terça-feira, 31 de julho de 2012

Um poema de Bóris Pasternak

"HAMLET

O murmúrio cessou. Subo ao tablado.
Apoiado ao umbral da porta,
Procuro distinguir no eco apagado
Os desígnios de minha sorte.

A penumbra da noite me devassa
Por trás de mil binóculos iguais.
Se for possível, Aba, meu pai,
Afasta de mim essa taça.

Amo a Tua obstinada trama
E aceito o papel que me foi dado.
Mas agora representam outro drama.
Ao menos dessa vez, deixa-me de lado.

Mas a ordem das cenas foi prevista
E a estrada chega fatalmente ao fim.
Estou só. Tudo afunda em farisaísmo.
Viver não é passear por um jardim."

(Poema traduzido por Augusto de Campos, extraído do livro "Quatro mil anos de poesia", publicado pela Editora Perspectiva.)

Teu toque fatal

As esculturas se encolhem quando te aproximas. Eros e Afrodite enrubescem, também Diana, e a camponesa que um momento antes ouvia sem se importar os grosseiros gracejos do cavalariço desvia os olhos dos teus. Também às telas tua presença incomoda. Se encostas o dedo num gramado, o verde esmaece e, se molhas a mão na água do rio, espalha-se na sala um cheiro de putrefação. Tu fazes apodrecer tudo que tocas, até os teus poemas, mentirosamente ditados pela pureza. Devias tocar mais em ti.

Um poema de Heinrich Heine

"UMA DONA

"Amor de fato era o deles,
Uma bisca e um ladrão reles!
Ele fazia as trapaças,
Ela ria às gargalhadas.

De dia, no mole e fácil;
À noite, ela em seus braços.
Ele foi dar numa cela;
Ela ria, na janela.

Ele lhe diz: Eu te quero,
Por você me desespero,
Doo de amor - e ela rindo
Sacode a cabeça linda.

Às seis foi ele enforcado.
Às sete estava enterrado.
Ela porém, já às oito,
Ria, com vinho no copo."

(Poema traduzido por Haroldo de Campos, extraído da coletânea "Quatro mil anos de poesia", organizada por J. Guinsburg e publicada pela Editora Perspectiva.)

A lição

Em todos esses anos, em todas essas décadas, a maior lição que aprendi sobre a literatura é a de que minha mais sensata posição em relação a ela há de ser a de leitor.

... e que

... e que toda tentativa de dominar alguém usando o pretexto do amor, ainda que verdadeiro, seja considerada um ato indigno de quem ama.

Os rouxinóis

Os rouxinóis não existiam antes de Shakespeare. Ele os criou para encantar as noites de Romeu e Julieta, e a natureza, embora sem o mesmo brilho, resolveu copiá-los.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Kama Sutra - XII

O garoto, de uns quinze anos, sorriu para ela. Talvez tenha piscado, também. Antigamente, sorriam e piscavam. Quantos desses meninos ela enredou em sua teia e comeu lentamente, quantos ela exauriu antes de mandá-los de volta para casa e para as mães aflitas, com marcas de batom e de dentes no corpo. Quantos uivaram depois diante de seu prédio, quantos tentaram subornar o porteiro, quantos ameaçaram matar-se por ela. Gostaria de nutrir-se da tenra carne desse garoto. Talvez ainda possa. Quem sabe, se ele sorrir de novo. Mas ele atravessa a rua e não se volta para olhar. Quarenta anos atrás, todos sorriam, todos olhavam, todos piscavam.

Certeza

Se uma certeza mantenho
(Se é que ainda mantenho alguma),
É a de que há muito não tenho
Mais esperança nenhuma.

Equívoco

Vivo assim com quem, tendo
À vida há muito abdicado,
Prossegue, por um mau fado,
Sem saber como, vivendo.

Leviandade

Considerar a literatura uma terapia, um entretenimento ou um hobby é espezinhar a alma de Virginia Woolf, Florbela Espanca, Sylvia Plath e Ana Cristina César.

Maquilagem

Me sinto poeta se rimo.
As rimas tornam jeitoso
O texto mais horroroso,
As rimas são meu arrimo.

Rimas

O poeta passadista (eu)
Quando vai compor um poema
Pouco se importa com o tema.
Rimando bem, já valeu.

domingo, 29 de julho de 2012

Kama Sutra - XI

Sentada no banco do metrô, ela alisa a própria coxa, devagar, devagar. Faz isso sempre. São tão monótonas as viagens. Alisa, continua a alisar. Não pensa em nada, nem em ninguém, só na mão e na coxa. É um exercício diário, de excitação mínima, um passatempo, uma recreação quase mecânica. Descerá na estação seguinte. Alisa uma vez mais a coxa, devagar, sempre com a mão oculta pela bolsa. Sua estação chegou, mas um arrepio desce pelo seu ventre. Os passageiros começam a descer. Ela continua sentada. A mão alisa a coxa ainda, mais rapidamente agora, e ela se vê num cinema, com Ígor, um rapaz de dedos longos e inquietos.

Kama Sutra - X

Notou que ela estala a língua. Não chega a ser um tique, mas a frequência com que ela o faz é suficiente para ele recordar um dia em que uma mulher, ruiva também, com um chicote curto, delgado e estalante, tirado de um estojo, deixou nas suas costas marcas que doem ainda, docemente, na memória. Foi uma noite só, de tão cálida lembrança, que, olhando para a ruiva de hoje, ele pensa se ela não terá talvez um chicote enrolado num elegante estojo. As mãos dela são delicadas. Mas as mãos da outra também eram, antes de ela abrir o estojo, desenhar seus ombros com o chicote e completar as carícias com as unhas.

sábado, 28 de julho de 2012

Quantos, quantos?

Quantos maus poemas serão capazes de abrandar o coração de uma mulher e despertar nela algo que se pareça com sentimento? Acordei com esta pergunta, hoje, e dormirei sem resposta. E dormirei mal. E acordarei mal. E refarei a pergunta amanhã, apesar de todo o trabalho mental para esquecê-la. E recomeçarei a escrever meus maus poemas e a contá-los. E sonharei todas as noites que eles escapam do micro e buscam o rumo que deveriam buscar os meus passos, se houvesse ventura em meu destino. E sonho também, loucamente, como sonham sempre aqueles que o amor tocou, que os maus versos se transformam em pássaros no caminho e cantam tão belamente que por alguns momentos a cidade abrandará seu tumulto e olhará para o alto e se espantará ao ver que tão magnífico canto sai de pássaros tão desgraciosos. E talvez chova sobre eles, para, ainda que tardiamente, abafar seu canto, porque São Paulo costuma se envergonhar de seus repentes de sentimentalismo, tão bizarros no meio de seu coração de pedra. Mas eles chegarão a uma rua em que, no dia seguinte, os caminhões de limpeza trabalharão incansavelmente para recolher as penas, os bicos e, talvez, restos de canto, soando ainda, como se fosse possível.

Artista

Meus monólogos são agora
para quatro ou cinco mendigos
que ganham o ingresso
em uma associação
e vêm não para ver-me
mas para sentar-se
e comer em paz seu pão

Não posso queixar-me

Mastigam em silêncio
fingem prestar atenção no que digo
e se um ou dois
dos quatro ou cinco dormem
a culpa não é de sua má educação
mas do conforto das poltronas
e da calefação

Às vezes até me aplaudem
e hoje quando terminou
minha apresentação
um deles veio até o palco
e me ofertou
metade de um pão

Era um pão seco e velho
dava para ver
porém minha fome
o aceitaria com prazer
se um artista
um artista de verdade
pudesse abrir mão
de seu último grão
de dignidade.

Londres

As festas são para os outros, para os bilhões de outros.

