quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O beijo

Ele a beijou, e foi como se estivesse tocando os lábios da estrela mais longínqua, mais desejada, mais indiferente, finalmente atingida e lastimavelmente fria, tão fria.

Superior

O fato de nunca havermos alcançado o amor em sua totalidade deve ser recebido por nós como um louvor por termos dado a ele uma dimensão superior, muito acima dos padrões fixados pela corriqueira humanidade.

Bazófia

Ainda, aqui e ali, se ouve alguém dizer que se entregou ao amor. Como se isso fosse uma sabedoria ou uma virtude. Como se fosse possível resistir. Como se alguém quisesse.

Ainda

Escrever é uma ambição que ainda tenho, embora hoje a confesse com frequência cada vez menor.

Um dos que

Eu sou um daqueles que o amor matou tardiamente, porque pensava poder ainda rir e escarnecer mais um pouco de nós e do  modo como nos ajoelhávamos diante dele, lambendo-lhe as mãos como o gado lambendo sal no cocho, enquanto o cutelo, afiado pelo amolador, soltava faíscas de nervosa impaciência.

Uma frase de Julio Ramón Ribeyro

"Estava, pois, instalado em plena insânia, e já maduro para as piores concessões e baixezas."

(Do livro Só para fumantes, tradução de Laura Janina Hosiasson, edição da Cosacnaify)

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Mario Quintana (para Liberato Vieira da Cunha e Silvia Galant François)

Alguns poetas se movem como se a poesia fosse um sapato novo, dois números menor. Mario Quintana sempre caminhou como se usasse sandália nas ocasiões mais solenes e estivesse descalço em todas as demais.

Cotação do dia

Às vezes, como hoje, censuro-me por gabar minha tristeza, como se quisesse causar inveja.

9h03

Quando eu estava abrindo a porta da loja, senti uma tristeza dessas fundas, agudas, insuportáveis, como se de madrugada o caminhão do lixo houvesse recolhido aqui um gato muito branco, muito lindo e muito morto.

"Jogo de empates", de Lourença Lou

"amor é santo de pau oco
e se preenche de fomes variadas

é doença de pele
ambrosia dos anjos
fogo selvagem

amor é a falta da vergonha
do insistente jogo de matar e morrer."

Do livro Equilibrista, Editora Penalux)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

O sol vinha brincar com Mario Quintana. Passeava-lhe nos lábios, fazia cócegas, provocava sorrisos. Quintana gostava, os dois se entendiam, e via-se facilmente que eram velhos amigos.

Pureza

Quando eu, tantas décadas atrás, comecei a imaginar que poderia ser um poeta, um dos requisitos era claro: a pureza de espírito. Penso, hoje, que não haver me transformado no que desejava pode ter relação justamente com essa pureza que não consegui cultivar em mim.

Aviso

Não estranhem se, neste período natalino, encontrarem minha lojinha fechada, um dia ou dois. Confio cada vez menos na sua utilidade. Os poucos fregueses que ainda a visitam têm, pelo que lhes ofereço, um amor piedoso, quase compassivo, um desses afetos ditados por uma consciência ou culpada ou já excessivamente comprometida com os apelos à solidariedade. Não estranhem, também, se a loja estiver aberta até no domingo de Natal. Acostumei-me a viver aqui, entre esses objetos que nada dizem a ninguém senão à minha memória, que os protege e mima como uma mãe protege e mima um filho único.

Frase de Henri-Frédéric Amiel

"A vida é o tirocínio da renúncia progressiva, da redução contínua de nossas pretensões, de nossas esperanças, de nossas posses, de nossas forças, de nossa liberdade. O círculo restringe-se cada vez mais; queria-se tudo aprender, tudo ver, tudo atingir, tudo conquistar; e em todas as direções cada um chega ao seu limite: nem plus ultra."

(De Um diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, edição da É Realizações.)

domingo, 18 de dezembro de 2016

A voz

Há alguns dias uma voz tem soado para mim. E é tão doce, tão calma, que eu me pergunto por que ela não me procurou antes. Tive uma experiência semelhante há dois anos, quando outra voz, que eu presunçosamente identifiquei um ano depois como a voz espiritual de Mario Quintana, começou a soar, ora séria, ora galhofeira. Quem será que quer dialogar agora comigo? Seja quem for, espero que ele não fique nessas conversas iniciais. Será você, Henri-Frédéric Amiel?

Contemporaneidade

Eu deveria ter sido puro naquele tempo em que a pureza poderia ornar meu rosto adolescente. Como ela parece inútil, como ela parece falsa neste rosto murcho!

Ascese

Caminho talvez para uma espécie de religião ou de ética. Inquieta-me a necessidade de estar limpo, como se planejasse buscar-me o mais especial dos seres. Começo a abrir meu coração como nunca, e ele me diz que eu talvez possa ainda ser digno de minha alma.

Percepção

Percebo, dia a dia, que é hora não de reafirmar convicções, mas de ir me despojando de tudo com que pensei me enriquecer espiritualmente. É tempo de voltar ao que fui na infância. Preciso estar pronto para a maior das aventuras. Devo sentir-me como me senti antes do primeiro giro do carrossel, no parque de diversões,

Confissão

Sim, eu tentei expandir minha tristeza, disseminá-la, fazê-la semear a flor da melancolia. Sim, eu sou culpado, por querer compartilhar a única riqueza que tive.

Feições

No fim, por não termos mais motivos para rir ou sorrir, nosso rosto inspira a impressão de sermos sábios, o que é um imerecido elogio à nossa apatia.

Hoje, na revista Rubem,

falo de coisas miúdas, apropriadas para uma crônica (www.rubem.wordpress.com)

Relâmpago

Se ele espirra ou se tosse,
dilata-se e desata-se
sua precipitação precoce.

Minha lojinha

Desde que iniciei este blog, em 2010, venho me sentindo como um comerciante que abre uma pequena loja, uma quitanda. Penso ser uma obrigação diária manter aqui um estoque mínimo, para eventuais frequentadores. Tenho conseguido, sei lá como! Vocês, leitores, sabem muito bem como: com estes textos que me saem cada vez mais penosos e menos satisfatórios. São 26 mil, e é triste ver como, a partir de certo ponto, murcham e se tornam mercadorias de segunda e terceira. A única relevância do blog é ter-me feito voltar à poesia, minha paixão da adolescência. Infelizmente, para os leitores, isso não tem nenhuma importância. Minha poesia, tantos anos depois, continua como era: juvenil, no pior sentido. Em horas como esta, de prestação de contas, vejo a vantagem de ter tão poucos fregueses.

Sobre a liberdade

Embora a poesia tenha mais raízes na ficção do que na realidade, receio sempre ser um impostor. Posso mesmo expressar o que sinto? E o que sinto pode interessar verdadeiramente a alguém? Quando lido com a poesia, penso que o faço com a intenção de iludir-me, de mudar-me, seja para melhor ou para pior. Tenho o direito de pedir aos leitores que me ouçam?

Concisão

A juventude é a época de todos os desperdícios. Esbanja-se tudo: gestos, dinheiro, energia. E palavras. Para cada objeto, noção ou ideia dispomos de uma infinidade de sinônimos. Aos poucos vamos voltando à simplicidade, passamos a usar apenas as palavras essenciais. Só algumas estão nessa categoria. Dez, talvez. A vida vai se apagando, e a morte não exigirá que a cortejemos para nos aceitar.

Borrifos

Quando o padre lhe ministrou a extrema-unção, o defunto não se importou com os respingos de água benta. Já se acostumara com os generosos perdigotos dos parentes e amigos.

Síntese

A literatura, em mim, foi uma ideia fixa que se transformou em obsessão antes de se tornar um projeto malogrado.

Um trecho de Liberato Vieira da Cunha

"Lá está Marisa, com seus cabelos dourados, com sua sombrinha azul. Aqui estou eu, aqui estamos nós, reinventando as histórias mais felizes de nós mesmos e desde sempre condenados sem culpa a jamais tornarmos ao que éramos."

(Do livro O silêncio do mundo, publicação da AGE.)

sábado, 17 de dezembro de 2016

Escrever para quê?

É a pergunta que me faço hoje, no portal do Estadão.

Cotação do dia (3)

A sensação de ser um homem morto que ainda não percebeu seu novo estado.

Cotação do dia (2)

Uma impressão - a de que tudo, antes, foi melhor - não confirmada pela memória.

A mão

Nós lamberemos as feridas do amor e ele acusará nossa língua de ser mais áspera e cruel do que a mão que, empunhando o chicote, rasgou sua carne.

Alfabeto

O que ele agora lê
na cartilha do seu futuro
é AVC.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Era bonito quando o minuano parava de rugir, se assumia como pássaro e ia comer alpiste na mão de Mario Quintana.

Perempção

Há algum tempo, já, que eu venho achando a literatura uma desculpa cada vez menos aceitável para me absolver. Aos quinze anos, quando a apresentei pela primeira vez, eu julgava ter talento. Hoje creio ter só persistência.

TOC

Se alguém de mim duvidou,
Não tive dúvida alguma:
Sei desde sempre que sou
Duas pessoas em uma.

Um pensamento de Henri-Frédéric Amiel

"Que médico vale pelo poder uma centelha de felicidade e um único raio de esperança? A grande mola da vida está no coração. O ar vital da nossa alma é a alegria."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações Editora.)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Soneto do Estadão (para Ludenbergue Góes)

São Paulo, em todo o teu mapa,
Na Ipiranga e na São João,
Na Penha, no Brás, na Lapa,
Na Luz, na Consolação,

Na praça Vilaboim
E no viaduto do Chá,
Um tanto, um resto de mim
Espalhado ficará.

Em pó me transformarei
E no teu corpo estarei,
Em cada parte um pouquinho.

Mas quem minha alma buscar
Somente a irá encontrar
Na rua Major Quedinho.


Cotação do dia

Valho o que julgo valer: nada. Houve um tempo em que não pensava assim. Eu era tolo, nessa época.

Último ato, cena final (para Paula Giannini)

Só não me retirei ainda do palco porque talvez algum espectador, o último, queira atirar-me no rosto um tomate e vê-lo explodir triunfalmente em meu nariz de palhaço.

Amores

Às vezes desconfio de todos os meus amores. Até o maior de todos, o que dediquei à literatura, eu chego a recear que não tenha sido senão fruto de uma indigna premeditação e de uma laboriosa persistência.

Comunicação

Não sei se a poesia me tornou melhor. Se tornou, não fui avisado.

Estratégia

Censuram-me porque me deprecio. Não notaram que faço isso pelo meu egocentrismo: sou sempre o maior dos tolos, o mais desafortunado dos homens, o supremo infeliz.

Um final de crônica de Liberato Vieira da Cunha

"Tanto que descubro, em uma página baldia, as 14 linhas do mais lírico soneto de Camões. O mesmíssimo Camões das terríveis análises sintáticas, aqui brando e terno como deve ter sido na hora em que o copiou a jovem, esquecida benfeitora que me legou estes breves segundos de reencontro e plenitude."

(Do livro O silêncio do mundo, Editora AGE.)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Maturidade

Você não é mais aquele tolo que acreditava no amor. Você evoluiu, você aprendeu. Você não é mais feliz.

Máximo

A melhor idade
para um escritor
é a posteridade.

Lupanar

A melhor diretriz
é entrar à direita
e seguir em frente
até a terceira meretriz.

Natal

No escurinho
ganhou um panetone de marca
e uma garrafa de vinho.

Jogo

Por ele somos vencidos
E nunca recompensados.
O amor tem sextos sentidos
E lança dados marcados.

Leilão de garagem

Aposentando-se, o poeta pôs à venda alguns dos itens de que não precisaria mais: o sol. a lua, as estrelas. Para esses não surgiram interessados, talvez por dificuldades de transporte. O cisne foi negociado logo no primeiro dia.

Sinais

Cada vez que a memória o leva de volta aos dias de sua felicidade, ele descobre mais um ou dois detalhes dessa época, como um movimento da amada para ajeitar os fios de ouro dos cabelos ou um sorriso no qual, no momento em que se entreabriu, ele deveria ter pressentido como era frágil tudo aquilo em que pensava sustentar-se sua vida.

Época

Em dezembro costuma aparecer o Próspero. Feliz, esse Próspero. Tem onze meses de férias.

Reencontro

Hoje a Morte passou por mim e piscou. Era uma loira de blusa xadrez, como aquela que muito tempo atrás passou por mim na Paulista, piscou e disse chamar-se Morte.

De Mariana Ianelli sobre Mario Quintana

"Camarada dos ventos e do poema como translúcida ponte entre mundos, antevia o dia em que, pifando todas as tralhas do mundo cibernético, os que sobrevivessem só entenderiam os poetas que falassem de amor."

(Do livro Para aqueles a quem os dias são um sopro, edição da ardotempo.)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Consonantal

Corinthians, que namorada terá no nome esse doce encontro do "t" com o "h"?

Balão

O amor não pede licença,
Jamais pergunta se pode,
Não analisa, não pensa.
Infla-se, acende-se, explode.

Ontem

O que fizemos foi feito.
Era outro tempo, era outra hora.
Não nos queixemos agora
Se outro era então nosso jeito.

Marcador (para Silvana Guimarães)

Há no livro policial
entre as páginas
noventa e oito
e noventa e nove
não uma rosa
mas uma mariposa
outrora curiosa
que não mais se move
em sua precisa
e definitiva
pose mortal.

