistas
Todo escritor, em algum tempo, sente-se tentado a tornar-se um profissional do sexo e a levar suas palavras e imaginação para os sofás, camas e bancos traseiros dos automóveis. Quando essa tentação é motivada pelo dinheiro, geralmente a decepção é grande. O mercado há muito está bem suprido de especialistas que fazem jorrar leite de espadas.
Vencido
Numa daquelas tardes todas dedicadas ao sexo, ele saiu tão exaurido do corpo da amada que lhe ocorreu a ideia de no dia seguinte levar algum passatempo que a fizesse poupá-lo um pouco. Talvez ela gostasse de ler. Isso. Providenciaria um livro. Que não fosse naturalmente Kama Sutra.
Tu e a lua
Deixaste a janela aberta e te deitaste nua. A lua veio e deitou-se sobre ti. Ficou um tempo assim, uma hora, um pouco mais. Gemeu. Gemeste. Ela prometeu voltar. Mas, como costumas fazer com quem te ama, nunca mais deixaste a janela aberta. Nua na cama, toda noite imaginas a aflição dela do lado de fora, ansiosa para provar outra vez a saliva e o sal de tuas fontes.
Os olhos, e o resto
Tinha uns olhos dúbios, castanhos, de especialista em práticas de alcova. Às quatro da manhã, nos ambientes enfumaçados, quando cessava o som da derradeira música e ele saía para a madrugada, seus olhos eram já de um vermelho amarelado e crepitante como o das fogueiras. As mulheres todas o seguiam, deixando no ar um cheiro viscoso e úmido de desejo. Ao chegarem à sua casa, notando seus cascos, elas gemiam de prazer adivinhado e apalpavam seu rabo pontudo e pulsante, enquanto ele, para espicaçar-lhes o desejo, adiava o instante de mostrar-se inteiro.
Feitiço
Ela o enfeitiçou de tal forma, lançou-lhe tão inescapável sortilégio que, para livrar-se, ele recorreu a todos os estratagemas. Tudo em vão. Sua lembrança o segue todos os instantes, como um cão-guia. O mais recente ardil foi a tentativa de se convencer de que ela é uma virago. Foi ontem à tarde. Tudo correu bem por algumas horas. À noite, num sonho, ele a beijou, como em todos os sonhos, e sentiu eriçar-se o desejo quando o bigodinho dela lhe espetou os lábios. Acordou úmido como um adolescente.
Traje social
Entrar no chuveiro de terno, se for preciso, aproximar-se dela, beijar-lhe a nuca, entrecerrar os olhos, deixar-se tomar pela embriaguez crescente dos sentidos e, chegando sorrateiramente à empinada encosta, obedecer ao impulso da braguilha e fazer explodir todos os botões no vale, como se espalhasse sementes.
Como um beija-flor
Gostaria de ser um passarinho viciado em leite pela dona e de ir buscá-lo em seus róseos mamilos. Saberia bicá-los com delicadeza, como um beija-flor.
Não pecarás
Se pensa nela, uma febre começa a latejar em seu corpo e ele luta para não pecar novamente. Sai para caminhar, toma um banho de água fria, mas acaba vencido, sempre, e enquanto se manipula e arqueja, ouve as vozes da sua infância advertindo-o das danações em que incorre quem ensina à mão o desenho do corpo de uma mulher.
O tapete
Toda madrugada, enquanto ele se dobra e se redobra para servi-la sexualmente, ela fica com os dentes enterrados no seu pescoço. De manhã, quando ela o tira de cima do seu corpo satisfeito, ele está leve como um tapete. Ela o estende no chão e vai para o chuveiro. Ao voltar para o quarto, vê sempre a mesma cena: o gato sobre o tapete, lambiscando as últimas gotas de suor e sangue.
Como os rios bíblicos
Pousar a mão no ventre dela, sentir-lhe a palpitação, prepará-la para o plantio e deitar sobre ela como os rios bíblicos rasgando pela primeira vez a terra e derramando ali a espumante seiva da qual nascem todos os homens, todas as venturas e todas as desventuras do mundo.