O idiota

Quando o idiota da aldeia morreu, todos começaram a sentir falta dos passarinhos que só ele via e apontava e dos cachorros que o acompanhavam, vinte e oito, segundo ele, e cujos nomes ele sabia, um por um.

Atração

Desde que te conheci,
Por minha sorte madrasta,
Meu ser do teu não se afasta,
Gravita em torno de ti.

Kama Sutra - IX

Nua diante do espelho, coloca a echarpe e sorri ao compará-la com os cabelos: combinam. Desce os olhos devagar, molemente, abaixo do umbigo, e sorri de novo: combinam. Tudo funcionará bem hoje, se ela puder convencer o homem a pelo menos esta noite deixar acesa a luz do quarto.

Kama Sutra - VIII

Nas primeiras vezes, quando tu lhe pedias que te deixasse procurar ouro nos cabelos dela, ela os desatava. Hoje, não mais. Ela sabe, já, que garimpas um ouro menos visível, mais entranhado nela e muito mais raro, e põe os dedos no zíper da calça jeans.

Kama Sutra - VII

Quando acendias o cigarro e sopravas três sugestivas baforadas, eu já sabia. Saía de minha mesa, tu da tua e, seguindo furtivamente pelo corredor, entrávamos no compartimento em que a mulher da limpeza guardava seus materiais. Ali, em pé, porque o espaço assim exigia, tive momentos que nenhum mortal deveria merecer. Nos meus braços, dizias que eras minha, minha só, de mais ninguém. Pena que em três anos de empresa nossos encontros não tenham passado de sete. Só muitos anos depois, quando não trabalhávamos mais lá, e nem empresa mais havia, relacionei nossos encontros com as faltas do gerente - aquele tirano que quase nunca ficava doente, proibia conversas e cigarro na sala e, quando tirava os olhos dos papéis, era para fazê-los passear por tuas pernas.

Kama Sutra - VI

Já no momento seguinte nossos dedos entrelaçados apertavam-se como se quisessem devorar-se, com a aveludada impaciência de aranhas no cio.

Kama Sutra - V

Molharás teus lábios com a língua, antes de falar, e eu beberei com os olhos tuas vogais todas e tuas consoantes.

O gradil

Às vezes imagina que, se encostar o peito no gradil e tiver fé, o gradil se romperá, isentando-o da coragem que toda noite, no último instante, o abandona a um passo da redenção.

Destino

Os dados foram lançados
E as cartas embaralhadas.
Os dados estão viciados
E as cartas todas marcadas.

Justa vingança

As frases de espírito, as tiradas e os trocadilhos são tão simples e óbvios que até nós poderíamos tê-los escrito. Passam diante de nosso nariz todos os dias, mas só os vemos no dia seguinte, com uma assinatura que não é a nossa. Considerá-los subliteratura é uma justa vingança.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Contraste

Assim como os meus, teus dias
Também já todos se vão.
Os teus colhendo alegrias,
Os meus finando-se em vão.

História

De nada tudo nasceu,
Por nada tudo gorou,
Tudo por nada morreu,
De tudo nada ficou.

Plateia e palco

Pedi aplausos e como
aplausos não me deram
implorei compaixão

Aplaudem-me agora
com tão perfeita simulação
que eles são os artistas
eu não.

Kama Sutra - IV

Escorregar maciamente a mão para perto de ti e esperar que, sendo tímida como é, ela possa contar com a amorosa condescendência da tua mão para conduzi-la pelos caminhos do teu corpo.

Kama Sutra - III

Se sussurrares em meu ouvido a palavra certa, molhando-a levemente com a língua, terás de mim o que quiseres. E terás também tudo se, não dizendo a palavra certa nem nenhuma outra, deixares em meu ouvido um pouco de tua saliva.

Distinção

Acostumou-se a dormir com os cães e a acompanhá-los, como se fosse um deles. Os frequentadores do parque também se habituaram a vê-lo nessa companhia. Ontem, o garoto que traz diariamente restos de comida do restaurante para os cães estendeu-lhe um prato de louça, um garfo e uma faca. Foi, nos últimos três anos, a primeira distinção que recebeu. Dizer obrigado para agradecer lhe pareceu pouco. Gostaria de latir alegremente e abanar o rabo. Talvez lamber a mão do garoto.

Tribunal de pequenas causas

Que a carne resolva com a carne suas mesquinhas questões e que não venham tocar a campainha da poesia e da alma.

A número um

Não precisaria ter morrido tantas vezes quantas sonhei. Uma me bastaria - de preferência a primeira.

Os filósofos

Tantos livros tens nas estantes, e o que eles fizeram - além de enfraquecer teus olhos - não foi a resolução dos teus problemas essenciais de homem, mas um modo mais sofisticado e doutoral de apresentá-los. Não te preocupes. Assim são os filósofos, todos. Para deixar-nos com as nossas dúvidas de sempre, levaram séculos estudando-as.

Norma

Proceder como quem faz
Com a máxima economia
Uma modesta elegia
E escrever só aqui jaz.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Solamente una vez

Morrer, infelizmente, é um desses prazeres que não podem ser repetidos nem aperfeiçoados.

Para um passarinho

Deixar escritas quatro ou cinco palavras tão belas que pudessem servir de epitáfio não a um homem ou uma mulher, mas fossem copiadas numa folha de caderno escolar por uma menina e enterradas numa cova rasa de passarinho.

Kama Sutra - II

Quando a mosca viciada por ti houver saciado a sede em teu ventre untado de mel, chama-me, que será a hora de minha boca se dessedentar.

Boêmio

De madrugada, um vento desgarrado das ruas do prazer, voltando ébrio para casa, deixa versos de canções sujas nos ouvidos das flores do parque e palavrões aprendidos com as putas e os gigolôs. Dura alguns instantes sua passagem, mas as flores não dormem, à sua espera.

Missão

Como é enfadonho ter,
Como diária missão,
A estúpida obrigação
De acordar para viver.

Quase tanto quanto

Então os homens começaram a atirar, atirar, atirar nas salas de cinema, e a vida real tornou-se quase tão violenta quanto os filmes.

Hora H

Morrer é uma dessas providências que ou nós tomamos a tempo ou o tempo toma por nós.

E pensar

E pensar que poderia ter morrido cinquenta anos antes, quando entrou no rio com o amigo. Estavam só os dois ali, nenhum deles sabia nadar, mas as águas - assim como tantas outras coisas e pessoas depois - escolheram o amigo e o rejeitaram.

Bardo

Que pretensão ele tinha:
Fazer de uma camponesa
A mais altiva princesa,
A mais solene rainha.

Castelos

Há castelos de areia que, quando se esboroam, revelam que nem castelos eram. Eram choupanas, casebres, cabanas, que por um instante se julgaram dignos de ser desmanchados pelo mar.

Desperdício

Meus dias têm sido tão irrevogavelmente tristes que o majestoso azul do céu é um desperdício.

Soberba

Eu me dei tanta importância
Que até meus piores pecados
Foram por mim ostentados
Como razão de jactância.

Terceiro dia

Tiraram o Amor da cruz e levaram-no para uma catacumba. No terceiro dia, o cheiro que ele exalava matou três dos mais crédulos discípulos, além de um bode e dois carneiros. Murcharam todas as flores e as fontes secaram. Por várias semanas não se viu um passarinho no céu e as aves de rapina mostraram-se tão gordas que já não lhes apetecia voar.

Um poema de Avraham Schlonski

O SR. FULANO FALA DE SUA VIZINHANÇA

Vivo num prédio de cinco andares.
As janelas bocejam para a parede oposta
Como rostos olhando nos espelhos.

Em minha cidade há setenta linhas de ônibus
Atulhados pelo teto e cheios do fedor dos corpos.
Eles trabalham
Trabalham
E trabalham arduamente no coração da cidade:
Quase como se não pudesse alguém morrer de tédio
Logo aqui em minha vizinhança.

