sábado, 30 de junho de 2012

Filme

Durante aquela hora e meia, nem ela nem ele olharam para a tela uma vez sequer e quando, terminado o filme, as luzes abruptamente se acenderam, os dois pareciam ter mais mãos do que quando haviam entrado no cinema e levaram pelo menos vinte segundos para encontrá-las, emaranhadas em zíperes e botões, perdidas em saliências e reentrâncias, e parecendo também ter mais dedos que os habituais.

Consolo

Em meu ombro ponho a mão,
Falo comigo baixinho
E dou-me o morno carinho
Da autocomiseração.

O amor é

O amor é um fim em si mesmo. Amar, já dizia Mário de Andrade, é um verbo intransitivo. A perfeição do amor, sua plenitude, é bastar-se, é não transcender. O amor jamais será. O amor é ou foi. O amor não tem futuro. Quando o amor se perfaz, ele está completo e não poderá ser transformado nunca, nem para melhor nem para pior. O amor é uma ideia que não tende ao vir a ser, mas à memória. O amor não são gentilezas, não são mesuras, não são jantares, não são horóscopos que se harmonizam, não são encontros sociais ou sexuais. Invocar seu nome para justificar essas ninharias, essas quinquilharias, essas deploráveis trocas de gentilezas, de corpos e de suores é algo que pertence ao repertório das canalhices, das patifarias e das indignidades.

Cinema

Os lábios dela traziam
Um gosto bom de batom,
De chocolate e bombom,
Que os lábios dele colhiam.

Memória do asco

Então a mulher soltou a fumaça do cigarro em meu rosto e, com os lábios vermelhos de batom movendo-se como um animal traiçoeiro e faminto, me disse a frase mais repugnante, mais convidativa, mais crua e mais inquietante que ouvi em toda a vida: "Menino, vamos fazer nenê?"

Tristeza virtual

Há duas tristezas: aquela que sofremos sozinhos e nos faz pensar em cordas, venenos, oitavos andares, e aquela que, compartilhada nas redes sociais, é o que é: um acontecimento. Há cada vez mais ombros virtuais, e não decepcioná-los é um dever que nos cabe, homens e mulheres modernos, ainda que precisemos recorrer a lágrimas também virtuais.

O coração das trevas

Falas pouco, cada vez menos. Já não te movem as grandes paixões, a inveja, a cobiça, o ciúme, o amor. Para a vida que agora contemplas do sofá, não precisas mais de palavras. Com quem conversarás aqui? Com a mesa, com as cadeiras, com os bibelôs? E ali, para onde logo irás, para que te servirão os substantivos, os adjetivos, os verbos? Para definir a indefinível imensidão das trevas?

Estrelas

Cai-lhe bem a tristeza, quando sob os cabelos negros as lágrimas acendem duas estrelas.

Falhos poderes

Não pedirei à nuvem que se abra e ofereça aos teus lábios a primeira gota de chuva. Assim como ocorre às vezes com os magos, os poetas bisonhos e rejeitados perdem seus poderes quando lhes falta a bênção do amor.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Alquimista

Com seu bico inquieto, o passarinho transforma o pedrisco em farelo dourado.

Errar com acerto

Beckett nos incitou a errar com método e perseverança, errar sempre e melhor, em busca do erro impecável, perfeito, um objetivo tão desejável e inatingível quanto o acerto total.

O medo de dizer

É curioso como relutamos em dizer certas palavras, como se pronunciá-las fosse uma espécie de falta de educação e pudesse, por si só, trazer-nos malefício. Dizer falecer, ao invés de morrer, dizer esposa, e não mulher, e dizer aquela doença, em lugar de câncer, não tem a delicadeza que se presume e, se algum bem faz, certamente não é à linguagem.

Amor

Se nada disso valeu,
Se tudo foi só mentira,
Que a vida então não mais fira
Um homem que já morreu.

Tudo junto

Além do amor que o consome
E o faz amargo e infeliz,
Teme a doença sem nome,
Aquela que não se diz.

O elixir do amor

O amor é uma coisa velha
E velho o seu elixir.
Composto de água e groselha,
É próprio para dormir.

Semente

Cada pequeno sono teu é uma semente lançada para aquele outro sono que um dia virá, o grande sono sem tempo e sem espaço que hás de merecer e desfrutar.

Festa

Saíram todos, apressados, e ninguém apagou as luzes do salão. Caberia ao último homem fazê-lo, mas ele está curvado sobre a mesa enorme, com um punhal fincado nas costas e a mão estendida na direção de uma taça, como se beber vinho fosse o seu derradeiro e insatisfeito desejo.

Delicadeza

Como eram gentis aqueles poetas que sabiam beijar a mão de uma dama e tinham o casaco sempre disponível e o estendiam na calçada para que a amada, pisando-o, não molhasse os sapatinhos de cinderela nas poças. Era preciso ter delicadeza com as senhorinhas, nessa época em que elas dedicavam metade do dia aos suspiros e desfaleciam a cada beijo de amor.

Pracinha

A vida se encarrega de ir baixando a crista daqueles que pretendiam tornar-se célebres, transformando-os nos homenzinhos anônimos de barba branca que toda manhã vão levar os netos à pracinha e dar migalhas aos pombos.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Por quê e porque

Millôr Fernandes dizia
Com clara e plena visão:
"Por quê?" é filosofia,
E "porque" é presunção.

Providências

Depois do final inglório,
Que tudo esteja a contento:
Que seja curto o velório
E breve o sepultamento.

Não canto

Não canto o ribeirão
canto o arroio
não canto o trigo maduro
canto o joio
não canto o clarão
canto a escuridão
canto o escuro

Canto o direito
de ter um defeito
de aprimorá-lo
e de tornando-o perfeito
assim proclamá-lo

Não canto a glória
de ter o nome na história
canto o fracasso
canto o fiasco
canto a pequena glória
de ter sido
o menos conhecido
de todos os desconhecidos
e de morrer assim
e de assim permanecer.

Antimanifesto

Não clamar
não bradar
não proferir
não exigir
não reivindicar

Reconhecer a importância
da própria insignificância
e calar.

Futuro

Não fizeste nada ainda, mas confias no futuro. Tu falas dele, tu o projetas, prevês dias gloriosos. Que sejam muitos, antes do derradeiro. Neste nunca pensas.

Correspondência atrasada

Nem sei por que estou aqui.
Ainda não me avisaram,
Mas minhas horas soaram
E há muito tempo eu morri.

Modelo único

O melhor estímulo para quem pretenda se iniciar na literatura é tomar Shakespeare como modelo a ser atingido. Tê-lo como meta é também um bom empurrãozinho para quem, no meio do caminho, apesar dos lastimáveis resultados, relute ainda em desistir de escrever.

Fim

Nas mãos crispadas e frias
E nas narinas fechadas,
Jamais as marcas iradas
E o cheiro podre dos dias.

Engano

Deixei-me todo em teus braços
E neles pus a esperança.
Eram frouxos, porém, lassos,
Indignos de confiança.

Bienal

Na noite de abertura da bienal de livros, o rapaz entrou num estande de editora e viu vários senhores que bebiam vinho e conversavam com espalhafato. Perguntou a um funcionário de crachá quem eram eles. "Ah, são autores aqui da editora. Aquele ali, ó, é o maior escritor do Brasil." "Dalton Trevisan?!", exclamou o rapaz, olhando entusiasmado para o homem de cem quilos cuja voz soava como um berro de gralha para contar quanto sucesso estava fazendo seu romance Inserções Pontuais.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Manual

A mão esquerda é melhor.
Inventa sempre jeitinhos
Naqueles velhos caminhos
Que a outra sabe de cor.

Horizontal

Serei, acho, um belo morto,
Um bem-composto finado,
No meu novo estado absorto,
Tranquilo e compenetrado.

Terceirizando

Tão fácil, quando se quer,
A culpa toda jogar
Nas costas de uma mulher
Ou num escárnio do azar.

Que ao menos

Já que não foi benfazeja
A vida, e nada me deu
De tudo que prometeu,
Que ao menos a morte seja.

Para a tristeza

Eu me eduquei para a tristeza. Preparei-me para ela, fiz-lhe agrados, cortejei-a como se corteja a mulher amada. Dediquei a vida toda a ela, com minúcias de fiscal e esmeros de florista, e digam-me se não tem razão meu ciúme quando vejo passar por mim um rosto mais macerado, mais amargurado, mais torturado pelo sofrimento do que o meu.

A última sessão

Desceu sobre mim hoje uma tristeza grande, um vazio imenso como aquele que baixa sobre um cinema aos domingos, depois que termina a última das sessões de um filme para crianças e, com as luzes já apagadas e o lamentoso som de portas se fechando, as alegres vozes, comentando cenas com os pais, vão se distanciando na rua.

A vida lá fora

Entre a literatura e a vida, optei pela literatura. Foi há muito tempo, muito. No início, foi fácil fazer-me de surdo às canções que vinham da rua, aos risos que as mulheres tornavam mais altos ao passar diante do meu portão. Eu tinha um ideal, e nele persistiria. Acreditava numa vida interior e desdenhava aquela para a qual as manhãs vinham me chamar. Foi há muito tempo, muito. Hoje não preciso mais fingir-me surdo para os jubilosos chamados que me vêm da rua. Eu os ouço ainda. Eles me procuram, continuam a dizer meu nome, mas aos meus pés eu não poderia mais dar a força dissipada na busca de um ideal que escarnece de mim com gargalhadas tão fortes quanto esses apelos que de fora ainda tentam me resgatar.

Exercício número um

Soprar-lhe a nuca, afagar-lhe
A orelha, apalpar-lhe o rosto.
Depois, com volúpia e gosto,
A boca e os olhos beijar-lhe.

Morrer vencido

Morrer vencido é viver aviltado na memória dos vencedores.

Mesinha

As mãos nas mãos, a ansiedade,
Os sentimentos iguais,
Aqui ou na eternidade
Não se encontrarão jamais.

Palpite infeliz

Aquilo de que menos precisamos no amor é justamente o que mais nos recomendam: juízo, como se o amor fosse uma ponderação do pensamento.

Mormente

É comum, quando estamos na fase de formar um vocabulário, nos apaixonarmos por palavras das quais, depois, nos envergonhamos com a mais rubicunda das vergonhas. Eu me lembro do amor com que abria espaços para um estrambótico advérbio: mormente. Viria a traí-lo mais tarde com palavras tão inconfessáveis quanto outrossim, somenos, malgrado, porquanto, inobstante. Com o tempo, voltei-me para as palavras sóbrias, sempre as mais confiáveis. Mas não garanto que não vá, amanhã ou depois, mostrar entusiasmado afeto por alguma especificidade, algum desdouro, alguns contubérnios ou algumas minigâncias.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Segunda chamada

Os vivos já te chamaram,
Mas te chamaram em vão.
Os mortos já se preparam
E logo te chamarão.