Deixá-la furtar
Beijá-la muito, deixá-la furtar todas as palavras de nossa boca e devorá-las. Ficar só com os monossílabos, murmurá-los com os lábios colados aos dela e permitir que, aos poucos, ela também os molhe com sua saliva ternamente venenosa e os saboreie, e os faça descer até seu estômago, onde jazem já tantas queixas poéticas.
Ao sabor de um sopro
Como um vento meridional, dizer-lhe mornas obscenidades ao ouvido, soprar-lhe os cabelos, suspender-lhe a saia, fazer cócegas no seu ventre e no umbigo e, aproximando-se da relva, rogar aos fios ruivos que escapam da calcinha branca que a incitem a mover-se devagar, como um veleiro deslizando num sonho.
quinta-feira, 16 de maio de 2019
Tu em tantas mãos
Quando entrei na taverna e perguntei por ti, marinheiros de catorze países disseram que não te viam fazia muito tempo e lamentaram também a tua ausência, olhando para as mãos com tristeza. Em todas elas a nostalgia havia traçado a geografia do teu corpo.
De sede
Ele a beijaria até que todo o sal do corpo dela se transferisse para os seus lábios e ele morresse da mais abençoada das sedes, delirando como se estivesse no centro do deserto. Desdenharia um oásis, se lhe fosse oferecido.
Início de "Pirlimpimpão", de T.S.Eliot
"Pirlimpimpão é um gato muito estranho:
Se você lhe dá galinha, ele quer comer faisão
Se lhe dá uma mansão, acha grande o seu tamanho
Se lhe dá um apartamento, já prefere uma mansão
Se você lhe dá um ratinho, só queria um musaranho
Se recebe musaranho, o ratinho é a decisão.
É, Pirlimpimpão é um gato muito estranho -
E eu nem preciso proclamar:
Ele quer bem
O que bem quer
E não adianta reclamar!"
(De Poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)
Se você lhe dá galinha, ele quer comer faisão
Se lhe dá uma mansão, acha grande o seu tamanho
Se lhe dá um apartamento, já prefere uma mansão
Se você lhe dá um ratinho, só queria um musaranho
Se recebe musaranho, o ratinho é a decisão.
É, Pirlimpimpão é um gato muito estranho -
E eu nem preciso proclamar:
Ele quer bem
O que bem quer
E não adianta reclamar!"
(De Poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)
Fartura
Em meus sonhos eu te bebo, eu te devoro, eu me sacio com o banquete de tua carne e de tuas fontes salgadas.
Teu favorito
Eu gostaria de ser o teu gato favorito, aquele que, quando o trazes ao colo, sente o capitoso cheiro do teu leite e põe-se a lambiscar tua blusa.
Alvíssaras (para Felipe Fortuna)
Recente portaria determina que os poemas concretistas passem a ser vendidos não mais por unidade, mas por peso.
Sensatez
"Inalda, para com isso, para. Ou a gente começa logo isso pra valer, ou eu não sei. Olha como ele está. Mais um beijo desses e o que eu guardei pra você vai parar tudo no lençol."
Náufrago
Ele começa sempre fingindo que se perdeu no corpo dela. Só depois desse pânico simulado é que se põe a movimentar-se, inseguro, estupidamente para o fundo, para dentro, como um náufrago a quem não se há de censurar que tudo faça para salvar-se, embora seu destino já esteja escrito.
Renegociação
Não se sente mais devasso como outrora. Talvez já seja um prenúncio da sabedoria que dizem vir com a idade, ou um arrefecimento natural do sangue. Alguns anos atrás, pensava na delícia que seria morrer numa bacanal em que fosse vítima de pelo menos dez mulheres. Hoje está disposto a aceitar três, desde que uma seja Scarlett Johansson.
Como uma queixa
O melhor momento não é aquele em que ele começa a lançar a seiva. É aquele, são aqueles em que, não havendo mais seiva a derramar, os espasmos se sucedem ainda, em vão, como uma queixa.
Gota a gota
Pingar, com o conta-gotas, três ou quatro no umbigo dela e sorvê-las primeiro com um canudinho. Em seguida, pingar mais três ou quatro e puxá-las com a vagarosa ponta da língua. Por fim, reabastecida a fonte, esquecer o requinte e mergulhar a boca inteira naquela concha e afogar-se nas últimas três ou quatro gotas pingadas.