É bem pequena minha vizinhança.
Todavia, tem seus nascimentos, as suas mortes
E as coisas todas que acontecem no entremeio.
Em cada cidade igualmente existem
Mesmo crianças rodopiando um arco
E três cinemas.
Assim, se eu não achasse o tédio na minha própria casa suficiente
Eu frequentaria um dos cinemas.

Vivo num prédio de cinco andares.
A mulher que saltou pela janela oposta
Achou três suficientes.

(Traduzido por Zulmira Ribeiro Tavares, extraído da coletânea "Quatro mil anos de poesia", organizada por J. Guinsburg e publicada pela Editora Perspectiva.)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

In extremis

Não sei se exagero, mas
Se eu moribundo me achar,
Talvez tu sejas capaz
De até água me negar.

Minúcias

Para quem nunca soube fazer um laço decente de gravata, acha que o nó da corda em seu pescoço está surpreendentemente bom. Aperta-o talvez em demasia, mas - que diabo! - se ficar frouxo o que adiantará chutar longe o banquinho?

Crime de amor

Entre os dois tudo ficou
E nem inquérito cabe.
Sabe ele quem o matou,
Quem o matou ela sabe.

Kama Sutra

Poderás estar em cima,
Poderás estar embaixo.
Conforme me venha a rima,
Eu me encaixo ou desencaixo.

Fracasso

Vencer não me traz cansaço.
Buscar vitórias me apraz
E tê-las feliz me faz.
O que me cansa é o fracasso.

Talião

Se algo te dói, não me importa.
Comigo tu te importavas
Quando dançando pisavas
Em mim e em minha alma morta?

Incompatibilidade

A tua nova ilusão,
De ser normal e feliz,
Não tem sentido ou razão,
Contigo em nada condiz.

Até que enfim

Tentando derrubar uma estrela, toda noite o moleque mirava bem e atirava pedras para o alto. Nada, porém, acontecia, até que uma noite uma pedra subiu mais que todas as outras e ao descer trouxe um pingo de chuva.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Rei dos diálogos

Um escritor conhecido por seus inovadores diálogos, registrou este, entre dois bem-te-vis: "Bem te vi, bem te vi, bem te vi." "Eu também, eu também, eu também."

Crônicas do Motta

Leitor, se tu queres ter
Do melhor a melhor cota,
Nada melhor do que ler
O blog diário do Motta.

Post mortem

Se espalharem que eu morri dizendo o teu nome, exigirei direito de resposta.

Uma causa justa

Diante do cemitério, festiva e estrondosa, a banda passa anunciando a chegada do circo à cidade. Um oitentão, já quase advogando em causa própria, resmunga: "Que desrespeito com os mortos. Deviam proibir isso."

Em vão

Há muito já percebi.
Por mais prostrado que eu fique,
Por mais que chore e suplique,
Deus não está nem aí.

Ouvir o mar

Se a dúvida é
afogar-se ou não se afogar
ouça o que o mar
tem a lhe dizer

Ouça com atenção
e se a dúvida não se dissipar
ouça de novo o mar
e peça para ele cantar
uma canção
aquela canção de adormecer
aquela canção de ninar
aquela canção de esquecer.

Um real

Ela ainda relutou. Soprou o pó, passou um paninho. Quem sabe? Reposto na estante, porém, o Amor estava tão inexpressivo quanto um minuto antes. Ela o pegou de novo, voltou a procurar nele algum sinal do antigo encanto. Ainda pensou em colocá-lo atrás dos outros bibelôs, a salvo dos olhares depreciativos dos visitantes, mas esse impulso de sentimentalismo durou um segundo. Ela jogou então o Amor na caixa, junto com as outras quinquilharias que havia recolhido pela casa. Ao levar a caixa para o balde de lixo, sentiu como ela estava pesada. Como podia ter guardado por tanto tempo aquilo tudo? Precisava se corrigir. Tinha uma afeição exagerada a objetos, quase sempre ligada a quem os dera. Quem lhe dera, mesmo, aquele Amor que parecia saído de uma loja de um real?

Cuidados

Toda manhã rego minha melancolia com três gotas de amor frustrado. Ela cresce mirrada e triste, como devem crescer as melancolias.

Preparativos

Enfunem todas as velas,
Que é hora de prepará-las,
Já vindo vêm as procelas
E o vento para arrancá-las.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Aprendizado

O que melhor fiz na vida
Foi aprender a ser vil,
Dos meus irmãos fratricida
E aos poderosos servil.

Morte por amor

Golpes de amor são fatais,
Nos punem, ferem, maltratam,
Nos sacrificam, nos matam
Mais do que as armas mortais.

Manifesto

Ao diabo com esses palhaços
com esses poetastros
cheios de rimas e poses
metidos a virtuoses
esses patetas de fancaria
vendilhões da arte
e paspalhões da poesia

Abaixo esses que rimam
sim com fim e vão
assim fazendo e refazendo
a mesma porcaria
a mesma patifaria
e ganhando aplausos
e prêmios conquistando
na academia

Tenho asco desses poetas
desses falsos estetas
desses ridículos profetas
que cantam ao vento
o advento do passado
e das velharias

Tenho asco desses poetas
que rimam sim com fim

Tenho asco de mim.

Imitação da vida

O filme, cara menina,
Igual à vida transcorre:
Nele tu és a heroína,
E eu sou aquele que morre.

Juízo final

Todos os homens impuros
Que o mundo já conheceu,
Canalhas, cruéis, perjuros,
Foram mais puros do que eu.

Egocentrismo

Teu mal, eu já percebi,
É aspirar sempre ao centro,
É querer ficar só dentro,
Girando em torno de ti.

Historinha infantil

Um cílio casou-se com outro cílio e tiveram muitos cílios.

Cupido

Quem diz, Amor, que não vês
Não vê como tu espetas
Com tuas certeiras setas
Dois corações de uma vez.

Jogar o jogo

Posso talvez, se preciso,
Minha tristeza ocultar,
Minha ventura inventar,
Fingir até um sorriso.

Urso

Nas noites de inverno, gosta de imaginar-se um urso numa grande gruta cercada pela neve. Põe-se na cama, debaixo de todos os cobertores que tem, e sente que isso é a felicidade. Às vezes, sonha que é um urso numa gruta cercada pela neve.

Quase gostosa

O desespero foi se transformando em uma tristeza morna, quase gostosa, que chega no fim da tarde e o faz lembrar dos dias em que, menino, qualquer indício de febre lhe rendia a atenção da mãe e um agrado especial.

domingo, 22 de julho de 2012

Vantagem

Viver é uma dessas aporrinhações às quais os mortos não estão mais sujeitos.

Sumiço

Aspiro só ao sumiço.
Ser grão de areia, ser pó,
Ser pluma ao vento, ser só
Um fiapo, e nada além disso.

Revisor

Estava mesmo em má fase.
Diante de um verbo de ação
Pôs uma preposição
E sapecou uma crase.

Queixas de amor

Com as ondas vem o lamento,
Agora só ecoado,
De quem confiou no vento
E foi por ele enganado,

De quem foi por sotavento
E barlavento logrado
E estando vivo um momento
Estava no outro afogado.

A cada onda que desce
O eco mais se enfraquece
E a queixa já silenciou.

Assim também morre a queixa
(E às vezes nem eco deixa)
De quem no amor confiou.

Lição

Desde quando era menino,
Tenho a lição decorada:
Morrer é nosso destino,
Morrer é nossa jornada.

Colheita

Gorou o que planejei.
Talvez porque pedi muito,
Só tive o pouco e o fortuito,
Colhi o que não plantei.

O conto do amor

Ninguém tem o direito de ser tolo quanto eu fui. Tamanha estupidez só se aceita se provocada por uma imposição irresistível ou por uma irrevogável privação do bom-senso. Enredar-se na teia do amor e não saber nem querer rompê-la é tão vergonhoso quanto cair no conto do bilhete premiado.