Gozo

Seus dedos voltaram úmidos, com cheiro de mar, e no meio de suas pernas algo se agitou, como um peixe fisgado, exigindo que a mão descesse de novo, rápida, para resgatá-lo do anzol e segurá-lo até ele agonizar em convulsões e revoluteios.

Fracasso

As cordas todas e as facas
Que no meu pescoço usei
Eram frouxas, eram fracas.
Sobrevivi, fracassei.

Som e fúria

E o que é afinal a vida,
Senão esta vã jornada,
Esta batalha perdida,
O som, a fúria, e mais nada?

Maus bocados

Se eu fosse um desses cãezinhos goleiros que gostam de engolir petiscos no ar, tu os atirarias cada vez mais forte e mais longe, não para apurar minha destreza, mas para frustrá-la ou para me matar de fome.

Buscá-las

Acreditar que as palavras procurem determinado escritor é ou subestimá-las ou superestimá-lo. As palavras, mesmo as mais comuns, devem ser buscadas como uma revelação e diante delas é preciso que expressemos o assombro dos milagres.

Nomenclatura

Se não fossem de Fernando Pessoa, os quatro versos ("O poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente") não seriam um poema, seriam uma quadrinha.

Carimbo

Quando escrevemos, convém desconfiar das frases que nos parecem geniais. Às vezes são mesmo, mas já foram escritas por outros (e lidas por nós). Mas continuemos lendo, ignorando a opinião daquele escritor que jamais abriu um livro de Shakespeare, para não ser influenciado por ele.

Riacho

Seu sangue se espreguiça pelas veias como um riacho que as chuvas há muito não alimentam. Quando banhado pelo sol, as lembranças de antigos verões lhe trazem uma mornidão falsa, que a noite logo desmascara, e quando as trevas se dissipam, com a manhã, ele sente que ainda, por milagre, flui no seu leito, com a lentidão de um conta-gotas.

A ilha

Um dia, quando mais uma vez ela sugeriu que deveriam ser só amigos, ele concordou. Tinham passado cinco anos nisso e afinal ele desistiu de contra-argumentar. E seria mesmo inútil insistir. O amor, que todo esse tempo fervera em suas veias, tinha agora um fluxo fraco e morno e a juventude era só uma palavra, como uma ilha dissipando-se no horizonte, num poema lido às pressas. Então, naquele dia ele finalmente se aceitou amigo, lembrando-se melancolicamente dos dois ou três versos que falavam de neblina, ou de névoa, ou de cerração - ou de neblina, de névoa e de cerração.

Quem dera

Quem dera pudessem todos os sofrimentos ser belos, pungentes e meritórios como os do amor e, sendo inesquecíveis, conservassem a dor viçosa, assim como as flores preservam seu brilho, de estação em estação.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Mictório

A mão, discreta, o sacode,
Três vezes só, sem vigor.
Mais que isso é mau, não se pode,
É falta de pundonor.

Mentira

Talvez um dia, lembrando
De nosso amor belo e findo,
Em vez de estarmos chorando
Possamos mentir-nos, rindo.

Visão de vida

Desde cedo encarei o mundo com olhos amargos. Sempre fui correspondido.

Retorno

Frutos da terra, gorados,
Nos debatemos, lutamos,
Porém só nos completamos
Quando outra vez enterrados.

Nas pequenas

Nas pequenas frases pode não haver sabedoria, mas há menos espaço para burrices.

Conspiração

O amor ainda existe, mas é cultuado em círculos restritos, porque é vergonhoso manifestá-lo. Se um dos seus adeptos é interrogado por algum estranho, ele faz tudo, menos entregar seu grupo. Uma desculpa sempre aceita pelos agentes da repressão é dizer-se militante do sexo em todas as suas modalidades.

Como rasgar uma alma

É fácil rasgar uma alma, feri-la, dilacerá-la. Não é necessário conhecer mais do que dez truques, talvez meia dúzia, quem sabe três. O primeiro deles é enredá-la na teia do amor.

Terminar, morrer

Que termine é pouco. Melhor que morra. Coisas transitórias terminam. Termina um baile, termina um trabalho, termina uma canção. O amor, como tudo que vive com pretensões de perenidade, merece a agonia, o êxtase e a consumação da morte.

Mitos

Talvez nós dois um dia possamos mesmo rir disso tudo. O homem cria seus mitos pelo prazer de destruí-los. O amor é um deles.

A metáfora

A sombra desce e se acomoda sobre o parque. A essa metáfora da vida e da morte, diariamente repetida, ninguém mais presta atenção. O menino corre ainda com sua bicicleta para onde um minuto antes havia um resto de claridade, e a mulher beija o homem que conheceu hoje e que tem língua mais áspera e pesquisadora que a do marido. Tudo ainda se move como há pouco. Só os pássaros, temerosos, se entranham na treva e deixam repousar seu canto, para que ele soe soberbo amanhã, quando a vida voltar.

A fuga

Tem notado deserções no seu estoque de palavras. Procura manter-se atento e já decobriu que as fugas ocorrem à noite, logo depois do jantar, quando ele, sonolento, vai sentar-se no sofá. Elas esperam que ele feche os olhos, começam a se esgueirar e rapidamente escapam pelo vão da porta. Ontem ele fingiu que dormia e viu três fugindo. Uma delas era o amor, outra era a esperança. Ele não identificou a terceira, mas imagina que tenha sido a vida.

domingo, 24 de junho de 2012

Como será

Ele, que a glória procura,
Terá um destino inglório,
Da depressão à loucura,
Da loucura ao sanatório.

Odisseia

Encalhada na valeta, a tampinha espera nova chuva para reassumir sua recém-descoberta vocação de barco. Tem pela frente uma longa aventura. Está no topo de uma ladeira.

Jardim

Incomodada pela algazarra dos pássaros, a árvore avisa às folhas que se segurem e sacode-se toda, como um cachorro, para expulsá-los.

Poderio

Não sou tão frágil assim.
Com minhas forças, tão fracas,
E minhas luzes, opacas,
Estou à altura de mim.

Amargo será

Amargo será o dia
Em que lembrar-nos do amor
Será nossa maior dor,
Nossa pior agonia.

Parecer literário

Ao sol caminho. Poderia dizer que caminho ao sol, mas me pareceria menos literário, e parecer literário tem sido minha maior busca e minha infelicidade. Inverter palavras é um dos truques que aprendi. Pena que tenham me ensinado poucos.

Sabedoria

Como previam os velhos de minha família quando eu era menino, atingi a idade deles, mas infelizmente não alcancei a sabedoria que eles diziam ter e que me asseguravam que eu também teria, enquanto com o mindinho cavoucavam cera na orelha.

Gênio

O primeiro passo para a infelicidade é sentir-se gênio. O segundo é óbvio e imediato: sentir-se incompreendido.

Uma estrela

Olhe para cima, por favor, olhe. São só sete horas, mas talvez já tenha aparecido uma estrela. Vocês podem conversar, você e ela, eu sei que vocês podem, você tem o perfil de quem pode. Não, eu não estou louco. Eu só... Você tem mesmo que ir? Isto aqui? Não é nada, não. Pode deixar. Foi só um cisco. Olhe ali, não é uma estrela?

Diz, diz

Diz que me amas, diz, diz, ela exigiu dele, mordendo-lhe a orelha, no primeiro encontro que tiveram, e também no segundo, e também do terceiro em diante, até a noite em que o empurrou para fora da cama: "Para de cuspir na minha orelha, para. Eu não aguento mais essa encheção de te amo, te amo, te amo. Ah, ninguém merece." Nunca mais se viram nem se disseram nada.

O que é a juventude

Vai chegando o tempo em que os clamores e os brados serão só mais uma de tuas lembranças. Ressoarão ainda em teus ouvidos, mas teus lábios não conseguirão repeti-los e todas as tentativas, se as fizeres, não produzirão mais que balbucios incapazes de acordar teu sangue. Saberás, então, mais do que quando eras jovem, o que é a juventude.

sábado, 23 de junho de 2012

Emoticons

Ah, que patetas fomos, nós nos dissemos naquela tarde, e escarnecemos daqueles versos que eu te mandava e daquelas tuas mensagens que terminavam com os bonequinhos de cujo nome eu jamais lembrava e hoje misteriosamente lembrei. Naquele dia zombamos de tudo que por tanto tempo nos alegrou e, porque a ocasião parecia propícia, nos dissemos adeus. Ah, não sei por ti, mas por mim eu gostaria de receber hoje teus emoticons e talvez te agradasse ler de novo meus versos disparatados. Poderíamos até acabar rindo outra vez de nossa criancice, mas pode ser que já não houvesse escárnio em nosso riso.

Sobreviventes

Triste é termos sobrevivido ao naufrágio do amor e restar-nos contemplar o mar, agora manso, com inveja dos que se afogaram.

De vergonha

Se estes olhos voltarem a chorar um dia, que seja não mais de sofrimento pelo amor perdido, mas de vergonha por terem chorado tanto por ele.

Rompimento

Por desencontros pequenos,
Não nos veremos jamais.
Para um, o que era somenos
Era para o outro somais.

Certa é só a sepultura.
Nova esfera, nova via
É tudo só fantasia,
É tudo só conjetura.

O simples, em literatura

Quem lida com a arte ou o ofício de escrever sabe como é complexo atingir a simplicidade, principalmente para os jovens. Acreditando que a linguagem literária precise ser tão diferente quanto possível da linguagem comum, eles a enchem de penduricalhos de todo tipo e acabam por torná-la semelhante a uma fantasia carnavalesca. Recusam-se a escrever frases como "o homem andou até a esquina" e vêm com coisas como "o homem dirigiu seus passos para o ponto em que a rua era cortada por outra" ou extravagâncias maiores ainda. Geralmente, depois de buscar e rebuscar formas de se exprimir, o candidato a escritor descobre que o melhor modo de dizer que o homem andou até a esquina é dizer que o homem andou até a esquina.

Poesia e prosa

Na prosa, se começa a chover, abrem-se guarda-chuvas. Na poesia, pode-se esperar o milagre do arco-íris.

Derivativos

Todas essas trigonometrias, essas álgebras, essas filosofias foram concebidas ladinamente pelo homem para que não o acusassem de se preocupar unicamente com o amor.

Artífice

Podes não conquistar a felicidade. Ela depende muito dos outros. Mas, se é a infelicidade que buscas, ela depende também, um pouco, dos outros, porém muito mais de ti.

