quinta-feira, 22 de abril de 2010
Pequenas alegrias urbanas (45) -- O casamento
Lia, faz um ano hoje. Você não deve se lembrar da data, você nunca foi sentimental. Eu é que sempre fui bobinha, era assim que você me chamava, disso talvez você se lembre. Faz um ano que nós... Faz um ano que... Como eu lutei, como eu rezei para que aquilo acontecesse. Você se lembra talvez de como eu insisti para que fôssemos ver O Último Tango em Paris, naquela retrospectiva. Se minha mãe soubesse que íamos ver esse filme, que tinha causado tanto escândalo na juventude dela... Já que falei de minha mãe, ela morreu faz dois meses, coitada, e levou para o túmulo todos aqueles princípios sólidos. Uma semana depois, meu pai foi morar com uma das amantes dele. Melhor assim. Vivo aqui sozinha e poderia até dormir no quarto dos meus pais, naquela camona. Mas durmo no quarto em que você deixou seu perfume, naquela noite. Quando acabou o filme -- eu com o coração batendo a mil, você fria como uma estátua de mármore, mesmo depois de eu ter ficado com a minha mão procurando as suas todo o tempo --, eu perguntei, com a voz tremendo como um passarinho morto de frio, se você queria dormir em casa. Já era quase meia-noite e eu disse como seria mais fácil e menos perigoso, para você, do que ir para a sua casa, naquela lonjura. O dia seguinte era um sábado e nós não precisaríamos ir ao colégio. Poderíamos dormir quanto quiséssemos. Era minha terceira tentativa, naquele mês, de dormir com você e, justo nessa noite, quando você me pareceu mais distante do que nunca, você aceitou. Minha mãe ficou feliz com aquilo ("A Lia, de todas as suas amigas, me parece a que tem melhor cabeça") e, depois do lanche que ela nos preparou, nós duas viemos para o meu quarto, este de onde agora escrevo, e, assim que entramos, você se jogou em cima de mim, me atirou em cima da cama e começou a repetir, cada vez mais baixo, enquanto me beijava: "Era isso que você queria, não era? Era isso que você... Era isso... que..." Relembro tudo isso porque nunca mais você deu sinais de que isso aconteceu mesmo, e às vezes eu preciso me concentrar e reconstituir tudo, detalhe por detalhe, para ter certeza de que aconteceu. Só houve aquela noite, com aquela flama, com aquele incêndio que nos consumiu. Depois vieram os dias em que você foi me descartando, deixando de lado, até sair de minha vida. Faz hoje um ano, Lia, e só naquela noite eu pude dizer no seu ouvido o que desejaria dizer agora, abraçando seu corpo: "Liinha, Liinha." Você se ligou à Fúlvia e começou a andar atrás dela, a persegui-la, até que ela foi com a família morar em Buenos Aires. Tive pena de você, cheguei a imaginar que você poderia se lembrar de mim, daquela noite, e... Mas hoje, agora, um ano depois da nossa noite louca, sei que você jamais... E digo, com todo o meu rancor e o meu amor ferido, que a Fúlvia se casou lá na Argentina, faz duas semanas.
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