"Paralelismo", de Lourença Lou

"coxas e glúteos
disputam calçadões
preguiças e adutores

os braços sustentam
a volta dos seios
à pós-adolescência

de dois em dois dias
domo cavalos mecânicos
e me dobro ao espelho

depois dos cinquenta
vaidade se escreve saúde."

(De Equilibrista, publicação da Editora Penalux.)

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Conjuntura (para o Xico Sá)

Os antigos diziam
com rima fraca mas sabedoria
que a economia
é a base da porcaria.

Atributo

Quem lida com a poesia pode ter mãos de pedra, mas seu coração deve ser de jardineiro.

O amor

Minha relação com a prosa me dá invariavelmente a impressão de ser algo meio sorrateiro, meio furtivo, meio pecaminoso. Sinto-me clandestino, traidor, desleal. Meu amor será sempre aquele da juventude: a poesia.

Iguaria

No banquete do amor
com avidez
dentada a dentada
toda nudez será castigada.

Escândalo

Apesar dos esporros
as rimas obstinam-se
e engatam-se como cachorros.

Tela

A galinha posta
sobre a mesa -
natureza-morta.

Um trecho de Amiel

"Para as coisas capitais da vida estamos sempre sós, e a nossa verdadeira história jamais é decifrada pelos outros."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações.)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Soneto da tristeza circense (versão final)

Escrever foi a sina que me coube
E crendo nessa sina me empenhei
Como pela coroa luta um rei,
Entretanto escrever eu nunca soube.

Derrotado, infeliz, amargurado,
Vencido pela própria incompetência,
Tenho afinal agora a consciência
De que escrever jamais foi o meu fado.

Se fosse, o amor jamais escarneceria
De meus versos, de minha poesia,
Não os submeteria a humilhação.

Se fosse, o amor acaso chamaria
Este texto, que eu chamo de elegia,
De farsa ou de comédia-pastelão?

Brandura

Agora, perto do fim,
Cultuemos a mansidão.
Soe terno nosso sim,
Soe brando nosso não.

Chorar assim

Não fica nada bem para um homem chorar como um menino órfão ou um bezerro desmamado. Mas como alivia chorar assim, mugir assim lastimosamente.

Jeito

Na poesia, muito mais do que na prosa, o essencial não está no que dizer, mas em como dizê-lo. E, às vezes, em dizê-lo sem dizer.

Voz

Se tem a brisa,
precisa por acaso a rosa
de mim para cantá-la?

"Destino", de Djanira Pio

"Ao elemento feminino
coube,
segundo os céus,
a responsabilidade
da procriação.
A continuidade
da vida.
Ficou o dilema:
para que continuar?"

(Do livro Olhares, RG Editores.)

domingo, 11 de dezembro de 2016

Tempos verbais

Sou um homem do passado. Não vivo, não faço, não aconteço. Vivi, fiz, aconteci. Meu futuro está resumido num verbo cuja única relação com qualquer atividade é ser a negação de todas: morrer.

Certidão

Morreremos de causas naturais:
falência múltipla de órgãos
e fadiga dos materiais.

Alter

Se o poeta em ti não fosse tão diferente de quem és, teus versos federiam assim que começassem a sair de tua boca.

Prudência

Se for o caso de fazeres mau juízo de ti mesmo, convém que o faças antes que outros venham a fazê-lo, quase certamente com mais sólidos argumentos.

Consciência

Tenho vergonha de tudo quanto sonhei. Eu era jovem, ou ao menos não tão velho, mas não deveria ter sido tão ingênuo. Disse que tenho vergonha? Corrijo: tenho asco de mim. Provoco distúrbios em meu estômago, gostaria de vomitar-me.

Sob medida

Para um haicai
uma chuva  sempre cai
como uma luva.

Tentações

Fechar os olhos
ao mundo
fechar os olhos
à vida
fechar os olhos
à rima
fechar os olhos
a tudo.

Ainda Henri-Frédéric Amiel

"Sou suscetível ainda de todas as paixões, porque as tenho todas em mim. Como um domador de animais ferozes, tenho-as enjauladas e atadas, mas ouço-as rugirem às vezes. Afoguei mais de um amor nascente. Por quê? Porque com esta segurança profética da intuição moral eu os sentia pouco viáveis e menos duradouros do que eu. Afoguei-os em proveito da futura afeição definitiva. Os amores dos sentidos, da imaginação, da sensibilidade eu os penetrei e rejeitei, queria o amor central e profundo. Ainda creio nele, e tanto pior para a honra do sexo feminino, se não tenho razão.
     Não quero estas paixões de palha que deslumbram, consomem ou secam; chamo, aguardo e espero ainda o grande, o santo, o grave e sério amor que vive em todas as fibras e em todas as potências da alma. Toda mulher que não o compreende não é digna de mim. E, se hei de permanecer só, prefiro levar minha esperança e meu sonho a malcasar minha alma."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações, Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.)

sábado, 10 de dezembro de 2016

Cotação de hoje (às 15h23)

Quem aperta minha mão deve sentir a mesma repugnância que sinto agora, ao apalpá-la. Pele velha, por que não te desmanchou ainda inteiramente o tempo? Quem te dá o direito de envolver um pão e levá-lo à boca poluída por tantas outras peles impuras, por tantas palavras podres, por tantas pragas inutilmente proferidas e tantas inócuas maldições?

Modos de ver

Se um poeta se recusa a falar do amor, pode-se louvar sua ousadia, mas deve-se deplorar sua decisão.

Curso

Deixai passar,
deixai correr,
deixai findar,
deixai morrer.

Pior

Mais falso que o amor é esse pássaro que em nome dele vem diariamente trazer a você, como se fosse em nome dele, as palavras que você já conhece tão bem.

Identidade

Sou o poeta do amor, vocês estão vendo. Não preciso mostrar-lhes meus versos nem o coração. Basta vocês se fixarem nos olhos mortiços e nestes lábios murchos nos quais outrora vicejaram palavras amáveis e expressões esplêndidas.

Como

O amor é insistente como um agouro, exasperante como um pecado e persistente como uma maldade.

Palavras

Estava já naquele estágio em que a loucura limitara seu vocabulário a oito ou dez palavras, repetidas com a apaixonada ênfase dos crentes. Uma delas era amor.

Só até ali

Escrever só textos curtos, agora. Você está cansado, as palavras também, e é melhor que não fales mais do amor. Os mortos devem descansar, tenham feito o que tiverem.

Aviso

O editor recebeu o velho poeta, que insistiu em marcar a entrevista, e foi logo avisando: "Olhe, poesia tudo bem, eu até gosto. Mas não me venha com sonetos. Hoje só tenho paciência para haicais."

De Henri-Frédéric Amiel, sobre os livros e as mulheres

"Os livros e as mulheres, tive eu acaso outros refúgios? Mas coube-me procurar os livros, e foram as afeições femininas que me procuraram. Que é que eletriza, consola, vivifica, abençoa, inspira, aconselha, encoraja como uma mulher? Que é que alivia, reanima, ampara, cura, acalma o corpo sofredor ou doente, ou o espírito perturbado, como a voz, a mão, o hálito ou o olhar de uma mulher amante? Quando penso em tudo o que devemos ao sexo feminino, fico emocionado; quando penso em tudo quanto podemos fazê-lo sofrer, fico perturbado; quando penso em tudo quanto nele dormita e pode florescer sob a influência viril, experimento uma espécie de entusiasmo, sinto que um mundo novo dorme oculto no seio da mulher, e que uma humanidade mais bela, melhor, mais heroica do que a nossa poderá nascer, quando o homem for digno de engendrá-la."

(De Diário íntimo, publicado pela É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Soneto do amor e seu discípulo

Podes, amor, censurar
Este meu jeito de ver,
Este meu modo de ser,
Esta maneira de amar?

Sou tolo, vens me acusar,
Ingênuo, vens me dizer,
Porém só pude aprender
O que quiseste ensinar.

Confiei em ti, simplesmente,
Tão plena e tão cabalmente,
Que, vivendo só por ti,

No dia em que tu morreste
(Amor, não percebeste?)
Eu também, amor, morri.

Soneto das contradições do amor (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)


O amor não tem compostura,
A lei do contraste preza,
Procura quem o despreza,
Despreza quem o procura.

Imerso em sua loucura,
Rezando por sua reza,
Favorece quem o lesa,
Não cuida de quem o cura.

O bem com o mal contrastando,
Vai nossa crença firmando
De que por ele viver

Tanto pode ser antônimo
Quanto pode ser sinônimo
De sofrer e de morrer.


Uma delas

Tudo começa na juventude, quando nossa tolice nos leva a julgar que certas atividades (como a literatura) enobrecem e justificam a vida de um homem.

Histórico

Foi um ideal

Foi-se alterando
dia a dia
tornou-se obsessão
depois frustração

Hoje é ocupação
hábito mania
falsa declaração
de inexistente poesia.

Autoavaliação (para Silvana Guimarães)

Eu sou daquela
espécie de poetas
de meia-tigela
que tentam encher a panela
com duas metades ineptas
que nunca chegam a compor
uma unidade completa.

Butim (para Veronica Stigger e Silvia Galant François)

Quem há de querer
assaltar um poeta?
Num bolso um filhote de estrela,
No outro, nenhum objeto,
Na mão, um soneto incompleto.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Obra (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Escrevo todos os dias.
Obra? O que é isso?
Planto uma rosa,
Mal tenho como regá-la.
Cada manhã planto uma.
Não tenho tempo de aperfeiçoá-las.

Soneto que celebra tua face

Lembro-me de tua face
Como ela foi, como ela era,
Naquela azul primavera,
Como se ainda hoje a fitasse.

Quem me desse, quem me dera
Que aquele tempo voltasse
E que com ele retornasse
Nossa paixão, tão sincera.

Talvez eu hoje ao amor
Possa dar maior penhor
Do que que dei antigamente.

Ainda é débil minha rima
Mas forte o afeto que a anima
E meu coração não mente.

Rima

Procurei na gaveta
e não encontrei
o colibri.
Fico devendo
o soneto
com a chave de ouro
de rima rica
que estou fazendo
para ti.

Poeminha do óbvio

Bons foram os primeiros.
Os antepenúltimos,
os penúltimos
e os últimos
são o que são:
passos derradeiros.

Posologia

Não há melhor vitamina
nem tratamento mais recomendado
para a poesia
que uma dose diária
de amor frustrado
e uma de melancolia.

Acréscimos

Talvez você pense ter exprimido tudo que é possível dizer sobre o amor. Não importa. Se algo  mais lhe ocorrer, não hesite. Dizem que o amor é importante.

Peculiaridades

O amor é um sentimento sujeito a chuvas, trovoadas, amuos, melindres e chiliques.

Pelo menos

Se pelo menos o amor fosse um pouco menos essencial, se pudéssemos relegá-lo, diminuí-lo, ignorá-lo. Se ele não tivesse sido proclamado a maior - e até a única - fonte da vida. Se ele não fosse tão amável, tão agradável, tão desejável,

Posições

Alguns dizem ter compromisso com a poesia. Geralmente não são os poetas. Estes, como se sabe, estão sempre nas nuvens, poetando.

O rosto

Talvez em outras vidas
tenhamos chegado a ver
o rosto da Morte.
Se vimos, fizemos
bem em esquecer.

Um trecho de Henri-Frédéric Amiel

"O amor sublime, único e invencível, leva direto à beira do grande abismo, porque fala imediatamente do infinito e da eternidade. É eminentemente religioso. Pode mesmo tornar-se religião. Quando tudo ao redor do homem oscila, treme, vacila e se obscurece nas longínquas obscuridades do desconhecido; quando o mundo não é mais que ficção e magia, e o universo mais que uma quimera, quando todo o edifício das ideias se desvanece em fumo e todas as realidades em dúvida se convertem, que ponto fixo pode restar ainda ao homem? O coração fiel de uma mulher."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Descrição (para Alfredo Aquino)

Mariana Ianelli
é uma borboleta que voa
com dois ou com um só "l".

Manifesto (para Silvana Guimarães)

Com as unhas e os dentes
que me restarem
defenderei meus poemas
e seu direito de se manifestarem.

Ele (para Tuka Tucah)

Se for escrever uma crônica, nunca cite um gato no início, a menos que esteja disposto a falar dele até o último parágrafo. Um gato nunca pode ser senão o protagonista.

Cautela

Assim como certos remédios, alguns verbos, como morrer e matar, deveriam vir com tarja preta.

Base

Um poeta há de estar preparado para interpretar ao menos o que lhe dizem as flores, a brisa e os pássaros.

Trecho de "Lotte & Zweig", de Deonísio da Silva

"O fato é que todos nós temos um objetivo invisível, e é para lá que rumamos. Precisamos descobrir qual é esse objetivo e, se for o caso, alterá-lo."

(Edição da LeYa.)

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Soneto da proximidade, com toques de Onan (versão final)

Eu sou aquele que teve
A sorte grande na mão
Mas pecou por omissão
E prêmio nenhum obteve.

Eu sou o tolo, o bufão,
Que a um passo da glória esteve
Mas a um passo se deteve
E à glória disse que não.

Nunca tive a melhor fase,
Sempre estive perto, ou quase,
Sempre nas imediações.

Rocei a mão por esse ouro
Que constitui teu tesouro
Mais vezes do que supões.

Ressalva

Dizem que sou presunçoso
E que é colossal meu ego.
Talvez por ser preguiçoso,
Nada refuto nem nego.

Plano

Tornar-se cada dia mais fraco, para que, quando vier, a Morte não tenha problemas com o transporte.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Colocar em Mario Quintana o fardão da academia seria como engaiolar um passarinho.