Também eu

Também eu bebi o vinho em lábios que o ofertavam junto com palavras que enlouqueceriam os marinheiros de Ulisses. Também eu acreditei na verdade do vinho e não me agrilhoei como devia. Saltei ao mar e venci as ondas para gozar aqueles momentos que imaginei infindáveis e que, findos, inocularam veneno em minha alma. Quis morrer, mas nem os vagalhões nem os rochedos me aceitaram. Hei de pagar a minha pena e definhar à vista de todos, para que me tomem como exemplo. Nos lábios que dediquei à luxúria começam a despontar as chagas que hão de tomar todo o meu corpo. Ah, se eu tivesse ouvido a razão, exibiria agora nos pulsos a marca dos grilhões que teriam me salvado.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Oração

Amor, meu deus, meu senhor,
Amor, meu guia e meu amo,
Vos amo e venero, amor,
E vosso poder proclamo.

Tão maduros

E, estando os dois de acordo, declararam extinto o amor. Apertaram-se as mãos, como convinha a uma dama e a um cavalheiro, beijaram-se no rosto, evitando desvios de rumo, e cada um foi andando para um lado. O céu estava azul, a tarde majestosa, e eles viram nisso um bom presságio para o que tinham acabado de decidir. Havia ainda, porém, tempo ainda para chorarem e desfazerem o acerto. Pareceu que aconteceria isso, quando, já de longe, um em cada esquina, se acenaram. Mas o momento passou e eles continuaram caminhando para lados opostos, sentindo-se tão racionais e tão maravilhosamente maduros.

Encontros

Aos outros coube o prazer
De vê-la, de convidá-la,
De tê-la, de desfrutá-la.
A mim coube só querer.

Retornar, regressar, voltar

Entre retornar e regressar, aconselho que você, se estiver fazendo um texto para jornal, esqueça os dois e opte por voltar. Se for um texto engravatado, com pretensões de estilo, escolha retornar. Mas, se for um poema e você quiser piorá-lo, escreva regressar - tendo como rima, se possível, dealbar ou preamar.

Os quarenta e um

Acho antipática a designação "seguidores". Faz pensar em seitas, em conluios, em confrarias. Pelo tipo da maioria dos textos que tenho colocado aqui, a melhor denominação seria confidentes. É a esses quarenta e um confidentes que têm a bondade de me ler que eu me abro. E é como se estivesse contando diariamente a cada um, em voz baixa, as miudezas do meu dia e a precariedade dos meus sonhos. Peço, aos quarenta e um, e aos outros eventuais leitores, que sejam benevolentes com os textos nos quais me queixo e me lamurio, como provavelmente seriam também generosos com quem lhes pedisse cinco minutinhos de atenção para contar uma história pessoal e triste. Se encontrarem nesses textos algo que se pareça com literatura, será só mais uma face dessa benevolência e dessa generosidade.

Amor que

Amor que não dói é como uma brisa soprando no rosto de um defunto.

O que a literatura não é

Querer que a literatura indique soluções para a nossa vida é menosprezar os bons serviços da astrologia, da cartomancia e da vidência.

Adeus

Como aceitar que é passado,
Se fere ainda e agonia
E se nem mesmo no dia
Sangrou como tem sangrado?

Mostrando serviço

Se é para fingir cultura,
Não perco nenhuma chance,
Mantenho-me sempre à altura,
Honni soit qui mal y pense.

Cozinha

Liberta da torneira pela mão da empregada, a água canta por alguns instantes na pia. Engaiolado, o passarinho imagina os belos sons que inventaria se fosse solto também pela mão e, escorrendo pelos pratos e talheres, pudesse escapar pelo ralo.

Animal jovem

Deu de sonhar todas as noites com depravações. Não há enredo nos sonhos, só orgias das quais, depois de dar conta de dezenas de mulheres, acorda como uma casa desmoronada. Reúne seus escombros, admira-se sempre de não ter marcas de chicote e de bocas pelo corpo e, quando chega ofegante ao banheiro e se olha no espelho, para fazer a barba, sorri um sorriso de vampiro doente. Nunca leva para os sonhos esse rosto acabado, esses olhos mortiços, essas mãos que pegam trêmulas o aparelho de barbear, esses lábios murchos. Esse rosto ele levará ao escritório, onde o chamam de senhor e onde ninguém imagina que à noite, no seu quarto, com a luz apagada, ele se transforma num animal jovem diante do qual fêmeas formam uma fila impaciente e se dilaceram enquanto aguardam a vez.

Percurso

O problema de qualquer bom princípio é que, assim que ele vira a esquina, já não se pode garantir que rumo tomará nem qual será seu fim. Não diz outra coisa o provérbio segundo o qual de boas intenções o caminho do inferno está cheio.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

A arte de morrer

Leio, com vergonhoso atraso, os sermões do Padre Antônio Vieira sobre a arte de morrer. Magistrais na argumentação e no estilo, são indicados a todos os que um dia serão chamados para atestar sua condição de mortais.

Ponto para ti

Dirás que eu ter me salvado de ti não foi uma longa conquista do meu sofrimento, mas um ato de tua generosidade, ao te afastares irremediavelmente de mim.

Regressão

Se fizer uma regressão em busca do que fui, descobrirei certamente que fui na Idade Média o bobo da mais obscura das aldeias e meu maior sonho, também certamente não realizado, terá sido o de ser bobo do rei.

O básico

Respiro ainda e, por ter
O que é viver esquecido,
Respiro fundo e, iludido,
Presumo que isso é viver.

A inimiga

Se as categorias gramaticais dispusessem de associações para representá-las, a dos adjetivos teria como maior inimiga Gertrude Stein, por sua célebre frase: "Uma rosa é uma rosa é uma rosa." Um desplante ela, com tantos belos exemplares da classe, não ter usado nenhum. Pérfida Gertrude.

A maior ventura

Dormir é minha maior ventura. Esquecido de mim, sem saber o que sou, sou o que gostaria de ser: silêncio e treva.

De flores

Quero falar de flores, não daquelas que se tivessem nariz o empinariam, por se saberem louvadas por poetas e teorizadas por filósofos. Quero falar destas que todo dia encontro no caminho, cada manhã mais mirradas e, como eu, cumprindo humildemente sua mortalidade.

Viver de novo

Costumo ser mais cético do que crédulo e, até porque uma nova vida seria provavelmente uma repetição do tédio desta, não me animo a apostar nela. Mas acho estranho que aqueles que mais descreem dessa possibilidade apontem a hipótese como absurda. E estarmos vivos, e respirarmos, seria o quê, na visão deles? Algo normal, algo corriqueiro?

Notícias

Quando te fores, o vento, esse amável espião, continuará a te trazer notícias dela, para deixá-las, conforme o combinado, na ameixeira. Estranhará ver tua janela sempre fechada.

Coadjuvantes

Continuamos nos esforçando, todos, para merecer ao menos a honra de ser exceções a Dalton Trevisan.

Aquele poema

Talvez venhas a precisar de mim um dia. Então, se lembrares do meu nome e ele estiver ainda na tua agenda, me perguntarás sobre a escritora polonesa (quem era mesmo, Raul?) que fez aquele poema triste sobre o gato que sentia falta do dono e imaginava represálias para quando ele voltasse, sem saber que estava morto. Antes dessa pergunta, tu, sempre atenciosa, me farás outra. Vais querer saber de mim, de minha saúde, e eu te direi que nunca estive melhor. Estranharás minha voz fraca mas, afinal, depois de tantos anos, alguma diferença precisará haver, não é? E repassarás o nome do poema e da poeta ao teu melhor amigo.

Rimas baratas

Tem um ganha-pão exótico: vende rimas a poetas. Pode dizer, por isso, que, ao contrário do que se supõe, os poetas às vezes podem ser mesquinhos ccomo os agiotas. Hoje recebeu a reclamação de um deles, acompanhada da exigência de abatimento no preço inicialmente acertado. O comprador alega que isósceles é uma rima imperfeita para Aristóteles. "Olhe", argumentou o vende-rimas, "a melhor que eu tenho é essa. Se você quiser, eu passo o telefone de um fornecedor parnasiano. Ele é especialista nessa área de rimas toantes e consoantes."

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Um romance

Alguns julgam sua vida digna de ser retratada num romance. A minha não chega a tanto. É no máximo assunto para uma piada, e de mau gosto.

Compromisso

Fecha as janelas, cerra as cortinas, veda todos os vãos, mas o sol sempre encontra um jeito de se insinuar por alguma fresta e lembrar-lhe que, como os outros homens, ele continua condenado à danação de viver.

Os que não são Dalton

Acha que escreve tão mal ou tão bem quanto aqueles todos que não são Dalton Trevisan.

Carlos Zéfiro

Aqueles que décadas atrás conseguiram trazer o sêmen à tona lendo os livros de Carlos Zéfiro obteriam o mesmo resultado contemplando uma foto de cacto. Carlos Zéfiro não era erótico, era humorístico. O gozador não era seu leitor, era ele.

Eu na Ilha de Caras

Não, Roseli, mesmo que eu fosse famoso, nunca me levariam à Ilha de Caras. Nenhum fotógrafo, nenhuma câmera se disporiam a fixar-se em minha tristeza. E, se me convidassem, nos dias em que eu estivesse lá haveria um rancor da natureza e se notaria a má vontade do sol, enclausurado entre nuvens. A praia levantaria ondas de protesto e o sorriso das celebridades se cansaria de esperar o momento de se abrir. Logo descobririam em mim a causa de tudo e, convidado afavelmente a me retirar, assim que o carro reservado para o meu transporte começasse a se afastar, o sol se mostraria pleno e as ondas se apaziguariam. Como, porém, sempre que me mencionassem, o cenário se fizesse novamente sombrio, seria proibido pronunciar meu nome ali até o fim dos séculos, fato facilitado pela já natural impronunciabilidade do meu sobrenome polonês. Não, Roseli, jamais você me verá fazendo jacaré com a Ana Maria Braga e a Susana Vieira.

Naftalina

Tu também, coração, não ficarias mal no armário, pendurado num cabide como os velhos ternos e protegido pela naftalina.

Pesquisa

Enquanto tiravas o teu cochilo depois do almoço, só no teu bairro, essa pequena célula de tua cidade, três garotos se viciaram em crack e duas garotas foram estupradas nos fundos de um prédio em construção. E durou só meia hora o teu cochilo. O que acontecerá à noite se te entregares às tuas oito honestas horas de sono? Se fosse feita uma pesquisa em São Paulo, qual seria a porcentagem dos que se declarariam dispostos a dar uma procuração a Deus, para que ele cuidasse dos nossos meninos? Conseguiria ele mais do que um traço?

