quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Preguiça

Uma deplorável mania que certos escritores preguiçosos têm é passar tarefas que são exclusivamente deles a personagens. Isso redunda em diálogos mais ou menos como este. Personagem A: "Você encontrou aquela mulher de olhos castanhos, a Laura, aquela casada com o embaixador?" Personagem B: "Aquela que, quando você era adolescente, dançou uma noite na casa dos Soares e disse que conhecia uma história escabrosa da família?"

Versos pobres

Dizer-te como és bem-vinda
E como o meu coração,
Alheio à voz da razão,
Por ti bate forte, ainda.

Chamar-te de novo linda,
Pegar-te outra vez a mão
E jurar-te que, em mim, não
Diminui o amor nem finda.

Nestes versos simples, pobres,
Quero ver se tu descobres
O que eu te quero dizer:

É que tudo em minha vida
Rima contigo, querida,
E há de assim permanecer.

Simples assim

Uma das tentações das quais se deve fugir em literatura é a de querer que tudo soe literariamente. A melhor maneira de dizer que um homem atravessou a rua é: um homem atravessou a rua.

Tudo

Meus olhos já não te veem
Há tanto tempo que eu penso
E às vezes até repenso
Que cor os teus olhos têm.

E nesse pensar me intrigo,
E não sei se teus cabelos
(Ah, quanto tempo sem vê-los)
São mesmo da cor do trigo.

Que eu possa um dia rever-te
E novamente dizer-te,
Eu, que tenho estado mudo,

Que apesar da longa ausência
Foste sempre a minha essência,
Minha vida, meu ser, tudo.

Réu

Se amar sem ser retribuído
É crime considerado,
Sou réu fichado e detido
E me confesso culpado.

Atroz acróstico

Sim, confesso, eu já cometi um acróstico, aquela abominável composição poética (!!!) em que as letras iniciais de cada verso formam um nome (geralmente de mulher). Seria mais fácil admitir que, quando menino, incentivado por minhas irmãs, cheguei a fazer bordados. Havia em meu bairro uma garota chamada Irene que me fez descobrir que em determinadas situações, às quais ela sempre estava presente, meu coração desandava a comportar-se como aquele almirante louco de que fala Fernando Pessoa. Uma tarde, com o coração assim desgovernado e um tratado de versificação, burilei (a palavra era essa) um acróstico que, lido em voz alta, me pareceu a chave certa para conquistar Irene. Tinha julgado essa etapa a mais difícil, mas logo percebi que entregar a chave é que era a grande questão. Sem coragem para ir eu mesmo, encarreguei disso um amigo e, delegada assim a incumbência, fiquei a esperar, antegozando a vitória. Devo dizer que fui paciente. Até hoje, depois de tantas décadas, não recebi a resposta. Para não afetar minha autoestima como poeta, atribuí o fracasso à incúria do meu amigo no desempenho de sua missão de carteiro e o execrei mentalmente por isso. Hoje penso que, se ele rasgou o papel com a caprichada letra e cada uma das iniciais de Irene desenhada com lápis de cores diversas, terá feito o certo. Mesmo assim, de vez em quando tenho pesadelos em que me levam a um tribunal e sacudindo a folha em meu rosto arrasado pela vergonha me perguntam: "Este acróstico é seu?" Ter escrito um acróstico é pior que admitir a existência de um vampiro na família.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Borges

Costuma-se indicar, aos jovens interessados em uma iniciação literária, que leiam os mestres. Pensei nisso hoje, ao fazer mais uma leitura de O Aleph, de Jorge Luis Borges. Depois de terminá-la, a devastadora pergunta que me fiz foi se eu me achava capaz de escrever algo ao menos parecido com aquilo. E esse adjetivo, "parecido", soou como uma condenação daquilo que eu devia ter descoberto na primeira vez em que li O Aleph: minha presunção. Borges e mais uns trinta ou quarenta escritores - não mais - na literatura universal de todos os tempos não podem ser tomados como modelo. A simples menção ao nome - Jorge Luis Borges - é um daqueles casos em que os lábios de quem o pronunciasse deveriam transformar-se no horror dos horrores, num ninho de serpentes, em algo que desencorajasse em todos os mortais a ousadia da repetição. O nome Borges não há de ser pronunciado em vão, e indicá-lo a um jovem como exemplo será condená-lo ao fracasso, se bem que pertença à natureza do homem esse impulso insano de imitar os deuses e - jactância das jactâncias - superá-los. Recorrendo a uma metáfora simples: Borges é outro departamento.

Soneto do perdão

Quando se fala em perdão,
Eu, amor, de minha parte,
Sei com certeza que não
Devo jamais censurar-te.

E crédito devo dar-te
Por tua compreensão
E apenas apresentar-te
Uma tênue restrição.

Por mais que nos fustiguemos
E por muito que briguemos
Sempre voltamos às boas.

Pois, se admito minhas culpas,
Tu sempre, amor, me desculpas,
Mas nem sempre me perdoas.

Aquilo que o amor é

Quem do amor louva a alegria
Que esteja pronto também
Para depois, mal ou bem,
Deplorar sua agonia.

O amor é assim. Nunca tem
Uma só fisionomia.
Muda e, de acordo com o dia,
Chega terno ou brusco vem.

Se a mim ele trouxe o pranto,
Já outro foi teu destino.
Foi assim, não foi? Enquanto

Tu ris como uma demente,
Eu, tolo como um menino,
Choro inconsolavelmente.

Medida

O amor não há de ser tudo. Há de ser apenas a vida e mais um pouco.

Paulo Coelho

Sempre que tive nas mãos um livro de Paulo Coelho, fiquei a apalpá-lo em busca de um botãozinho qualquer, um truque, uma página que, tocada, desdobrasse um mapa, um código, uma senha cabalística. Milhões de leitores conhecem esse dispositivo que me é negado. E eu me sinto como aquele soldado do regimento que, pondo o pé direito à frente na marcha, quando os demais avançam o esquerdo, se julga o único certo e assume, por isso, uma intolerável pose de superioridade.

Simplismo

Inconveniente é quem, por não ter mais nada a fazer na vida, se põe servilmente a exaltá-la.

Pré-newtoniana

Se a tartaruga que malfadadamente uma águia deixou cair sobre o crânio de Ésquilo não o tivesse esfacelado, talvez a lei da gravidade tivesse sido descoberta com uma antecipação de séculos, e provavelmente formulada com melhor estilo literário.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Por esse amor

São tênues estas, vazias
Aquelas, meros borrões,
Imagens baças e frias,
As nossas recordações.

Não trazem mais emoções
Essas lembranças dos dias
Em que as tuas ilusões
Aos sonhos meus reunias.

Já se apagaram as chamas
E se um de nós perguntar
Se te amo eu ou se tu me amas

Teremos só o conforto
De uma lágrima chorar
Por esse nosso amor morto.

O de sempre

Como os outros, hás de ter
O gosto das descobertas
E as portas todas abertas
Para a alegria de ser.

Como os outros, hás de crer
Que de ninguém se pretende
Nada mais complexo além de
Viver, apenas viver.

Assim, apenas pensando
Em continuar respirando,
Como os outros, viverás.

E sempre com esse sorriso,
No dia em que for preciso,
Como os outros, morrerás.

Prêmio

Que grande prêmio é morrer.
É pena que, para obtê-lo,
Para poder merecê-lo,
Antes se deve viver.

Voz de não pedir

Minha voz está fraca, um sopro, um balbucio. Não me importo. Não preciso de alimento, nem de remédio. Nada mais pode fazer bem, ou mal, ao meu corpo. Com esta voz que resta, eu, embora há muito tempo ninguém a ouça, peço amor. O amor faria bem à minha alma.

Life is a tale

Jamais mudará. A vida
Segue na mesma toada,
Não muda nunca a batida:
Som, só, e fúria - mais nada.

Dos erros

Dos erros que cometi,
Um não perdoo jamais:
Não foi ter-me dado a ti,
Foi não ter-me dado mais.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Domingo de manhã

Diana Krall na tevê
Cantava e, enquanto eu a via,
Senti a doce agonia
De lembrar-me de você.

Hoje não

Viu a Morte no ônibus. Sorriu para ela, ela retribuiu. Quando desceu, ela desceu também e o seguiu. Ele andou devagar, para que ela o alcançasse, mas ela também retardou o passo. Ao chegar ao portão de sua casa, ele fingiu dificuldade para encontrar a chave e ficou esperando. Mas ela passou por ele, disse "boa noite, Altair" e, sorrindo, fez um gesto, apontando o fim da rua. Ele entrou. A mulher estava na cozinha. De mau humor, ele disse: "Acho que alguém vai morrer hoje aqui na vila." Ela desligou o fogão: "Sabe que eu também estou com essa sensação de morte? Deus nos livre." Ele estava tão decepcionado que a mulher perguntou se tinha acontecido alguma coisa no emprego. Na hora de dormir, ele escancarou a janela do quarto. "Ei, você ficou louco? Com este frio...", resmungou a mulher, fechando-a. Ela logo adormeceu. Ele ainda esperou meia hora, mas dormiu também. Acordou de madrugada, com o barulho de um tiroteio no fim da rua, mas nem foi abrir a janela. Havia perdido a esperança.

Afogado

O delegado olha para o corpo cuspido na areia pela maré, balança a cabeça e faz para o auxiliar o comentário que há vinte e cinco anos julga engraçado: "Mais um esganado que quis beber toda a água do mar."

Merecimento

Agora que já pagamos
De nossos gozos a pena,
Que a morte nós mereçamos
E que ela nos seja amena.

Que surja com seu oblívio,
Que chegue com seu conforto
E venha com aquele alívio
Que só se tem após morto.

E, como suprema graça,
Que as marcas ela desfaça
De tudo que nos magoou

E que afinal desfrutemos
A paz que nunca tivemos
Porque o amor jamais deixou.

Viaduto

Fechar os olhos e crer
Que aleguem o que alegarem
E objetem o que objetarem
Não é difícil morrer.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Redentora

Me leva, doce assassina,
Me leva, que eu tenho pressa,
Para onde a treva começa,
Para onde a vida termina.

Às avessas

Alquimista sem rival,
Seu ouro todo juntou
E num toque o transformou
Na pedra filosofal.

Uma palavra

Há uma palavra que ele agora só diz em voz baixa, muito baixa. Sente-se como um homem primitivo invocando uma divindade cruel. Diz a palavra e espera pelo menos dez segundos, sem sequer respirar. Só depois de ver que continua vivo ele repete a ousadia. Concentra-se, assegura-se novamente de que ninguém mais está em casa, embora viva sozinho há muitos anos, aguarda que se apague qualquer rumor por acaso esboçado na rua e então sussurra, reverente e assustado: amor.

Cláudia

Os dois balearam-se com precisão e caíram mortos no beco. O policial que iniciou as investigações encontrou no bolso de um deles a foto de uma mulher e os dizeres: "Com amor, Cláudia." No bolso do outro, a mesma sorridente Cláudia e os mesmos dizeres.

Mas ainda

Há muito deixou de amar
Mas ainda sente o amor nos
Lábios novamente mornos
Quando se põe a lembrar.

Metrô

Quando, no metrô, a mulher encostou-se nele pela terceira vez, agora com indisfarçável intenção, ele, em pé junto à porta, poderia ter descido, porque havia chegado sua estação. Porém, nem tanto pelo contato da perna dela com a dele, mas pelo olor aliciante que vinha das axilas dela, ele se deixou ficar por mais uma estação, mais uma, e mais uma, esforçando-se para pensar em paisagens verdes, cada vez mais verdes, enquanto a mulher, agora dois passos à sua frente, permitia que ele aspirasse também o perfume dos seus cabelos.

Luxúria

Alguns se dão à luxúria. Quem dirá que estão errados? Um deles, numa noite apenas, desfrutou mais delícias do que gozará aquele que, encantado com a castidade da mulher amada, espera há dois anos que ela o deixe ver o umbigo e a presumível relva que floresce um palmo abaixo.