Compromisso

Escrevo ainda para pagar a promessa que fiz a um menino, há sete décadas. Sei - e ele me diria, se me encontrasse - que eu poderia tê-la cumprido com mais brilho. Mas ele também é em parte culpado. Poderia ter suspeitado que eu, também um menino na época, não merecia ser levado tão a sério.

Na real

O maior problema de um poeta, quando morre, é acostumar-se a não tratar mais as estrelas como metáforas.

Um trecho de Hugo Almeida

"Abrirei mão de tudo. Deixarei essa cidade imóvel. Conforto, dinheiro do pai, família, tudo abandonarei. Você, com seus desenhos, será testemunha da minha juventude, só. Seu marido? Um funcionário de sapataria ou cartório. Filhos chorando. Adeus, arte, sonhos. Vejo o mar, jangadas são pontos no horizonte infinito. Ando pelo cais. Fora da barra, um longo navio fundeado. O piscar do farol, à noite, é convite, certeza de partida. Vou navegar os mares, desembarcar em todos os portos. Explorar todas as baías. Marinheiro de mil viagens. Um dia, voltarei, livre, livre, rodeado de glórias."

(Do conto "O canto do sonho", do livro Nove, novena - variações, edição da Olho Dágua.)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Soneto que pergunta o que é poesia (versão final)

Poesia, diga se nós
Poetamos ou  blablablamos,
Cantamos ou descantamos,
Se é digna ou não nossa voz.

Nos diga sem divagar,
Se orgulhar-nos nós devemos
Do ofício que recebemos
Ou o devemos deixar.

Nós a louvamos, poesia,
A amamos e a proclamamos
Nosso pão de cada dia.

Acertamos, afinal,
Ou será que nós erramos
E és um veneno mortal?

A situação

A coisa não vai tão mal.
Ganhou hoje na funerária
Uma distinção quase honorária:
O cartão de cliente preferencial.

Paz

No céu tudo será brando:
as harpas emudecidas,
o som dos mortos rezando.

Saldo

Se do que nós quisemos,
Em nosso anseio de ter,
De tudo nada obtivemos.
De que nos valeu querer?

O pardal e a arara (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

A retórica e a retumbância não são a poesia. Só depois que o último estardalhaço da arara sai de cena é que se pode ouvir o pardal. Por ele, pelos seus pios quase inaudíveis, é que costuma se proclamar a poesia.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Os leitores querem - e precisam - acreditar na pureza de alma dos poetas. Em Mario Quintana isso era mais do que fácil: bastava olhá-lo.

Conhecimento

Eu sei, de fonte segura,
que o amor não tem compaixão
e a paixão não tem cura.

O drama

O drama de querermos fazer literatura é sabermos, já aos dezoito anos, que Shakespeare é inatingível. Tudo que se escreve depois disso é absolutamente inútil.

Colossal (para o Verissimo)

Isto é que é erro:
o casal de elefantes
chorando a morte de um bezerro.

Mau sinal

Se você jamais quis ser Shakespeare, você talvez seja sensato demais para ser escritor.

Mais um trecho de "Carta a D", de André Gorz

"Você dizia que tinha se unido a alguém que não podia viver sem escrever, e sabia que quem ser escritor precisa se isolar, tomar notas a qualquer hora do dia ou da noite; que seu trabalho com a linguagem continua mesmo depois de largar o lápis, e pode inesperadamente se apossar dele, bem no meio de uma refeição ou de uma conversa."

(Tradução de Celso Azzan Jr., edição da Cosac & Naify.)

domingo, 4 de dezembro de 2016

O que sou (para Silvana Guimarães)

Sou lento, lerdo, conservador. Tenho o DNA de uma mula. Há sessenta anos escrevo algo que chamo de poesia e só agora começo a assimilar mudanças que, estabelecidas há um século, já foram substituídas por outras tantas. Sou um soneto empacado, zurrando para a lua. Esta seria uma boa inscrição tumular, se eu viesse a ter uma.

Para Wislawa (versão final)

Alguns gostam de poesia.
Se fossem a uma reunião,
O número excederia
Os cinco dedos da mão.

Na Rubem

Hoje na revista Rubem falo de um furúnculo lírico e de outras aberrações que meu cérebro é especialista em conceber. (www.rubem.wordpress.com).

Dores (para Raquel Alice)

Algumas dores afetam o corpo. São as que se purgam com as lágrimas. As da alma, quem há de atrever-se a avaliá-las?

Pioneiro

O primeiro poeta que rimou amor e dor sabia do que estava falando, mas não devia ter dito.

O amor no espelho

Incumbimos o ser amado de ser o que nele gostaríamos de ver de mais belo. Exageramos tanto nisso, buscamos tanto a perfeição que o ser amado só não nos decepcionará se adquirir feição divina. Ele nos frustra, claro, e dizemos, então, que o amor nos mata. É, penso, um modo que encontramos de nos matar como se outra pessoa o fizesse.

Um trecho de "Carta a D", de André Gorz

"Estar completamente apaixonado pela primeira vez, ser amado de volta, era aparentemente banal demais, e privado demais, comum demais: não era uma matéria apropriada para me fazer atingir o universal. Um amor naufragado, impossível, isso sim, ao contrário, rende a nobre literatura. Fico à vontade na estética do fracasso e da aniquilação, não na do êxito e da afirmação. Preciso me erguer acima de mim e de você, à nossa custa, à sua custa, por meio de considerações que ultrapassam nossas pessoas singulares."

(Tradução de Celso Azzan Jr., edição da Cosac & Naify.)

sábado, 3 de dezembro de 2016

Quem?

Quem há de dar-nos consolo?
Contamos a nossa dor,
Dizemos que foi o amor,
E escarnecem: tolo, tolo.

Dupla ação

Sem interromper
o prazer de engoli-lo
o amor começa a verter
lágrimas de crocodilo.

Tempo (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Uma das coisas que mais rapidamente envelhecem são as novas ortographias.

Atitude

Os rancorosos não merecem a bênção do amor. Porque é da natureza deste deixar em nosso corpo e em nossa alma as marcas da sua posse. Devemos cultivá-las como se nelas fossem nascer rosas. Jamais tomá-las como exortações à vingança.

Pauta

Quando você for transcrever as declarações de um bem-te-vi, escolha a sua melhor caneta e cuide para que a brisa, com sus pretensões de poeta, não o induza a erro.

Um trecho de "Carta a D", de André Gorz

"Era isso: você havia me dado a possibilidade de escapar de mim mesmo e de me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera a notícia. Com você, eu podia deixar de férias a minha realidade."

(Tradução de Celso Azzan Jr., edição da Cosac Naify.)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

No portal

Hoje no Estadão falo de deuses e de como devemos tratar com eles (www.estadao.com.br)

A mais

Se o amor for mesmo uma calamidade, como se diz, merece também que se diga ser a mais desejada de todas.

Ajuste

Que cada um saiba
que tamanho tem seu amor
e que tamanho seu coração.
Pode ser que o amor caiba no coração,
pode ser que não.

O dia

Chega sempre o dia em que o amor nos leva para um canto escuro, avisa que vai nos fazer uma revelação, nos beija com todas as línguas e, acendendo repentinamente a luz, nos mostra, no meio de uma gargalhada, sua boca sem nenhum dente e seu rosto de bruxa da Branca de Neve.

Tal qual

Há fantasmas que tossem e capengam como sonetos tuberculosos.

SOS (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

A caridade pública recolheu os sonetos pelas ruas e os levou a um asilo. Alguns eram tão velhos que rimavam saudade com quem há de...

Bazófia

Mentem os velhinhos que dizem carregar o mundo nas costas. Estas não aguentam mais uma palha.

Paixão antiga

Aos doze ou treze anos, eu já amava tresloucadamente a poesia. Nessa época, era um amor correspondido.

O que é

A morte não é
Uma questão de filosofia.
É uma questão de tempo.

Procuração

Se eu quiser absolver-me pela poesia, terei de recorrer à alheia.

Gancho

Exponho meu coração
como um açougueiro
um rim um fígado um pulmão.

Cotação do dia

Escrever é um modo que arranjei de ir morrendo aos poucos.

Assim

Que enquanto estivermos vivos
Tenhamos um só senhor,
Que seu nome seja Amor,
E nós, seus dóceis cativos.

De Mariana Ianelli sobre Leonard Cohen

(...)"Leonard Cohen está sentado debaixo de uma janela onde a luz é intensa. Está muito perto das coisas que perdeu e sabe que não terá de perdê-las novamente. É esse homem que melhor se sente quanto menos sabem quem é. Este que agora sobe ao palco para cantar, no auge dos seus setenta e seis anos, com seu chapéu de feltro e seu terno impecável, provando que ainda existe neste mundo uma nota de elegância. Que ainda existe alguém que sente e pensa com elegância. Isso ele nos diz sem palavras, com um sorriso de doçura, apenas."  (30/04/2011)

(Do livro Para aqueles a quem os dias são um sopro, edições ardotempo.)









quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Se

O amor é aquele último colete que, se tivesse sido lançado...

Cotação do dia

Poetas velhos
poetas diletantes
deixai em paz os amantes.
Os que amam têm já tantos problemas.
Poupai-os de vossos poemas.

Cotação do dia

Em nossos lábios, a palavra amor murcha sem esperança.

Brinde

No sofá adquirido na loja de móveis usados, um tesouro pelo qual não se cobrou nada: o desenho deixado no veludo pelas garras de um gato em seus exercícios de alongamento.

Linhagem

Às vezes, a única aristocracia que um homem tem é o seu gato no sofá.

Aprendizado

O pouco que sei aprendi nos livros. Nem a melancolia eu posso considerar como um legado da sofrida alma polonesa.

Talvez só

O sofrimento de certas almas, quando devastadas pelo amor, não há palavras que possam exprimi-lo. Talvez só o som agudo, agudíssimo de um violino chorando por uma infanta defunta.

O essencial

Se o amor não fizer sofrer, há de ser despedido por justa causa. Agradinhos, beijoquinhas e lambidelas qualquer um encontra em qualquer esquina.

Um poema de Manoel de Barros

"Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.
Sou formado em desencontros.
A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).
(E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa antítese o acalmou.)

As antíteses congraçam."

(De Poesia completa, edição da LeYa.)

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Bola de cristal

Quando ele dizia que logo estaria morto, o que se lia nos seus olhos era o mais profundo, honesto e inequívoco otimismo.

Soneto dos fantasmas que me atormentam (versão final)

Enquanto durmo não sei
Nem quero saber de Dante,
De Tolstói, Cabrera Infante,
De Scott e nem de Hemingway.

Enquanto durmo, eu espaços
Não abro para Flaubert,
Para Pascal ou Voltaire,
E nem para John dos Passos.

Enquanto durmo, eu me isento
Do inenarrável tormento
Que impõe a literatura.

Mas quando acordo vêm Eça,
Machado, Agustina Bessa,
E recomeça a tortura.

Personagens, quase parentes

Tenho saudade dos anos em que escrevi novelas juvenis para a coleção Vaga-Lume, da Ática. Que experiência era criar os personagens, traçar-lhes o perfil, fazê-los agir de acordo com a trama e, como um pai, esmerar-me para que tanto meus "filhos" vilões quanto os heróis fossem os melhores vilões e os melhores heróis. Alegravam-me seus sucessos e abatiam-me seus fracassos. Temia magoá-los. A personagem que teve o mais imprevisto destino foi uma velhota cujo papel seria a princípio tão fortuito que um parágrafo ou dois lhe bastariam. Sua simpatia a levou a ganhar um espaço bem maior, um nome (estava inicialmente destinada a ser anônima) e, por um mérito que ela surpreendentemente me impôs, depois de encantar outros personagens, se tornou uma espécie de chave para a compreensão do livro. Sempre que me lembro dessa velhinha do meu livro Um inimigo em cada esquina me vem também à memória a peça Seis personagens à procura de um autor, de Pirandello, na qual se pode ver que, ao contrário do que se costuma imaginar, um autor está longe de ter nas mãos o controle total do que escreve.

Cotação do dia

Tantos lugares onde o amor poderia agonizar... Precisava ser na minha alma, e tão dolorosamente?

Pauta

Que não seja amor o assunto.
Já se gastou vela demais
Com tal defunto.

Soneto do bem-viver (para Celina Portocarrero, Liberato Vieira da Cunha e Mariana Ianelli)

Se houvéssemos compreendido,
Desistiríamos já
De buscar algum sentido
Onde nenhum sentido há.

De onde viemos, aonde vamos,
De que nos vale saber?
Que bem viver nós saibamos
E que deixemos viver.

Nem a brisa se preocupa
E nem a rosa se ocupa
Em conhecer de onde vêm

Ou aonde depois irão.
Se amam, se tocam, se dão,
Como lhes cabe e convém.

De Mariana Ianelli sobre Mario Quintana

"Íntimo de histórias bíblicas, da Torre de Babel, da vida de Caim, da Arca da Aliança, do Apocalipse, Quintana fez desfilar por seus poemas uma multidão de anjos: anjos da guarda, gloriosos, molhados, depenados, boêmios, dentuços, rechonchudos, anjos de pedra, anjos sonâmbulos galgando degraus, atravessando espelhos, o Anjo Rebelado, o Anjo das Tempestades, o Anjo da Encarnação, o Anjo das Últimas Queixas. Ele sabia que o que não estava na Bíblia estava em Shakespeare. Que aos olhos de Deus cada um tem o tamanho de um universo. Que não existem poetas pequenos ou grandes, que cada poeta é o único rei do país de si mesmo. Que o refinamento da simplicidade só vem com o tempo e numa poesia feita de relógios sem ponteiros. Que todos nós temos todas as nossas idades ao mesmo tempo."