Poliglota
Homens de vários quadrantes lhe ensinaram frases, jeitos, malícias, requintes, vícios. Discípula atenta, logo ela os excedeu. Ninguém como ela sabe berrar, em quarenta e três idiomas e catorze dialetos, frases de enlouquecida paixão nos momentos em que a cama parece vergastada por todos os tufões de todos os mares do leste e do sul. Nesses instantes ela é íncubo, súcubo, e todos os demônios gritam na sua voz imprecações e incitações ao gozo. Hirtos de medo e espanto, os homens sabem que ninguém terá morte mais venturosa que a deles, com o corpo despertado pelos dentes de loba e pela língua que sobre o peito, boca e testículos deles expele chamas como as labaredas do Inferno.
Bocas audazes
Penso hoje quantos rapazes
Com a boca entre tuas pernas,
Essas amáveis tenazes,
Gemeram juras eternas.
Ah, quantos jovens audazes
Lá, nas tuas entrepernas,
Deixaram ardentes frases
E declarações tão ternas.
Felizes foram, eu sei,
E nunca os condenarei.
Eu até os copiaria
Se frases belas soubesse
E se a ventura tivesse
Que lhes propiciaste um dia.
Com a boca entre tuas pernas,
Essas amáveis tenazes,
Gemeram juras eternas.
Ah, quantos jovens audazes
Lá, nas tuas entrepernas,
Deixaram ardentes frases
E declarações tão ternas.
Felizes foram, eu sei,
E nunca os condenarei.
Eu até os copiaria
Se frases belas soubesse
E se a ventura tivesse
Que lhes propiciaste um dia.
Resistiremos
Não deixaremos as lágrimas de nossa tristeza em ombros que acabaram de receber os beijos e a saliva cheia de interjeições gozosas de amantes, no motel. Não confiaremos nossos versos escolares, tão gentis e bobocas, a ouvidos nos quais ecoam ainda, como mantras, sílabas engatadas como cento e trinta e oito cães no cio: aiminhapuminhaputiminhaputaminhaputinha.
Justiça
Gostaria de ter não só estes brinquedinhos. Seria justo oferecer aos teus preciosos e obedientes dedos um prazer exclusivo, uma maciez que cada um pudesse considerar só dele. Algumas coisas Deus não fez direito, se enganou nas contas.
Ele espera e confia
Porque as coxas dela e os seios foram reverenciados por tantas mãos, ele espera que seus dedos e seus lábios, se o dia chegar, se mostrem mais hábeis do que jamais foram. Ensaia, tocando os lábios com os dedos e os dedos com os lábios. Acha que dará certo, se chegar o dia.
Infância
Na primeira vez em que o usou, ele ainda se chamava pinto e aquilo era só um joguinho de pôr e tirar, do qual nem ele nem a garota sabiam como se marcavam os pontos.
Posse
Depois de agonizar deliciosamente, lentamente, demoradamente, mas não interminavelmente como queria, ele permanece deitado ainda, recusando-se a sair do corpo onde mantém fincado o instrumento de sua posse, embora esta seja agora pouco mais que simbólica, incapaz de se exercer em estocadas de pleno vigor e gozo.
Fiozinho amado
Ela tem no umbigo um pelinho, um só, quase invisível, que só aparece quando ele o chama com uma sopradinha ou um resvalar de língua. Ele já disse a ela, já lhe implorou, que nunca se atreva a tirá-lo. Às vezes pensa que ela, para desafiá-lo, sumiu com ele. Hoje foi assim. Precisou soprar um sopro morninho e tocá-lo com língua mais compenetrada. O fiozinho, ciente de seu charme, começa a se fazer de difícil.
De batom
Ela enche de batom a ponta da língua e pede à amiga que fique quieta, não se mexa. Começa a deixar nos lábios dela as pequenas marcas rubras que daqui a vinte minutos ou trinta, enquanto seu prazer aguentar, contornarão inteiramente a boca. Quando isso acontecer, a amiga retribuirá com beijos escarlates, até que as duas bocas pareçam uma só, escorregadia de batom.
