"Irmãos humanos que ainda viveis,
Não sejais corações endurecidos;
Tendo pena de nós, pobres, talvez
De Deus sereis mais cedo merecidos.
Vede os pescoços, cinco ou seis, torcidos;
A carne, que sorveu tanto alimento,
Está hoje devorada e em fermento,
E ossos, a cinza e pó vamos volver.
Ninguém ria de tal padecimento:
Clamai a Deus a nos absolver.
Se de irmãos vos chamamos, não deveis
Tratar-nos com desdém por termos sido
Justiçados. Contudo, vós sabeis:
Nem por todos o senso é conhecido,
Desculpai-nos, por sermos falecidos,
Junto ao filho da Virgem, seu assento.
Conserve-nos da graça o acolhimento:
Livre-nos de no Inferno dissolver.
Eis-nos mortos, ninguém nos dê tormento:
Clamai a Deus a nos absolver.
A chuva nos lavou, limpou de vez,
E o sol secou e pôs enegrecidos;
Corvos cravam os olhos de avidez,
Barba e fios puxando enfurecidos.
Não nos firmamos mais, enrijecidos,
Balançando de um lado a outro, ao vento,
Sempre ao seu bel-prazer em movimento,
Mais furos que em dedal, a revolver.
Evitai da irmandade o envolvimento:
Clamai a Deus a nos absolver.
Príncipe Jesus, guiai-nos o tento,
Cuidai que o Inferno não esteja atento:
Lá, não há o que ver ou resolver.
Homens, do riso aqui há banimento:
Clamai a Deus a nos absolver."
(De Poesia de François Villon, tradução de Sebastião Uchoa Leite, publicado pela Edusp.)
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