Visto para o Inferno

Que as virtudes do homem sejam objeto da atenção de quem faz as anotações para o dia do Juízo Final. Como enfadonhas são a bondade, a caridade, a solidariedade, a compaixão. Que para os artistas estejam sempre à disposição, visíveis como chagas, nossa abjeção, nossa pusilanimidade, nosso egoísmo, nossa perversão, nossa capacidade (e nosso desejo) de corromper a bondade, a caridade, a solidariedade e a compaixão.

Inquietação

Fernando nunca se bastou como Pessoa.

A pintura

A pintura ficou vinte anos no porão. A família mudou-se e não a levou. Ela ficou pendurada no meio de trastes longamente acumulados. A família nova demonstra por ela o mesmo desapreço. Só um garoto de dez anos, quando vai pegar ou guardar a bicicleta, olha rapidamente para ela. Hoje, ele notou um detalhe que o deixou intrigado. Usando um calção de criança, minúsculo, e sentado num carrinho de brinquedo, imensamente menor que ele, um homem barbudo parece insatisfeito por não conseguir dirigi-lo. Apesar da barba, seu rosto tem os traços de um rosto de bebê.

sábado, 21 de julho de 2012

O nome

Dá-se o nome de poesia
À praga que mais maltrata,
À moléstia que mais mata,
À droga que mais vicia.

História das duas naus

Lotaram-se duas naus
uma com homens bons
outra com homens maus

Singraram todos os oceanos
enfrentaram todas as tormentas
a bordo houve fome e doenças

Foram um
dois três anos
de provações e medos
ilusões e desenganos
até se espatifarem
as duas nos rochedos

Salvaram-se os homens bons
safaram-se os homens maus

As duas naus
o mar afogou.

Quadrinhas

E chega o momento no qual o escritor sabe que só uma obra-prima o salvará, mas seu fôlego se exaure com uma raquítica quadrinha diária, que poderia ser assinada por sua neta de onze anos, se ela não tivesse nenhum talento e nenhum receio de ser ridicularizada.

Sermos

Mudar meu nome, mudar
Teu nome, nos esquecermos
Do que nós fomos, e sermos
Um ser apenas, num par.

Dose dupla

De tudo eu possa valer-me
Para de ti me olvidar,
De tudo eu possa esquecer-me
Que possa te recordar.

Quem dera

Quem dera um dia eu quisesse
Recordar nosso passado
E tudo em mim estivesse
Bem morto e bem enterrado.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Logística

Se fôssemos alojar
Todos os parvos e os tolos,
Nos faltaria lugar
Onde pudéssemos pô-los.

Em Dostoiévski

Em Dostoiévski um machado
Pode uma agiota ferir,
Um silogismo inserir
Ou propor um postulado.

Paraíso

Dormir é como morrer.
A vida fica suspensa,
O pensamento não pensa
E o ser descansa de ser.

Arquivo morto

No fundo do mar ficaram
Os galeões, as fragatas,
Os capitães, as bravatas
E as maldições que lançaram.

Percurso

Sôbolos rios que vão
Seguimos percurso atroz.
Eles à foz chegarão,
Porém chegaremos nós?

Receita

Se tu feliz queres ser,
Melhor ser tolo que culto,
Pior ser sábio que estulto,
Malhor de nada saber.

Placebo

Tentei livros de autoajuda,
Fui consultar curandeiros,
Li toda a Marta Medeiros
E nada na vida muda.

Rendição

Tão fácil é desistir, levantar a bandeira branca, erguer os braços, deixar que nos desarmem e nos revistem. Tão doce é nos livrarmos do peso dos sonhos, do fardo das aspírações, deixarmos que os outros brinquem de ser Fernando Pessoa. Ah, a bênção de podermos abrir a janela de manhã e não vermos no sol nenhuma cobrança. E termos o direito de bocejar, de nos espreguiçar, de olhar a vida como os outros a olham, sem querer avaliá-la, entendê-la e retratá-la. Que satisfação nos dá pertencer à maioria e que alívio é não ver no parque nada além de um gramado cheio de árvores e passarinhos, sem esperar dele uma divagação ou uma metáfora.

Proteu

Sou um para uns
sou outro para alguns

O que para mim sou
sou para mim só
e para mais nenhuns.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Malogro

E todo dia pensar
Em tudo que se pensou
E ver que nunca adiantou
E nunca vai adiantar
Ter tudo bem planejado,
Os pontos todos urdir,
As tramas todas seguir
E tudo ver malogrado.

Marafona

Por mais feiosa que seja
E até um tanto corcunda,
Cliente sempre sobeja,
Ocupação sempre abunda.

Aposta

Quando de mim te lembrares,
Se é que de mim lembrarás,
Entre rires e chorares,
Aposto que tu rirás.

Soneto de quem julga ser Camões

O poeta não fala mais de flores,
A boca do poeta está calada.
O poeta não fala mais de amores
E nunca mais irá falar de nada.

Enquanto o ignoram todos os jornais
E também as tevês dele se esquecem,
O corvo só repete "nunca mais"
E os leitores, libertos, agradecem.

Morreu num dia, no outro foi cremado
Sem cerimônia e sem palavreado,
Sem poesia e sem declamações.

Todos os dias morrem uns trezentos
Desses homens sem par, desses portentos
Que julgam ser Pessoas ou Camões.

Bênção

É uma bênção teres os olhos assim fracos. Não vês, no sombrio céu de inverno, a chegada das asas negras. E também não as ouves. Louvada seja tua surdez.

Maneiras de estar cansado

Todo teu empenho, todos esses anos de leitura e de aprendizagem serviram afinal para alguma coisa. Podes dizer hoje, ao contrário do que os outros dizem, que estás fatigado, extenuado. Dizer que estás cansado seria indigno de ti e uma traição a García Márquez, John Steinbeck, William Faulkner, Anton Tchekhov. Estar fatigado e extenuado, e até combalido, é um direito que conquistaste com esforço, assim como é prerrogativa tua dizeres que és um morituro. Que os outros digam ser morituros do jeito que souberem. Tu mereces ir ao espelho, fitar teu rosto pálido, tuas rugas, e saudar-te: ave, morituro.

Mão única

Damos tanta importância aos outros. Por que a recíproca nunca é verdadeira?

De joelhos

A alma dos outros é sublime. A minha, ah, é melhor não lembrar. Na última vez em que a vi, ela, de joelhos, molhava uma esponja no balde e, entoando uma melancólica canção de amor, lavava e esfregava o chão.

À sombra

Dizer que não quer nada, proclamar que não tem nenhuma ambição é uma das artimanhas do homem mesquinho para ficar à sombra, com água fresca no cantil, enquanto na arena banhada de sol e sangue tombam cavalos e cavaleiros que lutam por uma improvável glória, pela honra de um nome, ainda que alheio, pelos verde-azulados olhos de uma mulher ou pelo mero e irretraçável destino de lutar e tombar.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Borrasca

No casco já destruído
Estouram os vagalhões.
Lutar não tem mais sentido,
Chegaram os tubarões.

Assassina

Cravarias em meu pescoço as mãos enluvadas e, se eu estivesse com sorte nesse meu último dia, serias desajeitada e lenta em teus apertos mortais e apertarias, assim, apertarias, ah, sim, e apertarias, apertarias.

Acessos

Quando chegar o dia, como poderemos saber se doze ou duzentos amigos virtuais curtirão nossa morte e a compartilharão nas redes sociais?

Eles

Pouco lhes importa a essência
E nada a filosofia.
Vivem só para a aparência
E o gozo de cada dia.

Contabilidade

Na conta das agonias,
Mais do que na das venturas,
Anote, amor, nas faturas:
Três anos não são três dias.