(De Para aqueles a quem os dias são um sopro, edição da ardotempo.)

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Estadão (para Patricia Maria Mesquita)

Hoje não sei. Mas, por volta de 1960, o primeiro lugar onde o sol aparecia em São Paulo era a rua Major Quedinho, para saber as últimas notícias, ver a hora no relógio do topo do prédio e dar mais uma espiada no mural de Di Cavalcanti.

Reverência

Naquele tempo, tu lembras, eu sabia curvar-me gentilmente, como convinha a um cavalheiro com alguma esperança, ainda que estivesse diante de uma mulher inalcançável como uma rainha. Hoje o tempo e os infortúnios me curvaram de tal forma que me perdoarás se no gesto com que te reverencio vires semelhança com um boi que, de tanto ver adiada sua ida ao matadouro, se mantém já pronto, como se afinal tivesse chegado o dia.

Dez anos

Sempre que chega o carteiro, o Velho faz a mesma pergunta:
"Alguma carta de Estocolmo?"
Há dez anos a resposta do carteiro é:
"Não."
Há dez anos o Velho se lamenta:
"O Nobel me esqueceu."
"Quem sabe amanhã", sugere o carteiro.
"Eu já estou perdendo a esperança."

Perfil

O amor tem tronco, membros e uma cabeça completamente disparatada.

Autoria

O Velho pede à neta de dez anos que abra o google:
"Vê aí se fui eu que escrevi Romeu e Julieta."
"O quê?"
"Põe aí Romeu e Julieta. Pôs? Tem o nome do  autor?"
"Do autor? Tem aqui um William."
"William?"
"É. William Sha... Sha... Que nome estranho."
"Não sou eu. Curioso, eu tinha certeza de que..."

Persistência

Hoje, de supetão, o Velho avisou que vai ser escritor. Se não tivesse morrido, a mãe lhe diria o que disse quarenta anos atrás: vai, sim, menino. E lhe apertaria a bochecha: meu lindo.

Um poema de Lu Xun (1881-1936)

"A gente do comum sombria enterra o rosto nestes matos
E quem se atreve a cantar um lamento que à terra comova
Quando se atira o coração para o espaço todo preencher
É nesse silêncio mortal que se ouve o estrondo do trovão."

(De Uma antologia de poetas chineses, tradução Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Cotação do dia (2)

A percepção de que, por pior que sejas, haverá sempre alguém capaz de te superar. Não é um alívio, mas não deixa de ser um consolo.

Cotação do dia

Uma sensação antecipada de desforra. Apalpo os braços e sorrio: a morte não levará nada que preste.

Sentimento

O Velho anda sentimental. Chora por qualquer coisa e por coisa nenhuma. Hoje, ficou tão comovido diante de uma rosa que se urinou todo antes de chorar.

A verdade

Quando o Velho diz a palavra amor, seus lábios, sem que ele perceba, armam um sorriso que é ao mesmo tempo de ironia e compaixão.

Dura lex

Beleza não se define, felizmente. Se fosse possível resumi-la em três ou quatro parágrafos, haveria toda uma súcia de cretinos analisando poemas, horizontes e catedrais de acordo com as alíneas, os incisos e as demais minúcias do texto legal.

Mario Quintana

Mario Quintana não precisava de nenhum método. Bastava-lhe a predisposição que têm os pássaros para acolher a beleza e com modéstia reverberá-la.

Estilo

Aos leitores só peço que acreditem numa coisa: escrevo com a alma. Com esta alma que tenho, não aquela de que precisaria para ser um escritor verdadeiramente grande. Mas escrevo com toda ela, toda, toda, e com este coração que bate apaixonadamente em cada sílaba quando digo toda, toda, toda.

Cinzas

Gostaria que, com meu corpo, fosse queimada uma folha de caderno com uma frase, escrita com caneta: "Foi um homem que escreveu." Assim, só isso. Sem nenhum advérbio.

Delicadeza

Que nossa derradeira manifestação na terra seja um suspiro no qual ninguém consiga distinguir nem queixa nem alívio, um suspiro que não encubra nem o pio de um passarinho recém-nascido nem a sílaba inicial da primeira brisa da primavera.

Detalhe

Quem não conhece o doce jugo do amor não deveria se proclamar tão feliz com sua liberdade.

Requerimento

Pelo presente, os escravizados pelo amor solicitam o direito de, vivos ou mortos, serem chamados de bem-aventurados idiotas.

"Conselho para um jovem no ano 2064 D.C.", de Charles Bukowski

"permita-me falar como um amigo
ainda que os séculos se ponham
entre nós e nem você nem eu
possa ver a lua.

tenha menos cuidado com a cebola cegando o olho
ou com a cobra picando
ou com a barata dominando a casa
ou com o amante a sua esposa
ou com o governo o seu filho
ou com o vinho a sua vontade
ou com o médico o seu coração
ou com o açougueiro a sua barriga
ou com o gato a sua cadeira
ou com o advogado o seu desconhecimento da lei
ou com a lei vestida de homem fardado e te matando.

rejeite a perfeição como uma dor dos
gananciosos
mas não se renda à modéstia comum da
fácil imperfeição.

e lembre-se
que a barriga da baleia está cheia de
grandes homens."

(De Amor é tudo que nós dissemos que não era, publicação da LeYa.)


domingo, 27 de novembro de 2016

Exceção

Só a um ser muito amado, como o Corinthians, se pode dar o direito de estragar assim os nossos fins de semana.

Proporções

Sou pequeno demais para o amor. Ele me preencheu em alguns dias, em alguns meses, e passou a me olhar com o desprezo e a forçada comiseração com que uma estrela olha para uma pedra lá embaixo, ou um cachorro num jardim.

O amor, quando incomensurável

O amor às vezes se torna grande demais, incontrolável demais. É quando ele merece o nome e se distingue desses afetos tolos que tentam imitá-lo, essas flores de plástico querendo fazer-se passar por girassóis numa lojinha de periferia.

Urgência

Quando Ismália enlouqueceu, os parentes vasculharam a torre, à procura de carteirinha do convênio.

Um jovem de futuro

Num dia de 1980, 12 de maio, ele se lembra bem, seu nome apareceu numa nota de quinze linhas num suplemento literário. A última frase dizia que ele era um jovem de futuro. Ele, naturalmente, se empenhou ainda mais em escrever. Mas nunca mais, em lugar nenhum, foram publicadas sobre ele quinze linhas tão lisonjeiras quanto aquelas.

Razão de viver

Provem-me, à meia-noite e cinco, que a beleza não existe, e eu não me importarei em morrer à meia-noite e seis.

Hobby

Ao chegar à meia-idade, preferiu o amor às palavras cruzadas. Seus olhos estavam fracos, já não distinguiam bem as letras, mas suas mãos, embora não fossem mais tão hábeis, tinham em Magda uma superfície corporal cuja beleza e amplidão era impossível ignorar.

Monarcas

O amor é um desses brinquedos da infância que trazemos para a vida adulta. As rusgas entre os amantes, as separações, os reatamentos, não são nada além de extensões daqueles jogos em que, meninos e meninas, nos exercitávamos para estar prontos quando chegasse a época na qual nos caberia dominar o mundo.

As cartas na gaveta

Não tem mexido mais na gaveta onde estão as cartas que recebeu da amada há cinco anos. Na última vez em que a abriu, há uma semana, dela haviam escapado duas borboletas e, ao contar as cartas, ele notara que já não eram dezessete, mas quinze. Mantém agora a gaveta fechada como um túmulo. Quando passa perto dela, ouve sempre um bulício que não parece o de cartas, mas o de asas. São as borboletas nutrindo-se das palavras, decerto. Quando o ruído lhe avisar que elas estão prontas, ele soltará as borboletas. Que melhor destino pode haver para cartas de amor?

"A.B. do R.", de Manoel de Barros

"Arthur Bispo do Rosário se proclamava Jesus. Sua obra era ardente de restos: estandartes podres, lençóis encardidos, botões cariados, objetos mumificados, fardões da Academia, Miss Brasil, suspensórios de doutores - coisas apropriadas ao abandono. Descobri entre seus objetos um buquê de pedras com flor. Esse Arthur Bispo do Rosário acreditava em nada e em Deus."

(De Poesia completa, publicação da LeYa.)

sábado, 26 de novembro de 2016

Tesouro

Um lacaio que tem como melhor recordação um garfo e uma faca de prata furtados num jantar à luz de velas que serviu a um dos 365 amantes anuais da rainha.

Mea-culpa

Não escrevo para viver. Talvez escreva para não morrer. Seja como for, sinto, com indescartável remorso, que no meu caso o ato da escrita traz mais benefícios a mim do que a eventuais leitores.

Modo de dizer

De uma poesia, assim como de uma mulher, nunca se deve dizer que é feiosa; no máximo, feiosinha.

Coincidência

Morrer é um acidente fatal justamente no fim do percurso.

Uma frase de Manoel de Barros

"Pois o que disse Joyce foi que o arame farpado quem inventou foi uma freira, para amarrar na cintura dela quando viesse a tentação."

(De Poesia completa, Editora LeYa.)

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Desgraça (para o Xico Sá)

Oh tempora! Oh mores! Quem te fez forte assim, brasileiro? Morrem as esperanças, morre tudo, só tu não morres!

Risco (para Paola Mayora Megliora)

Dizer amor é arriscar-se a ouvir a boca perguntar por que não são tão belas todas as outras palavras.

Só ele

Um homem possuído pelo amor é um louco clamando no deserto. Só ele vê as fontes, as rosas e as borboletas.

Fantasia

Que venturosa loucura é a do amor. Hoje uma recordação bem antiga da amada me fez feliz como um menino soprando bolhas de sabão. Por que não as soprei quando ela estava ao meu alcance e seus dedos receberiam as bolhas como uma dádiva?

Sonho

Ele sonha que ela mastiga rosas e vai cuspindo o sumo numa xícara. Quando ela lhe estende a xícara, ele está transformado num sedento bem-te-vi.

Covardia

Comi tanto tempo da mão do amor e nunca tive a ousadia de bicá-la. Talvez os outros tenham tido, esses que hoje sorriem para a manhã, para o sol, para o mundo. Sonho com dedos que maciamente me estrangulam.

Quando

Quando escrevia para a amada, era como se os seus dedos estivessem sendo picados pelos espinhos de uma rosa adepta de dramas que insistia em transformar em vermelho o azul dos versos.

Uns poucos

Morrer pelo amor é um desses desatinos que só os que vivem pelo amor são capazes de cometer.

Ficha

No arquivo que o amor tem no seu escritório, é sempre belo nosso rosto na foto, tirada sob o encanto dos primeiros dias, quando ele não havia nos submetido ainda ao ferro do seu rancor.

Resumo

Quando vejo no espelho este rosto devastado pelo amor lamento minha tolice, mas exalto minha honestidade.

In extremis

Insensato não é quem ama até à própria aniquilação; é quem não.

Uma rosa são três

Hoje, no portal do Estadão, conto três histórias que têm rosas como protagonistas (www.estadao.com.br).

Malévola

Para poder dizer-se minha única amada
a poesia matou
minha vida a bicadas.

Dádiva

Se é bela a rainha
é bom tudo que vem de sua mão -
até o pão murcho do vassalo.

Filosofia

Pergunte a uma lesma
que se arrasta na parede
o que ela pensa da eternidade.

Emergência (para o Gianluca e a Nicole)

Quando o gato começou a cantar
a família acordou e correu
para a gaiola do sabiá.

Pompa

Caminhamos para o pó
para a extinção
mas com tanta presunção
que é como se cada um de nós
fosse uma versão melhorada
e nunca derrotada
de Napoleão.

"Um bem-te-vi", de Manoel de Barros

"O leve e macio
raio de sol
se põe no rio.
Faz arrebol...

Da árvore evola
amarelo, do alto
bem-te-vi-cartola
e, de um salto

pousa envergado
no bebedouro
a banhar seu louro

pelo enramado...
De arrepio, na cerca
já se abriu, e seca."

(De Poesia completa, edição da LeYa.)


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Linguagem

Na tua boca
mesmo quando nada ela me diz
vejo a ondulação
do indesmentível til
da palavra não.

Pombas

Depois que a primeira pomba despertada
acordou as demais
Raimundo Correia não conseguiu dormir mais.

Prima-dona

A pata velha
embriagada de sol
grasna como um rouxinol.

"Gertrude subindo a escada, 1943", de Charles Bukowski

"penso em Gertrude subindo aquela escada
em St. Louis
há muitos anos
e eu bem atrás dela
um garoto ainda.
penso em Gertrude subindo aquela escada
em St. Louis
e nenhuma escada tão promissora quanto
aquela
com as imagens de Jesus da proprietária
recortadas de revistas baratas
pragadas aqui e ali
pelas paredes.
penso em mim mesmo subindo aquela escada
em St. Louis
atrás da Gertrude
e a caminho de seu quarto
entrando lá
a porta fechando firme atrás de nós
ela servindo o claret
em taças altas e finas
naquela pensão sombria
perto daquele parque enorme
com suas árvores desfolhadas do inverno.
parada naquele lugar
Gertrude parecia tão adorável
tão perfeita
uma jovem além da mera juventude
uma imagem envolta em um sonho
perfeito
e enquanto
estava parada lá na minha frente
finalmente ela ficou
perfeita demais:
eu virei meu claret e pedi licença pra
sair
sabendo que
seguir Gertrude até o alto daquela escada
em St. Louis
por si só
já bastava
esse foi
o nosso grande momento juntos
e tudo o que se seguiu
seria menos
menos
e eu queria me lembrar dela desse
jeito: em seu momento perfeito
antes que ela se cansasse do jogo e
nós um do
outro."