Melhor

Estás bem melhor, eu sei,
Longe de minhas mensagens,
Salva de minhas bestagens,
Livre do amor que te dei.

Naufrágio

O nosso amor naufragou
E à tona vêm os destroços.
Vêm os meus, os teus, os nossos,
O resto o mar afogou.

As flores

Ah, se fôssemos loucos o bastante para ver nossa rua de repente coberta de flores tão soberbas que os carros se recusassem a passar por ela. E se, saindo de casa pisando com cuidado, descalços, víssemos as outras ruas do bairro atapetadas de flores e soubéssemos, pela televisão, que todas as ruas da nossa cidade, e todas as ruas de todas as cidades do mundo estavam ocupadas por elas. E se pudéssemos, todos os homens, mulheres e crianças do planeta, esquecer de tudo mais e dedicar-nos só à saudável loucura de contemplar as flores e de ocupar-nos em mantê-las vivas.

Aqui não

Tenho sido tão rejeitado, em tudo, que - imagino - só com uma carta de recomendação e alguma propina me aceitariam num hospital ou num cemitério.

Capitulação

Quando descobrimos que estamos condenados a viver, ou nós nos lamuriamos ou fazemos como os outros, relaxamos e fingimos gostar.

O senhor da Terra

Uma das bazófias do homem é se achar capaz de destruir o planeta. Ele a expressa em tom fingidamente preocupado e pergunta, com falso pânico, qual será o futuro dos seus descendentes. Enquanto isso, faz tudo que pode para ir arruinando o que estiver ao seu alcance. O que o homem pode e vai destruir é o próprio homem - e quem garante que a Terra não ficará melhor sem ele?

Tal qual

Quantos que hoje deixaram de ser escritores para se tornar personagens literários bradavam, ainda ontem, contra quem assim procede. É doce o vinho do sucesso, e as condecorações pregadas no peito fazem bater mais forte o coração.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Os macacos

Se ainda restou algo a salvar na espécie humana, creio que esse papel caberá às mulheres. Vejo isso em tudo, mas, como este blog pretende ter ligação com a literatura, o que eu quero dizer, e digo como leitor apaixonado, é que nessa área as mulheres andam dando as cartas. Antigamente, escrever era considerado (pelos homens) uma tarefa tão extraordinária e fora do alcance para as mulheres que, como uma promessa de exotismo, as antologias de poemas ou contos escritos pelas mulheres tinham sempre, no título, a palavra "feminino". Os homens apanhavam esses livros com uma expectativa semelhante à de quem, num circo, espera ver um macaco tocar bateria. Hoje os macacos somos nós e será justo que nossas coletâneas venham com o necessário aviso: textos escritos exclusivamente por homens.

Entre isso e aquilo

Olha para ela e, entre poético e prático, imagina que gosto terão as estrelas do céu de sua boca.

Momento

Parar um pouco, esperar,
Ir devagar, demorando,
Adiando, aguentando, quando
Tudo em ti quer acabar.

O preço

Ressoa ainda o estampido
Na casa de quem julgou
Ser boa a vida e pagou
O preço de ter vivido.

Uma para a outra

A vida é a matéria-prima para a literatura. A recíproca deveria ser verdadeira.

Madeleine

Para sua grande viagem pelo tempo, Marcel Proust não levou como provisão nada além de um bolinho.

Agrado

Quando está carregada, a ameixeira bate delicadamente com seus galhos no janelão da sala, para me ofertar seus frutos.

Cicatriz

Quando menino, os velhos me pareciam exemplares de outra espécie e eu não conseguia imaginar que um dia viesse a tornar-me um deles. Hoje, vendo os meninos, duvido de que tenha sido um, e uma das maneiras de me convencer de que fui é apalpar na perna a cicatriz que me deixou uma queda de bicicleta, aos doze anos.

Navio

Como um navio velho, naveguemos ainda com altivez, mesmo que seja nossa última viagem, e possamos dar a impressão de que ao rasgar as ondas afugentamos ainda os tubarões e, sob o generoso embuste do sol, nos sintamos capazes de encantar os olhos dos meninos e atrair a voracidade dos piratas.

Quilo

Que inveja tenho daqueles que, depois de almoçar no botequim que anuncia seus pratos com giz, numa lousa, exibem o ventre saciado e palitam os dentes preguiçosamente ao sol. Enquanto eles eructam publicamente sua satisfação, eu penso na maldição que caiu sobre mim quando fui tentado pela poesia.

Messe

No semear sou mesquinho.
Ao solo bom o que deito
É sempre um grão imperfeito
E colho um trigo daninho.

Nosso tempo

Começamos nossas frases sempre com "no meu tempo", como se um dia tivéssemos sido alguém. Como garotos bocós, cremos na posteridade e na eternidade e julgamos que a nós pertencerá uma boa fatia tanto de uma quanto da outra, pelo que achamos ter feito em nosso tempo, em nossa época.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Ser-se

O que menos sei é ser-me.
Sou outro, fui sempre assim,
Mais fácil é, para mim,
Matar-me do que morrer-me.

À mão

Não sofre mais. Nela pensa
E quando, em doce ilusão,
Acontece tê-la à mão,
De tudo se recompensa.

Por tudo, por nada

Choro ainda por ti, e quanto!
Em mim tua imagem vive.
De ti foi tanto o que tive
E o que não tive foi tanto...

Carona

Você ali se encontrava
Por onde tudo passou,
E se exibia, e implorava,
Mas nem a morte parou.

Só numa coisa não

As coisas todas que eu quero,
As quer também toda a gente.
Só numa sou diferente:
Do amor nada mais espero.

Autoajuda

Quando estiveres sofrendo, muito mais do que agora, e julgares impossível suportar, pensa, como os outros pensam, que o amor foi só algo que inventaste para te entreter, um passatempo, um joguinho de celular, uma ideia que não deu certo ou deu certo pelo tempo exato para não te aborrecer.

Para os lábios certos

Frutos jovens, frutos verdes,
Se para lábios errados
Vós estiverdes guardados,
Melhor será se morrerdes.

Ele gostaria

Ele gostaria que fossem literários esse amor, essa aflição, essa dor. Gostaria que se mostrassem tão belamente literários que não fosse possível exigir-lhes beleza maior. Gostaria de fazer desse amor, dessa aflição e dessa dor um amor, uma aflição e uma dor que incutissem em quem o lesse a convicção de que todos os amores, todas as aflições e todas as dores seriam bem descritos se descritos dessa forma. Gostaria que fossem literários e não o martirizassem tanto, ou que, sendo reais como são, o matassem, como os maiores amores, as maiores aflições e as maiores dores deveriam fazer sempre, para que nunca se duvidasse de sua grandeza.

E você?

Já tantos mortos estão,
E você, que odeia a vida,
E você, tão suicida,
E você ainda não.

domingo, 17 de junho de 2012

Dez a mais

Pesou-se: oitenta quilos, dez a mais do que o ideal. Está preocupado. Não é nada bom para a sua fama de moribundo.

Direito adquirido

Na entrada do cemitério, uma placa enorme e desnecessária: vagas para idosos.

Legado

O amor lhe deixou rugas, um olhar distante, às vezes entendido como expressão de sabedoria, uma indecisão que inicia todas as suas frases e um cansaço ofegante que as termina. Deixou também alguns objetos, coisas que por afeição ele foi acumulando e hoje não lhe dizem quase nada. Também nada lhe dizem as cartas que ele pega na gaveta, tentando sentir ao menos um pouco do que sentia quando, com suas envergonhadas lágrimas de homem, desmanchava as palavras que lhe juravam amor.

Só início

Há muito eu sei que é assim:
Que o sonho da eterna glória
Não chega a ser uma história,
Só tem início, não fim.

E outra vez é domingo

Desculpem-me se chover hoje, se o passeio não der certo, se o programa der errado, se tudo for mau, se tudo for pior, se tudo for péssimo. Desculpem-me, mas é domingo e, fechado aqui na sala, imerso nos livros e na tristeza, rejeitado pela alegria, olho rancorosamente para fora e meu ressentimento, minha inveja, meu despeito, se pudessem, talvez não derrubassem o sol, mas o apagariam com um eclipse eterno.

Foi pouco ainda

Eu amei muito, e quem ama
Assim como amei, demais,
Se de algo um dia reclama
É não ter amado mais.

Major Quedinho

Nos meus sonhos (todas as noites, meu Deus, todas as noites), vago pelas madrugadas da Major Quedinho e pergunto a outros revisores, tão desnorteados quanto eu, como alguém pôde mudar o endereço do jornal sem nos avisar. E minha canetinha no bolso se impacienta, ansiosa por vírgulas e por crases, enquanto a garoa molha meus cabelos ainda longos e louros, desliza pela face de ébano do poeta Oswaldo de Camargo e orvalha o verde chapéu do também poeta Sânzio de Azevedo.

Fazer algo

Resgatar um cachorro da enxurrada, pagar um pastel a um menino na feira, deixar que me agrida um inimigo, cuspa em mim um mendigo ou me atropele um furgão do correio. Fazer qualquer coisa que me dê a impressão de que tenho alguma utilidade, ainda que a menos útil de todas, para não me sentir tão miseravelmente triste por este indesejável presente de estar vivo.

Dinossauros

Quando um dinossauro, como eu, introduz num texto a palavra "hoje", é para confrontá-la com a palavra "antigamente", que abrange uma época da qual nem eles se lembram bem, mas que descrevem sempre como muito superior a esta, uma época de bondes preguiçosos e serenatas. Tudo era melhor então, ah, como era, dizem eles, digo eu, e para dar peso ao nosso argumento apresentamos nosso histórico e nossa identificação de fósseis: uma foto de nossa caderneta escolar (ah, como eram diferentes os colégios). Mas quem verá no nosso rosto de meninos algum traço daquilo em que nos transformaríamos, nestes olhos encovados, nestes sorrisos murchos, nestas rugas tristes como a desesperança que só admitimos quando estamos sozinhos? Estamos assim, já com o desenho da morte e o seu carimbo, prontos para a terra ou para o fogo. No entanto, dizemos com orgulho, como se pudéssemos ter algum, que não nos trocaríamos por dois rapazes de trinta e cinco anos.

Sofrida idade

Aprendemos na escola que nosso corpo se divide em cabeça, tronco e membros. Com a sabedoria que nos trouxeram os anos, descobrimos que há outras partes, muitas mais, todas feitas para doer e supliciar.

sábado, 16 de junho de 2012

Norte

No meu rumo para ti,
Busquei mas busquei errado
Um norte desnorteado
E, sem te achar, me perdi.