Ultimatos

Sempre fui tímido, irresoluto, inseguro. Nunca dei um ultimato a ninguém, só penultimatos - e às vezes nem isso.

Distraído

Distraído é aquele sujeito que está sempre muito atento a tudo que não se passa ao seu redor.

Se ainda

Devo-te tanto que um dia,
Se a ti acaso aprouvesse,
Sem hesitar te daria
Minha alma, se ainda a tivesse.

Só isso

Jamais um verso escrever,
Jamais um sonho almejar,
Somente a vida viver,
Nada querer expressar.

Outras palavras

O pior que pode acontecer a um escritor é, depois de décadas, ter a suspeita de que talvez fosse melhor, para ele e para os leitores, que esse tempo houvesse sido gasto na decifração de palavras cruzadas.

Os plurais

"E você ia aguentar uma garota que fala degrais, troféis e vinheram?", disse o rapaz, respondendo à pergunta do amigo. "Bom", respondeu o outro, "para que pensar em gramática quando uma mulher tem uma b... você sabe, que nem aquela?" Suspirando, o amante do idioma apresentou mais um argumento: "Ah, não dá. Sabe como ela chama aquilo? Náudegas."

O pregador

Em torno dos dois homens que na praça louvavam e celebravam o amor, juntou-se uma dezena de pessoas. Quando um dos pregadores, jovem e belo, se pôs a ler um soneto de Camões, uma garota disse à amiga: "Sabe? Eu acredito nele." A outra sorriu com escárnio: "Ah, só você mesmo. Já faz um século que essa seita está superada."

terça-feira, 17 de julho de 2012

A tela

Quando a luz da sala é desligada, o azul do céu, na tela, torna-se repentinamente sombrio e desce para o mar. O barquinho à vela desaparece e, como se isso fosse um sinal, também as cadeiras, a mesa, os vasos e os bibelôs se apagam.

Piercing

Que lástima esse piercing no teu umbigo. Teu futuro, agora, está inacessível à minha onfalomancia.

Nosso hino

Perder é nosso destino,
Perder faz parte de nós,
E é fúnebre nosso hino
E fúnebre é nossa voz.

Como é comum

Dirás como sentiste a minha morte. Como eu era simples, mas complicado, como eu era gentil, mas avoado, como eu era triste mas engraçado, como eu era assim, como eu era assado, e então perguntarás às tuas amigas se entenderam como eu fui, mas terás me pintado tão cheio de contrastes que elas não entenderão, assim como tu jamais conseguiste.

Às avessas

Em tudo quanto eu toquei
Notei modificação.
Ouro em latão transformei
E paz em conflagração.

O fim

Por mais que o pensador pense e o
Lutador lute, e por mais
Que soem sons triunfais,
O fim é sempre o silêncio.

Exceções

A vida é intoleravelmente feia e estúpida, embora às vezes uma rosa, um passarinho, uma criança ou um poema de Wislawa Szymborska teimem em nos fazer mudar de opinião.

Heliocentrismo

Em torno do girassol as abelhas, em manifestação copérnica e heliocêntrica, executam sua translação.

Bichos

Na beira do rio, toda manhã a onça espera o sol vir beber água, mas ele sempre lhe escapa. À onça resta, então, devorar os outros bichos.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Essência

A nada nos leva o amor,
Nem é para nos levar.
O amor é ser, não estar,
É a árvore, não a flor.

Também o amor

Igual a tudo na vida,
O amor também vive só
A exata e justa medida
Antes de se tornar pó.

Epitáfio

Tudo que se faz se esfaz.
Daquilo que me moveu
O tempo me demoveu
E o que restou aqui jaz.

Descobertas

Que excitantes eram as descobertas na adolescência: o primeiro beijo, o primeiro baile, o primeiro cigarro, o primeiro amor. Para elas, há no dicionário uma dezena de interjeições e, fora deles, mais uma centena, todas para exprimir a satisfação que senti em cada uma daquelas situações. Depois a vida me traria outras surpresas, mas para essas as interjeições foram outras, e as frases nada amistosas. Mas, digam-me, poderia eu exclamar, para os meus tiranos, "Ó, meu querido pâncreas, ah, meu amado baço, olá, meu estimado duodeno"?

Rede social

Não entro em redes sociais. Sou egoísta, ciumento, e não quero compartilhar minha tristeza com ninguém. Ela é velha, meio maluca, não lembra mais quando nem por que nasceu, mas só ela sabe onde e como tocar minha alma para que nela soe algo parecido com um violino numa noite de outono.

Caminho

Alguns, quando se referem ao que fazem, falam de percurso, trajetória, jornada. Eu nem de caminho posso falar. Seria levar a licença poética longe demais.

domingo, 15 de julho de 2012

Cacofonia

Lição de cacofonia
Ninguém jamais recebeu
Tão boa quanto a que um dia
Na aula o mestre Astolfo deu.

Última página

Escrevo como quem diz
Adeus à estação florida,
Adeus ao tempo feliz,
Adeus à esperança e à vida.

Carapuça

De maus poemas o caminho do amor está cheio.

Meio a meio

Não sabe se morre ou vive,
Pois nada o mantém absorto,
E vivo parece morto,
Um morto que sobrevive.

Majestade

Cantar tua majestade
Não é louvor, elogio,
Nem ilusão, desvario.
É a pura e clara verdade.

Matinal

Quando te pões à janela,
A brisa te dá bom-dia,
O beija-flor te diz bela
E o sol te reverencia.

Embrulhados para ti

Quisera cometer
uma barbaridade
uma insanidade
um crime de lesa-majestade
em celofane embrulhá-los
com fio dourado atá-los
e te oferecer

Quisera causar
uma surpresa
uma beleza
uma certeza
empacotá-las especialmente
para presente
e te ofertar

Quisera ser
o maior herói
o mais temível anti-herói
e que para mim
o olhar dirigisses
com simpatia talvez
ainda que somente
por um brevíssimo tempo
por um momento
antes que descobrisses
que era eu disfarçado
eu novamente
e dissesses com enfado
não ele não
por caridade
por favor
por piedade
por compaixão
não ele outra vez
não.

Diapasão

Não consigo imaginar nada mais triste do que a chuva pingando metodicamente sobre o túmulo de uma criança.

sábado, 14 de julho de 2012

Na tua porta

Se eu fosse teu gato, em vez de caçar os ratos que lanço em teu quintal e te enojam tanto, talvez eu aprendesse a colher margaridas para deixar todas as manhãs uma na tua porta. Pode ser que um dia me deixasses entrar, me oferecesses uma tigelinha de leite e me desses um nome do qual eu certamente gostaria, mesmo que fosse Mixu.

Devir

Igual a vocês eu sou,
Nós somos todos assim:
Quero saber aonde vou,
Sem nem saber por que vim.

Alquimia

Colheu furtivamente um fio de cabelo da mulher amada e, meses após meses, usando invocações propiciatórias, se empenhou em transformá-lo em ouro, como se já ouro não fosse.

Qualquer negócio

Desapontado com a vida,
Aceita qualquer parada:
Morrer de morte morrida,
Morrer de morte matada.

Poeminha sem jeito

As tardes te distanciam
daquela tarde
daquele dia
em que o amor
com dissimulação urdia
tua futura danação

Não houve feitiçaria
bruxaria
e a poção
foi um capuccino
numa mesinha de cafeteria

Havia também
certos cabelos
certos olhos
e o impulso
de tocá-los
e a ventura
de vê-los

Quem dera pudesses hoje
olvidá-los
quem dera pudesses hoje
esquecê-los.

Liçãozinha

Se és culto deves dizer
Fortuito e não fortuíto,
Gratuito e não gratuíto,
E não vigir, mas viger.