Linguagem
No meio da festa, uma voz de tenor anunciou: "Boa noite, eu sou o esposo da Mabel. É, ela é minha patroa." Todos olharam para ele, embora a maioria já tivesse decidido que Mabel não merecia ser invejada.
quarta-feira, 15 de maio de 2019
Como leite nos degraus
Encher as mãos com aquelas coxas, com aquela riqueza morna e aveludada. Depois beijá-las, as coxas e as mãos que as acariciaram, e, antes de se enfiar no corpo palpitante, concentrar-se para acreditar que aquilo tudo é real e para que a seiva espere o tempo certo para escorrer como o leite que, escapando da jarra na escada, comece a descer aos solavancos pelos degraus.
Pragmático
Nada receies. Serão só mais alguns beijos. Se lhe parecerem descorteses, isso será por conta de uma antiga lascívia, hoje extinta. Se também os dedos se mostrarem um tanto atrevidos, há de ser porque os lábios ainda guardam memória de melhores tempos. De resto, não temas coisa alguma. Não tenho mais com que magoar-te nem como reverenciar teu corpo como ele merece. Alguns beijos mais, só alguns. Se quiseres, podes abrir três ou quatro botões da blusa.
"Histeria", de T.S.Eliot
"Enquanto ela ria eu me vi sendo envolvido por seu riso e me tornando parte dele, até que seus dentes fossem apenas estrelas fortuitas com talento para ordem-unida. Fui tragado por alentos curtos, inalado a cada momentânea recuperação, fiquei por fim perdido nas cavernas negras de sua garganta, machucado pelo andar de músculos invisíveis. Um garçom idoso de mãos trêmulas estendia apressado um tecido xadrez branco e rosa sobre a mesa de ferro verde oxidado, dizendo: 'Se a senhora e o cavalheiro preferem tomar seu chá no jardim, se a senhora e o cavalheiro preferem tomar seu chá no jardim...'. Decidi que se fosse possível deter o balanço de seus seios alguns cacos da tarde poderiam ser recolhidos, e concentrei minha atenção com cuidadosa sutileza para tal fim."
(De Poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)
(De Poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)
Franguinho
Uma das mais inquietantes lembranças que tem do tempo de menino é a do dia que passou na casa da avó. Saindo para as compras, ela o deixou com a empregada. Esta (Lívia, Nívea, Lídia, qual era mesmo o nome?) o empurrou imediatamente para o quarto, ficou nua em um minuto, esparramou-se sobre a cama e ordenou: vem, franguinho, me come. Tantas décadas depois, não sabe dizer com certeza o que aconteceu. Lembra-se-se apenas de ter sido esmagado num abraço do qual, menino educado que era, saiu com forças ainda para dizer obrigado, Lívia, ou Nívea, ou Lídia.
Melhor não
Se alguém se puser a cantar a Marselhesa no velório, quem há de responder pelos atos de um defunto francês?
Desvio de conduta
Os gemidos do moribundo repentinamente passaram a soar como se ele estivesse no meio de um sonho erótico. A menos que a Morte se chamasse Lucinda.
Todo ali
Parece que ele todo está fincado ali na ponta molhada do seu corpo que ele tenta aprofundar na mulher como se cravasse uma estaca na areia movediça. Acha que já atingiu o fundo. Gostaria agora que a areia o retivesse inteiro e o fosse engolindo aos poucos, com seus gorgolejos propiciatórios.
A bunda errada
Com tantas bundas na praça, foi escolher uma enjoada, cheia de não me toques, para quem fez disparatados poemas que falavam de nádegas de alabastro e com quem, embora muito quisesse, não fugiu para a Índia. Foi há muito tempo, tanto que parece ter sido em outra vida. Porém ainda hoje, e mesmo depois do relato de quem lhe garantiu que aquele objeto, para ele sagrado, soa como uma corneta desafinada, acha ainda que, se o tocasse, teria o som fluido e cristalino de uma flauta, se ele soubesse soprar o furo certo.
Em, em, em, em
O melhor é aquele momento em que, não aguentando mais, ele se impõe o desafio de dar ainda cinquenta estocadas, sabendo que na vigésima, na décima nona, ele vai, na décima oitava, na décima sétima, ele vai, na décima sexta, ele vai, ele vai, ele vai se acabar em contorções, e em mel, e em murmúrios indecifráveis.