(De Amor é tudo que nós dissemos que não era, tradução de Fernando Koproski, edição da 7 Letras.)



quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Lema

Não envelheça. Na vida
Não há nenhuma virtude
Mais desejada e querida,
Nem maior que a juventude.

Licença para matar

Do que iremos nós queixar-nos
Se ao amor nos entregamos,
Carta branca lhe outorgamos
E o amor resolveu matar-nos?

Má sorte

Com que má vontade
me farão companhia
as flores no meu último dia.

Carimbo

Se a última palavra que disseres for amor, confirmarás, em alto estilo, o que pensam de ti: sempre foste um tolo.

Soneto do antigo jogo

Com o tempo já a se escoar,
Sei que nem mais alegrias
Nem recompensas tardias
Eu devo agora esperar.

Esgotam-se já os dias
E quando o último passar
Verei o tempo chegar
Das noites longas e frias.

Desse modo resumida
Em metáforas mofadas,
Parece um brinquedo a vida.

Mas a fúria já provou
Das suas garras afiadas
Quem com ela um dia brincou.

Um poema de Hilda Hilst

"As mães não querem mais filhos poetas.

A esterilidade dos poemas.
A vida velha que vivemos.
Os homens que nos esperam sem versos.
O amor que não chega.
As horas que não dormimos.
As ilusões que não temos.

As mães não querem mais filhos poetas.

Deram o grito
desesperado
das mães do mundo."

(De Baladas, Editora Globo.)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Revisão (para Marisa Lajolo)

Sim, Monteiro Lobato
foi quem me viciou assim
na alegria
e na fantasia
com o pó de pirlimpimpim.

Proclamação

Nada de falsa modéstia. Devo ter a coragem, a honra e a honestidade de dizer o que sou: tolo, inútil, perverso, invejoso e mais um sem-número de indignidades que os outros insistem em não reconhecer em si mesmos, embora elas sejam, assim como as virtudes, indesmentíveis traços de humanidade.

Patrulha

Os críticos das redes sociais não nos deixam celebrar o que temos de melhor: nossa aptidão para o fracasso. Querem que nos unamos às gargalhadas com que tentam convencer-nos de que o sol e as manhãs nunca mentem.

Honraria

No banquete final
será tua a melhor fatia
cortada pelo Amor
do teu corpo
e ofertada
bem condimentada
àquele que é agora
como tu foste outrora
o principal comensal.

Mérito

Em materiais de construção
o poeta concretista
tem vinte por cento de dedução
se o pagamento for a vista.

Lição

Ensinou-nos Drummond
que a rima num poema
pode ser mais um problema
do que uma solução.

"Pedreira", de Paul Auster

"Não mais que seu canto. Como se
o canto e só
nos tivesse trazido até aqui.

Estivemos aqui, e nunca estivemos aqui.
Estivemos a caminho de onde começamos,
e estivemos perdidos.

Não há fronteiras
na luz. E a terra
não nos deixa palavra
por contar. Pois o desmoronamento da terra
sob os pés

já é música, e andar entre essas pedras
é nada ouvir
além de nós.

Canto portanto o nada,

como se fosse o lugar
a que não volto -

e se vier a voltar, então conta minha vida
nessas pedras: esquece

que jamais estive aqui. O mundo
que caminha em mim

é um mundo além do alcance."

(De  Os melhores poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)




segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Nu e cru

Eufemismo é ver
o rei nu
e elogiar a cueca
que deveria estar
mas não está
cobrindo seu pinto
e seu cu.

Soneto do medíocre morituro

Por mais que tente ou que faça,
Eu jamais conseguirei,
Por meu destino ou desgraça,
Ser aquilo que almejei.

Sei que a paga a mim devida,
Por minha inépcia ou má sorte
É ser inútil na vida
E desprezível na morte.

Não vim pedir compaixão,
Não há para isso razão,
É fato mais que comum.

Gente assim como eu há
Que nasceu e morrerá
Sem deixar sinal algum.

Na dele

Farmacêutico, ele não
se põe em forma;
põe-se em fórmula.

Híbrido

Enquanto houver chance
que te amo direi e repetirei -
e honni soit qui mal y pense.

Carteirinha

Em materiais de construção
o poeta concretista
tem vinte por cento de dedução
se pagar a vista.

Lição

Ensinou Drummond
que a rima num poema
pode ser mais um problema
que uma solução.

Um poema de Lawrence Ferlinghetti

"Não deixe esse cavalo
comer o violino
reclamava a mãe de Chagall
Mas ele
prosseguiu
pintando
E ficou famoso
e permaneceu pintando
O Cavalo com o Violino na Boca

E quando finalmente finalizou-o
saltou sobre o cavalo
e caiu fora
acenando com o violino
E então com uma longa reverência entregou-o
ao primeiro nu despido pelo qual cruzou

Sem cordas atadas."

(Tradução de Eduardo Bueno, poema extraído de Um parque de diversões da cabeça, edição da L&PM.)

domingo, 20 de novembro de 2016

Ruth Manus

É cada vez mais difícil encontrar uma crônica isenta da pretensão de ser ensaio. A proporção é uma em trinta. A de hoje, de Ruth Manus no Estadão, é uma dessas, raríssimas, que saúdo com entusiasmo, lamentando não ter chapéu para tirá-lo.

Meu Brasil gatuneiro

Há quem diga
que não faz diferença
uma arroba, mas faz.

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Se estrelas se plantam, esse deve ser o atual trabalho de Mario Quintana, lá em cima.

Confiança

Sem ter outro confidente
ela confessa tudo
ao seu criado-mudo.

Paradoxo

Por uma dessas razões não explicadas
as partes pudendas são sempre
as mais despudoradas.

Classe

Depois do banquete o vampiro
eructou vampirescamente
e limpou a boca com o papiro.

Hoje, na Revista Rubem

Hoje falo de vivências como a morte (presente em cada um de nossos dias).
www.rubem.wordpress.com.

Mais Henri-Frédéric Amiel, com reverências

"Vi quanto eu tenho mudado desde uma dezena de anos, e como a volúpia ou a curiosidade dos sentidos aumentou de influência sobre mim. Escrúpulos e repugnâncias se afastaram, e a sensualidade da imaginação substituiu a hipocrisia puritana."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações, Livraria e Distribuidora Ltda.)

sábado, 19 de novembro de 2016

Dique

No meio do caminho tinha uma vírgula. Logo depois, outra. Em seguida, mais uma. e mais outra. Vendo que o texto não fluía, o escritor irritou-se e pôs ponto-final.

Sazonal

Amor, quer seja nos junhos,
Nos julhos ou nos agostos,
Não nos negas infortúnios,
Nem pesares nem desgostos.

Resgate (para Celina Portocarrero)

Depois da chuva, ele vai ao jardim recolher as flores que, derrubadas pelos pingos, se transformaram em haicais. Precisa chegar rápido, antes que a brisa brincalhona os nomeie barcos e os faça navegar na enxurrada.

Noblesse oblige

As primeiras quatro palavras que alguém diz antes de nos desrespeitar são: "Com todo o respeito."

CLT

Um choque de realidade:
meu amigo imaginário
me cobra sem piedade
sessenta e tantos anos de salário
e de auxílio-amizade.

Mais um trecho de Henri-Frédéric Amiel

"A felicidade mais direta e mais segura para mim é o convívio com as mulheres. Nesse meio, eu me dilato imediatamente como um peixe na água, como um pássaro no ar. Em suma, é o meu elemento natural e nós nos entendemos reciprocamente às mil maravilhas. É a recompensa à minha longa timidez ante o sexo? É uma espécie de eletricidade por indução? Sempre acontece que a teoria cavalheiresca se realiza para mim e o atrativo feminino me eletriza, exalta em mim todas as faculdades desinteressadas. Não desejo absolutamente conquistar e apropriar-me, mas sinto-me desabrochar e irradiar por amor geral, por pura simpatia, e então a verve flui em mim."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicado pela É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

No portal do Estadão (www.estadao.com.br)

Hoje falo do sexo, dedico-lhe uma ode, para me redimir do meu risível passado romântico.

Soneto do vassalo

Eu sou aquele bufão
Que durante o teu reinado
Se teve alguma função
Foi a de fazer-te agrado.

Para livrar-te do enfado,
Rainha do meu coração,
Fui ridicularizado,
Afundei-me na abjeção.

Quanta dor, tanta agonia...
Por que não morri no dia,
Minha querida, minha ama,

Em que precisei levar
A ti e àquele teu par
Café da manhã na cama?

Inverossimilhança

Nos poetas velhos, palavras como felicidade, amor e esperança soam como obscenidades. Quem há de acreditar nelas, pronunciadas por aqueles lábios murchos de onde as vogais e as consoantes se desprendem junto com respingos de saliva e restos mal mastigados de carne?

Dores (para Deonísio da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

O que me dói
e me entristece
é não ter sido Tolstói,
nem Tchekhov nem Dostoiévski.

Soneto de quem sonhou ser um rei

O meu destino, já sei,
Não poderei mais mudá-lo.
Sonhando tornar-me rei,
Jamais passei de vassalo.

Empenhar-me eu me empenhei,
Ninguém poderá negá-lo,
Porém falhei, e falhei
Muito mais do que vos falo.

Apesar do que sofri,
Até hoje jamais ouvi
Ninguém me chamar de alteza.

Lacaio, pego um pano,
Beijo a mão do soberano
E limpo-lhe toda a mesa.

Um trecho de Henri-Frédéric Amiel

"Como é duro envelhecer, quando se faltou à vida, quando nem a coroa viril nem a coroa paternal se tem! Como é triste sentir baixar a sua inteligência antes de execução de sua obra, e declinar o corpo antes de se ter visto a si mesmo nascer nos que devem cerrar os nossos olhos e honrar o nosso nome! - Como nos fere a trágica solenidade da existência quando ouvimos ao despertar, um dia de manhã, estas lúgubres palavras: 'Demasiado tarde!'

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, É Realizações, Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

De palavra (para o Vitão Guedes)

Cumpri a promessa de torcer pelo Corinthians até a morte. Morri ontem, em Santa Catarina.

De ontem e de agora

Houve época em que os poetas se dispunham a morrer pela literatura. Hoje, preferem viver dela e, em vez de estrelas, falam de direitos autorais e porcentagens.

Modo de ver

Para alguns, a literatura é mais importante que a vida. Para outros, não. Para estes, a literatura é a própria vida.

O certo

A questão nunca é ser mais poético; é sempre ser mais poeta.

Inferioridade

A grande queixa dos pardais
é jamais terem sido chamados
para num poema dizerem nunca mais.

Inspiração

Nove entre dez poetas concretistas dirão que a maior obra de arte de todos os tempos são as pirâmides do Egito.

Habitat

Conforme o poeta
a habitação é diversa:
o parnasiano mora
numa torre de marfim,
o concretista
num castelo de pedra.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Peço à aeromoça algumas revistas ou jornais brasileiros. Ela me traz uma Manchete. Misses, futebol, parece horrível. Então sinto medo. Por trás do cartão-postal imaginado, sol e palmeiras, há um jeito brasileiro que me aterroriza. O deboche, a grossura, o preconceito."

(De Ovelhas negras, edição da L&PM.)

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Soneto do Juízo Final

Amor, no Juízo Final,
O que dirás de tuas culpas,
Quais serão as tuas desculpas,
O que farás, afinal?

Que argumentos usarás,
Quando te forem arguir,
Para virtude atribuir
A todas tuas ações más?

Não te preocupes, não temas,
Não busques estratagemas.
Eu, que tudo teu amei,

Se for chamado a depor,
Podes ficar certo, amor:
Eu não te condenarei.

Carimbo

Escritor, em si, não é mais do que uma palavra, um substantivo sujeito à opinião de um adjetivo. Glória e fracasso, júbilo e desventura dependem desse adjetivo.

Circunstância

A mosca pousa na mão do homem e estranha que nessa vez ela não faça nenhum movimento para afastá-la. Voa e pousa na outra mão, para testá-la. Só então descobre a razão de sua sorte: as mãos estão segurando duas das flores que cercam todo o homem, como se ele fosse um jardim.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas as tentativas de aproximação. Tenho vontade de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso."

(De Ovelhas negras, edição da L&PM.)

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Memória (para Patricia Mesquita)

Na major quedinho
toda manhã
os passos do sol menino
ainda sonolento
chamado pelo cheiro
de jornal quentinho.

Empenho

Um poeta, mesmo aquele que jamais tenha dialogado com uma rosa, deve sempre conservar a esperança.

Flash

Alguns haicais são ardilosos como peixinhos que um garoto tenta apanhar com uma peneira. Parecem estar aprisionados, mas quando a mão miúda vai colhê-los encontra só o reflexo prateado de sua passagem.

Soneto da majestade

Quem conheceu bem o amor,
Como eu vim a conhecer,
Não pode senão dizer:
É um rei, um imperador.

De um imperador, de um rei,
Se alguém falar mal quiser,
Que o faça quando o fizer.
Não serei eu que o farei.