Em casa

Quando entro em casa, posso ser o que sou. Sento-me no sofá, recolho o que possa haver restado do sorriso social e, deixando a vida do lado de fora, assumo prazerosamente a minha melancolia.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Um soneto de Shakespeare

Para que este blog, ao menos hoje, possa ostentar algo que mereça o nome de literatura, transcrevo um soneto de Shakespeare, que consta de suas Obras Completas, publicadas pela Editora Abril em 1981. A tradução é de Ivo Barroso.

Não lamentes por mim quando eu morrer
Senão enquanto o surdo sino diz
Ao mundo vil que o deixo e vou viver
Em meio aos vermes que ainda são mais vis.

Nem te recorde o verso comovido
A mão que o escreveu, pois te amo tanto
Que antes achar em tua mente olvido
Que ser lembrado e te causar o pranto.

Ah! Peço-te que ao leres esta queixa
Quando for minha carne consumida,
Não te refiras ao meu nome e deixa
Que morra o teu amor com minha vida.

Não veja o mundo e zombe desta dor
Por minha causa, quando morto eu for.

Noves fora nada

Nós nos queixamos. Contudo,
Tirando-se o que não presta,
E que por sinal é tudo,
É bom demais o que resta.

To be or not to be

O desafio comum
Aos que se põem a escrever
Não é segredo nenhum:
Ser Shakespeare ou não ser.

A dor

É insuportável a dor, você diz, você escreve e, quando diz e escreve, você pensa estar sendo sincero. Mas há momentos em que você se sente falso, e a prova de sua falsidade é você estar vivo ainda, falando e escrevendo. Não é preciso ler Shakespeare ou Alexandre Dumas. Qualquer folhetim que você pegue lhe mostrará que a dor, se for de amor, sempre mata.

Sentimento antigo

Em alguns sebos eles ainda podem ser encontrados. São da década de 1950 ou 1960, nas páginas o tempo deixou suas marcas amarelas e as capas estão desbotadas. Quem os procura e pede em voz baixa, acentuando que se destinam a uma pesquisa, são garotos. O assunto que os leva a pedi-los é um sentimento que se extinguiu nos últimos anos do século passado e costuma estar já no título: "Serenata de amor", "Um amor inesquecível", "Crepúsculo do amor", "Amor imortal". Com um sorriso conspiratório, o atendente, murmurando "ah, sim, para uma pesquisa, claro", os leva à última estante, bem no fundo da sala, onde paira uma escuridão complacente e piedosa.

Conhecimento de causa

Quando fala de amor, nos seus olhos algo, semelhante a um brilho, quase faz acreditar que ele saiba do que está falando.

Purificação

Sair para a chuva, bebê-la como se merecêssemos cada gota, deixá-la escorrer pelo nosso corpo como se fôssemos árvore e pudéssemos ainda abrir-nos em ramos e flores e acolher os ninhos dos pássaros. Senti-la entrar em nossos olhos, em nossa boca, em cada um de nossos poros pecadores e acreditar, por um instante, que há um pouco de pureza em nós e talvez nossa alma não esteja irremediavelmente perdida, se alma ainda tivermos.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O amor é

Aquele que pela primeira vez usou a expressão amor verdadeiro foi talvez também um dos primeiros a tentar matá-lo. Ao amor não se aplicam adjetivos. Perene? Sincero? Eterno? O amor simplesmente é.

Ciúme

O ciúme me faz mesquinho
E é torpe tudo que sinto.
O que não sei, adivinho
E o que não vejo, pressinto.

Essas mãos

Essas mãos velhas que tremem ao segurar a xícara de café, essas mãos que molemente apertam as outras e já não acertam os contornos da assinatura, foram ousadas outrora, escalaram montes de vegetação espessa, aventuraram-se em grutas em busca de fontes de água salina e tiveram a ventura de pousar em cabelos incendiados pelo áureo fogo do sol. Melhor não olhar para elas agora e fingir, como tributo às glórias passadas, que não vemos sua atual miséria.

Vocação criminosa

Uma adaga turca, um recipiente de raro veneno e uma pistola de prata se lastimam por não haver mais ninguém como Agatha Christie para colocá-los na cena de um crime.

Topo

Pobres vencedores. Tanta luta para chegar ao topo, tanto sangue deixado nas pedras. Para cima não podem mais ir, atingiram o limite, e olham com melancolia para baixo, sentindo já como será inglório o caminho da volta.

A esmo

Somos não mais do que folhas sopradas pelo vento. Estarmos um pouco mais para cá ou para lá, que diferença faz? Não temos escolha, e o vento não sabe onde é o norte.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

"Para uma teoria do verso", de Sânzio de Azevedo

Para os que amam a poesia - os que a leem e os que a produzem -, o livro "Para uma teoria do verso", de Sânzio de Azevedo, é magistral, e dizer só isso é dizer pouco. Não conheço nenhum, nem acredito que haja, que trate da poesia com tal meticulosidade e completude. Os diversos tipos de composição poética, a construção dos versos e das estrofes, as técnicas, tudo que se relacione com a arte da poesia está nesse livro. Publicado em 1997 pela Universidade Federal do Ceará, tantos são os seus ensinamentos que todas as bibliotecas do país, principalmente as públicas, deveriam ter ao menos um exemplar dele. Pelo que sei, trata-se de livro esgotado. Reeditá-lo seria uma nobre contribuição para a poesia - e a literatura - brasileira. Uma preciosidade, escrita por um mestre.

Maresia

Nas Helvetias, nas Auroras, nas Vitórias, em todas as ruas onde outrora os meninos iam deixar a virgindade, o vento ainda é morno e tem cheiro de mar.

Crença

O poeta recentemente convertido ao modernismo não olha para as flores e finge não ouvir os passarinhos. Receia uma recaída.

Prudência

Toda vez que pousa na estátua equestre, o passarinho fica em cima do cavalo. Aprendeu a temer os homens.

Reverência

Na Pavana para uma Infanta Defunta, de Ravel, as notas flutuam, pairam, adejam, quase se escusam por estar soando, temerosas de perturbar o repouso da morta.

Ficha corrida

Tenho aqueles sentimentos que os romancistas apreciam nos seus vilões: ressentimento, ódio, rancor, ciúme, inveja, cobiça, soberba. Sempre encarei o amor como uma possível atenuante para todos eles. Mas ultimamente venho pensando se mesmo esse amor não será só uma outra face do meu egoísmo.

O amarelo

O amarelo é teu inimigo. Enquanto respiras, enquanto andas, enquanto dormes, ele entra em tuas gavetas, mexe em teus álbuns, em tuas fotos, nos teus recortes de jornal, nas lembranças de tuas pequenas glórias, fixa-se furtivamente na pele de tuas mãos, no rosto, na tua alma.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Realidade

Com seus grasnidos senis
quer cantar emoções juvenis

E o jorro da cachoeira
em seu poema
tem a intensidade mofina
de furada mangueira
e a grandiosidade vã
dos três pingos de urina
que sacode gemendo toda manhã.

Ideias soltas sobre o amor

O amor não gera alegria. O amor provoca inquietação, exaltação, angústia, sofrimento, e aqueles que o vivem sabem que é impossível para um homem, para uma mulher, manterem indefinidamente um sentimento nascido para durar o tempo exato para plantar no coração e na alma as sementes daquele êxtase único que só aos mártires é dado conhecer. Todo amor é, desde o primeiro momento, um caminho para a crucificação. O amor não é sadismo, é masoquismo, não é chicote, é carne lanhada, é espinho, é cilício, é autoflagelação.

Do oitavo andar

Vista do oitavo andar
a vida passa devagar
como se não passasse
de uma paisagem
de uma pintura

Vista do oitavo andar
a vida parece mansa
como um tigre de circo
ou uma pantera de gravura

Vista do oitavo andar
a vida é uma bela vista
uma miragem
uma falsa paz
uma chantagem
que a vida nos faz
para nos iludir e inibir
nosso impulso de saltar.