Homem feito

Viveu um inimaginável destino

Quem acharia
vendo-o menino
com sujeira no nariz
e o braço fino
que faria tudo que fez?

Sem pão na infância
e sem livros
na adolescência
tornou-se sua excelência

E que orgulho tem a mãe hoje
ao vê-lo homem feito
bem-vestido
com a gravata impecável
e o terno perfeito
coroado e florificado
generosamente pranteado
parecendo um bacharel
solenemente investido
no definitivo papel
de homem bem vivido
e bem finado.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Prece

Sobre o cadáver a brisa
Sussurra com compaixão
O alento de uma oração
De que ele já não precisa.

Esgar

Pendia da trave, enforcado, e sorria como se a corda lhe fizesse cócegas.

Empréstimo

Tudo que do amor gozamos
São essas vãs alegrias,
Tolices só, ninharias,
Pelas quais depois pagamos.

Fado

Quis o meu fado que eu fosse
Um homem predestinado
A, entre o doce e o mais doce,
Ficar com o mais estragado.

Por Deus

Não paras de me doer,
Não paras de me afligir.
Por Deus, me deixa dormir,
Por Deus, me deixa viver.

Soneto da busca

Enquanto reinava o dia
E o sol nas ruas brilhava,
Tu lembras? Eu te chamava
Mas ninguém me respondia.

E enquanto a tarde caía
Teu nome eu pronunciava
E te chamando chorava,
Porém ninguém me atendia.

Agora que o sol se esconde
Procuro ainda o lugar onde
Tu deves estar zombando

De quem por tanto te amar,
Vivendo para te achar,
Perdeu a vida buscando.

O espécime

No viaduto do Chá, um rapaz sentado embaixo de um guarda-sol lhe pediu uma assinatura. Era um manifesto pela preservação de duas espécies animais ameaçadas de extinção na Amazônia. Depois de assinar, perguntou: "E eu?" O rapaz não entendeu, e ele retomou a caminhada, na direção da rua Direita, não conseguindo imaginar como o rapaz não tinha notado que estivera diante de um dos únicos cinco humanos da Terra que ainda sofriam por amor. Pensou em voltar e revelar sua identidade. Mas o rapaz se interessaria pela preservação de uma mulher australiana, uma norueguesa, um mexicano, um chileno e um paulistano que, chegando à praça da Sé, olhava agora para a multidão nas imediações do metrô, gozando mais uma vez a sensação de ser um dos cinco seres humanos supliciados pelo amor? Atravessou a XV de Novembro com a cautela que sempre se deve esperar de um espécime raro.

Para ti

Escrevo para ti, ou
Para quem, assim como eu,
Sofreu tanto e tanto amou
Que por esse amor morreu.

"Amor, amor"

Um, porém, embora tão mortalmente ferido quanto os outros, não clamava por Deus. Segurava o coração, como se pudesse impedi-lo de escapar do peito, e gemia "amor, amor" com tantas lágrimas que, se tardasse um pouco mais a morrer, teria recebido o tiro de misericórdia de um oficial.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Existem mãos abençoadas

Existem mãos que pintam lagos, que erguem montanhas, que tão belo desenham o sol que Deus chega a se censurar por não tê-lo feito assim como está na tela. Existem mãos que modelam as ondas como elas deveriam ter sido moldadas desde o primeiro dia do mundo. Existem mãos que dão às estrelas tal brilho que quem as vê deixa por um instante a sala onde a pintura está, vai à sacada e, quando volta a olhar a tela, diz: "Esta aqui é muito mais estrela." Existem mãos assim, abençoadas mãos que a serviço da beleza fazem prodígios. Mas não esperem que elas sejam vistas ajudando um cego a atravessar a rua.

Conforto

Em nada há maior conforto
Do que em deitar e dormir.
O sono me mantém morto,
Sem nada ver ou sentir.

Filtro

Jamais te pronunciarei o nome, assim como nunca mais sequer balbuciarei a palavra rosa. Ele e ela devem ser poupados de passar por lábios que lançaram maldições sobre o amor e até contra Deus blasfemaram.

Pirandello

Se os célebres seis personagens procurassem Pirandello hoje, não cobrariam dele com tanto empenho a descrição dos seus estados de alma, mas os direitos de coautoria.

Glória

Sem brilho foi sua história:
Humilde foi ao nascer
E humilde ao viver. Morrer
Por amor foi sua glória.

Para a bebê Bia

Enquanto o rouxinol pia
E o bem-te-vi bentevia,
No coro entra a cotovia
Cotoviando: Bia, Bia.

Antes tarde

Tuas lembranças guardei
E foram elas meu ouro,
O inestimável tesouro
Que nunca a ninguém mostrei.

E em minha grata memória
Cada olhar teu ou sorriso
Foram o meu paraíso,
Meu orgulho e minha glória.

Ah, como pude ter sido
Tão tolo, tão inocente,
E, sem ser retribuído,

Dar-me a ti, inteiramente?
Que caias logo no olvido
Tu e o que te represente.

Memória das mãos

Daqui a muitos anos, numa tarde qualquer, quando puseres os óculos para ajudar tuas mãos a dar, em um pacote, um nó que antes davas com os olhos fechados, talvez te lembres de quantos rostos elas acariciaram. Tu te recordarás de muitos, provavelmente de todos. Do meu, não. Teus dedos nunca me deram o conforto de pousar, por um instante que fosse, em minha face, em meus lábios, nem mesmo quando eles bebiam amargamente as lágrimas que tu provocavas.

Protesto

Se um dia
me der na veneta
arranjo uma tabuleta
escrevo nela teu nome
e parto para uma causa justa

Pego uma sacola
encho-a de coca-cola e pão
e começo uma greve de meia-fome
na esquina da augusta
com a consolação.

Resumo

Olha, pelo que entendi,
O nosso caso é assim:
Preciso muito de ti,
Precisas nada de mim.

Escultura

Nas minhas partes pudendas
no meu pescoço
nas juntas
nas emendas
em cada osso meu
no sacro
nos occipitais
no meu coração tolo
na minha alma ferida
e em tudo mais
procuraram
e encontraram
amor
as tuas digitais

Sou obra tua
amor
toda tua
e se não te orgulhas
orgulho-me eu
e te aponto
é esse
e te designo
é esse
e repito
é esse
é esse
o gentil carrasco meu.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Tanto faz

Não vejo mais serventia
No sol. Quem, de amor morrendo,
Vai querer ficar sabendo
Se morre à noite ou de dia?

No, Mario, no

Desgostam-me profundamente os textos em que Mario Vargas Llosa trata de assuntos políticos. É triste ver tanto talento desperdiçado com questões de que outros tratariam melhor ou pelo menos de igual forma. O episódio Fujimori parece não ter deixado nenhuma lição. Como é maçante ver artistas resolvendo transformar suas obras em panfletos. Quem quer ver um Prêmio Nobel de Literatura falando de alianças e coalizões? Tentando ser edificantes, os grandes escritores, quando cedem a essa tentação, tornam-se não mais que paulificantes. Por contraste, cabe a pergunta: a quem agradaria ler um romance escrito por Hugo Chávez? Se bem que para mim seja difícil imaginar algo de Chávez que possa me agradar. É tão difícil chegar a ser Mario Vargas Llosa... Então, por que não ser Mario Vargas Llosa todos os minutos do dia?

Quantos?

Se imaginasses o alvoroço que cada um deles iria provocar em minha lembrança, abririas mais ou menos sorrisos para mim naquela manhã dezembrina?

A lembrança

Às vezes, a lembrança mais grata que resta, de toda uma vida, não é nem épica nem grandiosa. Pode ser, como numa tela impressionista, feita de traços imprecisos, cores esfumadas, sensações mais da pele que da visão, um borrão aos olhos de um míope, fiapos de sentimentos, imagens mutantes como as de um caleidoscópio. Pode ser o sol diluído como numa aquarela, o verde indeciso de uma árvore, uma brisa movendo-se cautelosamente, para não incomodar as folhas e não balançar os ninhos dos pássaros. Pode ser um som quase inaudível, três ou quatro notas que pareçam um fragmento de Rhapsody in Blue e façam um homem sisuso sorrir na galeria do Conjunto Nacional, como se lhe tivessem revelado o segredo da vida - um segredo encantadoramente simples - ou como se a memória lhe houvesse trazido um olor único ou algo indefinível que ele julgasse ter perdido numa longínqua tarde de dezembro, ao descer a escadaria do metrô na Paulista.

De afeto só

Desculpa-me se te falo
De afeto só, e de amor,
Desculpa se não me calo
E falo sempre com ardor.

Desculpa, sou como a folha
Que o vento vem empurrar.
Como ela, não tenho escolha
Senão deixar-me levar.

Não tenho culpa, sou só
Um refém desta alegria
Que me submete sem dó

E manda-me que te diga,
Hoje, amanhã, todo dia,
Quanto te amo, minha amiga.

Palavras vãs

Depois de tanto falar-te,
Depois de tanto dizer-te,
Sei já que é falha minha arte
E nunca irei convencer-te.

Não ouves o que eu te digo,
Ou, se ouves, nunca me crês,
Já não me chamas de amigo
E com maus olhos me vês.

E eu vou gastando os advérbios
E consumindo os provérbios,
E tudo em vão, sempre em vão,

Mas insisto, mesmo assim,
E digo-te sempre sim,
E tu me respondes não.

Travesseiro

Talvez eu, ao ter dormido,
Tenha contigo sonhado,
Talvez tu tenhas saído
Antes de eu ter acordado.

Sei só que quando acordei
Tanta ventura senti
Que para o lado eu olhei,
Ansioso, em busca de ti.

Meu coração se aquentou
E o meu nariz aspirou
Dos teus cabelos o cheiro.

Mas era só ilusão:
Vazio achou minha mão
E frio teu travesseiro.

Sina

Que sina a minha: querer-te
Tão sempre em mim, tão presente,
E jamais ter-te, e perder-te
Tão definitivamente.

Já morto

Já morto está quem dizia
Com convicção e fervor
Que enquanto vivesse o amor
Ele também viveria.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Soneto do cineminha

Enquanto percorre o brim,
A mão fantasia tudo:
A seda, o mink, o veludo,
A maciez do cetim.

E enquanto vai avançando,
Com tato e quase receio,
Consegue subir ao seio,
Tateando sempre, tateando.

Demora-se ali um pouco.
Depois, num impulso louco,
Desenha na boca amada

Com seu desenho preciso,
O doce e febril aviso
De que ela será beijada.

Vida passada

Fazendo uma regressão,
Acabei por descobrir
Que na última encarnação
Eu fui William Shakespeare.

O que você acha?

Quer saber? Vamos fazer assim. Esqueça meus lances dramáticos, meus ohs e ahs, minha tendência às notas agudas, meus ímpetos de rompimento e reconciliação. Marquemos encontro uma tarde, na porta de um cinema, compremos dois pacotes imensos de pipoca e façamos de conta, por uma hora e meia ou duas, que somos dois adolescentes encantados com a descoberta de algo que talvez seja amor ou ao menos pareça. Quando as luzes se apagarem, se eu tentar tocá-la ou abraçá-la, você pode ralhar comigo, até beliscar-me, e, se eu quiser beijá-la, você pode me impedir, enfiando em minha boca um punhado de pipocas. O que você acha? Se gostarmos, talvez possamos descobrir para o encontro seguinte um desses pungentemente estropiados parques de diversões da periferia, um em que, na entrada, possivelmente haja um realejo tocando Fascination, com um periquito que se esmerará em puxar para nós a melhor sorte.

De uma nota só

Antigo compositor,
Nada de novo eu aprendo
E acabo sempre batendo
Na velha tecla do amor.

Ainda úmidas

Acordo cedo, para buscar entre as palavras ainda úmidas de orvalho e livres do alarido do dia, aquelas que possam, por um arranjo que ainda não consegui, fazer-te entender afinal o que sinto. Todas as manhãs eu as colho, todas as manhãs eu as envio e todos os dias eu espero, como agora, que elas te convençam de que não menti jamais.