Dele o que posso dizer
Sem a verdade torcer,
É que de mim se cansou

E como com os outros fez
De mim logo se desfez
E aos seus leões me arremessou.

Um poema de Emily Brontë

"Minha alma já não teme coisa alguma,
E a escura tempestade em que sem descanso o mundo
Gira,
Não mais a abalará:
Já vejo a glória dos Céus extasiantes,
E# a fé que resplandece no fogo de sua armadura
Aniquila o mundo no meu ser.

Ó Deus que eu trago dentro de mim,
Deus todo-poderoso, Presença universal!
És a Vida - em meu seio Tu repousas,
E minha eternidade encontra em Ti o seu poder!

Vejo a vaidade em suas múltiplas nuances,
Onde o homem alimenta a força do seu coração:
E vejo esta vaidade e a sua impotência
Fanadas e mortas como a erva dos campos,
Como a espuma louca das vagas no oceano,

Tentando inutilmente reanimar a dúvida,
Quando a alma já está sã e salva,
Aprisionada para sempre a Teu Ser infinito,
Através de uma certeira âncora
Lançada ao rochedo imutável da vida eterna!

Teu sopro, com amor, abraça os espaços
E penetra com sua vida os séculos eternos,
Espalha-se como um rio e cobre o nosso mundo,
Mudando ou preservando as coisas,
Dispersando-as, criando-as, trazendo-as à vida.

E se viesse o fim deste mundo e o fim dos homens,
O fim dos universos, a ruína dos sóis,
Se apenas Tu ficasses,
Serias ao mesmo tempo todas as existências.

A Morte se esforça em vão para achar um espaço,
Mas seu poder não pode aniquilar um átomo sequer.
Tu és o Ser e o Sopro,
Nada poderia abolir as Tuas formas."

(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)



segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Soneto do impossível olvido (versão final)

É triste a noite em que o sono
No qual buscamos a paz
Só nos ilude  e não traz
O desejado abandono.

É triste quando encontramos
No sonho, que não pedimos,
Tudo com que nos destruímos,
Tudo com que nos matamos.

É triste quando, tentando
Nosso tormento esquecer,
Nós o acabamos lembrando.

E como é triste aceitar
Que precisamos morrer
Se quisermos descansar.

Rua Augusta

Seguindo o rapazinho,
o vento assobia com ele
e puxa um fuminho.

Altiva

Por que não te entregas,
por que me faltas,
por que te negas,
poesia, pão meu
gorado de cada dia?

Mario Quintana

De tempos em tempos, a poesia tende a elitizar-se para agradar aos críticos. É em momentos assim que poetas como Mario Quintana são essenciais para dizer que os afetos, as flores e os pássaros não foram proscritos e ressurgirão mais fortes depois de mais uma das tantas tentativas de limitar o que a poesia tem de melhor: o fato de ser arisca a qualquer esforço de medir cientificamente sua linguagem passional e suas metáforas.

Resumo

Eu me decidi pela literatura muito cedo - aos doze anos, se bem me lembro. Tantas décadas depois, tenho consciência de que não fui - e não serei- o extraordinário escritor que pretendi ser. Não importa. Sou o escritor que pude ser e, se me arrependo de alguma coisa, é de não ter me decidido antes e não haver me empenhado mais. Mesmo que eu tivesse sido um escritor pior, o leitor apaixonado que fui, como parte do meu aprendizado, compensaria tudo

Um poema de Emily Brontë

"Oh, a queda das folhas,
A morte lenta das flores,
A sombra sem fim das noites
E o dia esfacelado!

E no entanto cada folha
Fala-me da felicidade,
E voa alegremente
Da velha árvore de outono.

E me verão sorrir
Às coroas de neve,
Às brancas florações
Que devastam as rosas.

E me ouvirão cantar,
Quando a noite desfalecente
Anunciar tristemente
O dia escuro e deserto."

(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)

domingo, 13 de novembro de 2016

Cotação do dia

Perder nos cai bem, sob medida. Já perdemos tanto, sempre, desde o início, que estranharíamos se hoje, terminado o nosso número, fôssemos aplaudidos. Seria como se ferissem nosso direito. Somos únicos no que fazemos. Continuemos como somos. Ninguém melhor que nós sabe desfrutar aqueles momentos em que, como agora, as vaias, os xingamentos e os copos são lançados contra nós, que humildemente nos curvamos para agradecer.

Mau exemplo

Não me tomem como autoridade se eu os aconselhar a viver só enquanto viver o amor. Mereço crédito? É uma ideia antiga que eu tenho, o amor há muito tempo morreu e eu continuo aqui, vivo, lamentavelmente vivo, sordidamente vivo, indefensavelmente vivo.

Mario Quintana

O simples, em Mario Quintana, não era um detalhe ou um acessório. Não era uma modéstia, uma humildade da alma. Era a própria alma, na qual ele ia buscar as flores, os pássaros e as estrelas.

Cidadão

Conquistou o que almejou

Aos poucos se tornou respeitável
depois velho
depois venerável

Na poltrona
em que usufrui
sua merecida modorra
às vezes se descuida
e vai escorregando
para um sonho
em que juntando
a sua a outras vozes juvenis
vai cantando uma musiquinha tosca
de versos pueris
que a memória não esqueceu

Acordando envergonhado
como se além de cantar
tivesse aderido
a outro joguinho infantil
e se masturbado
diz aquele não sou eu
e repete não aquele não sou eu
com a autoridade
que a maturidade lhe deu.

Um parágrafo de Henri-Frédéric Amiel

"A primavera é boa, como o inverno. A  alma deve temperar-se e endurecer-se, deve também abrir-se e distender-se. Respeita cada necessidade nova que apareça em teu coração, é uma revelação, é a voz da natureza, que te desperta para uma nova esfera da existência; é a larva que palpita e pressente a borboleta. Não abafes os teus suspiros, não devores as tuas lágrimas: anunciam uma grandeza desconhecida, ou um tesouro olvidado, ou uma virtude que se afoga e clama por socorro. A dor é boa, porque faz conhecer o bem; o sonho é salutar, porque pressagia uma realidade mais bela; a aspiração é divina, porque profetiza o infinito, e o infinito é Maia, a forma sorridente ou sombria de Deus."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações Editora.)

sábado, 12 de novembro de 2016

Cotação do dia (2)

Que arrependimento, que dor, que tormento lhe traz sempre aquela reflexão - já quase uma convicção - de que estaria bem melhor se tivesse morrido há muito tempo.

Cotação do dia

Se um dia nos procurar a vitória, saberemos que é ela ou nela veremos os mesmos dentes com os quais as derrotas nos atraíram com seus sorrisos para o campo em que sucumbimos pelo amor e ora apodrecemos resignadamente?

Minibiografia

Que brilho há de almejar quem
Nasceu tíbio, tênue, fraco,
Fosco, obscuro, baço, opaco,
E continuou ninguém?

Ressentimento

De quem era aquela voz
E quem ela procurava
Quando tão terna chamava?
Por que não éramos nós?

Vida (para Silvana Guimarães)

Frente e verso
a mesma impressão
borrões lacunas
imagens fugidias
dores exageradamente entintadas
apagadas alegrias
tudo sinônimo de nada
nada estimulando
novas impressões
e segundas vias.

Um trecho de Henri-Frédéric Amiel

"Jamais pude pronunciar uma palavra desonesta a uma mulher, e me são precisos ainda esforços para não enrubescer quando outros a pronunciam. Corei muito mais vezes pelos outros, em lugar dos outros, do que por mim mesmo; a testemunha é que ficava embaraçada. Essa timidez tola deixa-me ainda arrependimentos: mais lastimo alguns beijos que poderia, deveria mesmo ter dado, em Estocolmo, em Cherburgo e em outros lugares, do que algumas ações condenáveis. Estas recordações de uma voluptuosidade casta me são caras; têm mais perfume para mim, do que, sem dúvida, a posse completa, para um libertino."

(De Diário íntimo, tradução de Mário Ferreira dos Santos, publicação da É Realizações Editora.)

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Os filósofos e a rosa

Se querem conhecer o valor da filosofia, coloquem-na ao lado de uma rosa. Pobre Kant, pobre Schopenhauer, pobre Espinosa! Por que vocês querem saber quem foi o Criador de tudo, Aquele de cujo molde saíram vocês e as rosas? Para condená-Lo, certamente, pela desigualdade de tratamento.

O poeta, hoje

Os sonetos agora me cansam. Catorze versos já não são para a minha idade. Só trapaceando eu consigo carregá-los. Não ponho neles a febre que punha na adolescência. A maturidade não faz bem aos poetas. Ela os conduz pelas trilhas mais curtas. Os poetas mais velhos zombam dos poetas jovens, que têm a aspiração de se dar, de morrer em cada verso. E advertem: assim vocês não chegam à nossa idade. Mas bem que gostariam, bem que gostaríamos de nos entregar como antigamente e de gastar a vida em palavras escritas com suor e sangue. Ah, como nos redimiríamos se pudéssemos, como estes novos agora tentam, oferecer a vida por uma fatia de arte. Que vida? Não certamente esta. Que vida há neste corpo em que os ossos frágeis substituíram a carne flamante? Que vida há nestes olhos, tão velhos que qualquer fagulha de esperança pode ser imediatamente denunciada como uma obscenidade?

Mario Quintana

Havia em Mario Quintana
um passarinho de alma inquieta
como a alma de um poeta.

Hoje no portal do Estadão...

... falo da felicidade e do que fazemos para alcançá-la (www.estadao.com.br)

"Coação", de Wislawa Szymborska

"Comemos a vida alheia para viver.
A falecida costeleta com o refinado repolho.
O cardápio é um necrológio.

Mesmo as melhores pessoas
precisam morder, digerir algo morto,
para que seus corações sensíveis
não parem de bater.

Mesmo os poetas mais líricos.
Mesmo os ascetas mais severos
mastigam e engolem algo
que, afinal, crescia.

Acho difícil conciliar isso com os bons deuses.
Talvez credulamente,
talvez ingenuamente
deram à natureza todo o poder sobre o mundo.
E é ela, louca, que nos impõe a fome,
e ali onde há fome,
fim da inocência.

À fome logo se juntam os sentidos:
o paladar, o olfato, o tato e a visão,
pois importam quais iguarias
e em quais pratos.

Até a audição participa
no que sucede,
pois à mesa não raro rolam conversas alegres."

(Do livro Um amor feliz, tradução de Regina Przybycien, Companhia das Letras.)



quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O que nos move

A esperança de um poema, talvez enfim aquele que há tanto tempo buscamos e justificará nossa vida, é que nos faz acordar toda manhã e continuar respirando: quem sabe hoje, quem sabe.

Forno & fogão

Se ainda não disseram, digo eu: o enorme número de escritores de livros de culinária e gastronomia torna quase inevitável chamá-los, em conjunto, de panelinha.

Deolinda.

Quando em sonhos o Diabo, pela terceira noite seguida, o incitou a matar Deolinda, o escritor resolveu atendê-lo. Dava-se muito bem com ele e devia-lhe expressivos favores. Só não entendeu por que o Diabo teria escolhido Deolinda. Era uma personagem secundária no romance.

Cena urbana

Dentro da caçamba
tocado pela chuva repentinamente
o gato de pilha
põe-se a miar desconsoladamente.

"A barata sonhadora", de Augusto Monterroso

"Era uma vez uma Barata chamada Gregor Samsa que sonhava que era uma Barata chamada Franz Kafka que sonhava que era um escritor que escrevia sobre um empregado chamado Gregor Samsa que sonhava que era uma Barata."

(De A ovelha negra, tradução de Millôr Fernandes, Cosac Naify.)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Na boa

Não há melhor forma de conforto
do que estar, ficar
e continuar morto.

Impressão

Soprada pelo vento, a folha corre no quintal, perseguida pelo cachorrinho brincalhão. Quem ousaria, vendo-a como vejo agora, chamá-la de morta?

O jogo

O amor é um desses objetos que criamos e sobre os quais logo perdemos - ou fingimos perder - o controle. Ele aprende conosco a fingir e nos deliciamos mutuamente com esse jogo. Às vezes, ele e nós fingimos morrer. Isso, que chamamos de pacto, é a melhor parte do jogo.

Modo de ver

Um poeta de verdade não sabe o nome de todas as estrelas, mas trata cada uma delas como se falasse com uma menina, hoje moça, conhecida desde o tempo do curso primário.

Palavras

Quando menino, encantava-se ao tomar sopa de letrinhas. Em cada colherada tentava decifrar as palavras que engoliria. Imaginava-as formando histórias dentro dele. Lembrou-se disso hoje, depois do diagnóstico do médico: câncer no estômago.

Ideal

Escrever como Machado de Assis e ganhar como Paulo Coelho.

"O Burro e a Flauta", de Augusto Monterroso

"Jogada no campo estava, faz tempo, uma Flauta que já ninguém tocava, até que um dia um Burro que passeava por ali soprou forte nela fazendo-a produzir o som mais doce de sua vida, quer dizer, da vida do Burro e da Flauta.
   Incapazes de compreender o que tinha acontecido, pois a racionalidade não era o forte deles e ambos acreditavam na racionalidade, separaram-se rapidamente, envergonhados do melhor que um e outro tinham feito durante toda a sua triste existência."

(De A ovelha negra e outras fábulas, tradução de Millôr Fernandes, Cosac Naify.)

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Gula

Desde os seis anos, tenho sido um leitor ansioso. Imaginava ser capaz de ler todos os livros que existissem no mundo. Só tenho um arrependimento: o de não ter lido pelo menos o dobro do que consegui.