Um azul (para Frida)

Foi envolto por um azul tão denso, tão espesso, tão compacto, um azul tão de nuvem que, se nele enfiasse o dedo e abrisse um furo, faria a tarde chover.

Mumbais

Acordar e saber que estás em alguma parte do mundo - ainda que longínqua e inacessível talvez até aos meus e-mails - me faz abrir os olhos e ter alguma esperança no dia. Giro o globo terrestre e vou pondo o dedo aqui, ali, mais acima, um pouco abaixo. Num desses pontos estás, e, sendo onde for, é o que basta para se abrir em mim uma expectativa tão tola, tão doce, tão bela. Por ti, eu todas as manhãs volto a ser menino e recordo as antigas lições de geografia no Colégio Alfredo Pucca. Quem diria que alguns nomes de cidades, certas Novas Délhis, certas Tóquios, certas Amsterdãs, certas Kualas Lumpures, certas Bombains transmudadas em Mumbais viriam sobressaltar tanto meu coração?

Resultado

Da vida nada mais quero.
No fim da minha jornada,
A soma de tudo é zero
E o fruto de tudo é nada.

Sobre o quê

"Sobre o que você tem escrito?", ela me perguntou, e eu, olhando para os seus olhos, seus cabelos, seus lábios, dos quais há três anos venho extraindo todos os meus parágrafos, minhas frases e até minhas reticências, respondi: "Sobre a vida."

Batom

Tem ainda o guardanapo. Sempre que o puxa do meio do livro de Philip Roth, tem vontade de colar os lábios à boca que o batom deixou no papel mas, em nome de um resquício de razão, resiste. Porém às vezes, mesmo sabendo estar sozinho, olha bem ao redor e, com o rosto em fogo, se submete juvenilmente à tentação.

Manhã de sábado

O sol nasceu majestoso, pleno, radiante - um presente para aqueles que ainda acreditam no exercício de viver.

Pragas benfazejas

Aspira voluptuosamente o ar, como faz sempre que está diante dela. Vem-lhe à ideia tudo aquilo que os jornais dizem estar envenenando a cidade: vírus, fungos, bactérias. Mas aspira de novo o ar, com mais força ainda. É vida tudo que lhe vem dela.

Desforra

Enquanto o homem arfa com seus oitenta e tantos quilos sobre ela e grunhe em cada estocada, ela, acariciando a grande mulher nua que ele tem nas costas, sente que é por essa tatuagem, e pelas outras que se espalham pelo resto do corpo (mulheres em diferentes estágios de nudez), que ela se dá a ele assim no motel. Seis meses antes, tinha querido levar lá um primo, dez anos mais jovem que ela, mas ele se fizera de desentendido. Garoto bobo, todo limpinho, certinho, sem um cravo no rosto, sem um fio de barba. Está em Viena agora, já faz um mês, estudando música. Enquanto o homem acelera o ritmo das estocadas e geme como se o estivessem esfolando, ela imagina o primo deitado também numa cama, suportando o peso de um homem, e por um momento deseja, com rancor, que seja um carroceiro mais bruto ainda do que este que a sacode como se fosse quebrá-la, e que ele dilacere aquela carne branca de pianista. Mas não seria disso que o priminho gostaria?

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Maçã

Olha a mulher que sai da galeria, olha-a inteira, uma vez, duas. Na terceira, pensa em uma maçã saboreada lentamente, lentamente, com dentes que mordem com ternura e língua que roça a polpa como se tocasse seda.

Viver

Viver não é necessário. Viver é intoleravelmente inevitável.

Livre-arbítrio

Livre-arbítrio é aquela coisa chata, impertinente, que nos impede de atribuir nossos fracassos à má sorte e ao destino. É como aquele amigo metido a sabichão que, só de ver nossa cara amarrada, vai dizendo: "Eu não avisei?"

Replay

O beijo que não te dei,
Que minha boca esboçou
E só no esboço ficou,
Te dei depois, no replay.

Custo-benefício

Merece o amor nossa estima,
De nós qualquer recompensa,
Se eleva nossa descrença
E abaixa nossa autoestima?

Cativeiro

Se um dia, por acaso, nos reencontrarmos, diga tudo, mas de modo algum, por favor, comente que eu estou bem, com uma ótima aparência. Será uma covardia que certamente não farás com a minha dor. Seria como dizer a alguém submetido a um mês de cativeiro num porão que as bolachas de água e sal e o recolhimento lhe deram enfim a silhueta desejada.

Script

Quem faz papel de tolo
E atua como atuei
É lícito alguém supô-lo
No final coroado rei?

Manhã

Na rua o ruído cresce.
Nasce lá fora outro dia
E eu, que estar morto queria,
Ainda estou vivo, parece.

Provas

Que nós, estes montes de carne e ossos, tenhamos uma voz, que falemos e escrevamos, pode ser ou uma prova da existência de Deus ou simplesmente uma prova da presunção de quem fala e escreve.

De novo?

Que conforto pode ter alguém depois de ouvir que morrer é só o início de outra vida?

Pesadelo

Tenho medo de fechar os olhos e, morto, ser sacudido ainda pelo amor e ter a incipiente paz perturbada por ele e sangrado como ontem, como agora, como sempre fui. Porém mais medo tenho ainda de que, de repente, ele se dê conta de que estou morto e pare de me sangrar.

Socorro

É sempre direta a linguagem dos verdadeiramente desesperados. Mas eu, tolo, pretendi salvar-me com os artifícios da retórica, a cadência da poesia, a lógica da prosa. Minha pirotecnia verbal afastou de mim todos os que se aproximaram. Quis salvar-me em grande estilo e hoje, descrente já de tudo, penso que vesti minha dor com tão rica seda que ninguém a olhou no rosto para ver sua aflição.

Revoada

Ouvi na tevê que os pousos estavam suspensos por uma hora em Congonhas e imaginei que magnífico seria, se a ordem se estendesse aos passarinhos, vê-los todos juntos por sessenta minutos revoando pelo céu paulistano e exprimindo com cantos agudos sua indignação.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Como convém

Ele pede aos amigos que não se preocupem nem deem ouvidos a boatos. Se for fazer uma besteira, principalmente aquela grande, promete avisar uns minutos antes, pelo facebook. Seguirá o ritual e a etiqueta da internet. Curta quem curtir.

Esquece

Se boa impressão deixei,
Peço que a esqueças. Não
Mereço tua atenção.
Te enganaste, me enganei.

Dimensão

Eras demais para mim, eu logo vi, e, pequeno por natureza e por determinação do meu destino, me apequenei ainda mais. Te agradeço por teres esclarecido minha dimensão. Hoje voltei a olhar para o chão, e para os meus pés, que jamais conhecerão o caminho das estrelas, embora, por um breve delírio do meu sonho e por um dia haverem andado ao lado dos teus, eles tenham acreditado ser possível atingi-las.

Doença

Quando no amor você pensa
E no que ele o faz sofrer,
Você vê que ele é doença
E que foi bom adoecer.

Ainda que tarde

Que saibas, ainda que tarde,
Que não te desejo mal,
Que meu afeto é igual
E a chama por ti ainda arde.

Quem te fez

Amor, quem te fez assim,
Com todos tão amistoso,
Com os demais tão generoso,
E tão cruel para mim?

Destinatária ausente

Matou-se numa manhã de verão. O estampido dispersou tumultuosamente os pássaros da ameixeira, mas nenhum deles sabia onde morava aquela a quem era dirigido o bilhete deixado na mesa da sala, e se soubessem não adiantaria. Ela andava longe, no Japão, na Índia ou nos Estados Unidos, num desses lugares aos quais costumam ir as mulheres quando as aborrece a paixão de um homem.

Confissão

No dia em que me matar
Este amor que me consome,
A Deus terei que contar
O teu pecado e o teu nome.

Zen

Enfim a paz merecida.
Tão bom ficar assim morto,
Ou quase, alheio a esta vida
E só em deixá-la absorto.

Pipocas

Como um saltimbanco encantado com a menina da primeira fila da plateia, eu me esmerei nos meus melhores números, e por ti atirei argolas e laranjas, e as apanhei com uma precisão que depois não consegui repetir nunca. Se tivesses ficado ali por toda a eternidade, por toda a eternidade eu continuaria atirando e aparando argolas e laranjas. Que atuação foi a minha naquela tarde! Que destreza! Como teus olhos me acompanharam e quanto esperei ver neles um brilho especial, que só acendeste, porém, quando viste aproximar-se o garoto loirinho que vendia pipocas de fileira em fileira.

São Paulo

São frios os dedos desta cidade, mesmo quando nos acariciam. Somos todos forasteiros para ela, porque lhe disseram que ser cosmopolita é isso.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Os outros

Os outros, os que até dormindo encontram um jeito de rir, não dão atenção a nós, os tristes, e afastam-se quando nos veem. Eles nos chamam de loucos e de idiotas, mas no íntimo receiam que tenhamos descoberto a verdade sobre a vida e queiramos revelá-la.

Em pé, na esquina

Dava-se em pé, encostada num poste, na esquina. Todos os que quiseram levá-la para o conforto de um carro ou de um quarto falharam. Entregava-se ali, só ali, como se vivesse uma fantasia ou expiasse uma condenação.

De Fernando Pessoa, sobre seus heterônimos

"Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de gênio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?"

"Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria."

(Do livro "Fernando Pessoa - Alguma Prosa", organizado por Cleonice Berardinelli, Editora Nova Fronteira.)

Reflexão sobre a sensibilidade, de Fernando Pessoa

"Nenhuma época transmite à outra a sua sensibilidade; transmite-lhe apenas a inteligência que teve dessa sensibilidade. Pela emoção somos nós; pela inteligência somos alheios. A inteligência dispersa-nos; por isso é através do que nos dispersa que nós sobrevivemos. Cada época entrega às seguintes apenas aquilo que não foi."

(Do livro "Fernando Pessoa - Alguma Prosa", textos selecionados por Cleonice Berardinelli, Editora Nova Fronteira.)

De Fernando Pessoa, sobre a poesia

"É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito diante das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas e lutasse para recordar esse acontecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condições mas de nada mais se recordando."

(Do livro "Fernando Pessoa - Alguma Prosa", textos compilados por Cleonice Berardinelli, Editora Nova Fronteira.)

Você

Você me faz escrever,
Contar os dramas que passo,
Minha aflição, meu fracasso.
Você me fará morrer.

Cãozinho

Eu tive então a certeza
De que se houvesse um jantar
Irias me colocar
Embaixo da tua mesa.