Este não é aquele
Aquele que te comparava aos lírios, às rosas e às estrelas era outro. Dizem que morreu de tristeza. Este, de hoje, que te apalpa quando se apalpa e que geme quando imagina que gemes, é outro. A este agradam os frutos, a cócega que fazem na língua os pêssegos, o estalo das maçãs ao serem mordidas, como se estivesse se abrindo um sutiã, a doçura morna e viciosa que as ameixas deixam na boca. As laranjas que sem aviso nem controle espirram mel no fundo da garganta.
Para espantar a tristeza
Não é sempre que eu penso em você. Penso em outras. Numa que vejo na rua, ou no shopping. Numa que vejo no metrô, no ônibus. Penso em algumas. À noite, em casa, pego uma, vamos até o carro, sento no banco do passageiro (o carro é sempre delas) e, enquanto ela dirige, como você fazia, a fantasia começa a ganhar mãos e carne. O início, o meio e o fim são sempre prazerosos. Depois é que baixa a melancolia. Falam muito do vício solitário do homem. Um homem solitário não tem vício. O que ele tem são dois ou três truques para enganar a tristeza. Mas ela sempre volta.
Circunstância
Minha mão esquerda está ficando cada vez mais destra, melhor até que a outra. Vê como são as coisas. Se não fosse aquele acidente, nunca que eu ia descobrir. Tudo na vida é questão de necessidade e treino.
terça-feira, 14 de maio de 2019
Astúcias recompensadas
Ela gritou ai e ergueu o saiote pregueado do colégio. Colocou o dedo na coxa:
"Ai, já nasceu um calombo, ai, ai."
A amiga se abaixou para olhar. Disse que não estava vendo nada.
"Como não está vendo nada? Ficou cega? Põe o dedo. Ai, como dói. Isso. É bem aí."
A outra aproximou o rosto da coxa:
"Ainda não estou vendo nada. O que tem aqui é uma verruguinha, só."
Deu uma soprada.
"Ai, só de você soprar, doeu."
A outra deu então um beijinho na coxa, em cima da verruga:
"Agora sara, você vai ver."
"Já melhorou. Ufa! Foi uma abelhinha, acho que aquela ali."
"Pode ser, sim. Ela me picou também, ontem. Bem aqui no joelho. Sabe que ainda está doendo? Ai, põe o dedo."
"Ai, já nasceu um calombo, ai, ai."
A amiga se abaixou para olhar. Disse que não estava vendo nada.
"Como não está vendo nada? Ficou cega? Põe o dedo. Ai, como dói. Isso. É bem aí."
A outra aproximou o rosto da coxa:
"Ainda não estou vendo nada. O que tem aqui é uma verruguinha, só."
Deu uma soprada.
"Ai, só de você soprar, doeu."
A outra deu então um beijinho na coxa, em cima da verruga:
"Agora sara, você vai ver."
"Já melhorou. Ufa! Foi uma abelhinha, acho que aquela ali."
"Pode ser, sim. Ela me picou também, ontem. Bem aqui no joelho. Sabe que ainda está doendo? Ai, põe o dedo."
O caroço
Eu estava ontem no ponto do ônibus, ela também, logo atrás de mim, na fila. Acho que não era nem bonita, eu não cheguei a ver direito. Mas a minha braguilha começou a ficar inquieta, porque ela não parava de mastigar uma coisa, e aquilo fazia um barulhinho de saliva que foi me deixando louco. Pensei que fosse chiclete. Mas, quando o ônibus chegou, ela cuspiu a coisa, e sabe o que era? Um caroço de pêssego. Se eu sentei com ela no ônibus? Não, não deu. Eu deixei ela entrar primeiro, porque imagina se eu não fui pegar o caroço no chão. Sei lá se é tara isso, ou o que é. Só sei que peguei o caroço. Está aqui no meu bolso. Olha aí. Bom, já vou indo. Está na hora do meu ônibus.
Mão gelada no ventre
Quando se lembra dela, seu corpo é instantaneamente tomado por uma febre que o faz tremer. Ele se agasalha com dois, três cobertores e, com a mão gelada no ventre, ensaiando a descida, murmura palavras de amor que o frio entrecorta. Logo a cama tremerá, do seu frio, da sua febre e de suas lembranças apaixonadas.