Quem de nós?

Quem há de o amor esquecer
Se nele nós procuramos
E nele nós encontramos
Nossa razão de viver?

Quem há de esquecer as juras
Que tão ardentes fizemos
E as mil razões que nos demos,
Tão leais todas, tão puras?

Quem a coragem terá
De dizer que já não há
Nada do que nos uniu?

Quem dirá que tudo não
Passou de sonho, ilusão,
Que ao tempo não resistiu?

E nada mais

Deixaste minha alma morta
E nada mais a sustenta
E nada mais a alimenta
E nada mais a conforta.

Por quê

Algo há, eu sei, entre nós,
Algo que, como eu, tu sentes
Porém negas e desmentes
Com toda a força da voz.

Desforra

Sei que jamais os terei,
Mas toda noite, no sonho,
Meus lábios nos teus eu ponho,
E quanto já os beijei...

Inocentes

Tuas mãos, que dormem contigo,
Não sabem, nem saberão,
Tudo que fazem comigo
Na minha imaginação.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Lobo Antunes

Lobo Antunes sempre teve um curioso jeito de não gostar de Saramago: andou a vida toda grudado nele, como se fosse sua sombra. Talvez nem a amorosa Pilar tenha sido tão assídua quanto ele.

Rio abaixo

Os teus cabelos se esticam
E numa ansiedade atroz
Às tuas costas suplicam
Que os façam descer à foz.

Fetiche

Quando ele pega a chibata
E a vibra no ar com furor,
Ela grita e implora: "Amor,
Vem, amor, vem, e me mata."

Escrevo ainda

Escrevo de madrugada
Com febre em minhas entranhas,
Envolto em dores e insânias
E a mente desarvorada.

E minha alma devastada
Por dores e por insônias
Implora que a mão lhe ponhas,
Porém tu não lhe pões nada.

Escrevo-te assim há meses,
Te escrevi assim mil vezes,
E nunca resposta obtive.

Mas devo ainda escrever,
E escrevo, para dizer
Que em mim o amor ainda vive.

Crepúsculo

Começa a morrer o dia.
Que morra calmo e silente
Como se fosse um presente
À minha melancolia.

Efemeridade

Ó, tu, que as lembranças amas,
Cuidado, presta atenção,
Nunca mais te trarão chamas
As cinzas da recordação.

O que tiveste é passado,
Jamais de novo o terás,
E aquele fogo sagrado
Ardendo jamais verás.

Tudo aquilo foi tão lindo
Que tu o julgaste infindo,
E tudo terno, tão terno,

Que buscas ainda o ardor
No qual fulgiu teu amor,
Como se ele fosse eterno.

Pétala

O conluio entre a brisa moleca e a célebre lei enunciada por Isaac Newton desalojou-te, pétala, dos cabelos que enfeitavas, embora eles não precisassem de adorno, e lançou-te ao chão, à mercê de passos apressados e sem compaixão. Viveste um momento de apogeu entre os fios louros e teu rumo agora é o da decadência. Terás sorte se não fores empurrada para a sarjeta e engolida por uma boca de lobo.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Mérito

Se mérito pode haver
Em morrer ou sentir dor,
Quero por amor sofrer,
Quero morrer por amor.

Sortilégio

Amor, me diz, por favor,
Qual é a tua magia,
Segredo, qual a alquimia
Que te faz assim, amor?

Memória da Major Quedinho

Passei trinta e dois anos no Estadão e não é de estranhar que ainda hoje, duas décadas depois de ter saído do jornal, eu sonhe que ainda estou trabalhando lá. E, curiosamente (talvez uma astúcia do cérebro para fazer sentir-me jovem), nos sonhos estou quase sempre no prédio antigo, na rua Major Quedinho, e não no atual, na Caetano Álvares. Entre tantas recordações que me vêm está a do relógio no topo e, no térreo, além da visão das impressoras, cujo trabalho era acompanhado sempre por uma centena de pessoas que se postavam na Martins Fontes, havia o letreiro luminoso que divulgava notícias internacionais transmitidas pelas agências. As pessoas ficavam de olhos fixos nas letras que podiam a qualquer momento dar conta de acontecimentos capazes de mudar dramaticamente a situação em alguma parte do mundo - terremotos, inundações, deposição de governos. Especialmente na década de 60 - eu trabalhava na seção de revisão, no quarto andar -, o jornal foi alvo quase diário de atentados ou ameaças de todo tipo. Numa noite dessa época, a suspeita de que uma carga explosiva havia sido colocada no prédio fez com que uma equipe antibomba fosse chamada para realizar uma busca. O prédio foi esvaziado e os funcionários, assim como o público, ficaram do lado de fora, tensos. A entrada do jornal foi cercada por um notável aparato policial. Do lado de dentro, tão nervosos quanto o público e os funcionários que aguardavam o desfecho de tudo, havia soldados com metralhadoras apontadas para a porta, como se temessem uma invasão de algum grupo terrorista. Eu, misturado ao público e aos funcionários, vi aproximar-se, estouvado e cheio de livros, como sempre, o revisor e poeta Oswaldo de Camargo - que foi, aliás, quem me indicou ao chefe da revisão, Nelson Lima Neto. Camargo - ou Camarguinho, como era chamado - não notou nada de estranho naquela aglomeração, me deu um oi e caminhou resoluto na direção da porta. Não percebeu que ela estava fechada e, na pressa em que ia, bateu estrepitosamente com a cabeça no vidro. Eu, que a esta altura estava a dez passos dele, tentando explicar-lhe o que estava acontecendo, vi crispar-se o rosto de um dos soldados ali dentro. Constrangido e ferido num braço pelo vidro, Camarguinho, tão esbaforidamente quanto chegara, saiu correndo, pegou um táxi e foi para um pronto-socorro. Quando, uma hora depois, já com a situação no prédio serenada, ele voltou, estava com um curativo no braço e parecia ainda se perguntar o que afinal acontecera. E logo estava, assim como os outros, caçando vírgulas e crases.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Magnífico e soberbo sol

Acordei tarde ontem e, quando abri a janela, o sol já caminhava para o esplendor do meio-dia. Olhou-me com desdém e não me animei a chamá-lo. Esperei que ele vivesse toda sua soberania e, quando a proximidade da noite já o destituíra de um pouco de sua empáfia e ele se dispôs a baixar até o nível da janela do quarto dos fundos, perguntei-lhe se tinha ido saudar-te, de manhã. "Mas você não pediu", esquivou-se ele. Perguntei: "E precisava? Toda manhã eu peço." E ele: "Mas nesta você não pediu." Dei um desses suspiros com os quais, além de contarmos até dez, tentamos abrandar cóleras, e disse: "Amanhã você vai?" "Se você pedir, eu vou." "Estou pedindo." "Agora não vale. Amanhã de manhã você pede." Concordei: "Está bom." Já era hora de ele mergulhar no outro lado do mundo, mas ele se demorou um pouco. Notei que queria dizer-me mais alguma coisa: "O que você quer?" Ele abriu o jogo: "Sabe o que é? Tenho visto seu blog e acho que você podia me tratar melhor." "Melhor? Melhor como?" "De vez em quando você podia me chamar, sei lá, de magnífico, ou então de soberbo." Para não haver problemas, resolvi colocar os dois adjetivos - e no título! Mesmo assim, para que não ficasses sem teu cumprimento diário, acordei cedo hoje e, antes que ele chegasse, eu já estava na janela.

Sim

Sou triste, sim, minha amiga,
Porque o meu destino é esse.
Quem foi que jurou, me diga,
Amar-me enquanto eu vivesse?

Aquela manhã

Nunca voltará aquele
Venturoso dia em que eu,
Por esse amor que morreu,
Jurei viver só por ele.

CEP

Já vivi demais. Mereço
Por acaso eu esta sorte
Ou foi simplesmente a Morte
Que perdeu meu endereço?

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Fonte

Cabelos lisos, cabelos
Onde a água vai escorrer,
Que as mãos consigam colhê-los
E a boca os possa beber.

Tu

Tu és meu tormento e minha
Ventura, a dor e o que a acalma,
Tu me percorres a espinha,
Tu preenches toda a minha alma.

Caim e Abel

Foi em 1952 ou 1953. Ainda se achava que a televisão era algo que não teria vida longa, nada mais que um modismo. Os aparelhos existentes na cidade de São Paulo podiam se contar nos dedos de cem mãos. No meu bairro, o Jardim da Saúde, não havia ainda nenhum e por isso, quando J. Silvestre, que depois faria notável carreira, convidou quatro alunos do Colégio Alfredo Pucca a participar de um programa de perguntas e respostas, na TV Tupi, eu, que era um dos convidados, não pude pedir a ninguém que assistisse. Aparecer na televisão, nessa época, era a maneira mais segura de permanecer no anonimato. Essa circunstância, que no início me frustrou, foi no final da história motivo de grande alívio para mim. Eu e os outros três concorrentes pegamos uma noite um ônibus para o Sumaré e dali a pouco lá estávamos no estúdio, sentados diante da câmera. Atrás de cada um de nós, em pé, havia uma garota-propaganda, cuja função consistia originalmente em ler mensagens comerciais. Não havia ainda videoteipe e elas, durante a programação, eram obrigadas a fazer ao vivo suas apresentações, o que divertia os pouquíssimos telespectadores, porque era comum, por exemplo, um liquidificador, ao ser ligado, dar-se ares de grande estrela e derramar seu conteúdo sobre a apresentadora de suas virtudes ou simplesmente se recusar a funcionar, por ser incompatível com a tomada. Na noite do programa de J. Silvestre, ele, já com o desembaraço que o tornaria célebre, ia lendo as perguntas e em seguida dizia o nome do candidato que deveria responder. Este recebia nas costas um toque de mão (para dizer a verdade, um cutucão) de uma das garotas-propaganda, levantava-se instantaneamente e precisava responder sem um segundo de hesitação. Eu estava indo muito bem e talvez fosse o vencedor, se J. Silvestre não tivesse astutamente me perguntado, à queima-roupa: "Quem Abel matou?" "Caim", eu respondi, ao mesmo tempo em que me levantava da cadeira como se tivesse sido disparado por uma catapulta. Os risos das trinta ou quarenta pessoas do auditório que tinham acabado de assistir a essa desastrada deturpação foram um insuportável preço que tive de pagar. Fosse hoje, eu precisaria me disfarçar por uns bons dias para andar pelo meu Jardim da Saúde.

Miragem

Te vejo como num sonho,
Teu corpo é etéreo, fugaz,
E tudo onde a mão eu ponho
Se desmancha e se desfaz.

Soberba

Nos damos muita importância,
Queremos o mundo ou mais,
Vamos assim, de ânsia em ânsia,
E não paramos jamais.

Resumo

Mais triste que essas lembranças
De tudo que nós vivemos
É a morte das esperanças
De tudo que não colhemos.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Um abraço

Te mando hoje um abraço. É pouco, eu bem sei, eu, que por merecimento teu e por licença poética, tantas vezes tive a presunção e a vontade de te mandar o sol. Te mando um abraço, este, que certamente não faz justiça à tua amizade, mas é bem menos difícil de enviar que o sol, para o qual não consegui ainda imaginar uma embalagem adequada.