Faceta

O melhor papel que desempenhei na literatura foi o de leitor.

Privilégio

Se estiver andando à noite por uma rua deserta e ouvir chamarem seu nome, o poeta não há de duvidar: ou será a lua ou será uma estrela.

O sangue do inocente

O primeiro personagem que matei, num conto do século e do milênio passados, andou me perseguindo alguns meses em pesadelos. A partir do segundo, eles e eu nos acostumamos.

Caixa

O amor é calculista.
Só deixa pagarem a prazo
O que não pode cobrar a vista.

Vergonha

Gramático, morreu de disenteria. E foi uma bênção estar morto e não passar a vergonha de ouvir os parentes dizendo que tinha morrido de desinteria.

Aristocracia (para o Gianluca e a Nicole Drewnick)

Toda vez que sobre o parque passa um avião com sua voz de tenor, o passarinho presunçoso diz ao tolinho: "Olha lá, é meu pai de novo."

Gorado, como todos

Desde a adolescência lida com a ideia de suicídio. Agora, já pleno merecedor, pela idade, da morte natural, pensa que todas as antigas cogitações sobre cordas, calibres e beberagens serão não mais que componentes de mais um de seus projetos frustrados. Amante do futebol, ele imagina que, se o ato extremo vier a acontecer, será aos 48 do segundo tempo. Que não seja um pênalti. Ele não terá coragem de bater.

Justiça

Não merece mais que a meia-idade
um meio homem como eu
sem eira e sem beira
que a vida inteira viveu
sob o signo da mediocridade.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Não quero ser a carpideira do meu tempo. Mesmo encontrando todos os dias pelas escadas os devotos de Morfeu, suas veias machucadas. Amanhã alguém nos cantará. Um rock de horror?"

(De Ovelhas negras, edição da L&PM.)

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Cotação do dia

E, no entanto, sobrevivi ao amor e a outras calamidades.

Procon

Situação vexaminosa:
ou se valida
como suicida
ou é acusado
e condenado
por propaganda enganosa.

Aflição

Quando colocou a corda no pescoço, o suicida sentiu um nó na garganta.

Instruções para um caminhante neófito (para Luiz Vita)

Não há nada mais fácil do que andar, você vai ver. É só - depois de abrir a porta, naturalmente - ir pondo um pé à frente do outro, não necessariamente nessa ordem, e continuar assim, sempre em frente, não se esquecendo em nenhum momento de respirar. Alguns agradecem a Deus, pela graça, mas não é obrigatório.

Um trecho de Caio Fernando Abreu

"Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. 'De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo jovem', onde foi que li isso? Sei. Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do coração selvagem".

(De Ovelhas negras, edição da L&PM.)

domingo, 6 de novembro de 2016

Nostalgia

Como eram melhores os domingos, na época em que havia Corinthians.

Essência (para Silvana Guimarães)

No fundo mais profundo
no âmago da rosa
na palpitação visceral de uma estrela
existe algo que se decifrável fosse
seria trabalho jamais para a lógica da prosa
mas para a destrambelhada imaginação da poesia.

Mediocridade

Eu sou meio inepto, meio tolo, meio estúpido, meio bronco e completamente ignorante em relação a todas essas meias deficiências.

Opinião

Se você gosta do que escreve
e do que Shakespeare escreveu
talvez haja algum defeito
em quem um e o outro leu.

Rotina

Verá quem viver:
nem os vitalícios
escapam ao vício
de morrer.

Território

Havia um homem ali
onde agora hiberna
a sucuri.

Correção de rumo

Notando que a sua não era a criativa loucura dos gênios, conseguiu curar-se a tempo de sua poesia e se tornar um escritor cujos romances tinham começo, meio e às vezes fim.

Consciência (para Liberato Vieira da Cunha)

Às vezes penso que tudo em mim - até a tristeza sobre a qual ergui minha vida - é falsificado.

Revista Rubem

Hoje falo de amor, desamor e outras dessas coisinhas que, no fundo, são tudo (www.rubem.wordpress.com).

Um poema de Paul Auster

"Picaretas pontuam a pedreira - marcas gastas
Que não alcançaram cifrar a mensagem.
A disputa açulou suas letras,
E as pedras, cingidas de abuso,
Memorizaram a derrota."

(De Todos os poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)

sábado, 5 de novembro de 2016

Nada mais

O suicídio, visto sem exageros, é só mais uma coisa da vida.

Fácil assim

No dia em que escrever estiver te parecendo um brinquedo de criança, é melhor que te abstenhas e ofereças à tua mão uma caixa de lápis de cor, com os quais ela certamente fará melhor arte.

Metáforas

Com as aventuras já beirando o ocaso,
Sua imortal espada de guerreiro
Parece agora o espasmo derradeiro
De um lírio decompondo-se num vaso.

A imagem

A maioria dos atuais escritores místicos me traz a imagem de homens carregando, nos ombros ensaguentados, quartos de boi para dentro de um açougue.

Virtude

Há escritores que sabem como empregar vírgulas. Em alguns, essa é a principal, e em outros é a única qualidade.

Magister dixit

Se as máximas contêm, como se pensa, a sabedoria em doses mínimas, presume-se como deve ser enfadonha a verdade em sua versão integral.

Confraria

O problema das igrejinhas literárias é a dificuldade de encontrar devotos; todos querem ser o papa, se não puderem ser deus.

Economia

Desperdiçar a tristeza é o que de pior o poeta pode fazer. Espremê-la, espremê-la, até que ela deixe escorrer as últimas lágrimas,

Melhor não

A um homem não convém dar a impressão de que precisa de ajuda. Provavelmente descobrirá que ninguém está disposto a dá-la.

Reserva

Uma poesia deve dar a impressão de que terá algo mais a revelar, talvez até o essencial, se resolvermos ouvi-la mais uma vez.

"Natureza-morta", de Paul Auster

"Neve. E no mais ínfero
filão de brancura,
uma lembrança
que soma teus passos
aos perdidos.

Infindamente,
eu teria seguido contigo."

(De Todos os poemas, tradução de Caetano W. Galindo, Companhia das Letras.)

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Agora vai

Decidiu ser poeta
e já tem as matérias-primas:
um coração pateta
e um dicionário de rimas.

Cotação do dia (7)

Se tivesse o endereço de Sylvia Plath, iria visitá-la e pedir-lhe que o deixasse dar uma espiadinha no forno.

Cotação do dia (6)

Se ele se atirasse do décimo andar, sabe que cairia sobre um toldo flexível que ficaria brincando de jogá-lo de volta para cima. Ou acabaria nos braços de um super-herói bem barbeado que depois de salvá-lo pediria que assinasse uma ficha de atendimento e lhe passaria o endereço de uma igreja.

Cotação do dia (5)

 A Morte pede seus documentos e ele, quando enfim os acha e volta para a sala, descobre que ela se cansou de esperar e se foi sem deixar recado.

Cotação do dia (4)

Tem sempre o mesmo pesadelo: o carro funerário empaca e, enquanto o motorista vai buscar socorro, ele fica sozinho no escuro e começa a sentir falta de ar.

Merecimento

Sequestrado, o poeta parnasiano exigiu ser trancado no cativeiro com chave de ouro.

Cotação do dia (3)

Ter um pesadelo em que, justamente quando chegou sua vez, a Morte suspendeu o atendimento.

Cotação do dia (2)

Um dos pequenos órfãos de Dickens, enfiado numa pocilga, tendo como único passatempo catar pulgas no corpo e contar as chicotadas cada vez mais punitivas do algoz.

Cotação do dia

Um zero à esquerda, murcho e enrugado, rejeitado até pela caçamba.

Portal do Estadão

Hoje falo da superioridade da arte sobre a vida (www.estadao.com.br)

Norma

Buscar o belo é só aceitar como exceção tudo que com ele não se pareça.

Gramático

O tico-tico pudico
apaga no muro com o bico
raspadinha após raspadinha
o acento no ú
da infame palavrinha.

Soneto do dizer e do desdizer

Que alegria me dás quando me dizes,
Olhando-me nos olhos ternamente,
Que sempre estive mais do que presente
Em todos teus momentos mais felizes.

E que dor tu me dás quando desdizes
O que disseste emocionadamente
E me acusas irrecorrivelmente,
Exibindo-me as tuas cicatrizes.

Imagino, desde que o amor morreu,
Que talvez estivesse vivo se eu
Naquele tempo em que os podia dar,

Motivos só te desse de prazer,
E nenhum no qual tu pudesses ver
Algo que tu quisesses renegar.

Um poema de Lawrence Ferlinghetti

"Terrível
um cavalo em plena noite
sozinho atrelado
na rua silenciosa
e relinchando
como se alguém nu e triste
o houvesse montado e cingido com pernas ardentes
e cantarolado
uma única sílaba
singela estridente faminta."

(Tradução de Eduardo Bueno, poema extraído de Um parque de diversões da cabeça, edição da L&PM.)

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Cotação do dia

Sabe quando você se sente morto e tem medo de se apalpar, porque pode descobrir que não está?

Poesia, hoje

Os poetas não conversam mais com as flores.
O pacto foi rompido,
O contrato está rasgado.
Também com a beleza
Os poetas não estão mais comprometidos.
Para tempos duros como estes
Há de se celebrar a flor da aspereza.
Sorrisos são indícios de fraqueza,
Para morder e rasgar servem os dentes -
E mais saborosa que o beijo das musas
É a relutante carne dos combatentes.

Peculiaridades

Navio abandonado
sou todo craca num
e todo guano
no outro costado.

Um poema de Bai Juyi (772-846)

"Aqui e ali, surgem ervas na planície,
Em cada ano morrem e renascem.
Fogos selvagens queimam-nas, não as matam,
Com o vento primaveril ei-las outra vez!
A fragrância longínqua perfuma a via antiga:
Um feixe de esmeraldas nas velhas ruínas.
É tempo outra vez de dizermos adeus
E do senhor que parte se despedem elas."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Mario Quintana (para Silvia Galant François)

Mario Quintana era um daqueles poetas galantes que, para encanto das mulheres, traziam sempre no bolsinho do paletó, disfarçada de lenço, uma borboleta.

Imperdível...

... a conversa de Ubiratan Brasil com Valter Hugo Mãe hoje, no Caderno 2 do Estadão.

Da inutilidade de uma flor (para PMM)

Guarda tua flor.
Por que a trouxeste aqui?
Aqui não encontrarás
por mais que venhas a procurar
a lápide do amor.

Como os heróis de Hollywood
o amor tem aquela virtude:
mata mas não se deixa matar.

Para os nossos amados, no seu dia

Levemos hoje aos mortos
nossas mentiras
e nossas flores

Se jamais se queixaram
quando podiam,
por que agora se queixariam?

Como sempre eles nos ouvirão
e se novamente em nós não acreditarem
mais uma vez se calarão.

Se alguma coisa disserem
será para nos agradecer
pela visita e pelo lindo buquê.

Ou, ou então

Viver é tão cansativo,
Tão sonolento de ser,
Que é difícil escolher:
Não sei se durmo ou se vivo.

"De pé", de Emily Brontë

"De pé,
Perto desta água morta e triste,
Sob o inverno dos raios e os lagos da lua,
Ele sonha ainda com a obra do assassino,
Mais pesada em seu coração que a pesada noite.

Ela veio, a voz do sonho esfacelado,
Devagar no ar silencioso,
Como a mão que não tem força.
E no entanto, antes do negro grito dos corvos,
Ele estava ali, de pé, indiferente.
E no entanto, ouvia.

Assim ouviu a voz,
Doce como um perfume, chamar pelo seu nome,
Uma vez somente.
E depois o eco esmoreceu aos poucos...
Mas viam-se fugir, a cada batida do coração,
As asas do horror.

A mesma vida sempre acabava de morrer."

(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Nada a ver

Morrer cedo
não faz de ninguém
um álvares de azevedo.

Composição

Na cozinha
um ovo todo picado
dentro de uma torta:
natureza-morta.

Por que

Até hoje, quando ouve a palavra amor, ele se pergunta por que não seguiu a voz que lhe disse essa palavra anos atrás, quando qualquer desastre podia ser lançado ainda à conta de sua imaturidade. Até hoje ele se pergunta por que hesitou, porque esperou que a voz repetisse amor e por que, ouvindo-a repetir, não se dispôs a ir até o lugar de onde ela o incitava. Ah, por que ele não correu até lá, com as pernas ainda não tão desgraçadamente entrevadas como agora?

Um poema de Ma Zhiyuan (1260?-1325?)

"Trepadeiras secas, velhas árvores, corvos no crepúsculo,
Uma ponte baixa, um riacho correndo, umas casas
Uma antiga via, um cavalo magro, o vento oeste,
O sol a pôr-se - também a Oeste.
E um viandante de coração destroçado
No limite do céu."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Covardia

Tão feia essa palavra: finados. Nós a usamos porque os destinatários não podem mais reagir.

Herói vilão

Vejo, com tristeza, o amor sendo destituído de todas as suas magias e poderes. Não há mais garotas suspirando nem garotos rabiscando poemas em bloquinhos. O amor é hoje um personagem estranho e é preciso preparar o ambiente para que, ao mencioná-lo, não estourem gargalhadas de zombaria. Pobre amor, merece ele isso, são justos todos esses sarcasmos? Dizem que ele não faz mais nascer flores. Mesmo que seja verdade, penso que estamos sendo impiedosos com ele. Poupemos nosso herói. Que ele, se já não faz nascer flores, possa ao menos fazê-las murchar romanticamente, melancolicamente, maravilhosamente, como devem morrer sempre as flores.