Cena de chuveiro
Pedir licença, ser atendido, entrar no chuveiro, desligá-lo e, com a toalha antecipadamente beijada, enxugar-lhe as partes todas do corpo. Ali onde os crespos pelos se enroscam delicadamente, apreciar por um instante o fulvo contraste deles com a alva toalha e, subindo, secar com carinho os seios, que além da água podem, por um malicioso roçar da esponja, ter nos bicos duas gotas de leite.
O umbigo exigente
Nunca pensou naquilo que sonhou ontem. Desenhou com batom uma boca perfeita no ventre de uma mulher. Não lembra do rosto dela. Era como se o ventre fosse o rosto. Começou a beijar os lábios desenhados, e o ventre, subindo e descendo em palpitações cada vez mais intensas, atraía seus beijos e os retribuía. Toda vez que ele, já com a boca doendo, queria parar, o umbigo ameaçava prender-lhe a língua.
Contando fios de ouro
Eu queria contar cada fio daqueles bem finos dela. Alguns acham feio o nome. Eu, não. Acho bonito. Pentelhos. Queria contar um por um, me atrapalhar na conta, começar tudo de novo, dividir, multiplicar. Fazer uma peneira entre os dedos, deixar passar aquele trigo. Para não errar outra vez, queria ir separando de três em três, ou de cinco em cinco, e falando com eles: quietinhos aí, vocês. Já viu como os caixas de banco fazem para contar o dinheiro? Eles molham de saliva o dedo. Contar fios de ouro é igual.
Implorando por Cória
Quer saber? É tudo igual. Todas elas têm as mesmas coisas e funcionam do mesmo jeito. Esse negócio de paixão é tudo a gente que cria na cabeça. O nosso mal é saber o nome delas. Aí a gente começa a não dormir mais. E suspira pela Laura, pela Lúcia, pela Lucilene. E chora por elas. Babaquice. Bunda, coxa, teta, tudo devia chamar sempre só bunda, coxa e teta. Nada de Dalva, de Dora, de Doralice. Você quer ver? Eu tive uma, faz um tempo, quando eu não sabia assim das coisas, que se chamava Cória, já viu nome igual? Feio, eu sei. Mas, quando ela me deixava na seca, eu enchia o focinho de cerveja e ficava chamando Cória, Cória, no portão da casa dela. E eu lá queria a Cória?, eu pergunto. Eu queria aquelas coisas que eu falei, e aquela outra, você sabe. Aquela. Como é bom aquilo, não é? Pois é, mas tem quem não goste. Cada um...
Peça acusatória
Toda vez que, dançando, desliza a mão pelas costas dela até embaixo e chega à encosta que ali se eleva abruptamente, torce para que a sequência de músicas, quando parar, seja num momento em que ele, tendo dado vazão ao desejo no pano grosso com que forra a cueca ou havendo conseguido sublimá-lo com imagens de extensos gramados, possa caminhar pelo salão sem que se abram no rosto dos frequentadores aqueles sorrisos e sem que as mãos apontem para a sua virilha os dedos acusadores.
Voyeur
Na segunda vez em que foi à casa da viúva e começou a amassá-la no sofá, sentiu que faltava alguma coisa. "Ah, é a fotografia do meu ex", respondeu a mulher. Tirei daí. Estava me enjoando. Aqui não é o lugar dela." Quando a bolina o fez levar a mulher para o quarto, o homem notou com satisfação que o bigodinho bizarro parecia vibrar de indignação e que os olhos azuis o seguiam com mais ódio que na primeira vez. O timbre dos gemidos da mulher, mais agudo e escandaloso, confirmou sua suspeita: o sexo era melhor assim, com a presença de um voyeur furioso.
Discípulos
Inscreveram-se tantos candidatos que o gerente da casa de espetáculos reservou três dias para as provas dos passarinhos que se dispunham a imitar Mario Quintana.
segunda-feira, 13 de maio de 2019
Como ferros
Agrada-lhe, enquanto a beija, dizer para dentro da sua boca palavras apaixonadas. Algumas ele inventa. São só sílabas entrecortadas, murmúrios de saliva prejudicados pelos espasmos do corpo empenhado em manter o ritmo do amor. Também ela inventa algumas, bem curtas. E são essas que depois, já em casa, ao lembrá-las, reacendem nele o fogo e o fazem lamentar, quase chorar, que só no dia seguinte se reencontrarão as duas bocas, cheias de vocábulos traiçoeiros como cobras e de dentes que mordem e sangram os lábios como ferros marcando reses para o banquete do Diabo.