Os gênios

Na década de 1950, a Biblioteca Municipal Mário de Andrade era frequentada por jovens gênios que, prometendo derrubar os escritores consagrados e não tendo ainda uma produção que pudessem apresentar, se empenhavam em cumprir sua promessa pichando os muros da Consolação e da Bráulio Gomes com ofensas à velha guarda literária. Tudo nos parecia (e aqui confesso que minha presunção me colocava entre os revolucionários) muito simples: derrubada a literatura antiga, a nova se instalaria quase automaticamente. Cada um de nós tinha na cabeça pelo menos uma obra-prima que dependia apenas de ser escrito o primeiro parágrafo para emergir gloriosa. E, embora execrássemos todos os ocupantes de cadeira na Academia Brasileira de Letras, sonhávamos com o dia em que, estando eles devidamente destituídos, nós ocuparíamos suas vagas e transformaríamos a ABL numa instituição que faria o planeta curvar-se assombrado diante de nosso talento. Cada um de nós era um Rimbaud melhorado, esperando a consagração. Tolos que fomos, insuportáveis que éramos. Mas havia quem nos superasse em matéria de presunção e aspirasse a algo bem mais elevado. Ele tinha uns dez anos a mais que nós, seu sotaque era piracicabano e com seus peculiares "erres" ele se proclamava simplesmente Jesus Cristo. Com essa credencial, vivia interrompendo nossos debates artísticos para relatar como tudo seria melhor quando ele anunciasse ao mundo todo sua volta. Numa noite em que nos excedemos no conhaque, julgamos que havia chegado a hora de ele se revelar enfim à humanidade. Nós o agarramos e, aos gritos de "Vamos crucificar, vamos crucificar", o levamos até um poste. Ele, que apesar da santidade havia bebido tanto quanto nós, rapidamente se recuperou e começou a berrar: "Socorro! Socorro!" Indignados, nós, também aos berros, perguntamos se afinal ele era ou não Jesus. Sua alegação, desesperada e patética, o salvou: "Eu sou, eu sou, sim, porra, mas ainda não estou preparado para a minha missão." Nós o deixamos ir e continuamos nossa discussão literária. Nunca mais ele apareceu. Quanto à esperada genialidade daquela geração, posso testemunhar que Dalton Trevisan não frequentava a Mário de Andrade.

Descarrego

Nas costas da literatura
Eu jogo tudo: ela é veneno,
Tormento, dor, refúgio ameno,
Minha doença e minha cura.

Tanto

Foi tanto amor que a razão
Deixou de lado as razões
E submeteu-se às lições
Do estouvado coração.

Foi tanto amor que a prudência
Fechou os olhos a tudo,
O bom-senso ficou mudo
E eximiu-se a consciência.

Foi tanto amor, tanto, que
Desde o primeiro momento
Perdi o discernimento

E nada mais quis saber
Nem ver, e nem conhecer,
Que não viesse de você.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Solidariedade

Por saberem que brigaste comigo, os passarinhos não dormiram esta noite na ameixeira, o sol não passou por minha janela de manhã, os cachorros me olharam com desdém na rua, quando fui comprar pão, e o gato que há uma semana estava instalado embaixo do meu carro sumiu esta madrugada. Todos estão solidários contigo, e quem sabe quantas manifestações mais eu enfrentarei até o fim do dia?

Mãos jovens

Não abrirei a janela esta manhã. Não quero ser tentado a te mandar o sol. Tu mereces recebê-lo, e quanto, mas não por mim. Que ele te chegue por mãos mais hábeis, tanto na colheita de sóis quanto na de flores e frutos. Mãos jovens, que saibam também como garimpar o ouro dos teus cabelos e fechar-se em concha, para beber a chuva quando ela escorrer por eles. Mãos que se juntem às tuas e te transmitam a alegria que eu há muito já não tenho. Mãos que tenham vida e calor, como têm as tuas, e que, pousando em teus ombros, avisem aos teus lábios que se preparem para os beijos que te são devidos e que nenhum poema jamais conseguirá igualar ou substituir.

Humores

Absorver todo o teu fel,
Perdoar todo o teu mal,
Desfrutar todo o teu mel
E beber todo o teu sal.

Mártir

O amor, com seu chicote, escreveu em mim o nome de minha amada. Foi há muito tempo, mas ainda hoje, se por um momento me esqueço dela, as letras se põem a arder como fogo em minhas costas e eu sou o mais venturoso dos mártires.

Bem te vi

Assim foi sempre, e será:
Meus olhos vivem por ti.
Ninguém jamais te verá
Tão bela quanto eu te vi.

Ah

Ah, pudesse eu ter guardado um fiapo daquela manhã, um pequeno raio de sol, um sopro de brisa no ouvido, assim como aquele sachezinho de adoçante que usaste no teu café e que - enquanto olhavas para o lado, possivelmente retribuindo o sorriso daquele rapaz - eu surrupiei e escondi no meu bolso, como um tesouro.

O urso

Havia coelhos na loja, gatos, cachorros, todos de bela pelúcia. Tu, porém, gostaste de um urso, de material ordinário, que apesar de muitas liquidações continuava lá. Um dos olhos dele havia desaparecido, no pelo dele havia manchas e falhas e a pequena sineta que tinha no pescoço não soava mais. Chegaste a pegá-lo, mas no meio do caminho até a caixa te arrependeste. O que iriam pensar de ti em tua casa? Que se tenha amor por um animalzinho de verdade, ainda que estropiado, se entende. Mas por um urso de pano... Tu o deixaste entre os saldos, e, sempre que voltas à loja, disfarçadamente ficas com ele no colo, não por muito tempo, para que não te sintas outra vez tentada a levá-lo. E compras outro bichinho qualquer, e o carregas na vistosa embalagem, da qual o urso destoaria. Afinal, quando quiseres, poderás vê-lo, até o dia em que ele estiver tão maltratado que nem entre os saldos o manterão. Tua coleção continua irretocável. Merece os ohs de quem a vê. Quem precisa de um urso velho e esfarrapado?

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Quantos são tantos?

Um ovo, dois ovos, três, quatro, cinco, seis ou sete? Com quantos, acham vocês, se faz um bom omelete? E uma casa grande e boa se faz com quantos calhaus? E uma segura canoa se constrói com quantos paus? E quantas são as formigas que fazem um formigueiro? Me digam, minhas amigas, uma dúzia ou um milheiro? Se dois cestos são um par e cem cestos são um cento, quantas ondas tem o mar e quantos sopros o vento? E quantas trevas o escuro, e quantos raios a lua, e quantos metros o muro, e quantas casas a rua? Quantas azeitonas vêm numa pizza saborosa e quantos minutos tem um bom dedinho de prosa? Se na escola se repete que três vezes dez são trinta, como é que alguém pinta o sete sem um pincel e sem tinta? E, amigos meus e amiguinhas, respondam a esta questão: digam quantas andorinhas podem fazer um verão. Se quem conta um conto aumenta um ponto, digam a mim: quem conta cento e quarenta, aumenta quantos, enfim? Se um jardim tem suas flores e as xícaras os seus pires, digam então quantas cores são as que formam o arco-íris. E me expliquem também quantos pés tem uma centopeia e se de nove ou dez cantos se constitui uma epopeia. Se cinco gatos-pingados não são uma multidão, dois objetos empilhados não são uma coleção. Agora eu querer sabia: se em sete dias Deus fez o mundo, quantos faria numa quinzena ou num mês? E se quinze são quinzena e mil vezes mil milhão, e se vinte são vintena, três vezes três quantos são? E se cem bois são boiada e dez mais onze vinte e um, e cem búfalos manada, quanto é que é um mais nenhum? Se um semestre são seis meses e poesia não é prosa, é bom saber: doze vezes doze fazem uma grosa. Se um pássaro tem cem penas e canta admiravelmente, outro, com quarenta apenas, cantará menos contente? Se com dez fios bem finos uma aranha faz a teia, de quantos fios, meninos, precisa uma aranha e meia? Se a lua tem duas faces, e uma moeda também, quantos pés têm três alfaces e um pé quantos dedos tem? Se a estrela tem cinco pontas e tem sete vidas um gato, então façam as contas: quantas vidas tem nenhum? E se nenhum não tem nada, que será que todos têm? Se meia meia é cortada, ainda cobre o pé de alguém? Se a bota de sete léguas percorre o mundo num dia, uma tropa de sete éguas quanto tempo levaria? Se dez metros vezes cem dão mil metros, e duzentos são duas vezes cem, tem quantos centos quatrocentos? Se o gato tem seu bigode e o pato tem sua pata, se tem cavanhaque o bode e tem rabo o vira-lata, se a noite sucede ao dia e se o tempo depressa passa, permitam, João e Maria, que uma sugestão eu faça: já é hora de descansar, sigamos nossos caminhos. Vamos pra casa deitar e contar os carneirinhos.

Esboço

Essas lágrimas que te correm pelo rosto são um rascunho, um esboço que o amor faz. Amanhã, nesse caminho que hoje elas percorrem, estarão rugas. E serão essas rugas, as desenhadas pelo amor, que olharás com um sorriso. As outras, não te lembrarás do que as causou.

O mecanismo

Quem nele procura alegria, e para recebê-lo se prepara com vinho e com canções, não sabe como o amor funciona.

Silêncio

Quando o amor se vai, tudo fica tão quieto que se pode ouvir o que o vento e a folha conversam, no jardim. Quando o amor se vai, o silêncio, respeitoso, se impõe. Tudo há de ser calmo, agora. Quando o amor se vai, a vida o acompanha.

Hoje

Escrevo-te hoje como fiz tantas vezes, antigamente. Abri a janela e me deu vontade de te mandar o sol, como fazia. Ele não está como esteve em tantas daquelas manhãs, mas eu o mando mesmo assim. Que possas desculpar o estado dele, tão murcho, tão desanimado. Talvez, como eu, padeça de algum mal amoroso. Talvez ele tenha se apaixonado pela lua, talvez por uma estrela, quem saberá? Também os passarinhos estão escassos hoje, assim como seus cantos. Para compensar, há no colégio aqui em frente um alarido, muitas vozes reunidas naquela que soa sempre como uma só voz, a inconfundível voz da juventude. Gostaria de ser uma delas e subir confiante para o céu da manhã. Tudo que a juventude canta se transforma em hinos. Eu, aqui, vou balbuciando palavras que, por mais que as vigie, acabam sempre formando versos tristes, elegias. Todo conhecimento é triste. Como é bom confiar em tudo, como confiam esses jovens que a sirene chama agora para a terceira aula. Não imaginam o que virá. Conhecerão mais coisas hoje, outras tantas amanhã e, por menos aplicados que sejam, inevitavelmente acabarão aprendendo que viver não será sempre esse alçar de vozes alegres, que logo as manhãs não serão mais como esta, e que, do outro lado da rua, alguém poderá estar no micro, teclando teclas desesperançadas. Um dia estarão do outro lado da rua, também.

Maquiagem

Que as lembranças do amor sejam amenas e belas e continuemos a vê-lo como imaginávamos que ele fosse, não como ele era. Que possamos ver, ainda, no seu sorriso recordado, aquilo que nos encantou e que era fruto da nossa esperança e vontade, tolas como sempre são a esperança e a vontade de quem vê no amor aquilo que quer ver.

Dados

Houve um tempo em que fui joguete do amor. Como um dado, ele me atirava sobre a superfície que lhe aprouvesse: na colcha de veludo, sobre a cama, na mesa da sala, no chão da cozinha. E irritava-se comigo sempre, quer minha face lhe mostrasse o um, quer lhe exibisse o seis. Jamais consegui satisfazê-lo, e dois meses depois ele me lançou ao fundo desta gaveta escura, que só é reaberta quando outro dado vem conhecer o ostracismo. Somos quase uma dezena, agora, e como gostaríamos de estar de novo naquela mão, ainda que ela nos lançasse na calçada e nos gritasse, como antes, "vai, maldito, vai". Talvez um de nós pudesse ainda, um dia, exibir-lhe o número desejado.

Fórmula

O amor jamais é frequência,
O amor jamais é constância,
O amor não é gozo, é ânsia,
O amor só cresce na ausência.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Estratégia

Beijar-te me bastaria,
Beijar-te, apenas beijar.
Que posso mais desejar,
Que lances mais ousaria?

