quinta-feira, 1 de maio de 2014

O mendigo

O amor voltará um dia, possivelmente numa noite do mais feroz inverno dos últimos quarenta e cinco anos. Tocará a campainha, disfarçado de mendigo. Pedirá uma coisinha qualquer para comer, estou faminto, e um copo de água, pode ser da torneira mesmo, não quero incomodar. Será ridícula sua caracterização de mendigo, e como poderíamos esquecer o timbre de sua voz? Mas nós iremos até o portão e o convidaremos a entrar, que os vizinhos estranhem quanto quiserem. Ora, nem é meia-noite, hora bem plausível e ainda muito decente para uma visita. Nós o faremos sentar-se no sofá que ele tão bem conhece, lhe perguntaremos tolamente se está com muito frio, iremos esquentar no micro-ondas um sanduíche de queijo e lhe traremos um suco de laranja, daquela marca que ele sempre apreciou. Ele continuará tentando fazer bem o papel de desconhecido, e nós, para não decepcioná-lo, fingiremos que ele é um ótimo ator. Como se a casa não fosse a nossa, pediremos licença para sentar-nos ao lado dele e ficaremos atentos a cada mordida que ele der no sanduíche e a cada gole que der no copo. Ele perguntará se queremos ouvir a história de seus infortúnios, nós lhe diremos que não, que não se incomode, e, quando lhe estendermos o guardanapo, para secar os lábios, o olharemos com aquele olhar que as pessoas reservam para os mais doces acontecimentos da vida.

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