O improvável professor
Me agradaria que você não tivesse a sua idade, que você tivesse trinta e tantos anos menos, não conhecesse certas coisas da vida e, inacreditavelmente, me achasse o homem adequado para corrompê-la. Seria gostoso, eu imagino, irmos à sua casa, quando você estivesse premeditadamente sozinha. Eu daria uma de conhecedor e começaria a ver - presumivelmente no sofá, para não espantá-la - a partir de que ponto eu a iniciaria sexualmente. Seria excitante se você, mentindo ou não, me dissesse ter todas as dúvidas sobre o assunto. E eu não me importaria, também, que você acabasse me ensinando alguma coisa que, depois, você lançaria à conta da intuição feminina.
Seu passarinho
Ele é grande. Não muito alto. Largo. Noventa quilos, pelo menos. No frio, com o casaco, ele fica maior, enorme. É quando ela mais gosta de ser abraçada por ele. Sente-se como uma passarinha adotada por uma mãe ursa. E gosta quando ele a leva para a toca e ela se aninha nele, por cima dele, e ele começa a grunhir de satisfação. Deitado, ele não parece tão gordo e forte, e isso às vezes a decepciona um pouco. Assim como a sua voz fina, de adolescente. Quando ele fala, principalmente na cama, ela se esforça para imaginar que ele é um passarinho, o seu passarinho.
Precisão
Fazer um levantamento aerofotogramétrico do corpo da amada. Conhecer cada relevo, cada depressão, cada trecho de mata, cada fonte. Depois disso, conhecê-la em cada centímetro, sem esquecer nenhum. E, depois de conhecê-la inteira, duvidar dos dados, com o ceticismo dos filósofos, e recomeçar tudo, com mais empenho ainda, e redobrada doçura.
"O do meio"
"Não, não é aí. Você não aprende mesmo. Tira a mão. Tira. Isso. Calma. Dá um tempo. Agora vem de novo e faz como eu mandei. O do meio, o do meio."
O que é bom
"Ninguém mais, hoje, sabe o que é bom. Você, por exemplo, sabe o que é ficar esperando a luz do cinema apagar, apertar a teta da mulher com a mão direita por cima do ombro, e com a esquerda, a do diabo, ir subindo pela perna, pela coxa, fazer o dedo do meio se enfiar para dentro da calcinha, como um menino entrando escondido na lona do circo, e achar de repente aquele tufo?"
"E você, ó"
"Vou dar um exemplo. Você vai entender. Uma mulher, antigamente, era que nem manteiga. Tinha gosto. Hoje todas são sem graça, como a margarina. Lamber uma é lamber todas. Quando você começava a passar manteiga no pão, já era uma delícia. Aquela coisa leve, amarela, querendo escapar, e você, ó, enfiando a boca."
"Menino"
É a terceira noite em que ele a escolhe entre as outras dez que ficam na frente do prédio e sobe com ela ao apartamento. Como na primeira vez e na segunda, ela pede que ele se sente na cama, se agacha e diz "Agora deixa comigo, menino", enquanto começa a lhe desabotoar a braguilha. Ele fica ansioso para abrir ele mesmo os botões e, como nas duas vezes anteriores, pensa que vai se acabar antes que ela dê conta de abri-los. Mas, quando ela os abre todos, lhe puxa para baixo a calça e a cueca e sussurra "Você vai gostar disto, menino", ele sabe que por pelo menos três minutos vai gozar as delícias da língua que já começa a tocar com leves avanços e recuos aquilo que ela, desde a primeira das vezes, chama de "menino, meu menino gostoso, meu menino".
Como se para plantar papoulas
Abraçados, em pé, ele começa a beijá-la e faz correr as mãos pelas costas dela, até a bunda. Elas se fixam ali e apalpam o contorno da carne rija e simultaneamente macia como a seda do vestido que a cobre. Em cima, os lábios dele e os da mulher se mordem e as línguas se lambem. Ele pensa em alguma coisa mais, em tudo, mas ela o submete sempre a esse prazeroso castigo. Deve beijá-la, mordê-la, lambê-la. Chegará o momento em que ele e ela estremecerão como peixes fisgados. Ele retarda esse instante, não para prolongar o gozo, mas por saber que, depois, ela não deixará mais que suas mãos continuem a apertar a bunda que, em sonhos, o faz umedecer a cama e esparramar sementes sobre ela, como se preparasse um terreno para nele plantar papoulas.
