segunda-feira, 7 de junho de 2010
Pequenas alegrias urbanas (184) -- A centésima
Ela queria que aquela fosse uma carta maravilhosa, a mais bela de todas. Era a centésima que escrevia, mas não era por isso, por ser um marco, que ela a queria especial. A do dia anterior ela também havia escrito com o coração, com a alma, com o sangue ditando cada letra. E também as outras, desde a primeira. Cem dias, cem cartas. Todas falando de amor e saudade. E de que mais falariam? O amor e a saudade eram sua vida. Quando não estava escrevendo a carta do dia, estava pensando na carta que escreveria no dia seguinte. Chorava sempre ao escrevê-las - uns dias mais, outros dias mais ainda. Sentia-se infeliz quando chorava menos, e achava-se indigna do amor que sentia. Precisava tomar cuidado, sempre, para não borrar a tinta. Aquela carta, a centésima, lhe tomou mais do que as duas horas de costume, porque a cada instante era obrigada a engolir as lágrimas e a acalmar os soluços. Conseguiu terminá-la e sentiu-se exausta e vazia, como se tivesse se colocado inteira no texto. Foi para o quarto, feliz por ter exprimido tudo que queria, mas antes enfiou a carta num envelope, pondo-a depois em cima das outras noventa e nove.
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