Bichos - 8) Girafa

Sou uma girafa. Tudo que vocês estão vendo sou eu. Já ouvi gente dizendo que quem quiser me conhecer de verdade precisa pegar um elevador. Às vezes perguntam por que eu sou assim comprida. Não sei. Lembro que já nasci alta e fui crescendo, crescendo. Todos queriam saber o que eu ia ser quando crescesse. Bom, eu sou uma girafa adulta. E, se vocês querem saber, eu gostaria de crescer mais e mais, até encostar a cabeça lá no teto do céu... Se vocês viessem aqui à noite, iam ver como é bonito: a lua e aquele mundo de estrelas. Se eu crescesse mais um pouco, ia poder conversar com elas. Mas, aí, vocês imaginaram de que tamanho ia ser o meu pescoço, se agora ele já é assim? Um dia, um menino perguntou ao pai por que eu não uso gravata. Eu não uso porque ninguém me deu uma. Se um de vocês quiser me dar uma no meu aniversário...

Bichos - 7) Macaco

Sou um macaco. Quando alguém fala de macaco, logo se pensa em banana. Vocês pensaram, não pensaram? Eu também. Vivo pensando em bananas. Não é só disso que eu gosto, mas uma banana, ah, uma banana, para mim, é o máximo. Talvez porque, na televisão, no cinema e nos livros um macaco está sempre com uma banana na mão. Olhem para minhas mãos. Estão vendo alguma banana? Então estão esperando o quê? Ninguém tem uma aí? Na próxima vez que vierem me visitar, não esqueçam de trazer, está certo? O pessoal aqui do zoo não gosta que ninguém me dê comida, só eles. Mas agora eles não estão olhando. Vocês não têm nem um amendoinzinho aí, uma bolachinha? Ô, gente! Mesmo assim, vou dar uns saltos para vocês. Fiquem olhando, ó. Em um instante vou estar naquela árvore lá em cima.

Bichos - 6) Elefante

Sou um elefante. Bom, vocês estão vendo, não é? Não sou tão pequeno assim. Isso é uma piadinha. Quer dizer, uma piadona. Tudo num elefante é grande. Vocês podem rir, se gostaram. Eu não vou rir, porque a minha gargalhada, vou dizer, pode assustar. Ah, vocês querem ouvir? Vocês é que estão pedindo. Então, um, dois e... Nossa, como vocês estão tremendo. Não tenho culpa, eu avisei. Na próxima vez, eu tento imitar a risada de uma formiguinha, assim vocês não ficam com medo. Imitar agora? Não, não dá. Eu preciso treinar, não é fácil. Eu não sou um elefante de circo. Se fosse, pegava uma bicicleta e dava umas voltinhas com ela, para vocês verem. Ia precisar de uma bicicleta grande, bem grande, claro. Mas acho que eu ia andar melhor e fazer mais sucesso do que aqueles macacos que o público aplaude tanto.

Bichos - 5) Formiga

Sou uma formiga. Poucos reparam em mim, porque sou muito pequena e, ao contrário desses bichos posudos, que só querem se exibir, eu vivo trabalhando. Não paro um minuto. Estou sempre fazendo alguma coisa útil para o meu formigueiro. Enquanto a cigarra canta sem parar, pedindo o aplauso de quem passa, eu só trabalho e trabalho e trabalho. Aí, quando chega o inverno, a descarada vem pedir comida para mim... Não tenho tempo para ficar pensando na vida, porque estou sempre ocupada, mas às vezes me revolto com os contadores de histórias. Eles arranjam nomes bonitos para os gatos, para os cachorros, para os macacos e até para os elefantes. Mas eu sou sempre uma formiga, só uma formiga. Bom, não me importo. Se um dia o mundo acabar, eu vou continuar trabalhando, levando comida para o formigueiro.

Bichos - 4) Tartaruga

Sou uma tartaruga. Alguns me acham feia. Eu não concordo. Tenho meu charme. Outros me julgam lenta, mas quero ver quem consegue carregar a própria casa nas costas com tanta classe quanto eu. Não é fácil, vocês podem imaginar, levar este peso todo para um lado e outro do quintal, debaixo de chuva, vento e sol. E sempre com o cachorro da casa latindo para mim, como se estivesse me vendo pela primeira vez. E o gato, aquele malvado, tentando puxar com aquelas unhonas minha cabeça para fora, para comer. Pergunto a vocês: com tudo isso, daria para eu ser mais rápida? Mesmo com essa lentidão, consegui uma vez ganhar uma corrida de um coelho. Isso está numa história que vocês talvez já tenham lido. Os coelhos vão dizer que quem eu venci foi uma lebre. Não acreditem neles. Os coelhos são mentirosos.

Bichos - 3) Coelho

Sou um coelho. Sou lindo. Quando digo isso, alguns bichos me acham presunçoso. Mas não sou. Estou falando a verdade. Até minhas orelhas, que poderiam ser apontadas como uma falha na minha beleza, são encantadoras, não são? Meu pelo é sedoso, meu nariz é delicado e não há no mundo um animal mais veloz do que eu. Muitos contam uma história boba e juram que perdi uma corrida para uma... tartaruga. Mentira. Para começar, o coelho dessa história nem era coelho, era lebre. E, para terminar, quem ia conseguir perder uma corrida para uma tartaruga? Só se fosse outra tartaruga, ou então uma lesma bem lesmenta. Meu avô já dizia que essa história é a maior injustiça feita contra um bicho por um livro infantil. Se não acreditam no meu avô, acreditem em mim. Olhem bem: eu tenho cara de mentiroso?

Mesmo que

Que pena não ter te dado
Um beijo breve ou talvez
Um grande, bem demorado,
Mesmo que só uma vez.

As quatro

Alguma chama há de haver,
Mesmo que seja daquelas
Capazes só de acender
O lume das quatro velas.

Bichos - 2) Cachorro

Sou um cachorro. Se eu fosse um gato, vocês não chegariam tão perto de mim. Porque os gatos são traiçoeiros. Ficam com aquela carinha de anjo, deixam as pessoas alisar seu pelo, miam baixinho, ronronam, e de repente, quando ninguém espera, cravam as garras na primeira mão que veem. E são ladrões, também. Deixem um pedaço de carne ou uma sardinha em cima da mesa e vejam o que acontece. Um minuto, um minuto só, e cadê o bife, cadê o peixe? Se duvidam do que eu digo, peguem um livro qualquer na estante. Se encontrarem nele um cachorro, podem ver que ele está fazendo alguma coisa boa: ajudando um cego, levando o jornal para o dono, conduzindo ovelhas. Mas, se no livro houver um gato, vejam o que ele faz: ele está auxiliando uma bruxa a preparar veneno ou o diabo a desgraçar uma alma.

Bichos - 1) Gato

Sou um gato. Se eu fosse um cachorro, vocês talvez não estivessem sorrindo tão gostosamente. Porque os cachorros não são tão queridos quanto os gatos, não é mesmo? Não são simpáticos nem bonitos como nós. E têm outras desvantagens. São mais burros do que os burros e mais mulas do que as mulas. E mais porcos do que os porcos. Não respeitam nada: nem árvore, nem rua, nem calçada. Perguntem a um poste o que ele pensa dos cachorros. Eles têm também aquela voz irritante, que se chama latido, e vivem latindo por qualquer coisa. Latem de alegria, de raiva, de susto, de dor. Ninguém aguenta. É horrível. E quando se juntam, então, para uma festa, cada um se julga um tenor! Que diferença entre a voz esganiçada de um cachorro e a melodiosa voz de um gato. Escutem só e me digam se não é verdade. Lá vai: miiiaaauuu.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

O que ele espera

Aspirações já não há.
Espera apenas o dia
Em que, acabada a agonia,
Nada mais esperará.

Cançãozinha infantil

Bem longe da treva
Ao manso arrebol
Ao olho do sol
Veleiro me leva

Me leva veleiro
Na tarde dourada
À minha morada
Ao meu paradeiro

Me leva contigo
Por todos os mares
E quando chegares
Me deixa comigo

Me deixa onde eu moro
Na praia radiante
Ali mais adiante
Veleiro te imploro

E segue ligeiro
Ao vento te dando
Às ondas vogando
Vagando veleiro.

A mim

Alguns, que a história guardou,
Bem mais do que eu suportaram.
A mim, dois anos bastaram,
Não mais, e o amor me matou.

Sem resposta

Na rua esburacada, o carro preto começou a pinotear como um cavalo. O motorista grunhiu três palavrões e depois, num acesso de bom humor, olhou para o banco de trás e disse: "Desculpe a boca suja aí, senhor." Mas o morto, no caixão, não se importou.

Lição

Penso às vezes em tratar o mar como um animalzão cordato que eu pudesse adestrar. Eu iria entrando, entrando e, quando a água me chegasse ao pescoço, eu começaria a engoli-la devagar, com goles didáticos. Imagino que em pouco tempo ele me compreenderia e poderia me fazer sumir, com sua bocarra piedosa.

Banheira

Cansaço morno, letal,
De pílulas abençoadas,
De veias escancaradas,
Cansaço doce, final.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Amanhã ou depois

Amanhã ou depois, receio que possa não ter mais nada a vos dizer. Talvez não tenha tido nunca, desde o primeiro texto, há dois anos. Nesse tempo falei de amor, como se de amor soubesse. De literatura, como se a entendesse. Da morte, como se a desdenhasse. Sei hoje que tenho sido uma espécie de farsa, de fraude, que vossa bondade e boa educação se escusaram de denunciar. Foram cinco mil textos, quase todos lamúrias e queixumes. Como vos importunei. Como me arrependo. Em minha defesa, só posso dizer que me empenhei, nesses mais de setecentos dias, para vos apresentar alguma coisa bela, que me viesse de dentro da alma, bem do fundo dela. Não foi o bastante, creio. E agora me sinto vazio, vazio, todo vazio. Me repeti, me gastei, me exauri. Se não houver nenhum texto aqui amanhã ou depois, se não houver mais nenhum nunca mais, eu vos peço perdão, não pela ausência deles, mas pela falta de qualidade e brilho dos anteriores. Que o tempo antes gasto com a leitura deles seja dedicado agora a coisas verdadeiramente poéticas, como afagar um gato ou acompanhar pela janela como aquela nuvem clara parece brincar de fazer desenhos no céu da manhã.

Cadeira elétrica

As horas todas soaram,
E mais nenhuma virá,
As chances tuas se escoaram,
Quem, me diz, te salvará?

Se tantos mais

Daqui a cinco ou a dez anos, se tantos mais me forem dados, irei à galeria e caminharei bem devagar, até chegar à entrada da livraria. Ficarei ali. Não estarei esperando por ninguém, mas os que olharem para mim não saberão que terei ido pela lembrança de uma manhã antiga, muito antiga, pelo aroma de café, por uma voz grave e pelo arrepio, em meu braço, de uns cabelos levemente molhados, como o orvalho da manhã.

Enquanto é tempo

Um pouco mais depressa, por favor. O sol começa a desaparecer, não sei se esta é já a última curva do caminho, estou cansado demais e talvez me seja difícil, com a noite, encontrar o lugar de onde não mais me tirarão as tentações do mundo ou os apelos do amor.

Ser

Ser a brisa soprando uma pétala de rosa até os teus cabelos. Ser a pétala aninhada entre eles e viver um glorioso momento de ouro no trigal, antes de ser colhida pela tua mão macia e soprada pelos teus lábios para uma nova viagem.

Preparativos

Venho preparando meu corpo. Alimentos, só lhe dou os suficientes para que nenhuma brisa o derrube. Água, apenas a indispensável. Deixo que o atormentem as insônias e o devastem as doenças. Pragas e pestes são bem-vindas. Quando a morte chegar, que meu corpo não lhe dê trabalho e que minha voz seja branda, para meu último agradecimento.

Noite e dia

Deus nos deu a noite, para cometermos nossos pecados, e nos deu o sol da manhã, para expô-los com sua crueza e apontar-nos à abominação.

Atestado

Se o amor pode ser usado
Como atestado de vida,
Sei, de forma bem sabida,
Que estou já morto e enterrado.