Gentil

Amor, tão gentil tu és
Que até mesmo os teus venenos
São deleitosos e amenos.
Amor, me esmaguem teus pés.

As três palavras

Creio que, se fosse mandar-te uma mensagem hoje, eu escreveria só três palavras que não seriam nenhuma novidade: eu te amo. Não sei como as receberias, mas ouso imaginar que, embora sendo as mesmas, elas, sem a companhia das outras, meros enfeites, reles adornos, pálidas tentativas de retórica, soariam enfim como sempre deveriam ter soado: únicas.

Danação

Se eu tivesse me entregado a coisas próprias da minha idade - a reflexão, a filosofia, a resignação, o aprendizado de preces para libertar a alma na hora final -, o Diabo não teria me tentado. Ele me viu vulnerável e me acenou com a mais velha de suas ciladas: o amor. Passei a não me olhar mais no espelho, a imaginar-me belo ainda e sedutor, enchi-me de presunção e, voltando três décadas no tempo, ignorei que meus passos continuavam trôpegos e que na minha voz havia já um timbre tumular. Ardendo agora nas chamas da danação, julgo que é brando ainda este suplício para quem conseguiu ser tão tolo e desassisado.

Agnus dei

Enquanto dissertavam sobre a alma e seus atributos, no estômago de cada um deles o carneiro servido como principal prato da noite começou a protestar, como se ainda estivesse sendo levado para o matadouro.

Para Cleonice

Tudo o que Pessoa disse
E tudo o que ele pensou
Só não achou em Cleonice
Quem nela não procurou.

(Cleonice Berardinelli está entre os maiores estudiosos da obra de Fernando Pessoa.)

terça-feira, 12 de junho de 2012

Eu também

Tomas café, e sais para o sol e para a vida. Eu também. Tomo o café, e saio para o sol, com a morte na alma. Há em São Paulo manhãs tão alegres, manhãs tão tristes. Façamos por merecê-las.

Recuerdo

Ela na cama deixou
Um pelo fino, vermelho,
Um delicado pentelho
Que ele, encantado, guardou.

Dia dos Namorados

Beijai-vos uns aos outros e, pelo menos hoje, não deixeis que à vossa saliva se misture o vosso veneno.

Barba

Gostas talvez de mim, dos versos que em teu louvor escrevo, mas gostas mais dele, quando espeta teu rosto e teu corpo com as eretas farpas de sua barba.

Só uma pergunta

Não é uma pesquisa, é uma pergunta, só. Digam-me se há frase mais cínica e cruel do que esta: "É para o teu próprio bem, meu amor, que eu estou te deixando."

Sentido

Depois de tudo vivido,
Ensina-nos a razão
Que a vida não tem sentido
E que a morte também não.

Extremamente fácil

A tristeza me parece bem mais espontânea que a felicidade. Há sempre, em qualquer grande ou pequena livraria do mundo, pelo menos uma estante apinhada de manuais que se dispõem a definir a felicidade e a ensinar os caminhos para atingi-la. Já a tristeza - como apregoariam os camelôs - não requer prática nem habilidade.

Importa-me ainda

Importa-me ainda, tanto quanto antes, que minhas palavras cheguem a ti. Um raio derrubou uma das árvores do parque, mas o vento continua a soprar ali, onde ela já desde ontem não está.

Poderíamos

Poderíamos ter morrido daquela infecção, com oito anos, daqueles seis meses de febre, aos treze, ou daquele acidente aos vinte e dois. Poderíamos estar debaixo da terra agora ou numa pequena urna que mão nenhuma se atreve a tocar. Poderíamos ter sucumbido ao amor e aos seus venenos, tantos, mas sobrevivemos para contá-lo, ainda que nossa voz soe como a de um corvo doente saudando a primavera.

Como Hemingway

Está tão dolorosamente sensível que chorou agora há pouco, de alívio, ao ver que o inseto na parede não era senão uma mancha de umidade. Repõe agora o inseticida no lugar, mas o instante em que pegou o tubo e fez pontaria pesa-lhe ainda, como se ele fosse um daqueles desprezíveis personagens de Hemingway que derrubavam búfalos para manter viva a masculinidade.

Pieguice

Ser piegas é uma daquelas fraquezas que cultivamos a sós ou com aquelas duas ou três únicas pessoas que amamos e que jamais nos denunciarão. Fora desse círculo, somos refratários às lágrimas, como todos os outros afirmam ser.

Contra a natureza

Sei que está virando uma caricatura, mas quase sempre é na caricatura que estão os mais precisos traços de alguém: se algo me decepciona por ir contra a minha vontade, não é sofrer; é sofrer pouco, é não sofrer mais.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Álvares de Azevedo

O decassílabo que resumiu a vida de Álvares de Azevedo e lhe serviu como um epitáfio - "Foi poeta, sonhou e amou na vida" - poderia ser mais curto: "Foi poeta." O que fazia um poeta romântico a não ser sonhar e amar? Todos eles nasceram para sonhar e amar e, porque o amor sempre leva a isso, para sofrer até a morte. Falo de amor, bem entendido, não desses exercícios corporais que hoje não deixam marcas nem na alma e nem mais, pelas regras de prevenção e preservação, nos lençóis.

Paisagem corporal

Molhado pela chuva de verão,
Teu cabelo desceu-te pelas costas
E escorrendo no meio das encostas
Seguiu como um dourado ribeirão.

Melhor assim

Misericordioso foi teu silêncio. Uns dias mais, um mês, e quem sabe que palavras amargas eu ouviria de ti. Na minha solidão, que cresce como uma árvore num cemitério, lembro-me das frases que me disseste nas tardes ensolaradas e parece menos espessa a treva que me sufoca.

Sinopse

Cansaço grande, profundo,
Fé fútil e malograda,
No fim a terra é cavada
E o corpo vai para o fundo.

Sempre pior

A pior catástrofe, aquela
Que desgraçou tua vida,
É quase sempre excedida
Por outra bem pior do que ela.

Friorento e triste

Se aparecer diante da tua porta um gato velho, friorento e triste e pensares em mim, será mais que uma associação de ideias. Será quase uma demonstração de afeto.

Cinema mudo

Gosto de falar-te assim, sem me preocupar com minúcias de estilo nem pretensões de arte. Falar-te como se eu jamais tivesse lido um poema, como se eu fosse uma daquelas simplórias criaturas de Chaplin que exprimiam seu afeto oferecendo uma flor à mulher amada. Falar-te como se nós dois estivéssemos num filme do cinema mudo. Falar-te assim, sem palavras, estendendo-te esta rosa.

Tão frio

O amor, outrora um assunto
Tão doce e tão agradável,
É agora tão execrável
E frio como um defunto.

Sobriedade

Quem ama, o amor não proclama,
Não lhe faz mimos nem festa.
É simples, sempre, quem ama,
E a tola pompa detesta.

Leitores

Tenho feito para vocês aqui, diariamente, confissões que escondo até do psiquiatra.

A única

Escrevo, escrevo sempre porque, embora o faça mal, é a única coisa que ainda talvez saiba fazer e exige pouco de meu corpo. Se eu fosse um acrobata, seriam mais tristes meus dias no sofá.

Já então

Agora é fácil dizer que já naquela época ele parecia estar nos alertando de alguma coisa. Agora é fácil lembrar de uma frase, de um silêncio, de um olhar triste ou distante. Nem a frase, nem o silêncio, nem o olhar nos impressionaram. Nós estávamos ocupados demais em gozar as delícias da vida para dar atenção a quem já pensava em deixá-la.

domingo, 10 de junho de 2012

Tortura

O amor agora me rói
Como jamais me roeu.
Em mim apenas não dói
Aquilo que já morreu.

Em algum lugar

Em algum lugar tua voz está sendo ouvida agora. Não estar ali, onde ela soa, é reconhecer que até um domingo pode ser cruel conosco. E só quem não conhece tua voz há de considerar pequena essa crueldade.

Bis

É tão saudável morrer,
Tão doce, tão conveniente,
Que é pena não se poder
Morrer mais frequentemente.

Casaco

Porque lhe falta carinho, nas noites frias enfia em cima do pijama seu paletó mais grosso, deita-se e se abraça, num exercício de autossuficiência.

Orgulho

Também posso escrever coisas alegres. Só não me peçam para senti-las. Minha alegria é falsa e eu me orgulho disso.

O chamado

Sentado no sofá, com os livros e a melancolia, fico esperando que a vida venha me chamar. Quando ela vem, eu não atendo.

Desrumo

Sou hoje como um navio
Que tendo perdido a rota
Descamba para o vazio,
Navega para a derrota.

Avaliação

Quando em minha vida penso
E a avalio passo a passo,
Sinto este vazio imenso,
Este rotundo fracasso.

Preparativos

Durmo sempre que posso. Minhas horas todas são horas de dormir. Enquanto não vem a definitiva e redentora, consolo-me e preparo-me com as pequenas mortes.

À margem

Sempre me empenhei em ser omisso. Arbusto à beira do rio, deixei que ele passasse dia a dia, sem jamais ousar que uma folha minha tocasse a pele de sua água.

Os sinais

Andava com os outros, fazia o que os outros faziam, era querido, amado. De repente, sumiu. Ninguém o via mais, ninguém mais conseguia falar com ele, ninguém sabia onde estava. Um dia veio a informação de que ele estava morto. Suicídio. Se não tivesse se afastado de nós, estaria vivo, disseram. A ninguém ocorreu que a semente do autoextermínio germinava já no tempo em que lhe davam tapinhas no ombro e gargalhavam, julgando que ele gargalhava com eles. Ninguém jamais viu que havia tristeza em seu rosto e um pedido de socorro nos seus olhos.

sábado, 9 de junho de 2012

No álbum

Um dia, apontando a foto, alguém dirá: "Ah, esse aí é um tio que morreu de tanto beber, coitado." Isso será daqui a vinte anos. Hoje, sem nem saber que o fotografam, ele está com um copo erguido, em brinde, e sorri como sorrimos todos naqueles momentos em que a vida nos dá uma trégua. Os álbuns familiares estão cheios desses equívocos. Nas fotos, mesmo no rosto daqueles que depois viriam ou virão a se matar há esse odioso traço de rendição, esse inútil e desonesto pacto que fazemos com a vida, como se pudéssemos torná-la mais branda: o sorriso.

Reticências

Às vezes a vida dói muito, às vezes a vida dói tão atrozmente que não há melhor modo de dizer isso, a não ser este: que às vezes a vida dói muito, que às vezes a vida dói tão atrozmente... Pode não ser um primor literário, mas é a verdade. Dói, dói muito, dói tão atrozmente que... as reticências parecem chamar um ponto final.