Que não ousem se fazer sentir
Pousar a mão naquele tufo ruivo e guardá-lo de outras mãos. Protegê-lo como se seus fios fossem, como realmente são, um avatar da natureza. Pousar a mão ali e proibir aos dedos que ousem se fazer sentir. Que não se mexam, como se não existissem. Que só a mão fique pousada ali, sem peso. Que tudo seja como se um trigal tivesse convencido o vento a não soprar. Que a mão descanse ali, até o venturoso dia em que talvez o tufo a atraia mais para baixo, mais para dentro.
Soneto sacaninha
Quando a beijava, sentia
Que a cada beijo que dava
Ela mais forte o abraçava
E mais seus lábios mordia.
Quando já quase acabava
Com a língua que o percorria
E ao céu da boca subia
E a garganta lhe buscava,
Só então ele a despia,
Para a cama a carregava
E seu corpo usufruía.
E enquanto o gozo gozava
A língua ainda o lambia,
Ainda o mordia e o beijava.
Que a cada beijo que dava
Ela mais forte o abraçava
E mais seus lábios mordia.
Quando já quase acabava
Com a língua que o percorria
E ao céu da boca subia
E a garganta lhe buscava,
Só então ele a despia,
Para a cama a carregava
E seu corpo usufruía.
E enquanto o gozo gozava
A língua ainda o lambia,
Ainda o mordia e o beijava.
Vogais, nomes
Uma se chama Ellen, a outra se chama Roberta. No seu primeiro encontro a sós, Ellen foi Sílvio (namorado de Roberta) e Roberta foi Rafael (namorado de Ellen). Mais ou menos do quinto encontro em diante, elas já não eram nem Sílvio nem Rafael. Eram Ellen e Roberta, e continuam a ser, embora na cama vogais urgentes gemam de uma boca para dentro da outra boca nomes que só elas e a volúpia conseguem distinguir.
Arrependimento
Só uma vez se deitou com a mulher que tinha um sinal de bala na coxa esquerda, e não a teria escolhido se soubesse desse detalhe. Isso foi há três décadas, ou mais. Por uma dessas perversões que a idade traz, agravada por sua fixação em palavras, nas suas transformações semânticas e em seus embustes, hoje ele se lembrou dela, dos seus lábios borrados de escarlate, da sua voz de virago, da coxa e da bala, que ela lhe exibiu naquela noite como um trunfo sexual. Só hoje ele reconhece a força desse trunfo e se excita reminiscentemente. Não pela bala em si, nem pela marca, mas porque de repente, agora, ele pensa no que não lhe ocorreu então: que uma bala, enquanto não se conhecer sua identidade, pode muito bem ser chupada.
Glória antiga
Há muito tempo ninguém dorme nela. Está à venda na loja de móveis usados. Mas há noites em que geme ainda, parecendo reproduzir vozes que exigem e suplicam. Não são fantasmas entretidos em jogos amorosos. É a madeira, saudosa dos corpos que sobre ela gozaram outrora, no bordel.
Querido intruso
O amor não tem nenhum siso,
Noção nenhuma de nada.
Quando vem, vem sem aviso
E sempre de madrugada.
Se durmo ele nem me chama
E bem depressa se instala:
Ou se enfia em minha cama
Ou na poltrona da sala.
E mal eu me ponho em pé
Já quer de mim o café
E ai se não for bem quentinho.
No dia em que ele aparece,
A gata de mim se esquece
E vem lhe pedir carinho.
Noção nenhuma de nada.
Quando vem, vem sem aviso
E sempre de madrugada.
Se durmo ele nem me chama
E bem depressa se instala:
Ou se enfia em minha cama
Ou na poltrona da sala.
E mal eu me ponho em pé
Já quer de mim o café
E ai se não for bem quentinho.
No dia em que ele aparece,
A gata de mim se esquece
E vem lhe pedir carinho.
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