Tantas palavras

Posso confiar nas palavras, quando te disse tantas, quando te disse todas, e o único efeito delas foi este, de eu ficar à janela assim, todos os dias, imaginando em que ponto deste vasto mundo estás, com tua indiferença?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Futuro

Não terei mais alegrias,
Nem mais conforto, nem paz.
Tão forte quanto doías,
Me dóis ainda, e doerás.

Nomenclatura

É provável que, afetada por um punhado tardio de ternura, possas chamar minhas idiotices e imbecilidades de atos estranhos e que de cretino eu passe - tanta força às vezes tem o tempo - a ser considerado uma figura ou, quem sabe, até uma figuraça. Desde já, como se diz nos bons requerimentos, eu te agradeço.

A piada

Rirás com teus amigos, por que não? Serei a piada do dia, uma ótima piada, e afinal para que existem as piadas? Se uma ponta de pena ameaçar importunar-te, não te deixes comover. Que sentido pode ter a tristeza numa sessão de piadas, numa reunião de amigos? Melhor que continues rindo e fazendo rir. Quando as gargalhadas começarem a rarear, sempre podes lembrar-te de mais alguma trapalhada minha, como aquela de ficar duas horas esperando por ti numa estação de metrô, confiando em que pudesses ter recebido minha mensagem, enviada apenas pelo meu aflito pensamento.

Para ele, não

Podes abrir o coração para os bons sentimentos, a fraternidade, as ações caridosas. Não o abras, porém, para o amor, nunca. Nada te sobrará e mesmo assim o tirano achará pouco e baterá os pés, e esperneará.

Aquele dia

Pelo menos uma vez por ano, por sentires saudade, ou porque és tão atenciosa, ou porque tua eficiente agenda te avisa, tu te deixas ver por mim. E és tão gentil nesse dia, tão luminosa, que os outros trezentos e sessenta e quatro são atrozmente banais.

Iguaria

De longe, nas montanhas, os urubus sentiram o cheiro e apressam-se: carniças de amor são cada vez mais raras.

Também não

Lá para onde formos, certamente não nos dirão por que estivemos aqui e, mais certamente ainda, o que teremos ido fazer lá.

Apenas

Não sou ninguém, sou apenas
Uma pobre alma penada
Voltando à vida passada
Para pagar suas penas.

Prerrogativas

Usarei então minhas prerrogativas de morto e jamais abrirei os olhos e os ouvidos às tentações do amor. E só não o mandarei ao diabo e ao inferno porque abster-me de falar será outro privilégio ao qual não renunciarei.

Poderia?

Não, não fui eu que escrevi os versos, não fui eu que os mandei. Olhe para mim, veja se alguém como eu pode andar por aí escrevendo versos e atrever-se a enviá-los. E, se os escrevesse e os enviasse, teria por acaso a petulância de escrevê-los e de enviá-los a uma mulher tão bela e preciosa, nascida para ser louvada por olhos mil vezes mais dignos do que os meus? Poderia eu fazer isso, minha cara?

Só a memória

Deslizo os dedos pelos teus cabelos úmidos. Deveria ter feito isso naquela manhã, tão distante já. Mas eles não seriam macios nem ternos como estão agora, sem peso, como convém a dedos passando entre cabelos que só a memória pode hoje alcançar.

Te lembrarei sempre

Te lembrarei sempre como aquela que me deu ainda um pouco de vida quando parecia não haver mais nenhuma para mim.

Inventário

Dos meus pares de sapatos, este é o mais decente. Usei-o poucas vezes, só em ocasiões especiais. Não sei se haverá ainda alguma antes da última, na qual certamente ele me acompanhará.

Consolação

É tudo tão quieto aqui,
Tão calmo, tão sossegado...
Desde que fui enterrado,
Mortos nem vivos ouvi.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Um a um

Os dias são um só dia,
Quem vive um, todos viveu,
São todos dor, agonia,
Quem sofre um, todos sofreu.

Mesmo um tolo

Eu te beijaria timidamente, como faço tudo na vida. Depois olharia bem para ti, para me certificar de que mesmo um tolo como eu pode ser favorecido pela sorte um dia.

Como se

Como provavelmente não terei melhorado em nada, peço que, quando eu estiver morto, me tratem exatamente como me tratam agora que estou vivo - isto é, como se eu estivesse morto.

Mortos pelo amor

Não há dados insofismáveis sobre o último homem que morreu por amor, só informações imprecisas e a data aproximada: num dia qualquer de setembro de 1971. Sobre a última mulher a ser vítima fatal do amor, há estudiosos que divergem sobre a real causa e falam em questões não propriamente sentimentais, mas financeiras ou familiares. Quanto à data da morte, porém, não há dúvidas: 14 de março de 1891.

Rs rs rs

Escarneceram de ti. Querias que não escarnecessem? Ah, era tão previsível... Até um estudante de quinze anos poderia dizer-te que eras patético quando andavas pelas ruas escrevendo poemas para tua amada, esbarrando em pessoas e postes. Era assim que a chamavas neles, não era? Meu Deus, amada... E era assim que a tratavas também nos e-mails, no msn e nas mensagens pelo celular. Nunca te explicaram o que significa rs rs rs? Nunca, criatura de Deus?

Em falta no estoque

Invocaste o amor, imploraste por ele, chegaste a exigi-lo, como se fosse algo a que tivesses direito. E te revoltaste porque não foste atendido. Que tolo tu és. O amor não é um produto, não é algo que se tenha à disposição quando se quer. O amor não tem especificações, não é um artigo, não é um item que possas encomendar pela internet. Tu, que sempre exaltaste o amor como o mais belo e o mais raro dos sentimentos, deverias saber muito bem disso, melhor do que ninguém.

Estar ou não estar

Se eu conseguisse contar a história sem dramaticidade, seria assim: estás sempre onde não estou. Ela parece suportável desse modo, sem as insônias, os desesperos, os adjetivos e os verbos que rasgam, dilaceram e perfuram. É fácil, assim resumida: estás sempre onde não estou. Talvez consiga repetir a frase, até mais de uma vez. Mas posso suportar ouvi-la no cérebro em cada hora, em cada minuto, em cada segundo de cada dia? Já tentei modificá-la, para ver se me fere menos: nunca estás onde estou. Mas o punhal continuou a ferir, em cada batida do coração: estás sempre onde não estou, nunca estás onde estou.

O que não devo fazer

Não devo lembrar-te nem com rancor nem com tristeza. O que ficou em mim, de ti, há de se conservar como era. Que culpa têm todas essas lembranças, por que deveriam pagar por minha inabilidade e insânia? Recordo-te sempre como foste na primeira vez e, se alguma tentativa eu faço, é algo bem simples, como substituir a música que vinha da galeria por uma que me enterneça mais. E os objetos que me vieram de ti, que passaram por tuas mãos, eu os olho sempre com um sorriso, para que de nada suspeitem e se sintam como no dia em que os recebi. Se alguma lágrima me causam, eles não chegam a vê-la. Afasto-me, vou até a janela e fico olhando para as árvores, para o verde de suas folhas, que meus olhos molhados atenuam.

A marca

Aonde ele vai, as gargalhadas o seguem. O amor impôs-lhe sua marca e todos o olham como se fosse um macaquinho brincalhão de uma espécie já quase extinta.

O farsante

Não o vês, porque é noite. Mas ouves a respiração dele lá fora e sabes que ele te espreita, que ele espera que te livres da insônia e durmas um pouco. Então ele virá, anunciado pelos serviçais passarinhos, e abrirá sobre ti o olho sanguinário e te arrancará da cama, para o tormento de mais um dia. Ah, que fosse noite sempre, sempre, ah, que fosse, e jamais viesse acordá-lo esse maldito farsante que todas as manhãs chega e ilumina tudo, como se tivesse recriado todas as coisas enquanto te aconchegavas ternamente à treva.

Cor-de-rosa

"Por baixo, por baixo", mandou a mãe, e a menina, de uns doze anos, arrastou-se com seu vestido por baixo da catraca. As pernas compridas ficaram por um momento à mostra e o cobrador olhou para elas com cobiça. A palavra tesão se formou em seus lábios e ele apalpou furtivamente a calça. Ao chegar ao outro lado, arrastando-se, a menina tinha no rosto duas lágrimas de humilhação. E nem sabia que em seu vestido, atrás, havia uma mancha escura, no ponto em que o tecido cor-de-rosa limpara a marca de tantos pés matinais.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Aspiração

Ficar sentado embaixo de uma árvore por tanto tempo que ninguém mais visse senão o tronco, os galhos e as folhas.

Em tua tela

Esboçarás em uma de tuas telas um homem triste olhando a cidade à noite, da janela de um apartamento. Um amigo teu, que me viu uma vez contigo, te perguntará: "Esse não é aquele sujeito... aquele... aquele... de sobrenome estranho? Nossa, parece que ele vai pular lá para baixo." E mais uma vez estará em tuas mãos arranjar-me um sorriso e talvez salvar-me.

Pequenos tesouros

As lembranças deixadas pelo amor esperam na estante, resignadas: três ou quatro livros, um cartão, alguns desenhos, uma agenda, coisas miúdas e outrora tão queridas. Hoje descuradas por quem as recebeu e certamente esquecidas por quem as deu, ficarão onde estão até que alguém, quem sabe uma empregada, as empurre para um canto em que elas não virão a ser encontradas jamais, nem sequer pelo piedoso olvido.

Qual?

Ele se entregou inteiro,
Ela, nem pela metade.
Qual deu o amor verdadeiro,
Qual deles disse a verdade?

É assim

É assim. Acontece, simplesmente. Você não sente nada em especial, mas sabe que a vida nunca mais lhe trará uma alegria. Não é como certas sensações antigas, aquelas que você adjetivou e dramatizou. É algo prosaico, assim como é a vida todo o tempo. Algo que deve ser dito com uma palavra só: fim. Não significa que você esteja morto. Significa que você jamais estará vivo.

Braços amigos

É muita presunção minha imaginar que um dia possas sentir falta de mim, de minhas inúteis palavras. Se sentires, porém, sempre haverá braços que te acolham e consolem. Se forem hábeis, se souberem disfarçar, não notarás o regozijo deles por eu ter caído em desgraça. Voltarás a pertencer inteiramente ao grupo.

Alguém crê

Alguém crê que ele ainda viva,
Mas ele não. Perdedor,
A sua aposta no amor
Foi a última tentativa.

Do mesmo saco

Os sentimentos humanos
Às vezes são tão perversos,
Tão cuéis, tão controversos,
Tão rudes, tão desumanos.

Sereia

A tua voz me tonteia,
Me embriaga sedosamente,
Me deixa fraco, dormente,
Submete-me a ti, sereia.

Manhã dezembrina

Manhãs corriqueiras, prosaicas, manhãs monótonas, manhãs que há milênios usais o surrado estratagema de nos acordar com o sol e os passarinhos, por que não me trazeis de volta aquela única, de vós, que me encantou, aquela inolvidável, daquele distante dezembro?

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Paisagem

Quando tu te fores
será tão belo tu ires
com todas as cores
todas as
múltiplas cores
multicores
multicolores
todas todas todas
as cores do arco do céu
brilhando sobre teu barco-íris.

Gentilezas

Tudo será passado, tão passado que eu te perdoarei, e tu talvez me perdoes também, ou talvez nem nos lembremos, afinal, do que nos culpamos. Será triste esse dia, de beijinhos no rosto e promessas de eterna amizade, mas o amor se queixará em vão, e gritará "ei, e eu?", no meu peito e quem sabe também no teu.

Deboche

Lê o que escreveu movido pelo amor, e em cada um dos versos, que soavam como notas de um violino, ele agora ouve os sons frenéticos e debochados de uma rumba tocada por quatro bêbados de camisa havaiana.

Só por isso

Talvez te lembres de mim,
Mas por escárnio, por mofa,
Por diversão, por galhofa,
Ou qualquer besteira assim.