Fastio

Quem há de se importar
com o que pode hoje falar
um poeta com sua poesia?
Todas as metáforas
já foram usadas reusadas e catalogadas
e quando são chamadas mais uma vez
vêm bocejantes e amuadas
como a puta que
já pronta para descansar
tendo atendido 22
ouve tocar a campainha
vai abrir a porta do apartamento
para o gordo suarento e ofegante
e é claro que ele -
que tímido diante dela treme -
é o freguês número 23.

Um poema de Li Shangyin (813-858)

"Sempre difícil encontramo-nos, difícil, sempre, separarmo-nos
E murcha cada flor no vento que declina
Terminado que é o fio, morre na primavera o bicho-da-seda
A vela seca as lágrimas - quando já é só cinza
De madrugada, o espelho faz-me triste
Mudados nele os meus cabelos
A voz que canta na noite acorda o frio sentido do luar
Daqui não é longe... daqui à Ilha dos Imortais
Pássaro Azul, depressa, gostava de lhe dar uma espreitadela."

(De Uma antologia de poesia chinesa, tradução de Gil de Carvalho, edição da Assírio & Alvim, Lisboa.)

domingo, 30 de outubro de 2016

20h38

Trouxe meu domingo e vim mofar com ele aqui na loja. Estive com as portas fechadas desde que cheguei, de manhã. Escureceu agora e não posso acender a luz - vá o fiscal passar e me aplicar multa por trabalhar em dia proibido e hora inapropriada... Debruçado sobre a mesa, espero o momento em que o cochilo me levará ao sono. Dormir tem sido o único remédio para o meu coração. Coração!...  Há alguém mais que ainda use essa palavra? Deus, homens ingênuos e ridículos como eu deveriam morrer na adolescência, com um poema entalado na garganta e a limpidez ainda não maculada dos olhos azuis.

Contraste

Nos últimos tempos, aqueles em que começou a registrar suas memórias, o escritor sentia-se fatigado até ao mover uma vírgula do fim para o início de uma frase. E era um triste contraste esse, o cansaço - justamente quando ele, no primeiro capítulo, rememorava suas travessuras de menino.

Sentido

Se alguém diz que a literatura é o seu pão de cada dia, quase certamente está se referindo a pão no sentido espiritual.

A verdade

De todas as nossas perdas, nenhuma é tão irreparável quanto a da juventude. Não há bem nem sabedoria que possam compensá-la. Prazeres espirituais, êxtases místicos? Balelas, balelas. E, para que fique bem claro: balelas, balelas, balelas.

Credencial (para Diego Moraes e Marcelo Mirisola)

Você não precisa do atestado de louco para ingressar na literatura. Em pouco tempo ela lhe providenciará um, lavrado pela mesma esmerada letra em que qualquer grafólogo reconhecerá traços iguais aos encontrados nos manuscritos de Satanás.

Um haicai

Um haicai não é produto nem da meditação nem da imaginação. Um haicai é um desses frutos que a natureza oferece ao poeta. Vem pronto para ser colhido e, para que não se duvide da sua origem, traz sempre uma gota de orvalho ou um halo de sol.

Servidor

Um poeta precisa considerar sempre que, se existe algo de sagrado no que faz, ele o deve não a si mesmo, mas ao ofício que exerce.

Um poema de Lawrence Ferlinghetti

"O olhar do poeta olhando obsceno
vê a superfície do mundo
redondo com seus tetos de porre
e passarinhos de madeira em varais
seus machos de argila e fêmeas
de peitos em botão e pernas quentes
em camas de desmontar
e seu mistério carregado nas árvores
seus parques dominicais de estátuas mudas
sua América
rica de localidades fantasmas e ilhas de formalidades vazias
e a paisagem surrealista composta de
campinas sonhadoras
subúrbios - supermercados
cemitérios de aquecimento a vapor
cinerama feriados
e catedrais protestantes
um mundo à prova de beijo com assentos de privada de plástico tampax e táxis
caubóis drogstorizados e virgens las vegas
índios renegados madames cinemalucas
senadores irromanos conformistas conscienciosos
e todos os outros fragmentos fatais podados
do sonho do imigrante feito real demais
e extraviado
no meio dos banhistas ao sol."

(Tradução de Eduardo Bueno, poema do livro Um parque de diversões da cabeça, edição da L&PM.)


sábado, 29 de outubro de 2016

Vantagem

Se o amor nos faz babar, vejamos o que há de bom nisso: nossas gravatas nunca murcharão.

Tela

Um bom exercício poético é soprar as nuvens cor-de-rosa para além do horizonte, preparando a tarde para que a noite estenda seu tapete sobre ela e se deite com seu vestido estrelado.

Epifania

Um poeta, mesmo o mais velho deles, sempre pode, por uma dessas inesperadas florações do amor, estar andando por um parque, pegar o bloco para anotar um verso e com esse gesto provocar um alvoroço de borboletas amarelas.

Jurisdição (para Celina Portocarrero e Marisa Lajolo)

Ao poeta cabe manifestar-se
sobre o que é de sua alçada
a lua as flores o amor
talvez algo mais
talvez mais nada.

Acerto

Cansado de negociar, ele abre a porta do carro:
"Tá bom. Cinquenta. No capricho?"
Ela movimenta a língua em torno dos lábios:
"Com certeza."

Aviso na porta

"Se não vens me falar de amor (bem ou mal), melhor é nem entrares."

"Estâncias", de Emily Brontë

"Já me reprovaram e volto sempre
Aos primeiros sentimentos que nasceram comigo;
Deixo de correr atrás do ouro e do conhecimento,
Para sonhar apenas com maravilhas impossíveis.

Mas hoje
Não descerei mais ao império das sombras;
Tenho medo da sua frágil e decepcionante imensidão,
E meu sonho, povoado com legiões inumeráveis,
Torna este mundo sem forma estranhamente próximo.

Caminharei,
E ficarão para trás as antigas verdades do heroísmo,
E os caminhos já exaustos da moralidade,
E o imprevisto aglomerado de faces obscuras,
Ídolos em bruma de um passado já longínquo.

Caminharei,
Onde só agradar à minha alma caminhar,
(Não posso suportar a escolha de outro guia),
Onde os rebanhos se acinzentam no verde das campinas,
Onde o vento alucinado vergasta o flanco das montanhas.

Que pode revelar a montanha solitária?
Nada exprime sua glória e sua dor..
Minha alma dormia, quando a terra despertou,
E o círculo do Céu ao Círculo do Inferno

Confundindo-se, à terra deram nascimento."

(De O vento da noite, tradução de Lúcio Cardoso, Civilização Brasileira.)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Opostos

Tudo bem, você se gaba de jamais ter se ajoelhado diante do Amor. Eu me orgulho da dor que sinto ainda hoje em meus joelhos, toda vez que os apalpo.

Dezembro, talvez 2009

Como eu gostaria de voltar a ser aquele idiota caminhando certa manhã pela Paulista, sorrindo para o sol e sendo retribuído.

Lógica

Toda mulher hábil no manejo de um chicote há de ter os lábios adequados para soprar feridas.

Reflexão no café da manhã

Diante do Amor, devemos curvar-nos. Sabemos já que ele não é o que imaginávamos, mas, se nos descartarmos também dessa ilusão, a maior, viveremos de quê e para quê?

Hoje, no portal do Estadão

Falo de como a linguagem amorosa, como todas as demais, há de ser adequada. Que não se trate Rosicleuza como se fosse a Marília de Dirceu.

Compaixão

O escritor não deve atormentar-se quando tenta, tenta, e não lhe sai sequer uma frase. Deve pensar na bênção que isso pode representar para os leitores.

Metros finais

Do jeito que vai
logo não aguentarei
nem o peso de um haicai.

Um trecho de Nietzsche

"Falando teologicamente - preste-se atenção, pois raramente falo como teólogo -, foi o próprio Deus que, ao fim da sua jornada de trabalho, estendeu-se em forma de serpente sob a Árvore do Conhecimento: assim descansou de ser Deus... Havia feito tudo demasiado bonito... O Diabo é apenas a ociosidade de Deus a cada sete dias..."

(De Ecce homo, tradução de Paulo César de Souza, Companhia das Letras.)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Cabal (para Deonísio Da Silva e Liberato Vieira da Cunha)

Precisei ler três vezes
sem entender o que lia
para compreender -
era uma algaravia.

Registro (para Renato Vieira Ostrowski)

Minha última falha
foi tentar - e não conseguir -
mover uma palha.

Autorretrato

Sou um homem comum
não me fascinam desafios
não piloto espaçonaves
não movo montanhas
não mudo o rumo dos rios.

2 de novembro (para Silvana Guimarães)

Nós hoje mortais felizes
pensemos no nosso futuro
nos miremos nos mortos
sempre trabalhando no escuro
entranhando suas raízes
para tomar posse do território
que lhes outorgamos
com nobres palavras finais

Pensemos neles
e ouçamos o ruído
que eles tentam ocultar
o esforço silencioso
que fazem para ocupar
o lugar que lhes destinamos

Ouçamos o empenho deles
para arraigar-se mais mais
antes que nos arrependamos
e alegando o que aleguemos
os deserdemos
e os exumemos
com nossas solenes palavras
e nossos rituais.

"Conheça Miss Metrô", de Lawrence Ferlinghetti

"Conheça Miss Metrô
1957
Veja Miss Metrô
1957
rodando no trem da Times Square
pra lá e pra cá
às quatro da manhã

Conheça Miss Metrô
1957
Ela usa buchas de algodão do tamanho de moedas
socadas no nariz moreno achatado
e transitando pra lá e pra cá
no trem da Times Square
às quatro da manhã
e circulando
entre os anéis de ferro do paraíso
com braços dourados retalhados
charuto negro em mão morena

Você pode encontrar Miss Metrô
Você pode ver Miss Metrô
1957
transando trastes transidos
circulando em transe pelo trânsito
com braços morenos fatigados
bituca negra em mão morena

E os carros de ferro
indo e vindo eternamente
rumo à morte e à escuridão

oh Ubangi perdido
cambaleando entre
as 'ogivas sucessivas' do Inferno
em direção à definitiva
escada de incêndio de Dante."

(Tradução de Eduardo Bueno, poema do livro Um parque de diversões da cabeça, editora L&PM.)

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Aparência (para Deonísio Da Silva)

Pode não ser
mas tem sempre certo ar obsceno
um substantivo epiceno.

Soneto de como lidar com o amor (para Celina Portocarrero)

Enquanto estivermos vivos
E do amor nós dependermos,
Aceitemos seus motivos
E vivamos sob seus termos.

Que tudo que ele disser
Recebamos como lei
E tudo que ele impuser
Nos imponha como rei.

Por dever ou por opção,
Façamos-lhe sempre festa
E lhe lambamos a mão.

Quem mais a porta abriria
De casa nobre como esta
A uma canzoada vadia?

Mais

Da poesia sempre se espera o extraordinário, assim como se imagina que, por aguda que seja a nota de um violino, jamais será a mais pungente que dele se possa extrair.

Lacuna

Dedicar-me por inteiro à literatura foi algo que eu deveria ter feito de modo mais completo.

Coprolalia

Nenhuma expressão de tanto mau gosto quanto "esgoto a céu aberto".

Um soneto (para Priscylla)

Outro dia, destaquei do bloco um soneto que me pareceu pior que os outros e o atirei, como insulto, ao vento que me cuspia chuva no rosto. Ele no primeiro momento flutuou com certo ar de passarinho e, no segundo, deitou-se na enxurrada, como um barco. Estive a ponto de correr  para resgatá-lo, mas logo ele encalhou vergonhosamente numa sacolinha de supermercado. Deixei-o lá. Era o lugar que merecia. Nem passarinho nem barco. Só mais um soneto malnascido.

Um trecho de Marcelo Mirisola

"(...) Isso tudo e as unhas brancas da professorinha cravadas na minha nuca e e me empurrando para baixo, o pau duro e a desnecessidade de aprender a falar, escrever e/ou 'acompanhar a classe'. Em 1977, portanto dois anos depois de eu ter endurecido o pau pela primeira vez, Clarice Lispector ia morrer incendiada em si mesma, esgotada e, desgraçadamente, olhando pro chão."

(De O azul do filho morto, Editora 34.)

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Memórias de um secretário do amor

Servi à causa do Amor e dele
fui tão empenhadamente sectário
que me tornei seu secretário

Não me invejem vocês jovens
que hoje mercadejam com o Diabo
para também ao Amor devotar-se

Não hesitem tenham coragem
É só apresentar-se a ele curvar-se
e jurar-lhe eterna vassalagem

Já daqueles que pretendam
um posto na secretaria
o Amor exige alguma poesia

Quantas cartas para ele eu fiz
ah quantos pingos nos is
para lia maria marília e beatriz

Foram mil vezes mil
ou mil vezes mil mais mil
no tempo em que eu o servi

Ele me chamava e me pedia
que exaltasse com todos os ês
berenice teresa helena irene e marinês

Eu mentia mentiras colossais
mas o Amor insatisfeito exigia
mente mais poeta mente mais

Com a barriga enfunando a camiseta
e o passarinho escapando pela cueca
ele insistia: mente mais mente tudo poeta.

Chamei domitilas de luas
e helenices de estrelas
sem vê-las nem conhecê-las

Jovens que querem apresentar-se
e ao Amor nesse jogo sujo aliar-se
apressem-se: já menti muito não mentirei jamais