Quase tudo

A memória me restitui o amor, e brilham de novo os dias de outrora. Sopra a brisa nos teus cabelos, ouço a trepidação do trânsito na avenida e da galeria vem o cheiro do café e do pão de queijo, misturado ao aroma adivinhado dos livros nas estantes da Livraria Cultura. Restitui-me tudo a memória, até o fulgor do sol nos meus olhos cansados. Mas o calor na pele e o ardor em minhas veias eu não os sinto mais.

Aspiração

Que tudo a morte me cobre,
Que tudo pegue e desfaça,
Pele, ossos, nervos, carcaça,
E nem mesmo a alma me sobre.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Versos que todos gostariam de escrever para a amada

Um soneto de Shakespeare, traduzido por Ivo Barroso, um exemplo do que o amor era capaz de inspirar em outros tempos e um convite para que os enamorados nele se espelhem e tentem homenagear as amadas como elas merecem. Não acredito que as mulheres tenham perdido o feitiço e o encanto. Suponho que aos homens venha faltando a capacidade de percebê-los e exprimi-los. Extraído do segundo volume das Obras Completas de William Shakespeare, publicadas em 1981 pela Editora Abril.

"Devo igualar-te a um dia de verão?
Mais afável e belo é o teu semblante:
O vento esfolha maio inda em botão,
Dura o termo estival um breve instante.

Muitas vezes a luz do céu calcina,
Mas o áureo tom também perde a clareza:
De seu belo a beleza enfim declina,
Ao léu ou pelas leis da natureza.

Só teu verão eterno não se acaba
Nem a posse de tua formosura;
De impor-te a sombra a Morte não se gaba
Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

Enquanto houver viventes nesta lida,
Há de viver meu verso e te dar vida."

Nenhuma igual

Sei que, seja ela qual for
E doa como doer,
Nenhuma dor pode ser
Tão doce quanto a do amor.

No corpo, na alma

Como um tumor, uma chaga, o amor nos rasga, nos dói, nos desafia: extirpa-me, extrai-me, elimina-me, que eu deixo de supliciar teu corpo e me instalo no coração de tua alma.

Rumos

Um par de pernas bem torneadas pode fazer os homens segui-las até o céu, até o inferno ou, na melhor das hipóteses, até um motel.

Queda

Querer o belo, o profundo,
Ao sol e ao céu aspirar,
Tentar o voo, acabar
De quatro no chão imundo.

O relógio

Mas reles, mesmo, ele se sentiu no dia em que, examinando os relógios de um camelô, escolheu um de dezesseis reais e pechinchou até reduzir o preço para catorze. Enquanto ele negociava, o filho do camelô, um garotinho de uns seis anos, mastigava penosamente uma bolacha de água e sal.

domingo, 8 de julho de 2012

Os malditos

Os que lutaram pelo amor e sobreviveram não se deixam ver. Saem só à noite, mantêm os olhos fixos no chão, esgueiram-se. Se por eles passa alguém, baixam mais ainda o olhar. Sabem que é mais um dos malditos da mesma espécie, outro dos que não souberam morrer com honra e também carregarão para sempre sua vergonha e sua covardia.

Exemplo

Pedir-te, como o vento à rosa, que me permitas tocar-te levemente e sussurrar em teu ouvido as odes que os maiores poetas fizeram em louvor à beleza ideal e suprema que, quando precisa de exemplo, recorre a ti.

Presente

Te darão uma bengala e te sentirás tão feliz quanto no dia em que, no teu décimo aniversário, ganhaste o par de patins e o livro de Monteiro Lobato.

Sopinha

Teus brados de amor há muito já não ecoam, as citações de Shakespeare fugiram da tua memória e vai chegando o dia em que dedicarás no asilo um poema estropiado à mulher do refeitório, para que ela te ponha no prato mais uma concha de sopa.

Penúria

Dura era a vida dos antigos escritores. Trabalhavam à luz de velas e passavam até fome. Machado de Assis escrevia nas entrelinhas para economizar papel.

Espelho trincado

Se a literatura for só um pouquinho menos monótona que a vida, já vale a pena.

Contraindicação

Não seja o amor um pretexto
Para uma peça sofrível,
Para um poema risível,
Ou para um péssimo texto.

sábado, 7 de julho de 2012

Pass

Umpássaropas
saedeixanoarumaquei
xaqueecosefaz

Cacófato

Não sei se por mau ouvido
Ou por um estudo falho,
Ele me contou ter sido
Perito em descascar alho.

Paisagem

Como lhe dói a beleza dela quando ele a vê afastar-se e ir se aproximando da esquina onde dobrará à direita e desaparecerá, levando nos cabelos os últimos grãos de ouro semeados pelo sol da tarde.

Percepção

Não sei como os outros não percebem, como não veem que essas tardes são docemente feitas para o sofrimento.

Placa

Sentado no parque, o homem lê o jornal, enquanto sua cachorrinha analfabeta ignora a placa e rega a grama.

Suicídio

Ansiando pela morte, foi para o jardim à meia-noite, sentou-se sob uma lâmpada, abriu um livro de Borges e esperou o tigre. Uma hora depois, adormeceu e sonhou que estava num circo, onde um leão de Hemingway lhe pedia pipocas.

Mais o quê?

Disse tantas vezes que eu,
Que só no amor vi meu bem,
Morri quando o amor morreu.
Dizer mais o quê? E a quem?

Com moderação

De tudo que aprender pude,
A mais preciosa lição
É que, com cautela ou não,
Viver faz mal à saúde.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Resumo

De tudo estive imbuído,
Em tudo estive empenhado,
Em tudo fui decidido,
Em tudo fui derrotado.

Maçã a caminho

Achar a melhor maçã, colhê-la, afagá-la. Depois, segurando-a como quem protege um tesouro, descobrir o caminho no fim do qual talvez estejas e aceites recebê-la.

Tarefa

A todo instante este peso, este fardo, esta carga, esta insuportável necessidade de sair para o dia e viver a vida que nos impuseram.

As oferendas

À noite, cachorros famintos irão cheirar as oferendas ao amor e, desgostosos das velas e das rosas, urinarão sobre elas antes de copular ganindo para a lua.

A verdade

Tua última bravata é essa de fazeres pouco-caso da vida e de quereres dar a impressão de que a estás abandonando. Foi ela, tu bem sabes, que te abandonou.

A última

Que para a última viagem
Que fores fazer na vida
Tenhas só uma passagem
E que seja apenas de ida.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Nas solas e nos saltos

Ter a decência
de calar
de não exprimir
de não expressar

Os livros já estão
cheios de maus poemas
e os suspiros de amor
tão risíveis são
quanto um par de sapatos
dançando uma valsa no salão
com bosta nas duas solas
e merda nos dois saltos.

Apatia

Uns nasceram para vencer, outros para bater palmas para os vencedores. Na cena da vida, eu não tenho mãos nem para conquistar nem para aplaudir.

Cemitério - I

À noite, quando os visitantes se vão, as árvores silenciam e dormem, como os mortos.

Cemitério - II

Durante o dia, é raro vê-los, mas quando a noite chega os gatos se põem a andar furtivamente pelas alamedas, e se procuram, e se amam sobre os túmulos, arrepiando a espinha dos mortos.

A regra

Que os homens devem morrer
A história diz, e a razão.
Que eu possa a regra manter
E não me caiba a exceção.

Estratégia

Manter a vida, conservá-la a qualquer custo, mesmo que seja só para podermos continuar a maldizê-la.