Maior

Quem viveu um amor sabe,
E é coisa bem conhecida,
Que se a vida no amor cabe
O amor não cabe na vida.

Para lá, sempre para lá

Pena que a beleza dos teus passos esteja sempre caminhando para longe de mim.

Escolha

Sofrer é uma forma de viver tão razoável quanto qualquer outra, só que muito mais agradável.

Futuro

Eu estarei com os outros na sala grande, com as paredes cobertas pelos retratos dos beneméritos. Será um domingo, o almoço terá sido especial, e também a sobremesa. Uma das irmãs de caridade ligará a tevê, outro privilégio dominical, e eu babarei bovinamente, como todo o rebanho. Que mais poderemos querer? Estaremos a salvo ali, todos nós, no santuário. Já não se interessarão por nós os caçadores, e os urubus não acompanharão nossos passos. Nem nossos filhos nos irão visitar. Quem gosta de, vivendo o verão, ver-se como virá a se ver no inverno?

Altivo pó

Viemos do pó e ao pó voltaremos. Sabemos disso todo o tempo, mas olhamos para o mar, o céu e as montanhas como se, quando nos formos, não lhes vá restar mais do que morrerem conosco.

Punição

Também eu já tive quinze anos. Também eu fui engodado por aqueles dias de sol. Também eu acreditei na eternidade do verão. Duvidei do inverno e ele me açoita hoje, punindo minha carne, rasgando cada centímetro em que possam ter pousado um dia mãos afáveis ou lábios cálidos.

Aquém

Quando encontro em um livro personagens desses que sofrem atrozmente, que veem a vida como um fardo e o amor como um suplício, tenho inveja deles, quase rancor. Deus me ensinou a amar a tristeza, mas como eu estou longe de dar-lhe o amor que ela merece...

Heróis caquéticos

Intriga-me que meus livros sejam lidos por jovens de dez a quinze anos. Pelas décadas que me pesam sobre os ombros, eu deveria estar escrevendo não aventuras infantojuvenis mas obras como "Cure-se da gastrite com ervas orientais" ou "Dez mentiras e dez verdades sobre a depressão". E meus heróis não sairiam de casa sem uma boa colherada do velho Xarope de São João.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Memória

Não te esqueci, embora tenhas pedido tanto que eu o fizesse. Prometi obedecer-te, porém no escaninho mais secreto da memória te guardei inteira, e te puxo toda noite e te examino furtivamente, e te apalpo, com a cautela alvoroçada com que se cometem as maiores infâmias e os mais inconfessáveis pecados.

Os passos

Que desalentador é, chegando quase ao fim do caminho e tendo dado milhões de passos, não havermos aprendido os que talvez fossem de bom-tom agora, com a solenidade exata para este momento em que a vida parece enfim disposta a nos revelar por que nos fez andar tanto.

Se fôssemos

Se fôssemos mesmo criaturas de Deus, mereceríamos que nossa morte fosse como o desfalecimento de um som, abafado na grandiosidade de todos os outros, no clímax do "Bolero" de Ravel.

Teoria

Só nos preocupamos em saber qual é a definição de felicidade quando não a estamos vivendo.

Marcas

As cicatrizes e as chagas com que o amor marcou teu corpo e tua alma são teu tesouro. Ou preferirias ser como aqueles por quem o amor passou como se fosse uma brisa, deixando-lhes no ouvido não mais que um sopro morno, um cicio, uma breve inquietação?

Solamente una vez

Termos sido tocados pelo amor nos traz a sabedoria de não esperarmos por outro toque jamais, porque não se repete uma epifania.

O general

Tantos morreram por ti, e tantos morrerão ainda. Amor, é teu o maior exército do mundo e eternas são tuas glórias.

Filosofia

Talvez eu tenha vivido todo esse tempo, talvez eu tenha sobrevivido às doenças, aos infortúnios e às catástrofes do amor para isto: para ficar olhando assim para fora, vendo a chuva na mexeriqueira e sabendo que na vida não há muito a ver além disso: a chuva, ou o sol, na mexeriqueira.

Quando o amor é amor

O amor é um fim em si mesmo, o amor se faz e perfaz, o amor se basta. Se choras por ele, pelas aflições que ele lhe traz, és um bem-aventurado. O amor só é amor quando está nos atormentando, cravando em nós suas benditas garras, submetendo nosso corpo e nossa alma ao seu domínio. Depois de reconhecido e declarado, depois de entranhado em nós, o amor não há de dar um passo mais. O amor não cumpre etapas.

Desprezo

Abro a janela, mas volto imediatamente para a cama. Do sol, só quero que ele veja todas as manhãs a indiferença com que o trato, a ele, esse maçante e mentiroso propagador das maravilhas da vida.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

De mim para o mundo

Falo de mim, muito de mim, quase exclusivamente de mim, como se me conhecesse e como se revelar-me fosse uma obrigação minha e um privilégio para os demais.

Assim mesmo

Não valho nada, não sirvo para nada, não presto para coisa nenhuma. Reconhecer isso não me absolve nem me melhora, só me confirma.

Inação

Tão doce desistir, tão
Cômodo desanimar,
Deixar a vida chamar
E responder não, não, não.

Gargalhada

Que ninguém possa dizer de mim, nunca, que certa vez me ouviu gargalhar gorgolejantemente.

Ser Shakespeare

Por dois motivos eu gostaria de ter sido William Shakespeare. O primeiro deles é óbvio. O segundo é: Shakespeare já morreu.

Dedicação plena

Se estou sozinho, fico feliz. Posso dedicar-me inteiro à minha tristeza, sem que me venham sugerir visitas ao médico, leituras mais amenas ou passeios ao sol.

Estar assim lendo

Se me tivessem condenado a esta vida de abstinência ao sol, imobilizado no sofá, alheio ao bulício externo, é provável que eu me rebelasse. E no entanto é uma ventura, quase uma felicidade, estar assim lendo, procurando em vidas alheias, em personagens, em protagonistas, se não um significado, ao menos um consolo para a minha.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Ainda mais?

Se um dia tu me encontrares,
Recebe-me com ternura.
Não basta, já, me matares?
Podes ser ainda mais dura?

Perder

É doce perder. Fechar
Os olhos, não resistir,
A nada mais aspirar,
Deixar-se matar, dormir.

Carma

Na minha vida sombria
Uma ave negra pousou,
E crocitando insistia:
"Eu sou o corvo de Poe."

Realezas

Se és a amada de um poeta, anda com discrição, sorri com economia, porta-te com graça. Talvez ele não te tenha dito ainda, mas para ele és rainha - e os poetas costumam entender de realezas.

Catálogo

Para que não a acusem de ser pouco imaginativa, a Morte se vale ora de uma bala perdida, ora de um naufrágio, ora de um tumor maligno, ora - e é este o principal item do seu catálogo - da pontiaguda e certeira lâmina do amor.

Aquela gargalhada

Melhor assim. Acordar como os outros acordam, feliz pelo simples fato de respirar, poder ver a patacoada do dia na internet, sorrir pela indesmentível superioridade de estar vivo. Assumir de vez que é verdade o que vêm lhe dizendo há tanto tempo, que o amor é um atraso de vida, e parar com o ridículo ritual de enviar matutinamente mensagens rimadas e flores com cartão. Ir pelo que dizem os outros, reconhecer enfim que estão certos e, aluno atento, tentar aprender com eles tudo, até aquela gargalhada babada com que eles tão bem exprimem como a vida pode ser maravilhosa para quem a entende.

Novo caminho

Passe eu as dores que passe,
Em nova vida confio,
Os olhos fecho, sorrio,
E morro como quem nasce.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Os poetas

Abençoados sejam os poetas. Quantos amores que não valiam uma nota arranhada num banjo eles transformaram em imortais sinfonias.

Estatísticas

Que algumas de minhas garrafas venham chegando à Rússia, à Alemanha e aos Estados Unidos é uma evidência de que a internet é mais confiável do que antigamente era o mar. Também à Índia cheguei, mas faz muito tempo já. Minhas mensagens foram lidas lá por uma princesa, numa época em que havia ainda princesas.

Causa e efeito

Tantas vezes me deste o teu perdão que esperar por ele, sempre, e dar motivos para que ele seja dado passou a ser meu pecado principal.

O ritual das garrafas

Escrevo todos os dias. Não sei bem por que nem para quê. Para sentir-me vivo? Para me expressar? Não sei. Escrevo, venho para o micro e mando os textos a vocês. Talvez vocês encontrem algum sentido nisso. Minha solidão me diz que a hipótese mais provável é: simplesmente repito o velho ritual de atirar garrafas ao mar.

Paradoxo

Parece um paradoxo, e deve ser. Mas, com a obstinação do meu sangue polonês, repeti tanto isto que já creio ser a verdade: só a tristeza me faz feliz.

A melhor

Partilho com vocês diariamente minha melancolia. Ia dizer que é a única coisa que tenho. Seria mentira. É a melhor.

Felicidade bissexta

Fui feliz algumas vezes, sim, não nego, mas sempre por mero descuido ou negligência de minha tristeza.

Coautoria

Não consigo mais viajar pelos livros. Sentado no sofá, olho ao redor e só vejo as paredes da sala, onde na infância eu via planícies, montanhas e, em certos dias, o majestoso mar do qual vinham o fragor das ondas e os gritos dos piratas lançando-se às abordagens. Entendo, mais do que nunca, que os livros são feitos menos pelos autores que pelos leitores.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Acréscimo

O amor morreu para se tornar mais belo e pungente em nossa memória.

À sombra

Enquanto os outros caminham pelo sol, eu tento convencer-me, como todos os dias, há tantos anos, de que meu lugar é aqui na sala, procurando a vida entre um parágrafo e outro de um livro, como uma traça.

Contradição

Não mudo, sou mesmo assim.
Defendo focas, golfinhos,
Baleias e passarinhos,
Jamais porém poupo a mim.

Compensação

Que dos sofrimentos meus
E de toda esta tristeza
Eu possa ao menos, meu Deus,
Tirar alguma beleza.

Fila

Podes pedir, implorar,
Porém a Morte é mulher,
Virá quando bem achar,
Virá só quando quiser.

A condessa

Hoje ele vai começar a busca na internet, em bibliotecas, perguntar a amigos e antigos professores. Tantas décadas depois, descobriu-se novamente apaixonado pela condessa russa de um romance cujo título esqueceu e, assim como quando tinha quinze anos, quer lançar-se aos seus pés, beijar-lhe as pantufas, bater-se em duelo por ela, morrer com seu nome nos lábios ou viver para dizê-lo até o último dos dias.