Tortura

O amor jamais revelou o nome deles. Sofreu torturas, abominações, passou a pão e água e suportou o frio da solitária. Foram dois anos, e em nenhum instante ele teve medo de morrer. Seu receio era o de, negando tanto os dois nomes, acabar por esquecê-los. Ao ser libertado, pesava vinte quilos menos e parecia um cadáver, porém os dois pelos quais ele havia se consumido o reconheceram quando ele lhes bateu à porta. Mesmo assim, um perguntou ao outro "você sabe quem é esse aí?", responderam simultaneamente que não e o mandaram ir embora, sob uma nascente tempestade.

Do amor

O amor não há de ser gentil. A gentileza é uma virtude social. O amor interessa apenas aos dois seres que se amam e só enquanto os mantiver ligados por um extasiado tormento, feito de ciúme e de iminentes receios de perda e de traição. O amor há de exigir juras e confirmações diárias. Há de sufocar, oprimir, cobrar tributos e nunca se satisfazer com eles. Há de marcar sua posse no corpo, na alma e onde mais puder. Há de ser tirano, déspota, soberano, e há de fazer pactos com o céu e o inferno. Mas jamais haverá registros dele em agendas. O amor não é um compromisso social, o amor não tem hora nem lugar. O amor há de ser uma loucura constante e jamais dará paz, nem nos sonhos nem nos pesadelos. O amor supliciará, exaurirá, encovará o rosto. Se não for assim, que os amantes se inscrevam num clube de dança ou se divirtam com tantas outras baboseiras que andam por aí. O amor não dança, não se diverte. O amor é sério, compenetrado e triste. O amor não posta fotos nem frequenta redes sociais.

De flores

O tempo agora é de flores. Frutos não haverá mais, nem poderiam prová-los os dentes frouxos ou apanhá-los as mãos débeis, que logo alguém, com piedoso cuidado, juntará para sempre.

Alívio, não mais que alívio

Um dia te lembrarás do amor, de tuas noites em claro e de teus dias amargos, das dores, das aflições, e rirás (talvez até gargalhes) de tua ingenuidade. Acontecerá isso, com a cumplicidade do tempo, sempre serviçal. Mas não te enganes. Quando esse dia chegar, deverás sentir só alívio. Se te sentires alegre, ou feliz, estarás confirmando apenas que, mais cedo ou mais tarde, os maiores ideais e os sonhos mais belos se desfazem, e o homem sempre acaba mostrando o que é: um ser desprezível.

Voz e imagem

Logo se enfraquecerão minha voz e as imagens com que te louvo. Talvez sejas tentada a pensar que já não te amo tanto. Com a voz de hoje, e também com uma imagem, te peço: não acredites nesse pensamento, minha afetuosa tirana.

Livraria Cultura

Vem-me à memória não a visão dos livros, nem o alvoroço dos dedos ao tocá-los, mas um cheiro doce e quente de café.

O toque

Jamais se apagou, em minhas lembranças, o toque úmido de teus cabelos naquela manhã. Eu o sinto às vezes, ainda, assim como um leve aroma, talvez imaginário, de xampu.

As duas

Uma das duas únicas certezas que tenho é saber que te amo. A outra é saber que não deveria.

Não mais

Perdi-me outrora por estas ruas que cheiravam a sexo e desinfetante de litro. Fingia-me inocente e esperava até que alguém me pusesse para dentro de um dos prédios mofinos e me enfronhase nos pecados que minhas parcas notas podiam pagar. Hoje meus bolsos estão carregados, mas sinto só o cheiro de desinfetante. O de sexo se desfez em alguma década distante, e presumo já conhecer todos os pecados.

O rio

Este não deve ser o rio de Heráclito. Às vezes o vejo parar por um instante, como se as águas lhe pesassem ou como se tivesse uma conversa pendente com a árvore que na margem exibe suas flores amarelas.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Bibelô

Eu talvez pudesse ser um bibelô na tua casa. Mas não gostas de bibelôs e eu não sou suficientemente gracioso para a função, nem mereço essa honraria. Poderia ter melhor sorte se fosse uma boa reprodução de um animalzinho de quatro patas - um gato ou uma cachorrinha amamentando os filhotes - numa tela digna de tua sala e de teus olhos.

Pobre idiota

Que tuas queixas sejam brandas, como se fosse outro aquele a quem o amor causou tantos danos e tu fosses apenas um espectador que, lastimando tudo, dissesse, compungido: "Pobre idiota."

Regando o jardim

Quando recorda as bizarrices que cometeu por amor, sente-se tão envergonhado quanto na noite em que, rapaz, tendo ido urinar num canto escuro do jardim do sobrado aonde fora para um baile, ouviu quatro garotas gritando de uma janela do andar de cima: "Aí, hem, mijão?"

Sobreviver

Devo apagar-te de mim, apagar qualquer traço teu de minha memória, para que eu consiga não viver, porque isso sem ti seria impossível, mas sobreviver, ainda que no mais rudimentar de todos os estágios.

Sem ela

Vendo-se liberto do amor, começou a olhar para o sol, as árvores e as ruas com nova curiosidade. Tudo lhe pareceu mais frio e triste, mas era só o primeiro dia.

A primeira vez

A mulher parou então diante de um casarão apodrecido da Asdrúbal do Nascimento: "É aqui. Vamos." Sob a luz do poste que havia bem em frente à entrada, ele notou que ela era pelo menos vinte anos mais velha do que parecera. "Vamos?", ela repetiu, pegando-lhe o braço com seu toque mercenário. Ele apalpou no bolso as notas que ganhara copiando por quinze dias as lições do colégio para um aluno adoentado. "Vamos", ela disse, mais enérgica, impondo-se à sua hesitação. Subiu com ela uma escada que infelizmente não tinha mais que duas dezenas de degraus, e de repente se viu num quarto que lhe lembrou descrições de Dostoiévski. "Não precisa tirar a roupa toda. Vem." Foi a última frase que ouviu na juventude. Logo estava subindo e descendo, como um marinheiro novato enjoado no navio, esforçando-se para entender o que estava acontecendo, e sabendo, embora o asco fosse maior do que o prazer, que voltaria a subir aquela escada para chegar àquele quarto que o sêmen de várias gerações havia impregnado com seu cheiro ácido e triste.

Se dizer

Se dizer que a amo adiantasse,
Eu muitas vezes diria,
Muitas, e repetiria,
Se você acreditasse.

Egoísta

Egoísta, ele analisa um a um os passos do amor gorado e exulta quando conclui que a culpa foi sua e que a ele cabem, por mérito, todos os suplícios.

Em casa

Quando é assediado pelas lembranças mais agudas, não sai de casa. As lágrimas o fazem tropeçar na rua e ele não consegue ler o letreiro dos ônibus.

Presente

Puxaste o livro de Philip Roth da estante e me deste. "É um presente", disseste, e estavas certa. Era um presente, é um presente, e assim o considero, quando o tenho nas mãos ou na memória.

Flagelação

Acordo cada dia mais cedo, para sofrer por mais tempo a tua falta.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Tua voz

Peço-te que não vás ver-me no dia em que meus olhos se fatigarem definitivamente de tudo. Mas, se fores, não me fales, por favor. Que baste à tua voz o prodígio de ter-me despertado um dia dentre os vivos.

Uma frase de Milan Kundera

"A consciência de minha própria miséria não me reconcilia em absoluto com a miséria dos meus semelhantes. Nada me repugna mais do que ver as pessoas confraternizando porque cada um vê no outro sua própria baixeza. Não me identifico com essa fraternidade asquerosa."

(Página 95 do romance A Brincadeira, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Anna Lucia Moojen de Andrada, Companhia das Letras, 1999.)

Indício

No dia em que despetalaste lenta e completamente a rosa que te dei, algo em mim deveria ter começado a ficar atento.

Insanidades

Insano é quem, vendo-se diante de um amor maior que a vida, se deixa levar por ele. Mais insano é quem não se deixa levar.

Vocação

A tristeza não precisa ter motivo. Sua única obrigação é estar presente todos os dias e todos os momentos, e em cada um deles lembrar ao homem que sua vocação e seu destino serão sempre o sofrimento e as lágrimas.

Alma

A alma é imortal. A minha, pelo menos, é. Já me morreram os olhos, afogados em lágrimas, a boca, envenenada pelas palavras tristes, o coração, trespassado pelo ciúme. A alma, porém, vive ainda, e são dela os gritos de piedade, que me acordam de madrugada, e os gemidos de aflição.

Bing Crosby

Os bem te vis da ameixeira não me cumprimentaram hoje. Ontem à noite teclei no youtube Bing Crosby cantando Dream a little dream of me. Devem ter se envergonhado com as três pobres notas que todas as manhãs emitem e receio que tão cedo não voltem à ameixeira.

O que lhe diz o espelho

Assim como os amigos de sua idade, ele deveria, em vez de versos e de anacrônicos lirismos, estar escrevendo cláusulas testamentárias, últimas disposições, codicilos. Quando se lembra de seus ímpetos juvenis, ele vai ao espelho, olha-se bem e tem a perfeita noção de como as pessoas o veem na rua: um idiota.

Causa mortis

Ele tem medo de que, morrendo de amor como parece ser seu destino, o médico, desconhecendo a causa, coloque no laudo algo insuportavelmente banal, como anomalia cardíaca ou insuficiência pulmonar.

(Im)possibilidades

Quando se diz a alguém a palavra amor, todas as implausibilidades, todos os desatinos e todas as impossibilidades se tornam imediatamente viáveis.

Espião

Gostaria de introduzir na tua casa um gato gentil que viesses a amar e ao qual confidenciasses teus segredos. Ele naturalmente ma contaria tudo, tudo mesmo, e, indignado, me pediria licença para te dar um castigo, para destruir teu sofá, para rasgar tuas telas, para ferir-te. Eu lhe concederia a permissão, desde que ele me prometesse arranhar-te de leve, muito de leve, levemente.

Se

Se eu soubesse tudo que me afligiria depois daquela manhã de dezembro, teria acreditado se alguém me dissesse que novembro é o mês mais propício para fechar os olhos e esquecer o mundo.

Há sempre

Há sempre um tolo disposto
A ver no amor só magia,
Beleza, afeto e alegria,
E nunca nenhum desgosto.

Tão verdes

Que bênção tendes por terdes
Tão belos lábios, a voz
Que terna fala por vós,
E os olhos, verdes, tão verdes.

Vindita

Pouco lhe importa saber
Se por alguém ela chora.
Por ela ele quis morrer,
Que ela sofra, então, agora.

Trip

Estou viciado em ti. És minha sina. Te compro no beco, te consigo na esquina, te inspiro, te mastigo, te respiro, te aspiro, viajo contigo por nuvens talvez cor-de-rosa como as que Lucy com os diamantes deve ter visto. Quando acordo, não estás mais, e o quarto fez avançar as quatro paredes, o piso e o teto sobre mim, e sufocado eu grito por ti, mas estás longe, flutuando maravilhosamente livre num campo de papoulas e cogumelos.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Sonho

Teu azul único e tu
Ternamente me levavam
E Nova York me mostravam
Ao som de Rhapsody in Blue.

Cisco

Os três devem ter visto, porque imediatamente me apontaram - o casal com ar de comiseração, o menino com um sorrisinho de desprezo. Quando me aproximei deles, pus-me a coçar o olho. "Um cisco", assim eu justifiquei minhas lágrimas. Deve ter sido um dos nomes mais estranhos que alguém já deu ao amor.

Inveja

Há muito quero saber
Por que tua erva daninha
Consegue tão forte ser
E tão mais bela que a minha.

In extremis

O amor estendeu-me a mão
Enquanto os lábios abria.
Da boca não saiu som
E a mão já estava fria.

Dieta

Alimenta-se de autoflagelação e de doses crescentes de melancolia.

Terceiro andar

Estão me fazendo falta as aulas de física que negligenciei quando as tive. Faço e refaço cálculos de massa, volume e impacto, e nunca concluo se a queda aqui deste terceiro andar será suficiente. Deveria ter pensado nisso ao alugar o apartamento. E há também o problema do toldo, no restarante lá embaixo. Quantos toldos já não ridicularizaram tantas boas intenções?