A palavra amor

Apareceu um dia na cidadezinha e durante o mês em que lá ficou foi inútil tentarem fazer amizade com ele ou saber por que estava lá. Andava pela rua principal todas as tardes, entre as seis e as seis e meia, e dizia sem parar a única palavra que o ouviram pronunciar naqueles trinta dias: amor. Ele a repetia a cada três passos, como se fosse uma invocação, e, sempre andando e dizendo amor, sumia. Acabaram se acostumando e quando, depois de um mês, notaram sua ausência, sentiram que iam ficando mais melancólicas as tardes de outono. Souberam, já chegado o inverno, que havia agora numa cidadezinha próxima um maluco que andava pela rua dizendo amor, amor, amor, e sentiram-se miseravelmente tristes e pobres. Entre as seis e as seis e meia da tarde, calavam-se todos e esperavam que o vento trouxesse da cidade vizinha aquela palavra que agora talvez estivessem preparados para compreender. Mas jamais voltaram a ouvi-la e, quando tentavam eles mesmos dizê-la, era um arremedo, duas sílabas sem paixão e sem insânia.

Calendário

Existem dias de viver por amor e dias de por ele morrer. Todos os outros dias são inúteis.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Aos domingos

Aos domingos imagino maior a felicidade alheia, e a minha, há tanto tempo desenganada, volta a sangrar pelas feridas que a cruel memória reabre.

Drama

Drama não foi ter amado,
Só pelo amor ter vivido
E ser por ele enganado.
Drama foi não ter morrido.

Outra forma de dizer

Uma dor profunda, uma desesperança profunda, um cansaço tão profundo que não tenho mais forças para buscar outros adjetivos, outra forma de expressar esta dor profunda, esta desesperança profunda, este cansaço tão profundo.

Riqueza

O dia em que esteve mais perto de se tornar milionário foi aquele em que achou na rua vinte pacotes abarrotados de cédulas, todas porém eleitorais.

Cartas de amor

Nas gavetas das casas antigas escondem-se cartas de amor. Quando morrem seus proprietários e os filhos vão fazer a limpeza, encontram certidões e documentos roídos, testamentos e codicilos arruinados. Mas as cartas de amor estão sempre intactas, como se tivessem sido escritas no dia anterior. Nem às traças apetece a subliteratura.

Destino

Talvez por mera ironia
Foi esse o destino meu:
Vivi o que eu não queria
E o que eu queria morreu.

La dernière valse

Enquanto a festa fruías,
Havia já o teu fado
Sem pena determinado
Que era a última que terias.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Jornada

Cruel é a minha jornada.
Sou surdo, sou cego e mudo.
Falta-me tudo de tudo,
Não tenho nada de nada.

Inapetência

Para ele o sol se anuncia
E na árvore o fruto cresce.
Tão fácil viver seria,
Mas viver não lhe apetece.

A lembrança do amor

Levaste a alegria, a paz,
Levaste a minha esperança.
Porém do amor a lembrança
Jamais tu a levarás.

Pragmatismo

Os dias que irei viver
Que venham. Serão bem-vindos.
Mas muito maior prazer
Me darão quando já findos.

Definição

Por sua sabedoria,
A frase é dita e redita:
Morrer é nossa alegria,
Viver é nossa desdita.

O lugar do gato

O gato já morreu há um ano, mas o seu lugar no sofá continua fundo, como se ele ainda o ocupasse. O homem sente falta dele quando cochila ali e, às vezes, ao acordar, em tardes de calor pleno, antes de abrir os olhos põe a mão instintivamente no espaço vago, e por uns instantes é como se o sol lhe tivesse devolvido o gato com o seu pelo morno e macio.

Pior ainda

Em todas as situações da vida, especialmente se nelas tiver se intrometido o amor, convém que pensemos sempre no pior desfecho. Se não acertarmos o prognóstico, será por não termos pensado num pior ainda bem pior.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Fatos

Nos fatos de minha história
Me coube mísera cota:
Não tive maior vitória,
Só tive maior derrota.

Projetos

Os meus projetos falharam.
As cordas não resistiram,
As veias não se esvaíram,
As balas não me acertaram.

Tentativas

Ouvi do tiro o estampido,
Ouvi da morte o chamado,
Fui lacerado, ferido,
Mas, ai de mim, fui poupado.

A lagartixa

São monótonas as tardes dele no sofá. Arrepende-se da aversão que sempre demonstrou pela tevê. Hoje, embora ouça e enxergue mal, gostaria que a ligassem, mas não pedirá isso. Chega de capitulações. Nos primeiros dois meses dos oito em que já vive confinado na sala, teve a companhia de um gato que a filha levou para ele. Mas o sofá arranhado fez expulsarem o gato. Agora lhe sobrou a lagartixa que, quando começa a anoitecer, sai de trás do quadro e dá um cauteloso passeio pela parede. Ele a acompanha fascinado. Teme que um dia alguém - principalmente a empregada, que vive cutucando todos os cantos - a descubra e ele fique outra vez sozinho na sala.

A primeira noite

Como é triste, depois da primeira noite de devassidão, olhar nosso rosto no espelho. Quantos de nós prometeram, olhos envergonhados nos olhos envergonhados, jamais vagar pelas escusas ruas da noite? E quantos, ai de nós, cumpriram? Não nos olharmos mais no espelho foi tudo que fizemos.

Matinê

Então, uma tarde, enquanto meus amigos cumpriam o ritual de vaiar o beijo que o caubói trocava na tela com a mocinha, eu me concentrei em ver como os lábios se encaixavam e como se fechavam os olhos dele e dela. No domingo seguinte, fui o único da turma que não levou o revólver de espoleta para participar, na plateia, do tiroteio entre os bandidos e os habitantes da cidadezinha. Estava, sem perceber, renegando minha infância e entrando no triste mundo dos adultos.

Sem pressa

Morrer cada dia um pouco. Morrer com parcimônia. Deixar que a morte se aposse de nós lentamente, não como um sofrimento, mas como uma bênção. E que não venha, com a morte, nenhuma revelação e, principalmente, nenhuma nova vida.

domingo, 1 de julho de 2012

A medida

Seja no tempo que for,
Que seja nossa medida
Ao amor darmos a vida
E darmos à vida o amor.

Sequência máxima

Cansaço vital
Cansaço brutal
Cansaço fatal
Cansaço final
Cansaço letal
Cansaço mortal
Descanso afinal.

O sexo em Philip Roth

Na trajetória de Philip Roth, a dimensão do sexo pode ser acompanhada desde os fogosos dias da juventude até as crepusculares tardes da velhice. O atleta sexual vai perdendo o ímpeto, dá aos poucos lugar ao homem maduro e, no final, restam do antigo ardor a fria memória e a crua derrota. Nos livros de Roth, o sexo não é um triunfante personagem. É um capítulo na vida do protagonista. E o protagonista é sempre Roth, desde o tempo em que se vestia (e desvestia) de Nathan Zuckerman.

Esquinas

Dali, onde começavam as ruas em que à luz ambígua dos postes as mulheres se ofereciam, subia um cheiro morno, um mormaço que nos embriagava e fazia cada um de nós sentir ao mesmo tempo o êxtase e a miséria da carne e da vida.

Soberba

Tu pensas que tudo sabes,
Porém a tua jactância
Supera a tua importância.
No teu orgulho não cabes.

Glória

Que a glória contigo esteja.
Que a inatingível Antares
Seja a estrela que alcançares
Ou que nenhuma outra seja.

Falso verde

Teu tempo passou como um rio. Flui já para a foz e para o esquecimento, mas os teus olhos, acumpliciados com a memória, fixam-se ainda nas já amareladas árvores da nascente e teimam em ver nelas o verdor de outrora.

Os mártires

Os mártires do amor morreram jovens. Foram poucos na história e viveram em tempos remotos, quando o amor, como as pragas, começou a ser conhecido pelos homens. As pragas resistiram, mas o amor foi dizimado, como se fosse uma delas.