Viaduto Santa Ifigênia

Eu me atiraria do alto,
Não fosse tão desprezível,
Tão asqueroso, risível,
E tão indigno do asfalto.

Que pudesse ser tanto

Jamais te darei esse crédito de me haveres tornado triste. Sempre fui. Só não sabia que pudesse ser tanto.

Love affaire

Se eu pudesse transformar esta sandice em algo minimamente literário, talvez interessante ou ao menos não tão bisonhamente juvenil.

O canteiro

Murcharam todas, morreram. Ficou esta foto, do tempo em que cuidávamos delas. Como estão belas, ao sol daquela tarde. Como estamos bem também nós dois, pena não estares aqui para ver. Nos nossos olhos há o brilho que sempre denuncia o amor, mesmo quando ele tenta se esconder. Foi ontem, foi anteontem. Hoje, se me olho no espelho, hoje, se te olhas, algum de nós poderá, sem mentir, ver nos nossos olhos algo além desta fria opacidade?

domingo, 3 de junho de 2012

O sorriso

Talvez, em nosso derradeiro sono, possa insinuar-se um sonho no qual voltemos a ser crianças e nos vejamos de novo dentro de uma roda-gigante ou diante de nossa primeira árvore de Natal. Que isso provoque em nós um sorriso, ainda que breve, e que seja esse o sorriso que a morte encontre ao chegar, como se não estivéssemos cansados e dela esperássemos uma viagem prazerosa, como eram tantas quando a vida ainda estava toda por se descobrir.

Fases

Havia em mim um menino
Que não queria crescer.
Hoje há um homem mofino
Que se recusa a viver.

Domingo

Que belo dia. Um domingo inteiro para deixar o sol lá fora e ler Sylvia Plath, Florbela Espanca, Ana Cristina César. E devanear com Werther, divagar com Anna Karênina, tresvariar com Madame Bovary.

Rotação

Viajo em torno de mim.
Me basto, sou-me propício,
Bem ou mal sou meu início
E mal ou bem o meu fim.

Sábados

Quantos sábados haverá ainda como o de ontem, nascidos já mortos, véspera funesta de domingos também mortos como este?

Rodriguiano

Disseram-lhe que, para não enlouquecer, deveria não chorar, mas rir do amor que estava consumindo sua carne, sua pele, seus ossos e sua alma. Ele, apaixonado admirador de Nelson Rodrigues, respondeu que isso seria como urinar sobre o cadáver de um anjo.

Vida real

Saí do teatro inconformado com a morte do protagonista do drama. Peguei o carro no estacionamento e fui a um restaurante. Estava lendo o menu quando entrou ele, o protagonista, conversando alegremente com os dois vilões que tinham acabado de tirar-lhe a vida. Se eu fosse o cozinheiro, adicionaria veneno à comida dos três.

Com ou sem

Mesmo quando é a a falta dele o que nos afeta, é sempre o amor que acaba por nos matar.

Avisos

Estamos mais perto agora.
A brisa vem nos contar
E a noite nos confirmar
Que a morte já não demora.

sábado, 2 de junho de 2012

Quem fala assim?

"Amanhã eu vou na escola", dizia o personagem de um romance. Foi por essa frase que ele, leitor de todas as gramáticas, todas elas postas à disposição no seu trabalho de revisor, perdeu o emprego na editora. "Amanhã eu irei à escola? Amanhã eu irei à escola? Quem fala assim? Onde?", foram as últimas palavras que ele ouviu do chefe, que sacudia a prova do crime e com sua indignação fazia espirrar perdigotos até o teto.

Os heterônimos

Em Fernando Pessoa, a vida era algo a ser vivido com os olhos da arte. Não é verdade que a vida não lhe interessasse. Interessava-lhe tanto que ele abriu mais de duzentos olhos para vê-la.

Indiferença

Não ando mais por aí.
Receio um dia chegar,
Sem emoção nem pesar,
À rua em que te perdi.

A dor

A vida passa depressa.
A dor que te suplicia
Um dia é grande e outro dia
Nem dói mais, nem é mais essa.

Martha sabe das coisas

E aqui estou eu, de novo, para falar de Martha Medeiros e seus textos, um conhecimento tardio que leva já um jeito de amor. É notável a simplicidade aguda com que ela fala de coisas do nosso cotidiano, como neste texto (de "Doidas e santas") em que ela trata do silêncio e do poder que ele dá a quem o usa nas relações amorosas. Vítima desse poder, eu senti em cada palavra, outra vez, a carne ferida e a alma pisada. Citaria o texto inteiro, mas acredito que o bom-tom e até normas legais me impedem. De qualquer forma, aqui vai a essência dele, em três momentos:

"Já fui de esconder o que sentia, e sofri com isso. Hoje não escondo nada do que sinto e penso, e às vezes também sofro com isso, mas ao menos não compactuo mais com um tipo de silêncio nocivo: o silêncio que tortura o outro, que confunde, o silêncio a fim de poder manter o poder num relacionamento."

(...) "Falar o que sente é considerado uma fraqueza. Ao sermos absolutamente sinceros, a vulnerabilidade se instala. Perde-se o mistério que nos veste tão bem, ficamos nus. E não é esse tipo de nudez que nos atrai."

(...) "Libertar uma pessoa pode levar menos de um minuto. Oprimi-la é trabalho para uma vida. Mais que as mentiras, o silêncio é que é a verdadeira arma letal das relações humanas."

Ler Fernando Pessoa

Ler Fernando Pessoa é descobrir que todos esses filosofares e inquirires, todos os pensares e logo existires são tão relevantes para a nossa vida quanto a resolução de um problema de palavras cruzadas. É saber que a metafísica inteira não vale um chocolate e que, dos deuses, a única afronta que não devemos tolerar é eles deixarem que nos sirvam fria uma dobradinha à moda do Porto.

Qual um gato velho

O amor, como um gato velho, fica sentado comigo na poltrona agora, todos os dias, e dorme. Perdeu o gosto e a disposição para as peripécias de outrora, e noite e dia são para ele só um tempo para o sono. De vez em quando estremece e sei que recorda alguma aventura. Nesses momentos, acorda e exibe as garras há tanto tempo guardadas. Dura dez segundos isso e não chega a me perturbar. Logo volto a rabiscar no bloco estas sensações que são também, como as dele, uma sonolência longa atravessada algumas vezes, felizmente poucas, pela lembrança de um muro saltado à noite, em busca de um cheiro morno.

Se houvéssemos

Tão tolos fomos. Quisemos levar a vida a sério, como se ela fosse algo que pudéssemos aprender, e, enquanto gastávamos nossas horas com filosofias, lá fora os outros colhiam nossos frutos. Ainda ressoam em nossos ouvidos agora velhos as gargalhadas deles naquele tempo que poderia ter sido também o nosso, se houvéssemos deixado os livros fechados e saído para o sol.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Martha Medeiros, Inês Pedrosa

Confesso, e com que agrado, que tinha sobre Martha Medeiros uma impressão vinda de tudo, menos de conhecê-la. Dela, havia lido alguns textos, pouquíssimos, na internet e, mesmo achando-os muito bons, não quis dar o braço a torcer até ontem, quando em minha querida Biblioteca Amadeu Amaral peguei uma coletânea de suas crônicas, "Doidas e santas", para ver se afinal não tinha em relação a ela aquele velho preconceito de que com Rubem Braga morreu a crônica. Posso dizer já, hoje, que, se morreu, ressuscitou, e em Martha está mais viva do que nunca ou ao menos tão viva quanto sempre. Textos que dá gosto ler, como os melhores que os melhores escreveram. Salve, menina. Com esta saudação, saúdo também os seus leitores que, por saber serem tantos, eu imaginava não poderem corrresponder em qualidade à quantidade (outro desses preconceitos tão fáceis de ter, principalmente quando quem os nutre é um homem dado a ser amargo). Como você lida bem com essas coisas supostamente simples que no entanto nos enredam a vida e são as mais importantes: o diálogo, ou a falta dele, a amizade, o amor. Como é bom ouvi-la dizer, por exemplo, que "pessoas aparentemente especiais se apaixonam por outras aparentemente banais e isso não é um trote, não é uma pegadinha, não é nada além do que é: um inesperado presente da vida, que todos nós merecemos". E como me encantou a citação que você faz de Inês Pedrosa, tirada do livro "Nas tuas mãos", tão sábia, delicada e alentadora: "A separação pode ser o ato de absoluta e radical união, a ligação para a eternidade de dois seres que um dia se amaram demasiado para poderem amar-se de outra maneira, pequena e mansa, quase vegetal." Tardes frias e melancólicas como esta, paulistana até a medula, podem ser salvas por Inês, podem ser perdoadas por Martha.

... & perdas

Quando me lembro de ti,
Não lembro do que busquei,
Nem lembro do que alcancei.
Me lembro do que perdi.

Bablá

No colo do pai, o menino de dois anos passa por uma árvore e diz bablá, por um canteiro de flores e diz bablé, por um pombo e diz babló. Os dois vão até o extremo do parque e começam a voltar. O menino, atento, diz o mesmo bablá, o mesmo bablé e o mesmo babló para a árvore, as flores e o pombo. Ocorre-me, vendo a cena, que quanto mais numerosos são os sinônimos menos precisas são as definições para tudo. Incapazes de nos nomear, ou ciosos de nos ocultar e de nos dissimular, fazemos o mesmo com todas as coisas, de tal modo que, quando dizemos que uma pedra é uma pedra, quase pedimos desculpas por nossa pobreza de expressão, por dizermos só uma das tantas falsas palavras com que confundimos a noção de pedra. Pudéssemos dizer sempre, dela, pedra, e só.

Afinidade

Sua fama e sua ligação com a literatura não vieram dos livros, que não escreveu. Vieram de ter sido atropelado e morto pelo poeta Rogério Flores, que voltava para casa depois de uma noite triunfal de lançamento, com a venda de oitocentos exemplares de "Epifanias da primavera".

Crepúsculo

Tão terna é a melancolia,
Tão doce quando na rua
Bem devagar se insinua
E fecha os olhos do dia.

40 graus

Lembro-me de uns meses em que, na infância, passei de cama com uma febre que era quase uma excitação sexual, uma entrega a uma doença que me possuía com uma doçura maligna e de que, quando me livrei, não foi com gosto. De tudo ficaram uns pesadelos, uns delírios que para minha desventura só esporadicamente voltam a me visitar. Meu amor ao masoquismo deve ter nascido nesses meses de compressas, injeções, murmúrios de crença e descrença dos que me rodeavam, orações e aqueles dias que eram sempre noites nas quais, pela memória que guardo, meu desejo era deixar-me levar ou ficar perenemente envolto naquela morna letargia.