O que restou

O que restou do amor foram as queixas, as lágrimas, os apelos, as juras negadas e renegadas. O que restou do amor foram as frases, tão banais, agora que não arde mais a paixão nelas. O que restou do amor são as noites calmas, sem as insônias provocadas pelas falsas esperanças. O que restou do amor são os bocejos longos, tão ignóbeis quanto as eructações. O que restou do amor é tão deplorável, tão vazio, tão chocho, que hoje é difícil acreditar que alguém tenha pensado em pular do viaduto por ele. O que restou do amor é indigno dele.

Vendilhão

Pegou a pilha de poemas para os quais não tivera resposta. Tantas estrelas, tantos sóis, tantas luas, tantas aflições, declarações, juras, tanto amor, tantas lágrimas. E tudo dera em quê? Em nada. Ocorreu-lhe um termo: simonia. Cabia bem, no seu caso. Utilizara objetos sagrados para celebrar algo que acreditara ser sagrado também, como se de coisas sacras entendesse. Ocorreu-lhe outro termo: vendilhão. Também lhe cabia perfeitamente bem.

O projeto

Sylvia Plath me apareceu no sonho, gentilmente quis saber como andava meu projeto e aconselhou-me a ter sempre à disposição um mar, um lago, um rio, um bom revólver ou um forno a gás. Deu-me lembranças de Virginia, de Florbela e perguntou o que eu achara da sua aparência. Respondi que ela estava ótima e ela disse: "Então, o que você está esperando?"

A rosa

Enfiou os dedos na caixa onde zelosamente guardara seus tesouros de amor, e eles voltaram cheios de berloques, bugigangas, quinquilharias. Do fundo da caixa subiu um cheiro morno de podridão: uma rosa que antes de lhe ser ofertada estivera dentro de um sutiã.

Madrugada

No mais atroz abandono,
Deitado, implorou à sorte
Que ela lhe trouxesse o sono
Ou lhe propiciasse a morte.

Punhados de sal

Soube desde muito cedo que o amor para ele não significava o mesmo que para os outros. A simples palavra, nem sequer dita, apenas pensada, feria algo muito fundo nele, que depois ele identificaria como alma. O amor nunca lhe despertou risos nem sorrisos - mas um êxtase semelhante ao que sofriam os santos em seus martírios. Amar acendia em seu corpo fogueiras místicas que as lágrimas, em vez de aplacar, alimentavam. Uma vez definiu isso como bem-aventurada desventura. Soou-lhe bem a definição, mas por pouco tempo. Logo viu que eram palavras só, assim como o amor era só uma palavra, incapaz de traduzir aquela chama que o consumia e era maior que toda sua vida. Poderia considerar-se um predestinado, e chegou a sentir-se assim, estranhando, até, que no peito não lhe nascessee a chaga dos mártires. Tentou várias vezes, em diversas épocas, compartilhar esse prazeroso tormento, mas sabe hoje que é impossível. Está disposto a reconhecer que há muito de insanidade nisso tudo, mas esse reconhecimento ele não o fará a ninguém, só a si mesmo, naqueles instantes da noite e da madrugada em que seu amor jamais compreendido o vergasta e ele, sobre as feridas, com um sorriso de beatitude que ninguém verá, espalha punhados de sal.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Banquete

Sobrou-te um consolo: se um dia estiveres morrendo de fome e sede, um pouco, só um pouquinho das súplicas vergonhosas e às vezes abjetas que fizeste por amor há de te render um banquete em qualquer parte do mundo. Talvez não precises nem estender a mão.

Prazos

Às vezes penso que, ao menos por motivos terapêuticos e humanitários, deverias deixar-me - quem sabe um dia a cada semestre - ver teu rosto, falar-te, ouvir-te. Talvez me fizesse bem isso ou talvez, como frequentemente ocorre com certos medicamentos, ver-te, falar-te e ouvir-te fosse fatal para o meu coração frágil, tão desacostumado a alegrias intensas. De qualquer forma, talvez possas pensar nisso - ou, se me encontrar for muito penoso para ti, tentarei convencer meu coração a ver-te uma vez por ano, por uma hora, ou meia, que seja.

As batatas

Alguma vez sentiste uma aflição funda como tantas que senti e sinto por ti? Alguma vez tiveste vontade de enfiar-te na terra, de sumir, de desaparecer, de não deixar um traço teu? Tu me ignoraste, sempre, me ignoras e no entanto eu continuo a gralhar como uma cotovia velha. Já é bem tempo de estar com a enxada na mão, plantando. Ao perdedor, as batatas.

Tua paixão

Matar-me é tua paixão.
Como te apraz triturar-me,
Ferir-me, dilacerar-me,
Devorar meu coração.

Ele quisera

Ele quisera ter combatido
contra os mouros
contra os hereges
contra os infiéis
ou então quisera ter sido
um dos mouros
um dos hereges
um dos infiéis

Ele quisera ter combatido
como visionário
como legionário
ou como mercenário
e ter perdido a vida
numa manhã esquecida
num combate sanguinário

Ele quisera ter morrido
num campo de sangue banhado
numa funesta campina
e pelas aves de rapina
ter sido completamente devorado

Não precisaria esperar agora
com impaciência a hora
em que morrerá por causa
de uma causa mofina
um excesso de álcool
uma moléstia banal
uma angina
uma infeção de urina

Enquanto espera
que se apresse o relógio
um amigo leal
vai inventando histórias
repletas de glórias
e de batalhas que não houve
preparando seu necrológio.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Wislawa Szymborska (1923-2012)

As pequenas coisas, os objetos mais simples, as xícaras, as jarras, os animais miúdos, os gatos - tudo aquilo que os poetas empertigados consideram indigno de retratar - não te saúdam, porque não apreciarias esse verbo presunçoso, Wislawa. Eles te dizem adeus, com a voz mais baixa e carinhosa que têm. Que aonde vais possas ser recebida com as mais suaves notas que Chopin dedilhou.

Que ele

Que ele te ame, e que seja um amor que ele sinta em cada hora do dia e da noite, em cada minuto, em cada piscar de olhos e em cada batida do coração. Que ele te louve e te exalte, e que ele se entregue todo, lamentando não ter mais o que entregar, e que não haja nele, na alma e no coração, em cada centímetro do corpo, lugar senão para ti e para o teu amor. Que ele dependa de ti para respirar, que ele só possa ver a vida através de ti. Que sua única família, que seus únicos amigos sejas tu. Que ele te sinta em cada canção, em cada nota, e que ele tenha o teu nome nos lábios ao se deitar e ao abrir a janela para a manhã. Que ele te veja na melhor e na pior literatura, que ele viva febril e que te diga isso tantas vezes que acabes te exasperando e não queiras mais ouvir uma só palavra dele, nunca mais. Que tu lhe digas isso e que ele te diga adeus, esperando comover-te. E que tu aceites e respondas: adeus. E que ele se torture, e que ele sofra, e que ele se atormente até o último dos dias, como devem se torturar, sofrer e se atormentar aqueles que acreditam no amor. E que tu possas ignorá-lo, como ele merece.

Dói

Dói imaginar que podes estar dizendo a alguém aquilo tudo que disseste a mim - e que podes estar sendo sincera desta vez.

Febre amorosa

Se de amor aqui se trata,
Nada de fogos amenos.
Eu quero a febre que mata:
Quarenta graus, nada menos.

Não ter

Não ter amado, não ter
Sofrido, não ter chorado,
Não ter presente ou passado,
Não ter vivido, não ser.

Acalanto

Alguém que me acalentasse
Como se eu menino fosse,
Alguém de voz mansa, doce,
E que cantasse, cantasse.

Milagre

Teus olhos se fecharão
E o milagre se dará:
O amor, com sua ilusão,
Jamais te atormentará.

Parabéns

Não passa agora de um traste,
De alguém que é bom evitar,
Aquele que tu amaste
Ou que simulaste amar.

Ardil

Há muito, já, que meus textos
Não são nada mais do que
Desculpas, meros pretextos
Para eu falar com você.

Troca

Andava tão melancólico, tão inconsolavelmente triste, que daria a vida para estar morto.

Livre afinal

Não me verás amanhã, nem depois. Não me verás nunca mais. Mas, quando estiveres passando por certos lugares, terás às vezes, por uma brincadeira do sol ou da memória, a impressão de que caminho ao teu encontro - e apressarás o rumo dos teus passos, na direção contrária. Terás alguns desses sobressaltos, até o dia em que uma alma generosa te disser que poderás andar por onde bem quiseres, porque eu não estarei mais andando por lugar nenhum. E será mais belo então o sol para ti.

Causa e efeito

Às cinzas tende o malfeito,
O tosco, o desconjuntado,
Também às cinzas o azado,
O bom, o puro, o perfeito.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Pouco

Sofreu por amar demais,
Entregou-se inteiramente,
E hoje, ao recordar-se, sente
Não ter se entregado mais.

Foi

Não sei o que foi: se amor,
Se apenas terna amizade.
Foi lindo, seja o que for,
Foi lindo e deixou saudade.

De amor não

De tantos anseios românticos, mais um ele já sabe que não realizará. Talvez morra na cama, como sonhou, porém nunca apertado num abraço e gemendo ai amor.

Azul-ferrete (para PMM)

Teu azul bebeu o sangue de todos os outros, aqueles azuis covardes, subalternos e prestimosos sempre dispostos a adornar o céu e o mar, encheu-se de fúria e carrega de rancor as nuvens da borrasca que convulsiona as ondas, afunda navios e afoga sem perdão turistas e marinheiros.

Castigo

Tu me dás dor e castigo,
Dias cruéis, infelizes,
E depois vens e me dizes
Que estás aflita comigo?

Gracinha

O amor me enfiou num carrinho,
Ocultou minhas feridas,
Escondeu suas mordidas,
Mostrou-me: "É o meu bebezinho."

Frações

Sim, eu me entreguei inteiro ao amor. Mas o que significa entregar-se inteiro quando se é nada, quando se é ninguém?

Depois que

Depois que o amor morre, a vida
Se torna tão desfrutável,
Tão calma, tão confortável,
Tão triste de ser vivida.

Tudo

Te devo tudo, te devo
O sim, o talvez, o não,
Tu és a causa e a razão
De cada texto que escrevo.

Retrato mental

Fugiu-me toda a consciência.
Não vivo mais, e nem morro,
Aos vivos peço clemência
E aos mortos peço socorro.

Paz

Jamais haverá conforto
Maior e definitivo
Do que deixar de ser vivo
E deixar-se ficar morto.

O que valho?

O que valho eu, o que vale minha alma alimentada com música e poesia, diante desses homens rudes e confiantes em cujas camisetas se eriçam os pelos de áspero aroma que atraem as fêmeas e amornam suas entrecoxas?

Teus cabelos

Em meu braço ficou o arrepio dos teus cabelos molhados. Sinto-os ainda, às vezes, e é como se estivéssemos outra vez naquela manhã que a cada dia o tempo apaga um pouco em minha memória fatigada. Sinto-os ainda, e meu braço docemente se arrepia de novo, como se cada um dos fios roçando nele fosse uma amorosa língua de gelo.

Desenho

Poderias ter desenhado um barco para mim, um daqueles bem simples, um veleiro. Poderias ter me posto dentro dele e abrir diante de mim uma imensidão marinha que eu pudesse ir explorando enquanto a noite, a grande e definitiva, não apagasse o sol, um sol tão simples quanto o veleiro, que também tivesses desenhado para aquecer meu corpo cansado.

Tão frio

A Morte entrou, viu-o no sofá: "Está pronto? Vim te buscar." Ele respondeu: "Estava te esperando. Vamos logo. Me ajuda a me levantar." Ela se aproximou e o puxou pela mão: "Nossa, você está mais gelado que eu."

Adiamento

A doença o deixou tão vivo quanto um sentenciado que teve a execução adiada para a manhã seguinte.